V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X
EDUCAÇÃO INTEGRAL: UMA CONCEPÇÃO EM DISPUTA1
Débora Spotorno Moreira Machado Ferreira2
Resumo
O presente artigo consiste na apresentação da educação integral sob a perspectiva dos projetos
educacionais em disputa. Tomaremos como educação integral aquela que se baseia na concepção
crítica e visa à superação da sociedade capitalista e à instauração do socialismo. Entretanto, esse é
um termo comumente apropriado pelos discursos hegemônicos em uma perspectiva totalmente
distinta da que defendemos. Por isso, compreender como a classe dominante vale-se dessa categoria
é um esforço essencial para desconstruir seus argumentos e apresentar contra ela uma
argumentação consistente.
Palavras-chave: Educação Integra; Escola unitária; Reforma do Ensino Médio.
EDUCACIÓN INTEGRAL: un concepto en disputa
Resumen
El presente artículo consiste en la presentación de la educación integral desde la perspectiva de los
proyectos educativos en disputa. Tomaremos como educación integral, aquella que se base en la
concepción crítica y tenga como objetivo la superación de la sociedad capitalista y la instauración del
socialismo. Sin embargo, este es un término comúnmente apropiado por los discursos hegemónicos,
en una perspectiva totalmente diferente a la que defendemos. Por lo tanto, comprender cómo la clase
dominante usa esta categoría es un esfuerzo esencial para deconstruir sus argumentos y presentar
una contraargumentación consistente.
Palabras clave: Educación Integral; Escuela Unitaria; Reforma Escolar.
INTEGRAL EDUCATION: a concept in dispute
Abstract
The present article consists of the presentation of integral education from the perspective of the
educational projects in dispute. We will take as integral education, the one that is based on the critical
conception and aims to overcome capitalist society and the establishment of socialism. However, this
is a term commonly appropriated by hegemonic discourses, in a distinct perspective from the one we
defend. Therefore, understanding how the ruling class uses this category is an essential effort to
deconstruct its arguments and present consistent counter-argumentation.
Keywords: Integral Education; Unitary School; High School Reform.
2Doutoranda em Serviço Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em
Serviço Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Assistente social no Instituto
Federal Fluminense, Campus Macaé. E-mail: deboraspotorno@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6917562635160328. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9902-4683.
1Artigo recebido em 14/07/2022. Primeira avaliação 07/09/2022. Segunda avaliação 17/09/2022.
Aprovado em 23/09/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i4355215.
1
Introdução
Pensar a educação integral e o que ela significa na educação básica brasileira
do século XXI envolve compreender seus aspectos nas mais variadas, distintas e
contraditórias percepções que resultam em projetos de educação em constante
disputa na realidade, em pleno contexto de (contra)reforma do ensino médio.3
Nesse sentido, a compreensão de educação integral que aqui se apresentará
como essencial e, de fato, integradora baseia-se em uma concepção crítica que
defende a transformação da sociedade capitalista, sua superação e a instauração de
uma outra forma de organização social: a saber, o socialismo.
Dito isso, o leitor está ciente de que a construção teórico-metodológica aqui
usada irá conduzi-lo por uma leitura implicada, comprometida e radicalmente
enraizada na concepção de que a educação, ao lado dos demais aparelhos de
hegemonia, pode e deve ser constituída “para” e “pela” classe trabalhadora, para ela
mesma, em um processo de autoformação que combata a alienação e promova uma
nova concepção de mundo, fincada na filosofia da práxis. Logo, não neutralidade
neste ensaio, não uma apresentação indiferente dos diversos pontos de vista
acerca do que seja a educação integral e seus mais variados discursos e projetos,
entre as distintas frações de classe da sociedade capitalista atual.
Toda exposição aqui realizada, mesmo que se mantenha fiel aos discursos
apresentados, desde a escolha dos interlocutores até a seleção dos textos para a
construção da análise, fizeram-se com base no envolvimento da autora com o tema
e na sua defesa teórica e prática como assistente social da educação profissional e
tecnológica de nível médio integrado ao técnico de um instituto federal brasileiro.
Para compreender a educação integral do ponto de vista da perspectiva
crítica marxista, optamos por desenvolvê-la partindo do que defende Gramsci como
Escola Unitária. Nesse sentido, temos o desenvolvimento dessa categoria como o
primeiro ponto abordado no presente ensaio. Isso porque a compreensão de tal
categoria deixará evidente o que defendemos como o verdadeiro modelo de
educação integral, que seja capaz não de atender às transformações do capitalismo
3Necessário ainda destacar que a educação integral aqui apresentada irá focar na sua concepção
apenas para formação dos jovens entre 14 e 18 anos (que no Brasil diz respeito ao nível médio da
educação básica), apesar de que, quando tratarmos da escola unitária em Gramsci, esta refere-se a
um período que seria o que hoje conhecemos como a educação básica do fundamental ao médio.
2
e suas necessidades, mas sim de formar a classe trabalhadora para a luta pela
superação desse sistema que a subjuga.
Posterior à apresentação da concepção gramsciana acerca de escola unitária,
apresentamos as acepções de escola integral da burguesia, mais precisamente, do
Banco Mundial, da burguesia nacional do Centro de Estudos e Pesquisa em
Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec) e o Programa de Educação
Integral do Governo Federal (Programa Mais Educação de 2007), passando à
análise da atual (contra) reforma do ensino médio como um espaço de disputa do
empresariado nacional e internacional para a conformação da classe trabalhadora à
lógica da acumulação flexível.
Discutimos a concepção de educação integral em disputa, e como essa se
tanto no campo político e econômico quanto no ideológico, cuja educação
constitui-se em espaço privilegiado, uma vez que contribui com a formação da
classe trabalhadora. Para tanto, as diversas concepções acerca de educação
integral são analisadas com a intensão de explicitar o real significado que elas
carregam.
Posteriormente, são efetuadas a exposição e a análise da atual (contra)
reforma do ensino médio, destacando todos os seus problemas, em especial o fato
de ela alimentar uma formação dual, e institucionalizar o acesso desigual e
diferenciado ao conhecimento, o que colabora com a precarização da formação da
classe trabalhadora.
Por fim apresentamos uma perspectiva que aposta nas possibilidades de que
se construam resistências e se fundem possibilidades concretas de instauração de
uma educação forjada nos moldes da escola unitária. Para tanto, acreditamos que a
intervenção pedagógica tem um papel decisivo nesse processo.
É diante dessa perspectiva, fundada em uma junção corajosa do pessimismo
da razão com o otimismo da vontade, que este ensaio se posiciona, pois, uma vez
que odiamos os indiferentes4, somos parte dos que não apenas fazem a crítica, mas
se unem nas propostas de garantir novas alternativas.
4Ver “Odeio os Indiferentes” (GRAMSCI, 2020). Nesse escrito, o filósofo pontua que a indiferença é
apatia e não é vida, por isso ele odeia os indiferentes. A indiferença é o peso morto da história e o
que atrasa as inovações. Ela afunda os entusiastas e desencoraja os empreendedores. Ela opera
com força na história, opera passivamente, mas opera. Ao abdicar de decidir, de se expor, de tomar
um lado, você acaba estando de um lado.
3
A escola unitária em Gramsci
Esse conceito gramsciano é provocador no sentido da compreensão de uma
dimensão do real, ao oferecer apontamentos específicos, claros, objetivos e
norteadores para a educação da classe trabalhadora, aqui entendida como a
educação que o próprio trabalhador reivindica e constrói para si, pois a ele pertence
a tarefa de exigir a escola do trabalho. Mais do que isso, não é um conceito
puramente abstrato, pois carrega em sua formulação apontamentos concretos e
práticos para essa escola de tipo unitário.
É no contexto da formação dos intelectuais orgânicos, e no debate de como
se a formação de intelectuais de novo tipo que se vinculem organicamente às
massas subalternizadas, que Gramsci constrói suas reflexões acerca dessa escola.
Nesse mesmo sentido, é também sobre as mudanças imbricadas na ciência e
na tecnologia que destaca que as escolas de seu tempo estavam em descompasso
com esses desafios, uma vez que se construíam de maneira diferenciada para cada
grupo social, reforçando a divisão existente no mundo do trabalho e reproduzindo-a
no espaço formativo. A escola construía-se de maneira interessada, ou seja,
vinculada aos interesses específicos da sociedade capitalista, com os destinos dos
alunos determinados de acordo com as funções socioeconômicas a eles
destinadas.
Para o teórico, a forma de solução desse modelo e a forma de pensar a
escola estavam na sua proposta de escola unitária, compreendida como uma escola
capaz de assegurar autonomia, criação intelectual e prática e de, também, cada vez
mais, garantir a capacidade de ser dirigente aos trabalhadores.
A crise terá uma solução que, racionalmente, deveria seguir esta
linha: escola única inicial de cultura geral, humanista, formativa, que
equilibre de modo justo o desenvolvimento da capacidade de
trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o
desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo
de escola única, através de repetidas experiências de orientação
profissional, passar-se-á a uma das escolas especializadas ou ao
trabalho produtivo. (GRAMSCI, 2001, p. 33).
Em Gramsci, a escola deve ser capaz de formar a todos de maneira
igualitária, propiciando a qualquer ser humano o desenvolvimento de habilidades
4
semelhantes, tornando-os igualmente capazes de se tornarem dirigentes ou de
controlarem os que dirigem.
Outro aspecto fundamental, e que está posto desde os seus primeiros
escritos, é o de que seu embasamento filosófico é antitético às concepções
filosóficas dominantes da época e, assim sendo, fundamenta-se nesse
embasamento quando formula suas proposições para a escola unitária.
Cada ser humano, na sua individualidade, está imerso nas relações sociais
das quais faz parte. A individualidade é socialmente construída e, em cada formação
social, essa individualidade é distinta de outra, porque cada formação social, cada
conjunto organizado de relações sociais, imprime aos que a constituem, enquanto
um ser social coletivo ou individual, as suas marcas específicas. Logo, descarta
qualquer teoria que pretenda justificar que alguns seres humanos, por sua natureza,
são fadados à direção e à condução da vida social e outros são predestinados a ser
alvo de determinações que lhe são exteriores, como meros executores.
Sua concepção de escola unitária desenvolve-se de maneira a opor-se ao
processo escolar de seu tempo, em que a escola atendia aos interesses
hegemônicos do capital. Oferecia-se aos dominantes e empresários uma formação
propriamente intelectual para que perpetuassem seu processo de dominação sobre
as massas, e a estas, uma formação exclusivamente instrumental ou para o
trabalho, no seu sentido estrito e operário, mantendo-as, assim, na condição de
dominadas. Logo, “a divisão fundamental da escola em clássica e profissional era
um esquema racional: a escola profissional destinava-se às classes instrumentais,
enquanto a clássica destinava-se às classes dominantes e aos intelectuais”
(GRAMSCI, 2001, p. 33).
Segundo Gramsci (2001, p. 32), a civilização moderna tendeu a criar diversos
tipos de escolas para formar os mais variados grupos de especialistas com vistas a
atender às complexas práticas que se desenvolviam no interior do processo
produtivo. Assim,
ao lado do tipo de escola que poderíamos chamar de “humanista” (e
que é o tipo tradicional mais antigo), destinado a desenvolver em
cada indivíduo humano a cultura geral ainda indiferenciada, o poder
fundamental de pensar e de saber orientar-se na vida, foi-se criando
paulatinamente todo um sistema de escolas particulares de
diferentes níveis, para inteiros ramos profissionais ou para profissões
já especializadas e indicadas mediante uma precisa especificação.
5
Para Gramsci, todos os seres humanos têm capacidades intelectuais.
Nenhuma atividade é apenas motora; todas, uma vez sendo atividades humanas,
pressupõem o movimento intelectual. Sua compreensão da humanidade permite-nos
estabelecer que todo ser humano, por mais ignorante do ponto de vista de sua
formação intelectual e por mais que seu ofício seja aparentemente essencialmente
braçal e mecânico, é sempre capaz de pensar e, mais do que isso, sempre está
pensando. É de Gramsci (1999, p. 93) a compreensão de que “[...] todos são
filósofos, ainda que a seu modo, inconscientemente que, até mesmo na mais
simples manifestação de uma atividade intelectual qualquer, na “linguagem”, está
contida uma determinada concepção do mundo”.
Com isso ele quer dizer que, mesmo no exercício de trabalho manual ou
instrumental, o homem pensa, exige-se dele um mínimo de atividade intelectual,
pois, “[...] em qualquer trabalho físico, mesmo no mais mecânico e degradado, existe
um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual
criadora” (GRAMSCI, 2001, p. 18). Sendo assim, mesmo que não seja um filósofo
de ofício, ele possui desenvolvimento de características filosóficas ou intelectuais,
sem deixar de considerar que, apesar de todos os homens serem intelectuais, “[...]
nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais” (GRAMSCI, 2001,
p.18). E é em decorrência dessa compreensão que defende que a escola deve
radicalizar esse princípio de que todos os seres humanos são intelectuais.
O teórico ressalta a importância de as escolas serem constituídas por
intelectuais que saibam lidar com um método de ensino que comporte elementos
pedagógicos e didáticos, que paulatinamente construam dimensões de autonomia
dos sujeitos e das próprias instituições educacionais. Logo, a escola unitária “[...]
deveria assumir a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de tê-los
elevado a um certo grau de maturidade e capacidade para a criação intelectual e
prática e a uma certa autonomia na orientação e na iniciativa” (GRAMSCI, 2001, p.
36).
Ele estabelece como princípio da escola primária, ou elemento fundamental
dela, a necessidade de definir agendas e conhecimentos políticos de enfrentamento
ou proposta de superação ao que ele denomina de folclore, que pode ser
compreendido como o senso comum ou aquelas concepções de mundo aleatórias,
6
sem reflexões críticas e repetidas instintivamente e automaticamente. Logo, “com
seu ensino, a escola luta contra o folclore, contra todas as sedimentações
tradicionais de concepções do mundo, a fim de difundir uma concepção mais
moderna [...]” (GRAMSCI, 2001, p. 42).
Para Gramsci, essas concepções que necessitam ser superadas, também e
principalmente pelo processo educativo escolar, são o que mantém as pessoas
prisioneiras de uma concepção de mundo e ou uma ideologia que reitera elementos
não científicos e reforça visões mágicas, religiosas e deterministas da realidade,
garantindo a subordinação dos trabalhadores à classe dominante e, assim, a
perpetuação do modo de produção capitalista, da alienação e da hegemonia dos
ideais burgueses.
Esse enfrentamento, segundo o filósofo, tem que ser iniciado na escola
primária, o que inevitavelmente gera uma tensão com as formas de pensamento das
crianças quando chegam a elas. Assim nos anos iniciais, esse tipo de escola:
[...]deveria desenvolver sobretudo a parte relativa aos “direitos e
deveres”, atualmente negligenciada, isto é, as primeiras noções do
Estado e da sociedade, enquanto elementos primordiais de uma
nova concepção do mundo que entra em luta contra as concepções
determinadas pelos diversos ambientes sociais tradicionais, ou seja,
contra as concepções que poderíamos chamar de folclóricas
(GRAMSCI, 2001, p. 37).
Entendida como o ciclo básico que, no Brasil, corresponde à parte da
Educação Básica5constituída pelo Ensino Fundamental e Médio, que atende à faixa
etária que vai dos 6 aos 17 anos a escola unitária tem por objetivo final e
primordial o desenvolvimento da capacidade de uma formação materialista-histórica,
rejeitando o humanismo abstrato, bem como o conhecimento puramente e
exclusivamente técnico-científico.
Assim, a formulação da concepção de escola unitária ganha uma radicalidade
e uma precisão imensas quando justamente estabelece que seu objetivo é a
formação de todos os seres humanos como dirigentes ou capazes de controlar os
que dirigem.
Esse modelo de escola prevê percursos formativos de quadros intelectuais na
perspectiva de que todos os homens são intelectivos. Entretanto, o principal objetivo
5Dizemos parte pois, no Brasil, a Educação básica também corresponde à Infantil, faixa etária não
abrangida pela concepção gramsciana de Escola Unitária.
7
desse modelo de escola é construir um novo intelectual que, nesse caso, é o
intelectual socialista: construtor, organizador, permanentemente persuasor, cuja
técnica trabalho eleva-se à técnica ciência, em que a tecnologia e a concepção
materialista histórica unificam-se para que o trabalhador se construa em especialista
político.
A escola unitária associa instrução e educação de modo não idealista, pois
aqui a formulação de Gramsci está sendo embasada pela concepção de trabalho
inscrita em uma concepção materialista histórica. O conceito e o fato do trabalho (da
atividade teórico-prática) é o princípio educativo imanente à escola primária, que a
ordem social e estatal (direitos e deveres) é introduzida e identificada na ordem
natural pelo trabalho.
O conceito do equilíbrio entre ordem social e ordem natural com base
no trabalho, na atividade teórico-prática do homem, cria os primeiros
elementos de uma intuição do mundo liberta de toda magia ou
bruxaria, e fornece o ponto de partida para o posterior
desenvolvimento de uma concepção histórica, dialética, do mundo,
para a compreensão do movimento e do devir, para a avaliação da
soma de esforços e de sacrifícios que o presente custou ao passado
e que o futuro custa ao presente, para a concepção da atualidade
como síntese do passado, de todas as gerações passadas, que se
projeta no futuro (GRAMSCI, 2001, p. 43).
E é por isso, assumindo esse compromisso, que o teórico destaca a
necessidade de romper com as escolas elitizadas, e isso passa pelo enfrentamento
ao intento que a burguesia tem de diferenciar as escolas. Além disso, ele entende
que quanto mais níveis educacionais uma sociedade possui mais evoluída na sua
capacidade organizativa ela é.
A complexidade da função intelectual nos vários Estados pode ser
objetivamente medida pela quantidade das escolas especializadas e
pela sua hierarquização: quanto mais extensa for a “área” escolar e
quanto mais numerosos forem os “graus” “verticais’ da escola, tão
mais complexo será o mundo cultural, a civilização, de um
determinado Estado. (GRAMSCI, 2001, p. 19).
Entretanto, é necessário, ao multiplicar e graduar os diversos tipos de escola
e sobretudo as profissionais, lutar por um tipo único de educação que confira ao
jovem a possibilidade de escolha profissional e que, nesse percurso formativo, ele
seja capaz de pensar, estudar, dirigir e controlar quem dirige. Portanto, deve-se “[...]
criar um tipo único de escola preparatória (primária-média) que conduza o jovem até
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os umbrais da escolha profissional, formando-o, durante este meio tempo, como
pessoa capaz de pensar, de estudar, de dirigir ou de controlar quem dirige”
(GRAMSCI, 2001, p. 49).
Para isso, Gramsci considera ser necessário que o Estado assuma o papel de
criar esse tipo de escola, pois ela precisa ser, em potencial, universal, apesar de
reconhecer que será necessário que ela se inicie de maneira seletiva no sentido de
progressivamente ser ampliada para todos. Gramsci reconhece que a escola
unitária, tal como ele a propõe, precisará surgir ainda com um número reduzido de
vagas, mas que deve ser gratuita e, por isso, ter processos seletivos que permitam
que todas as frações de classe a acessem. Sendo assim, aos poucos, o Estado, por
meio da ampliação de seus recursos financeiros investidos na política educacional,
tornará esse tipo de escola o único existente e dará garantia de acesso a ela para
todos.
A escola unitária requer que o Estado possa assumir as despesas
que hoje estão a cargo da família no que toca à manutenção dos
escolares, isto é, requer que seja completamente transformado o
orçamento do ministério da educação nacional, ampliando-o
enormemente e tornando-o mais complexo: a inteira função de
educação e formação das novas gerações deixa de ser privada e
torna-se pública, pois somente assim ela pode abarcar todas as
gerações, sem divisões de grupos ou castas. (GRAMSCI, 2001, p.
36).
Seguindo em sua proposta, o filósofo enfatiza a necessidade de ampliar o
corpo docente, uma vez que entende que a escola é tão mais eficiente em seu
processo formativo quanto menor for a relação professor aluno. São suas palavras:
“o corpo docente, em particular, deveria ser ampliado, pois a eficiência da escola é
muito maior e intensa quando a relação entre professor e aluno é menor”
(GRAMSCI, 2001, p. 36-37).
A escola unitária refere-se ao período que vai desde os 6 anos até por volta
dos 17 anos. Ela unifica o preparo para a vida na perspectiva humanista e, também,
para o trabalho em sua dimensão ontológica e técnico-operativa. Deve ser
reorganizada tanto do ponto de vista do método de ensino quanto no que diz
respeito à organização dos seus vários níveis de percurso formativo.
Aos jovens deve ser possibilitado esse modelo de formação em uma
instituição cuja educação se em tempo integral e tenha características que
9
garantam um espaço escolar específico. A esse respeito, destaca que a garantia de
uma escola de tipo unitário precisa atentar-se, inclusive, para a “questão dos
prédios” o que, nas suas próprias palavras, “não é simples” (GRAMSCI, 2001, p. 37).
Essas instituições de ensino devem oferecer: alojamento, laboratórios,
bibliotecas, refeitórios e espaços de discussão, garantindo-se, assim, que todos os
jovens possam ter asseguradas as condições básicas para estudar. Assim vemos,
mais uma vez, que Gramsci incorpora a defesa de um Estado educador responsável
pela escola unitária, uma vez que ele tem clareza de que, se assim não for, os filhos
da classe trabalhadora não terão acesso a esse modelo formativo.
Ademais, para que a escola unitária seja viável, é necessária, na perspectiva
do teórico, a garantia de todo um aparato de instituições que lhe deem suporte,
como as creches, nas quais as crianças, desde bem pequenas, sejam inseridas de
maneira a se habituarem a uma disciplina coletiva que se fará necessária na vida
educacional das escolas unitárias.
Nesse tipo de escola, o ensino é feito coletivamente, permitindo um
aprendizado criativo, colaborando com o desenvolvimento da autonomia dos sujeitos
e constituindo-se no que Gramsci denomina de escola criadora, na qual o professor
é uma espécie de guia e facilitador do aprendizado. Assim sendo, segundo Gramsci
(2001, p. 39), “toda escola unitária é uma escola ativa”, isso porque
A escola criadora é o coroamento da escola ativa: na primeira fase,
tende-se a disciplinar e, portanto, também a nivelar, a obter uma
certa espécie de “conformismo” que pode ser chamado de
“dinâmico”; na fase criadora, sobre a base atingida de
“coletivização” do tipo social, tende-se a expandir a personalidade,
tornada autônoma e responsável, mas com uma consciência moral e
social sólida e homogênea. (GRAMSCI, 2001, p. 39).
Por fim, conclui-se, com destaque entre as suas concepções de escola, que
“[...] o estudo ou a maior parte dele deve ser (ou assim aparecer aos discentes)
desinteressado, ou seja, não deve ter finalidades práticas imediatas ou muito
imediatas, deve ser formativo ainda que ‘instrutivo’, isto é, rico de noções concretas”
(GRAMSCI, 2001, p. 49). Logo, a escola, seu percurso formativo e seu propósito não
devem ser vinculados aos interesses hegemônicos, não devem ser interessados ao
capital. O desinteresse refere-se exatamente a um tipo de escola cujo compromisso
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não está previamente definido pelas concepções de mundo dominantes, mas com a
formação integral, igualitária, libertadora e ampliada de todos.
Entende ainda, o estudo como um trabalho que envolve um esforço próprio e
exige disciplina e dedicação. São suas palavras: “o estudo é também um trabalho, e
muito cansativo, com um tirocínio particular próprio, não intelectual, mas também
muscular-nervoso: é um processo de adaptação, é um hábito adquirido com esforço,
aborrecimento e até mesmo sofrimento” (GRAMSCI, 2001, p. 51).
Logo, na sua proposta de escola unitária uma escola que possibilite a
formação de um novo nexo psicofísico para que as pessoas se movam com
desenvoltura em uma nova ordem social. Para isso, chama a atenção para o fato de
que a educação integral, dita escola única/unitária, não é uma questão de um
desafio apenas interno e específico da política de educação, dos educadores ou da
própria instituição; a construção dessa escola é, necessariamente, uma tarefa da
sociedade como um todo.
A educação integral para os interesses da classe burguesa: o Banco Mundial,
a burguesia nacional (CENPEC) e o Programa de Educação Integral do
Governo Federal
O que temos hoje no Brasil é um redimensionamento do Estado, no que diz
respeito às suas responsabilidades, e um aumento das influências das organizações
da sociedade civil vinculadas ao empresariado, seja nacional, seja internacional, as
quais disputam as agendas das políticas sociais, entre elas a Educação. Com
destaque para o Banco Mundial, esses organismos, apontam para uma escola em
conformidade com os interesses da classe dominante, “desenvolvendo uma tarefa
política de educador coletivo” (SILVA, 2018, p. 1614).
Os discursos empresariais partem da compreensão de que são os indicadores
sociais que deixam explícita a necessidade de investimento na educação, uma vez
que atribuem à melhoria na educação uma redução das desigualdades. Assim,
[...] Evidências internacionais indicam que a escolaridade é uma
variável chave na determinação do progresso econômico de
indivíduos e nações. [...] Adicionalmente, o maior nível de
escolaridade produz maiores salários individuais e maiores taxas de
crescimento econômico para os países. (IU, 2011a, p. 5).
11
Acredita-se que a melhoria nos índices educacionais resultaria em uma
imediata e “milagrosa” melhoria da economia e das condições de vida do ponto de
vista do indivíduo. Logo, os resultados se dariam como se a soma de resultados
individuais fosse imediatamente convertida em mudanças sociais.
Entretanto, não é apenas essa a compreensão que dita as regras
argumentativas da classe dominante acerca do investimento em educação.
Valendo-se de métricas de desempenho que comparam o resultado dos países
(muitas vezes desconsiderando as desigualdades explícitas entre eles, inclusive do
ponto de vista da formação social), também adotam uma matriz descritora de
competências que, supostamente, seriam aquelas necessárias para formar o
"cidadão do século XXI", termo eufemisticamente utilizado para designar os
trabalhadores em tempos de superexploração.
Em conformidade com os interesses burgueses, novos valores passam a ditar
a forma de constituição das relações na sociedade, entre eles ganham destaque,
especialmente considerando os que impactam na política de educação, a pedagogia
das competências,6oaccountability e o protagonismo juvenil,7o empreendedorismo
e a empregabilidade. Soma-se a isso a ênfase nas competências socioemocionais,
tais como autocontrole, resiliência e trabalho em equipe.
Oaccountability, é um conceito que se origina de uma prática do mercado
financeiro alcança ou expressa-se em “todos os atores da empresa, desde o
dirigente ao assalariado de base” (DARDOT; LAVAL, 2009 apud QUADROS;
KRAWCZYK, 2021, p. 14-15). Segundo eles, isso seria característico da forma como
o mercado financeiro tornou-se ‘agente disciplinador’, ou seja, um importante ator na
difusão de uma racionalidade. De acordo com essa concepção, o mercado agora
não é a métrica pela qual todas as condutas devem ser guiadas, mas também é o
educador, por meio de práticas que procuram construir no indivíduo o consenso
(BROWN, 2015 apud QUADROS; KRAWCZYK, 2021). No discurso empresarial,
indicadores sociais no país justificam e indicam a necessidade de investimento
7O protagonismo juvenil é a maneira por meio da qual os jovens irão encarnar a lógica das
competências e do accountability,“[...] se consolida como uma forma de submissão ativa dos jovens à
sociedade neoliberal e à sua racionalidade” (QUADROS; KRAWCZYK, 2021, p. 22).
6“Ocorre que, ao ser orientado pelas competências, a seleção e o ordenamento de conteúdos terão
como fim os desempenhos profissionais e não a compreensão do exercício profissional como
mediação de relações sociais de produção e dos processos produtivos como particularidade da
realidade social” (CIAVATTA; RAMOS, 2012, p. 27).
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econômico na educação, sendo o mercado aquele que deve realizar e conduzir tal
investimento, bem como determinar os tipos de resultados esperados.
Temos diante do conceito de accountability o fortalecimento, nas políticas
sociais, entre elas a de educação, de discursos tais como o de que o progresso
econômico tanto individual como da sociedade está atrelado de maneira imediata e
inquestionável ao aumento da escolaridade. Logo, bastaria aumentar o nível de
escolaridade dos indivíduos para que eles tivessem melhores salários e o país
alcançasse crescimento econômico.
Nesse mesmo sentido, são considerados competentes os que sabem se
mover nos diversos saberes para resolver problemas no campo da sua atuação
profissional.
[…] as competências são consideradas comportamentos observáveis
e sem relação com atributos mentais subjacentes, enfatizam a
conduta observável em detrimento da compreensão, podem ser
isoladas e treinadas de maneira independente, e são agrupadas e
somadas sob o entendimento de que o todo é igual a mera soma das
partes. (GÓMEZ, 2011, p. 83).
Nos modelos tayloristas e fordistas de produção, as competências são
sinônimo de eficiência e eficácia. Os modelos flexíveis valorizam também os
comportamentos, tais como trabalhar em equipe, saber se comunicar e outras
capacidades comportamentais. Logo, “[...] se as competências compõem a
subjetividade do trabalhador (no plano cognitivo e socio interativo), qualquer
enunciado objetivo pode reduzi-las a desempenhos” (CIAVATTA; RAMOS, 2012,
p. 24).
Todos esses valores se justificam uma vez que a formação da mão de obra é
construída para que ela atenda aos interesses do capital para que essa qualificação
específica colabore com a alavancagem do processo produtivo.
Assim, para analisar a formação da classe trabalhadora no contexto da
contrarreforma do ensino médio, é necessário, em uma perspectiva de totalidade,
considerar
[...] a análise das relações entre a agenda de incremento da
produtividade do trabalho demandada pela fração burguesa industrial
no Brasil e a mais recente política pública de reformulação do ensino
médio, [...] entendendo que essa agenda e sua relação com a
referida contrarreforma [...] se apresenta como uma importante
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mediação no que diz respeito à relação entre o mundo do trabalho e
a formação da força de trabalho no Brasil contemporâneo.
(GAWRYSZEWSKI; MELLO, 2020, p. 3).
Nesse sentido, a dominação não se desenvolve apenas no campo político e
econômico. A luta e a disputa pela hegemonia dão-se no aspecto ideológico, e neste
“[...] a educação, entendida por estes [membros da classe dominante] enquanto
lócus de (con)formação objetiva e subjetiva da força de trabalho para o atendimento
de seus interesses mercantis” (GAWRYSZEWSKI; MELLO, 2020, p. 12).
A Educação Integral e em tempo integral, fundamentada pelo Centro de
Estudos e Pesquisa em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), instituição
que teoricamente é sem fins lucrativos (apesar de gerida pelo Itaú), na concepção
desse Centro, desenvolveu-se de maneira exemplar em alguns locais. Por esse
motivo, tais locais passaram a funcionar como uma espécie de laboratório, servindo
de exemplo às demais unidades de ensino.
Essa instituição disseminou uma concepção de educação integral que
subsidiou aquela desenvolvida pelo Governo Federal no Programa Mais Educação
em conformidade com a Meta 6 do Plano Nacional de Educação (PNE) Lei
13.005/2014 que estabelece que, até 2024, pelo menos 50% das escolas públicas
devem ampliar a jornada de atividades escolares.
Tanto para o referido Centro quanto para o governo federal e todos os seus
projetos, a educação precisa ser de mais qualidade e de maior tempo de duração.
Essas defesas assumem compromissos específicos com um determinado projeto de
sociedade. Vistas sem conexões com suas ideologias fundadoras e com o perfil de
seus promulgadores (Banco Itaú, Instituto Ayrton Senna e outros), aparentemente,
podem ser tomadas como progressistas e até, em certa medida, revolucionárias,
bem diferente do que de fato acreditam, defendem e implementam. Entretanto, para
entender essas concepções de educação integral, é necessário construir uma
análise crítica e pertinente dos discursos desses diversos atores, seja o Banco
Mundial, seja o CENPEC, seja o Governo Federal via Programa Mais Educação.
Faz parte da compreensão desses a de que educação integral “(...) não é uma
modalidade de ensino (...) é uma concepção de educação que coloca o estudante no
centro do processo e busca o desenvolvimento em todas as suas dimensões física,
emocional, intelectual, cultural e social” (CEI, 2016).
14
Da mesma maneira, o Instituto Ayrton Senna defende a ressignificação da
educação brasileira argumentando que ela está muito distante daquilo que o jovem
brasileiro está buscando. Vale-se da defesa do desenvolvimento da capacidade de
sonhar e de “correr atrás dos sonhos” trazendo para o âmbito do indivíduo a
responsabilidade pelo seu futuro, por sua empregabilidade, por seu “sucesso”
profissional (INSTITUTO AYRTON SENNA, 2018).
No que diz respeito ao papel que o Banco Mundial desempenha na
construção dessa ideologia educacional, importa compreender que, ao focar na
pobreza como um elemento que atrapalha o avanço do desenvolvimento nos países
dependentes, o banco ideologicamente a desloca como resultado desse atraso e a
coloca no papel de motivo dele. Pode parecer simples essa inversão, mas não o é,
pois ela torna a pobreza funcional e lucrativa, na medida em que passa a ser usada
de subterfúgio para a construção de projetos de ampliação da exploração do
trabalho, como um modelo educacional que educa o trabalhador para o conformismo
e a docilidade.
Segundo o Banco Mundial, países cujos empréstimos são recorrentes
precisam investir na educação dos seus trabalhadores para diminuir a pobreza
absoluta, mesmo que mantenham a relativa (esta deve inclusive ser preservada).
Para eles,
Como a mão de obra é o principal ativo das pessoas de baixa renda,
torná-la mais produtiva é a melhor forma de reduzir a pobreza. Isso
exige o aumento das oportunidades de ganhar dinheiro e de
desenvolver o capital humano a fim de aproveitar essas
oportunidades. O crescimento econômico a partir de uma base ampla
é importante. São igualmente importantes a educação básica e os
cuidados de saúde, especialmente para as crianças, a fim de
proporcionar os fundamentos para as aptidões básicas e o
bem-estar. (BANCO MUNDIAL, 2006, p. 2).
O Banco Mundial entende que, pela escolarização, a mão de obra se
qualifica, e é a escola a instituição capaz de evitar os problemas decorrentes da
pobreza que são experienciados pelos jovens. Em uma espécie de missão
salvadora, a escola, em especial a de tempo integral, evita comportamentos
negativos e “resultados desfavoráveis”.
Segundo destaca Silva (2018, p. 1618), “o que o BM possui como princípio é
que a pobreza é uma problemática passível de regulação e atribui à escola pública,
15
principalmente, a responsabilidade por isso”. Na verdade, a escola pode exercer e
exerce um duplo papel tanto de reproduzir a pobreza quanto de combatê-la e
promover uma proposta revolucionária. Entretanto, para esse último papel, a
possibilidade depende de investimento e oferta de condições para que tal intenção
se efetive de fato, saindo apenas do campo do idealismo.
De acordo com o CENPEC, por sua vez, a educação integral é uma estratégia
para a garantia da equidade e para melhorar as condições da política de educação.
De acordo com sua concepção, a educação integral seria capaz de atender às
demandas das classes populares, e, para alcançá-la, duas ações são propostas:
1) atuação de organizações não governamentais junto às escolas
para a composição da EITI, por meio de atividades no contraturno
escolar realizadas em diferentes espaços educativos; 2) assessoria
para a implantação, formulação e acompanhamento de políticas e
planos voltados para a EITI (SILVA, 2018, p. 1620).
Para essa instituição, a educação integral cumpre o papel de ser um meio
para que a escola pública exerça a função de aliviar os resultados provenientes da
pobreza e da desigualdade. Alguns autores que discutem essa educação integral
e(m) tempo integral, entre eles Carvalho (2006), demandam que a escola pública
não é, sozinha, capaz de garantir essa integralidade e deveria se articular com
outras instituições, sejam públicas ou privadas, para que isso fosse possível.
Assim, se une tal influência empresarial com a difusão de uma ideologia de
justiça social, em que a burguesia tem um papel funcional de atender ao duplo
interesse do capital: i) promover uma formação em massa do seu ideal do
consentimento e do conformismo, e o alívio das tensões provocadas pela pobreza,
cooperando com a coesão social; ii) garantir a preservação da concepção de que o
melhor modo de produção permanece sendo o capitalista.
Assim, a lógica da educação integral, para esses atores, passa pelo discurso
de uma formação de integralidade do ser, na qual todos os elementos da vida
humana são considerados, sejam suas dimensões físicas, emocionais, afetivas e
espirituais. Nesse projeto de totalidade humana,
A ideia de formação integral do homem está presente,
principalmente, em projetos de educação para a paz, dos direitos
humanos e da educação para valores, todos eles fundamentados em
princípios éticos e humanistas. Nesse sentido, a formação integral
16
dos indivíduos não está adstrita ao processo formal e intencional de
ensino, pois tem suas bases nas esferas da vida cotidiana, como nos
lembra Heller (1994). Inicia-se no nascimento e prossegue com a
aprendizagem sobre o universo cultural, durante todo o processo de
desenvolvimento das pessoas, pois é na vida cotidiana que se
objetivam as ações humanas e nela se inscrevem os resultados do
conhecimento humano, de suas conquistas e desafios. (GUARÁ,
2006, p. 16).
A escola não é central no processo de formação humana, processo esse que
deve ser dividido com todas as demais esferas da vida social. Essa defesa em si
parece ser compatível com a perspectiva crítica, uma vez que a vida e todas as suas
dimensões são parte da formação dos sujeitos, de suas concepções de mundo, da
formação de suas consciências e/ou de sua alienação. O próprio Gramsci entende
que os partidos políticos e o Estado, na sua dimensão ampliada8, cumprem o papel
educador de intelectuais orgânicos. Entretanto, essa concepção ampliada não é a
que o CENPEC e os representantes burgueses nacionais e internacionais
defendem, uma vez que, para eles, a escola serve apenas para a manutenção da
pobreza em níveis toleráveis (SILVA, 2018).
Como forma de unificar os interesses dos organismos internacionais para o
país e a concepção da burguesia nacional exemplificada pelo discurso do CENPEC,
o governo brasileiro, no ano de 2007, promulgou, via Portaria Interministerial 17, o
Programa Mais Educação (PME) com o objetivo de “[...] fomentar a educação
integral de crianças, adolescentes e jovens, por meio do apoio a atividades
socioeducativas no contraturno escolar” (BRASIL, 2007, p. 1).
Os ditames e as orientações desse programa do governo estavam atendendo
aos interesses dos empresários que compunham o chamado movimento Todos pela
8O conceito de Estado Ampliado em Gramsci considera que a divisão entre a dimensão restrita
(político-administrativa do Estado) e a dimensão conhecida por sociedade civil (composta pelos
aparelhos privados de hegemonia) deve ser considerada apenas didaticamente. Para o filósofo, o
Estado é a junção indissociável entre sociedade civil e política. Nesse sentido, todos os espaços, as
instituições, as organizações sociais existentes na sociedade são parte constituinte do Estado,
determinam e constroem as mais variadas relações sociais que, por sua vez, dão forma ao Estado e
tanto garantem a manutenção da hegemonia quanto a construção das possibilidades de sua
superação. É nesse sentido que podemos considerar que o Estado cumpre a função de educador, e a
escola é a que maior contribuição para isso. Sobre o papel educador do Estado, temos um artigo
publicado recentemente no III Colóquio Internacional de Antonio Gramsci sob o título: O ESTADO
EDUCADOR: o papel do Estado na formação de intelectuais orgânicos para construção de
hegemonia (no prelo).
17
Educação,9os quais estavam supostamente interessados e preocupados com a
qualidade da educação pública do nosso país. Eles assumem uma agenda com a
educação do país que cumpre uma função cujo interesse é econômico (qualificar e
adestrar a mão de obra das massas) e, também, pedagógico, no sentido de
produção e manutenção de hegemonia, assim entendendo, em conformidade com
Gramsci, que toda relação de hegemonia é pedagógica.
Essa dimensão pedagógica fica evidente quando percebemos com clareza
que o foco é o indivíduo e suas necessidades particulares de formação, deixando de
lado a instituição educacional e suas demandas por capacitação e estruturação.
Logo, não apresentam qualquer preocupação com garantir reais condições de oferta
da educação integral e(m) tempo integral que esteja preocupada com a sociedade
como um todo, e com a superação do modo de produção promotor das
desigualdades sociais.
A reforma do ensino médio e a educação: espaço de disputa?
De acordo com a Nova Reforma do Ensino Médio10, defende-se e constrói-se
todo um debate sobre a flexibilização das práticas pedagógicas, compreendendo
suas novas formas de mediação decorrentes, entre outros motivos, do aumento das
chamadas Tecnologias da Informação e Comunicação – as TICs.
Existe um movimento pela flexibilização do ensino médio sob a alegação de
que ele é rígido e apresenta um único percurso sem considerar as diversidades de
aptidões e interesses dos jovens. Aqui, conforme veremos, a flexibilização caminha
no compasso da precarização.
Temos nos documentos do Novo Ensino Médio diversos pontos essenciais à
sua compreensão. Muitos deles serão trabalhados neste ensaio com suas
necessárias ponderações críticas. A fim de elencar algumas dessas características
10 O chamado Novo Ensino Médio encontra-se regulamentado por diversas legislações. Entre elas,
a Lei 13.415/2017 alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e estabeleceu uma
mudança na estrutura do ensino médio, ampliando o tempo mínimo do estudante na escola de 800
horas para 1.000 horas anuais (até 2022) e definindo uma nova organização curricular. O Ministério
da Educação, por meio da Portaria 1.145/2016 substituída pela Portaria nº. 727/2017, instituiu o
Programa de Fomento à Implementação de Escolas em Tempo Integral e ainda elaborou uma cartilha
com orientações acerca desse novo Ensino Médio.
9Formaram esse grupo fundações e associações sem fins de lucro, vinculadas aos diferentes grupos
empresariais, tais como Banco Itaú, Gerdau, Camargo Correa, Banco Bradesco, Rede Globo de
Televisão, dentre outros.
18
presentes nos documentos oficiais, apresentamos ao leitor: a ampliação de 800
horas anuais para 1000 horas anuais (carga horária atual 25% maior que a anterior);
destinação de 1200 horas do total dos três anos para os chamados itinerários
formativos (deixando o estudante escolher em que e como investir na sua
formação); garantia de que os itinerários formativos respeitarão que as opções dos
estudantes sejam organizadas por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares;
as disciplinas e conteúdos comuns na BNCC ficam garantidas nas 1800 horas
restantes.
De acordo com o projeto desse Novo Ensino Médio, o horário escolar será
estendido até um total de 7 horas diárias, caracterizando a escola como de tempo
integral. Essa expansão, segundo a legislação, será gradual até o prazo de 5 anos
(prazo este que se conclui neste ano de 2022). Além da questão da carga horária, o
documento prevê que até 20%11 dela poderão ser compostos pela modalidade a
distância, realidade que, em decorrência da pandemia, pode ser agora funcional e
servir de argumentação para alegações de que, uma vez que temos experiência no
assunto (ensino na modalidade on line), podemos permitir a massificação de tal
oferta de diversos conteúdos para, assim, sermos capazes de cumprir tal extensão
de jornada letiva.
Faz parte desse projeto de ensino médio a criação dos chamados itinerários
formativos diversificados. Sobre estes, o documento apenas explicita que as
unidades escolares deverão ofertar pelo menos dois deles, mas não deixa claro
como esse processo se dará. Observando tal indefinição, tentando prever o que ela
significa na possibilidade de criação dos itinerários, e pensando a diversidade da
realidade brasileira, resta-nos trazer diversas questões sem qualquer pretensão de
apresentar respostas objetivas e/ou precisas. Como farão cidades pequenas onde
existe apenas uma escola de ensino médio? Como ficará garantido ao estudante o
direito de escolha considerando sua residência, e quais modalidades serão
ofertadas em sua escola de referência? Essas são apenas alguns dos importantes
questionamentos para os quais não encontramos quaisquer respostas nesse projeto.
Além disso, nessa previsão de reforma, não estão claramente contemplados
os estudantes em ensino noturno. Para estes, a carga horária de 7 horas diárias fica
complicada até mesmo pensando em ensino a distância, a não ser que sejam
11 No caso da educação de jovens e adultos esse percentual pode ser de até 80%.
19
realizadas as famosas atividades assíncronas, nas quais o horário atribuído é
explicitamente fictício haja vista ser calculado pelo docente a depender da atividade
proposta.
Em semelhante situação, encontram-se os estudantes na modalidade de
educação de jovens e adultos (EJA) que possuem uma formação mais
precarizada em relação aos demais do ensino regular e não tiveram suas
particularidades consideradas nessa reforma.
Do ponto de vista curricular, essa formação, que diminui o ensino de
conteúdos comuns e amplia os de caráter optativo, em vez de garantir uma
educação mais integral, acaba por torná-la ainda mais pulverizada,12 uma vez que
esse modelo diminui os conhecimentos que são comuns a todos os estudantes e
amplia aqueles que o jovem “escolhe aprender”, sem sequer uma base firme no
conhecimento generalista para realizar essa “escolha”.
A formação comum (estabelecida pela BNCC) é então reduzida para no
máximo 1800h. Além disso, essa reforma estabelece a definição precoce por parte
do jovem da área em que quer se especializar, quando deveria estar tendo contato
com as diversas opções para, só assim, poder se decidir com mais maturidade.
Outro problema pontuado refere-se à incapacidade de todas as escolas
ofertarem todas as possibilidades formativas. A não obrigatoriedade de se fazer tal
oferta acaba levando sempre à opção por aqueles itinerários formativos cujas
despesas e condições para seu oferecimento são menores, seja devido a perfil
docente, seja devido a orçamento e avanços tecnológicos. Por fim e não menos
importante, precisamos reforçar que a extensa carga horária de período integral
exclui o jovem trabalhador dessa possibilidade de ensino.
Não podemos deixar de destacar ainda que uma das essências dessa
proposta da reforma é a ênfase na flexibilidade no processo de formação do jovem
para o mercado de trabalho. A sua possibilidade de escolher deve estrar atrelada à
sua capacidade de agir autonomamente e de se adaptar às constantes
transformações do sistema.
12 Optamos pelo termo pulverizados a fim de caracterizar os caminhos formativos que passam a
poder ser realizados a partir de várias especificidades sem que respeitem um núcleo básico sólido
comum.
20
Dessa forma, a aprendizagem flexível se materializa em grupos que
apresentam interesses em comum e se reúnem para trocar experiências e, assim,
apresentar respostas às demandas de uma sociedade exigente. Portanto,
[...] concebida como resultado de uma metodologia inovadora, que
articula o desenvolvimento tecnológico, a diversidade de modelos
dinamizadores da aprendizagem e as mídias interativas; neste caso,
ela se justifica pela necessidade de expandir o ensino para atender
às demandas de uma sociedade cada vez mais exigente e
competitiva. (KUENZER, 2017, p. 337).
O discurso desse tipo de defesa vem carregado de demagogia, como se o
estudante precisasse de maior autonomia e protagonismo, como se o modelo de
educação fosse centrado no docente, rígido, conteudista, e não considerasse as
diversidades de condições e interesses dos estudantes.
Em síntese, esse modelo coloca-se como o que abarca o respeito à vivência
de cada um, permitindo-lhes escolha. Na verdade, ele direciona as “escolhas” para
os interesses capitalistas, que a acumulação flexível exige a formação de
profissionais também flexíveis, que consigam acompanhar as transformações
tecnológicas.
A flexibilização dos percursos institucionaliza o acesso desigual e diferenciado
ao conhecimento. As diversas formas de inserção nesse mercado de trabalho
flexível separam ainda mais aqueles que investem em uma maior qualificação
intelectual do seu trabalho, e os que se limitam aos aprendizados práticos do próprio
exercício profissional.
Nesse sentido, podemos tomar que
[...] o ensino médio na atual versão integra a pedagogia da
acumulação flexível e tem como finalidade a formação de
trabalhadores com subjetividades flexíveis, por meio de uma base de
educação geral complementada por itinerários formativos por área de
conhecimento, incluindo a educação técnica e profissional; a
formação profissional é disponibilizada de forma diferenciada por
origem de classe, de modo a levar os que vivem do trabalho a
exercer, e aceitar, de forma natural, as múltiplas tarefas no mercado
flexibilizado. (KUENZER, 2017, p. 341).
A Reforma do Ensino Médio tem propostas que se atam explicitamente aos
interesses burgueses nacionais e internacionais. Há, entretanto, alternativas e
espaço de luta, e é sobre isso que trataremos em nossas considerações finais.
21
Considerações finais
Contraditoriamente ao exposto, quando tratamos da produção do
conhecimento nos marcos do materialismo, estamos nos referindo à compreensão
de que esse conhecimento resulta de uma recriação, ou seja, da reprodução do real
no pensamento por meio de ação humana. É nesse processo dialético e teleológico
que a realidade passa a ter significado para os homens.
Segundo Marx e Engels (2011), os homens e as mulheres são capazes de
conhecer o que é objeto da sua prática, da sua vida e do cotidiano, e acabam por
conhecer porque atuam praticamente sobre isso. Sendo assim, apreender o real e
produzir conhecimento não é possível apenas por meio de abstrações. Não se
conhece o real apenas teoricamente ou somente intelectualmente.
O conhecimento e a produção de conhecimento real fazem-se no confronto
entre a teoria e a prática; é por meio dessa relação contraditória, histórica e dialética
que novas sínteses são possíveis e se tornam, até mesmo, potenciais de
transformação do real. Segundo Vázquez (1968, apud KUENZER, 2017, p. 343), é
dessa maneira de compreender a produção do conhecimento que “[...] emerge a
concepção de práxis, atividade teórica e prática que transforma a natureza e a
sociedade; prática na medida em que a teoria, como guia da ação, orienta a
atividade humana; teórica na medida em que essa ação é consciente”.
A prática, entretanto, não é em si a realidade na sua essência; o real seus
fenômenos e expressões precisam ser interpretados, estudados, analisados e
refletidos teoricamente. Isso porque, o real não se deixa a conhecer de imediato,
apenas na sua expressão fenomênica. É preciso ir para além das aparências,
apesar de ser imprescindível considerá-las como parte inalienável da sua essência.
Logo, o fenômeno na sua aparência ainda não constitui conhecimento.
Por isso, apenas tratar dados empíricos e expor diálogos com sujeitos do real,
explicitando suas falas e seus modos de perceber o objeto estudado, não pode se
traduzir, de imediato, sem o estabelecimento de mediações intelectuais e reflexivas,
como resposta de produção de conhecimento. A superação da aparência faz-se
essencial para conhecer as estruturas, as relações, as conexões, as finalidades, os
propósitos, as expectativas, as verdadeiras determinações e sobre determinações
que conformam esse real, e que não se mostram de imediato a olho nu.
22
Assim compreendido, o ato de conhecer não prescinde do trabalho intelectual
e teórico, que se desenvolve no pensamento do sujeito que, necessariamente, para
conhecer um determinado fenômeno do real, tem que se debruçar sobre a realidade
a ser conhecida. E esse debruçar não é apenas ir a campo empírico, dialogar com
os sujeitos envolvidos no objeto a ser pesquisado, realizar entrevistas, colher dados,
participar ativamente de uma determinada comunidade ou envolver-se praticamente
nesse real; depende, com tamanha importância, de um movimento de pensar.
É nesse movimento de pensar, em que se parte “[...] das primeiras e
imprecisas percepções para relacionar-se com a dimensão empírica da realidade
que são construídos os significados” dos processos investigados. (KUENZER, 2017,
p. 343).
Esse processo dialético leva-nos à incrível conclusão de que, na medida em
que o trabalho intelectual vem como resultado de uma ação humana que surge de
uma dada intencionalidade ou finalidade específica, ele se torna também ação
que se refere à realidade e desenvolve-se com vistas a transformá-la.
Diferentemente, quando o trabalho intelectual tem seu desenvolvimento
exclusivamente como pensamento, descolado do real, sem se preocupar com dar a
ele algum retorno, constitui-se necessariamente apenas em uma reflexão. Assim, é
preciso se ter clareza de que
[...] em decorrência de ser um processo de apropriação da realidade
pelo pensamento, não transforma, por si, a realidade. Ainda que a
atividade teórica mude concepções, transforme representações,
produza teorias, em nenhum desses casos transforma, sozinha, a
realidade. É preciso que as ideias se transformem em ações.
(KUENZER, 2017, p. 343).
A aprendizagem flexível toma a prática como um fim em si mesma. Sobre ela,
não se produz reflexões teóricas necessárias, ou seja, não se estabelece uma
relação de mediação com a teoria. Assim, o conhecimento é adquirido de uma
prática pela prática. Nessa perspectiva, é verdadeiro aquilo que é útil, e “o
conhecimento limita-se à prática imediata e reduz-se à experiência sensível, aos
limites do empírico enquanto fim em si mesmo, e não enquanto ponto de partida e
de chegada da produção do conhecimento na perspectiva da transformação”
(KUENZER, 2017, p. 346).
23
Para que os sujeitos, no caso os estudantes, desenvolvam competências para
um agir teleológico, envolvendo planejamento, intencionalidade e ações idealizadas,
é preciso que eles experimentem processos sistematizados de aprendizagem, e não
apenas meras apreensões práticas mecanicistas e repetitivas. É nesse sentido que
Vygotsky (1984, apud KUENZER 2017, p. 350), defende que:
[...] a transição do senso comum e dos saberes tácitos para o
conhecimento científico não se espontaneamente, conferindo à
intervenção pedagógica decisivo papel; ou seja, se o homem é capaz
de formular seus conceitos cotidianos espontaneamente, isso não se
no caso do desenvolvimento de conceitos científicos, que
demandam ações especificamente planejadas, e competentes, para
esse fim.
Esse mesmo autor entende que toda produção de conhecimento se por
uma relação entre diversos sujeitos, como por exemplo, entre os estudantes e os
docentes. A relação entre o que vai ser conhecido e os sujeitos do aprendizado se
mediante as relações com outros indivíduos. Logo, mesmo quando uma
aprendizagem parece ser produzida individualmente, ela é, na verdade, a síntese de
processos históricos anteriores.
[...] o processo que faz a mediação entre teoria e prática é o trabalho
educativo; é por meio dele que a prática se faz presente no
pensamento e se transforma em teoria. Do mesmo modo, é pelo
trabalho educativo que a teoria se faz prática, que se a interação
entre consciências e circunstâncias, entre pensamento e bases
materiais de produção, configurando-se a possibilidade de
transformação da realidade. (KUENZER, 2017, p. 350-351).
Segundo Kosik (1976, apud KUENZER, 2017, p. 349):
Em síntese, o método de produção do conhecimento é um
movimento que leva o pensamento a transitar continuamente entre o
abstrato e o concreto, entre a forma e o conteúdo, entre o imediato e
o mediato, entre o simples e o complexo, entre o que está dado e o
que se anuncia. Esse processo tem como ponto de partida um
primeiro nível de abstração composto pela imediata e nebulosa
representação do todo e como ponto de chegada as formulações
conceituais abstratas; nesse movimento, o pensamento, após
debruçar-se sobre situações concretas, volta ao ponto de partida,
agora para percebê-lo como totalidade ricamente articulada e
compreendida, mas também como prenúncio de novos
conhecimentos que estimulam novas buscas e formulações.
24
Portanto, muito do que defende na atual reforma para o ensino médio e os
discursos ideológicos da burguesia educacional evidenciam uma apropriação dúbia,
camuflada, nebulosa e perigosa das defesas históricas do movimento revolucionário
para uma educação realmente transformadora. Os termos e discursos são
facilmente confundidos com os adotados pelos educadores de vanguarda e
intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, na luta por um projeto de educação
revolucionário.
Não contradição evidente na aparência desse real. É preciso compreender
os discursos na sua essência, desvelar os projetos nas suas determinações não
aparentes e que se constroem para reproduzir a hegemonia burguesa vigente. Uma
educação integral nos moldes da atual reforma é aquela que coloca os sujeitos com
aparente igualdade de condições, mas que, na verdade, aprofunda ainda mais o
fosso entre uma educação de excelência para os filhos da classe dominante e uma
educação empobrecida, dividida, ultra especializada para os filhos da classe
trabalhadora.
Na realidade, não se garante condição de igualdade de escolha, não se
constrói possibilidade de autogoverno, nem de realização de sonhos e projetos da
juventude. O que se estabelece é que esses jovens sejam resilientes, solidários
entre si mesmos e flexíveis para se adaptar às mais variadas e extremas formas de
exploração dos avanços do capitalismo imperialista e da acumulação flexível.
A esses jovens filhos da classe trabalhadora, um ensino médio com itinerários
de formação, em que eles, sem qualquer base para “decidir”, escolhem entre as
opções que existem, e não entre as que gostariam. Em um mundo de
impossibilidades são levados a construir os sonhos que não são sequer deles, mas
daqueles que sobre eles constroem e reconstroem a exploração.
Entretanto, mesmo com essa realidade evidente, as máscaras permanecem,
e é por causa delas que se defende o empreendedorismo e a crença de que todos
são capazes, como argumento para dizer que estamos diante de um modelo falido
de educação que precisa se adequar aos avanços do mundo capitalista moderno e
tecnológico. Por isso, fica evidente que a educação integral nos moldes em que se
constrói no nosso país tem tido sucesso do ponto de vista do capital, e caminha para
o sentido oposto do que defendemos na perspectiva materialista histórico-dialética e
crítica de uma educação para além do capital.
25
Conhecer os diversos projetos de educação integral é essencial para, na
relação de disputa entre eles, desenvolver capacidade de enfrentamento real às
concepções hegemônicas dentro da ordem do capital, e de construção de um novo
tipo de educação que busque nova hegemonia e superação do capitalismo.
Como condição para a construção da hegemonia pelos trabalhadores, então,
a escola deve ser disputada na direção de uma “escola única inicial de cultura geral,
humanista, formativa, que equilibre com equanimidade o desenvolvimento da
capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o
desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual” (GRAMSCI, 1991, p. 118).
Disputamos uma escola cuja educação seja realmente integral, onde a
formação se no trabalho, pelo trabalho e para o trabalho, do ponto de vista
ontológico. O trabalho é a primeira mediação entre o homem e a realidade, e é
prática econômica. A formação para o trabalho se opõe à formação para o mercado
de trabalho, uma vez que a primeira “[...] incorpora valores ético-políticos e
conteúdos históricos e científicos que caracterizam a práxis humana” (CIAVATTA;
RAMOS, 2012, p. 25).
Perceber o currículo como o que estabelece a relação trabalho e educação é
tomá-lo diante do problema da relação entre “[...] a particularidade dos processos
produtivos e a totalidade das relações sociais de produção” (CIAVATTA; RAMOS,
2012, p. 26). Essa compreensão parte do pressuposto de que o real é um todo
dialético, o qual, assim tomado, permite que qualquer fato seja compreendido na sua
essência. Nesse sentido, a totalidade define-se em oposição ao pragmatismo que,
por sua vez, impede a compreensão da realidade nas suas legalidades, detendo-se
apenas à aparência dos fenômenos.
Logo, uma vez que cada fato do real reflete a totalidade da realidade, torna-se
possível compreender e conhecer a totalidade por meio de suas partes, que, nos
fatos ou a partir deles, é possível se identificar aqueles que contenham mais da
essência desse real, que permitam distinguir com maior e melhor clareza o que é
essencial e o que é acessório.
Assim, tomando essa concepção de método de conhecimento da realidade,
no que diz respeito aos fins formativos e processos pedagógicos, significa que
podemos identificar, nos currículos e seus componentes, conteúdos que permitam
aos estudantes “[...] fazer relações sincrônicas e diacrônicas cada vez mais amplas
26
e profundas entre os fenômenos que se quer apreender nesse caso, uma
profissão – e a realidade em que eles se inserem” (CIAVATTA; RAMOS, 2012, p. 26).
Os conteúdos e conhecimentos de origem geral e ampliada, não específicos e
generalistas, são essenciais e devem ser garantidos mesmo que os específicos
sejam também ofertados. Porém, é preciso investir em uma formação de base
comum que carregue a perspectiva de totalidade.
A formação pragmática permite que o homem se oriente no mundo, maneje
coisas, mas não garante que as compreenda. Para a filosofia da práxis, a teoria é
resultado do processo de conhecer a realidade, que envolve o processo de elevar
essa experiência concreta ao pensamento de tal forma que permita a compreensão
das contradições internas dos fenômenos que existem no real. Logo,
[...] a prática transformadora no contexto da realidade que o é
somente utilitária e adaptadora depende da atividade realizada no
contexto da teoria, posto que o homem não pode conhecer o real a
não ser pela análise dos fatos, reordenando-os, posteriormente, nas
intrínsecas relações com a totalidade concreta. (CIAVATTA; RAMOS,
2012, p. 28).
Por isso, mesmo com as dificuldades impostas pelo cenário político, social e
econômico brasileiro, é preciso continuar na luta pela educação politécnica. Sem
deixar de considerar que,
[...] a defesa, hoje, de uma educação que tenha por horizonte a
politecnia passa necessariamente pela negação do avanço do
Capital sobre o Trabalho; passa necessariamente pela negação de
uma pedagogia societária, baseada no cinismo; passa
necessariamente pela negação de uma educação escolar
fragmentada e direcionada para a competitividade e a
empregabilidade; passa, enfim, pela afirmação da solidariedade e da
liberdade humanas. (RODRIGUES, 2005, p. 278-279).
Lutar por uma educação politécnica é uma luta nossa, de todos os que,
apesar da atual política educacional, lutam por uma formação omnilateral da classe
trabalhadora.
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