V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


O CONFORMISMO NEOLIBERAL E O EMPRESARIAMENTO DA EDUCAÇÃO1

Marco Vinícius Moreira Lamarão2 Rodrigo de Azevedo Cruz Lamosa3


Pela própria concepção do mundo, pertencemos sempre a um determinado grupo, precisamente o de todos os elementos sociais que compartilham um mesmo modo de pensar e de agir. Somos conformistas de algum conformismo, somos sempre homens-massa ou homens-coletivos. O problema é o seguinte: qual é o tipo histórico de conformismo, de homem-massa do qual fazemos parte? Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é compósita, de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista, preconceitos de todas as fases históricas passadas estreitamente localistas e intuições de uma futura filosofia que será própria do género humano mundialmente unificado. (GRAMSCI, 1999, p. 94, grifos nossos)


A passagem acima, presente nos Cadernos do Cárcere do pensador italiano Antônio Gramsci, revela um traço fundamental da existência do Estado: a sua função de (re)produzir nos indivíduos uma dada visão de mundo afinada aos interesses e demandas da classe (ou frações de classe) que, em determinado momento histórico, detém a hegemonia cultural e política de dada sociedade. Aquilo que Gramsci denominou de Estado ético (e que muitos dos


1 Artigo recebido em 19/07/2022. Aprovado pelos editores em 20/07/2022. Publicado em 21/07/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i4.55278.

2 Doutor em Políticas Educacionais pela Faculdade de Educação UFRJ - Universidade Federal do rio de Janeiro - Brasil. Professor da Licenciatura de História do Instituto Federal Fluminense Campus Macaé - Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: marcolamarao@gmail.com;

Orcid: 0000-0002-5561-9439. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9677011443280347

3Doutor em Políticas Educacionais pela Faculdade de Educação UFRJ - Universidade Federal do rio de Janeiro - Brasil Professor da Faculdade de Educação do Instituto Multidisciplinar da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro - Brasil. E-mail: rodrigo1281@yahoo.com.br Orcid: 0000-0002-7183-9589. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1913716021055272

gramscianos pontuarão como estado educador), por óbvio, extrapola a função da escola e ou da educação propriamente dita, ao mesmo tempo que revela que toda relação política é uma relação pedagógica. O inverso também é verdadeiro: toda relação pedagógica é, decerto, uma relação política. Outrossim, se a referida passagem extrapola a função da educação escolar, ela não deixa também de revelar o papel axial que esta educação escolar pode vir a ter na conformação de um dado conformismo. É, portanto e em resumo, função do Estado Integral produzir, seja pelo consenso, seja pela coerção, uma sociabilidade afinada à visão de mundo daqueles que detém o seu controle e hegemonia em um dado momento histórico. Ainda sobre o Estado ético, de acordo com o filólogo sardo

Parece-me que o que de mais sensato e concreto se pode dizer a propósito do Estado ético e de cultura é o seguinte: todo Estado é ético na medida em que uma de suas funções mais importantes é elevar a grande massa da população a um determinado nível cultural e moral, nível (ou tipo) que corresponde às necessidades de desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, aos interesses das classes dominantes. A escola como função educativa positiva e os tribunais como função educativa repressiva e negativa são as atividades estatais mais importantes neste sentido: mas, na realidade, para este fim tende uma multiplicidade de outras iniciativas e atividades chamadas privadas, que formam o aparelho da hegemonia política e cultural das classes dominantes. (GRAMSCI, 2011, p. 270).

Não obstante Gramsci trata de um Estado e sua função cultural e/ou educativa tendo como imediata referência a Itália dos anos 10, 20 e 30 do século passado (a qual, não nos custa recordar, sucumbirá ao fascismo sob a liderança de Benedito Mussolini), nos parece pertinente o uso desta categoria em contexto tão distinto daquele em que fora produzida, como no caso do capitalismo dependente brasileiro do século XXI, ainda que nos valha- para tal uso- algumas fundamentais ponderações. No entanto, é justamente neste emaranhado dialético entre a multiplicidade de iniciativas e atividades chamadas privadas que formam o aparelho da hegemonia política e cultural da classe dominante em sua relação com o Estado stricto sensu em nosso caso, com particular atenção à educação – que se ocupam os esforços investigativos do presente dossiê. Em outras palavras, as pesquisas, artigos e reflexões aqui reunidas colocam em relevo as inúmeras estratégias que as frações da burguesia lançam mão nas

disputas do sentido das políticas públicas educacionais, da educação e da escola (em especial a pública) no presente contexto histórico de aguda crise econômica e sanitária ou, de acordo com o léxico gramsciano, em meio à crise orgânica do capital.

No que diz respeito ao desiderato deste “imperativo categórico” da formação estatal, temos que na educação se percebe, também perene nas sociedades de classes, a existência daquilo que se logrou denominar de dualidade educacional ou, de forma mais simples, a presença de distintos tipos de escolas, umas voltadas à formação dos quadros das classes subalternas para o trabalho simples (que na oposição fundamental capital-trabalho é mormente a classe trabalhadora, mas também demais classes exploradas); e a existência de escolas voltadas à formação para o trabalho complexo ou intelectual dos quadros das classes dominantes (que naquela mesma oposição é, via de regra, a burguesia em suas distintas frações).

Resta-nos claro que, mais explicitamente, a partir das duas últimas décadas do século XX, os organismos internacionais da classe dominante passam a deter maior atenção à função da escola, das políticas educacionais e da educação e buscam, de forma organizada, persistente e sistemática produzir ‘ajustes finos’ nelas (com particular ênfase nos países capitalistas dependentes) como mecanismo de reprodução de uma sociabilidade de novo tipo. Afinadas ao processo de precarização do mundo do labor e produzidas pelas novas formas de organização do trabalho e ante a reestruturação produtiva naquilo que Lúcia Neves et al precisamente denominaram de “a nova pedagogia da hegemonia” (NEVES, 2005). O Toyotismo, a pejotização e a draconiana uberização do trabalho impactam diretamente na escola (em especial àquela voltada a formação da classe trabalhadora) não apenas por inserir no seu interior formas precarizadas do trabalho (MOREIRA, 2020) mas, também substancialmente, no processo de ressignificação produzida pela novilíngua neoliberal que sequestra temáticas e ou bandeiras caras à classe trabalhadora, dando-lhes novos sentidos e significados e efetivando uma romantização desta precarização ao passo que individualiza a culpa pelo potencial malogro e insucessos.

Para a grave crise orgânica que enfrentamos, recomenda-se a “educação financeira”; para a profunda falta de perspectiva, receita-se “projeto de vida”; para o desemprego estrutural, manipula-se “itinerários formativos”; a resistência

dá lugar a resiliência, ao passo que a solidariedade é subsumida ao colaboracionismo; não se trata mais de transformar, mas de empreender; o desemprego estrutural é explicado pela empregabilidade individual e não pelos determinantes do próprio processo de reprodução ampliada do capital, etc. Estes são alguns parcos exemplos do “neoliberalês”, numa miríade de ressignificações em plena atividade que não se esgotaria a contento em tão poucas linhas.

No caso da educação, sob a ótica da ideologia das classes dominantes, a culpa pelo “fracasso escolar” é, fundamentalmente, da docência e dos demais profissionais da educação. “Docência” esta que não passa de uma abstração tacanha que oscila ora de deveras mal preparado, ora de deveras mal- intencionado, quando não os dois. Este profissional deve, portanto, ou ser punido pela sua displicência e preguiça, ou ser controlado pela sua malevolência e doutrinação. Como toda abstração, cumpre papel ideológico fundamental de macular – tal como uma cortina de fumaça – as causas reais e concretas, os múltiplos determinantes fundamentais, da produção da educação como política pública em um país capitalista dependente como o Brasil, por óbvia referência, mas também para além dele.

Feita a cortina de fumaça, obscurece-se o histórico subfinanciamento da educação pública no país (LAMARÃO, 2021), a histórica interdição ao acesso das escolas públicas de negros, indígenas e mulheres por longo período da formação social brasileira, em especial (mas não somente) na colônia e império (LAMARÃO, 2021). Omite-se a crescente privatização financeirizada da formação superior em licenciaturas, com gradativo aumento da presença da modalidade de Educação à Distância (EaD) nesse processo (EVANGELISTA; SOUZA 2020); olvida-se, como dito, a intensa precarização do trabalho docente; esquece-se das distintas formas de ataques à autonomia pedagógica, subsumindo àquilo que é inerente ao processo ensino aprendizagem às diretrizes do mercado; não se faz menção ao empresariamento e ao empresariamento de novo tipo (como Maria Carolina Pires de Andrade e Vânia Motta destacam em artigo do presente número); não se atenta à adequação e funcionalidade dessa escola num arranjo capitalista dependente (FRIGOTTO, 1984), donde – alertam os presentes organizadores – torna-se ainda mais evidente em um cenário de grave crise econômica e sanitária cujo corolário mais

trágico se dá nas relações de trabalho (ANTUNES, 2020) . Para além da cortina de fumaça, decerto, há fogo.

O presente número temático que lhes é oferecido pela Revista Trabalho Necessário, organizada quadrimestralmente pelo Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (NEDDATE), contou com árduo e brilhante trabalho dos editores aos quais quaisquer organizadores teriam dificuldade em se equivocar. Esperamos não termos sido exceção. Traz-se à baila, neste número 42, a temática do Empresariamento da Educação e o Estado educador, donde um conjunto importante de pesquisadores brasileiros e de outras nacionalidades buscam escrutinar distintas iniciativas, organizações, propostas de políticas públicas, alterações legais etc. que visam atender aos objetivos de melhor adequação da educação à direção intelectual e moral da classe dominante, na faceta positiva do consenso no Estado Integral.

Se até o presente momento desta apresentação vigorou o cariz reprodutivista da educação, o que não é tão somente exagero da perspectiva daqueles que estudam os “tubarões da educação”, cabe-nos ressaltar o seu contraditório caráter emancipatório, em respeito a dialética como também a histórica luta da classe trabalhadora para que o pensamento crítico tenha garantido o seu espaço de debate público.

Outrossim, os educadores-pesquisadores aqui reunidos nesse número miram a sua prática docente e seus esforços intelectuais no sentido da construção de uma educação emancipatória. Nesses termos, nada mais pertinente do que utilizarmos este presente número para reverenciar o professor e pesquisador, ex-presidente da ADUFRJ, ex-presidente da ANDES-SN, ex- Reitor da UFRJ: Roberto Leher. A professora-pesquisadora da Universidade Federal Fluminense Inny Accioly nos presenteia com uma bela homenagem, cujo título “Roberto Leher e o desafio de ‘escovar a história a contrapelo’” e texto ressaltam a inequívoca indivisibilidade entre reflexão teórica e luta política na trajetória do, atualmente, Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Os organizadores o têm como referência teórica desde antes da oportunidade de tê-lo como magistral educador.

Amanda Moreira da Silva produz, na seção seguinte, pertinentes observações sobre uma obra axial da presente temática. Trata-se de “Os empresários e a educação superior” de José Rodrigues, resgatando ideias de força desta obra de 15 anos atrás e relacionando-as com os processos ulteriores que neste ínterim aprofundaram as transformações no ensino superior. Amanda Moreira da Silva dá destaque à intensa financeirização do ensino superior e a ‘feroz apropriação do fundo público’.

Iniciando os artigos submetidos ao número temático, apresentamos dois artigos de pesquisadores internacionais, atestando que o empresariamento da educação é um processo internacional, bem como – a partir das particularidades de cada questão local – a possibilidade de se ressaltar as peculiaridades de cada objeto estudado. O artigo “O público e o privado diante da mercantilização da educação em Angola” fora produzido por Alfredo Gabriel Buza, Roberto Leher e Juliana Lando Canga e suas análises destacam as descontinuidades de um modelo educacional cuja inspiração socialista mantinha-a, fundamentalmente, sob a forma de monopólio estatal e no qual, nos últimos 30 anos, foram introduzidas medidas favoráveis à expansão do setor privado. Os autores concluem, com isso, que a crescente presença do setor privado na oferta educacional opera pela substituição da sua oferta sob o monopólio estatal em favor de medidas privatistas, dentre as quais se destaca o fim da gratuidade do ensino superior nas instituições públicas angolanas.

Já o artigo seguinte traz como título “Legado y actualidad de la Reforma Universitaria de Córdoba”. Marcelo Ubal Camacho analisa a Reforma Universitária no Uruguai, tendo como fonte a Lei nº 19.043, que cria a Universidad Tecnológica del Uruguay (UTEC) e como a UTEC vem sendo, desde então, atacada pelas autoridades educacionais ao classificarem as diretrizes reformistas da criação da UTEC como obsoletas.

A seguir, os professores pesquisadores Lilia Colares e Anselmo Colares, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), analisam as ameaças que o capital financeiro enceta na educação pública como direito. Partindo de uma pesquisa bibliográfica, os autores do artigo “Educação mercadoria? Empresariamento? Defensores da educação como direito público, uni-vos” concluem ressaltando como a crise estrutural, crise sanitária e política levaram à intensificação das investidas do capital em favor da educação

mercadoria e do empresariamento, promovendo a precarização e o desmonte dela como direito social e política pública.

Vânia Motta e Maria Carolina Pires de Andrade destacam “O empresariado da educação de novo tipo e seus agentes: o empresariado educacional do tempo presente”. Partindo de uma pesquisa documental bibliográfica, as autoras abordam o fenômeno do empresariamento da educação, ressaltando a presença de elementos qualitativamente novos neste processo, o que as permitem denominar o processo corrente como empresariamento de novo tipo. Nesta categoria transcende a ideia de um mero conjunto de empresários que atuam e disputam o setor educacional, e é revelada a complexidade deste processo, bem como a necessária organização e luta da classe trabalhadora operando por outra hegemonia. Por fim, o artigo aponta como a tragédia genocida do atual governo abriu uma janela de oportunidades histórica para iniciativas deste tipo.

No artigo seguinte, intitulado “Estado Ampliado e o empresariamento da educação pública” e escrito por Adriana Medeiros Farias, foi analisada a força da ação empresarial na educação, em particular por seus aparelhos privados de hegemonia (como a Fundação Lemman, por exemplo) e suas Frentes Móveis de ação concluindo que as estratégias empresariais para a disseminação do seu ideário têm nas políticas educacionais lócus privilegiado dessa propagação.

A análise “A ideologia do empreendedorismo na reforma do Ensino Médio brasileiro” foi produzida por Matheus Rufino Castro, Bruno Gawryszewski e Catarina Azevedo Dias. O estudo em questão visa compreender o processo de difusão da ideologia do empreendedorismo nas escolas públicas. A análise se balizou em, primeiramente, um enquadramento teórico conceitual e também a consulta de documentos onde se investiga como o empreendedorismo foi alçado à condição de eixo estruturante dos Itinerários formativos na Reforma do Ensino Médio e nas políticas educacionais do Estado do Rio de Janeiro, tendo-o sido colocado como elemento central na construção das respostas ideológicas da burguesia à crise do capital.

O estudo realizado por Lúcio Braga e Sônia Rummert sobre “O Google Workspace for Education (GWE): mercadoria e hegemonia na educação” é derivado de pesquisa documental, e traz resultado parcial de análise

empreendida por um dos autores e busca analisar como a Google LLC, através da sua mercadoria para a educação – a GWE – incidirá nas decisões sobre políticas educacionais. Partindo do Estado ampliado e fundamentado no materialismo histórico, a análise dosa particular atenção às formulações gramscianas e conclui ressaltando como o GWE atua na conformação de um trabalhador de novo tipo.

Ainda sobre a participação de atores internacionais no processo de empresariamento da educação, o artigo “Criando mercados de ‘oportunidades de aprendizagem’: a corporação financeira internacional e o exemplo da Coursera”, de autoria de Marcela Alejandra Pronko, analisou o caso da Plataforma Coursera, um programa ligado ao Banco Mundial. Conforme a autora, a referida plataforma visa a promover a criação de mercados de “oportunidades de aprendizagem”, sendo um caso paradigmático da concepção de educação divulgada pelo Banco Mundial e seu braço financeiro, a Corporação Financeira Internacional.

Eneida Shiroma e Patrícia de Souza produzem a “Análise da Agenda 2030: a educação como estratégia de captura do fundo público”, na qual se revela fundamental faceta do processo de empresariamento da educação, qual seja: a busca pelo uso do fundo público como estratégia para a reprodução ampliada do capital. A pesquisa, de caráter documental, aborda a reconfiguração do Estado como condutor de políticas públicas em meio à crise do capital. Nesse processo, ressaltam as autoras, que o fundo público assume papel estratégico como mecanismo para compensar a queda da taxa de lucratividade.

Em continuação às reflexões aqui coligidas, trazemos o artigo de José dos Santos Souza, denominado “A educação superior enxuta e flexível como nicho promissor do mercado educacional”. Tratando dos Cursos Superiores de Tecnologia (CST) no Brasil, o artigo teve por objetivo explicar com esses cursos se tornaram promissores nichos de mercados, identificando as CSTs como uma educação superior enxuta e flexível, de caráter privado, sob forte presença da modalidade de Ensino à Distância, bem como o seu papel na conformação ética e moral dos jovens trabalhadores.

Inny Accioly, Luciane da Silva Nascimento e Kleyton Vieira Sales da Costa oferecem mais uma contribuição ao número temático no artigo intitulado “O ‘estranho casamento’ entre ultraneoliberalismo e ultraconservadorismo e os

ataques à universidade pública”. No artigo, @s autor@s analisam os sentidos da associação entre o ultraneoliberalismo e o ultraconservadorismo, e seus impactos nas universidades públicas. Destaca-se especial atenção a agenda que opera a refuncionalização e o desmonte das universidades, relacionando-as às contrarreformas, à ‘guerra cultural’ na descredibilização das instituições científicas. Como conclusão, o artigo ressalta que a pauta ultraconservadora serve como legitimação de superação de entraves para a implementação da agenda ultraneoliberal nessas instituições.

Também dialogando com a presença da agenda conservadora pautando os debates educacionais, bem como sua utilidade para o aprofundamento de medidas neoliberais, temos o artigo “Relações entre o público e o privado na educação brasileira: neoliberalismo e neoconservadorismo – Projetos em disputa”, da lavra coletiva de Maria Raquel Caetano e Vera Maria Vidal Peroni. Artigo produzido a partir de resultado de pesquisa que analisou a reconformação do papel do Estado na oferta educacional, no qual ele continua sendo o responsável pelo acesso, com ampliação das vagas públicas, por exemplo. Entrementes o conteúdo pedagógico e a gestão escolar são cada vez mais determinados por instituições que preconizam a lógica mercantil e neoconservadora, assumindo, para além disso, a formação do trabalhador docente, produzindo avaliações próprias e, com elas, monitorando todo este processo.

Entendemos que “A filantropização da educação básica como mecanismo de privatização da intelectualidade do professor”, artigo produzido por Renata Cecilia Estormovski e Rosimar Serena Siqueira Esquinsani, mantém importante diálogo com a reflexão anterior. As autoras analisam como as instituições ligadas à lógica mercantil atuam nos debates educacionais, através daquilo que denominam ‘Filantropização da educação’. Assim, atuando junto aos trabalhadores da educação, estas instituições operam a captura e privatização da intelectualidade do trabalhador docente e, com isso, aprofundam a sua precarização.

O artigo seguinte, cuja elaboração coube a Renata Azevedo Campos, intitula-se “O empresariamento da educação e o golpe de 1964: uma proposta conceitual do abstrato ao concreto”. A autora traz, em sua dimensão histórica, o golpe empresarial-militar como gênese do processo de empresariamento da

educação no Brasil. Analisando o empresariamento da educação como um processo intrínseco da própria dinâmica do capitalismo, em uma de suas dimensões. Nestas reflexões, a autora produz uma valiosa contribuição para a caracterização do empresariamento da educação.

Logo após, os autores Ramon Mendes da Costa Magalhães e Amanda Rodrigues discutem a inserção da pedagogia das competências socioemocionais na Base Nacional Comum Curricular, destacando a atuação do Instituto Ayrton Senna e a Fundação Roberto Marinho no artigo “BNCC, Instituto Ayrton Senna e Fundação Roberto Marinho: projetos educacionais para o ensino médio a partir da ótica das competências”. Tendo como base o Estado ampliado, os autores produzem análise a partir dos movimentos das entidades da sociedade civil, ou mais precisamente, dos aparelhos privados de hegemonia das classes dominantes como forma de deter melhor o movimento no Estado stricto sensu. Esta análise documental foi realizada pelo escrutínio dos documentos ligados às duas instituições e cotejadas com as legislações educacionais. Com isso, os autores concluem que a educação demandada pela burguesia, neste momento histórico, compromete ainda mais a formação dos jovens em favor da adequação ao mercado de trabalho.

O próximo artigo se intitula “A relação público e privado na educação básica brasileira”. Nele, os autores Marta Rosani Taras Vaz e Rafael Gomes Cavalcante analisam criticamente o processo de privatização da educação nas últimas três décadas. Neste intervalo se processam mudanças que redefinem a função e papel do Estado quanto a oferta e garantia da educação pública e o tamanho da participação do setor privado na educação. Seguem inquirindo sobre as novas formas de privatização da educação no Brasil e sua relação com os fundamentos da política no capitalismo, bem como a possibilidade de se defender uma educação para a classe trabalhadora sem a influência dos interesses privatistas. Os autores encerram suas reflexões alertando para a urgência da luta em defesa de uma educação voltada à classe trabalhadora.

Lucas Barbosa Pelissari nos apresenta, na continuidade do dossiê, o artigo “Burguesia industrial e educação profissional: a Confederação Nacional da Indústria (CNI) na formação social brasileira”. O autor detém-se, fazendo uso de pressupostos teóricos de Nicos Poulantzas, nos documentos produzidos pela CNI para, no bojo da pesquisa bibliográfica, concluir que as contradições do

projeto de educação profissional desse grupo “correspondem às características de componente da fração de classe denominada grande burguesia interna”.

Maria de Fatima Felix Rosar analisa o empresariamento da educação dando evidência as articulações entre o Estado capitalista e o universo corporativo em: “A estratégia do estado capitalista no setor da educação no brasil: deslocalizar os processos educativos”. Neste processo, destaca a autora, opera-se um deslocamento das decisões do campo das instituições públicas para o setor de negócios. Por fim, a autora ressalta a imbricação e unicidade entre a luta pela redefinição da educação, da educação democrática e a superação do capitalismo.

Em “O que está reservado ao trabalho docente nas IES privadas em tempos de automação do ensino? ”, Francieli Araujo examina alguns elementos da precarização do trabalho docente ante a expansão da educação superior privada, em especial nas primeiras décadas do século XXI. A autora, em sua análise, destaca como a automação do ensino, propalada como “inovação", aprofunda traços de desqualificação e degradação deste trabalho docente.

No artigo “A contrarreforma do ensino médio como programa da CNI para a política educacional brasileira”, Fernanda Franz Willers retoma uma relação que nos parece fundante no empresariamento da educação no Brasil, qual seja: as iniciativas da CNI buscando influenciar as políticas educacionais sob a ótica estrita de uma (importante) fração da classe burguesa no Brasil. No artigo, a autora pontua como a contrarreforma do ensino médio e as disputas em torno da BNCC foram marcadamente influenciadas pela agenda deste aparelho privado de hegemonia.

Alex Kossak e Nelma Bernardes Vieira, tal qual o artigo anterior, analisam a atuação do empresariado no Novo Ensino Médio destacando o seu modus operandi, que busca interceder nas políticas educacionais através de institutos, movimentos e fundações. Os autores de “A atuação do empresariado no Novo Ensino Médio” sublinham a ação política do Movimento Todos Pela Educação (MTPE) e do Instituto Ayrton Senna (IAS), em parceria com a Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, procedendo a análise desse caso como exemplo empírico daquele modus operandi.

Outro artigo que traz como objeto o Instituto Ayrton Senna é o produzido por Ramon Mendes da Costa Magalhães, intitulado “O Instituto Ayrton Senna e o aprender a aprender: o esvaziamento da educação a partir das competências socioemocionais”. Nesta análise, o autor coloca em relevo a atuação do IAS no estabelecimento de programas no âmbito do Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME) em meio à crise sanitária do COVID-19.

Em seguida, Patrícia Duarte problematiza o slogan da ‘inovação na educação’ em seu artigo “Educação para o século XXI e o Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB): uma conexão estratégica”. Partindo de um levantamento bibliográfico, a autora percebe a emergência da Teoria do Capital Humano nas décadas de 1960 e 1970, justamente em um contexto de agravamento da crise do capital. Ante à conjuntura atual de crise econômica e sanitária, a autora ressalta o papel cumprido pelo CIEB no reforço das premissas da Teoria do Capital Humano no hodierno momento histórico.

Lívia Vitória Cavadas Herdade e Vanessa Santana dos Santos apresentam-nos o artigo intitulado “O projeto REDUCA para as políticas de formação inicial na agenda do capital na América Latina”. Nele, as autoras analisam as políticas de formação defendidas pelo REDUCA, rede de aparelhos privados de hegemonia do grande capital que disputam a educação, de âmbito internacional, com presença em distintos países da América Latina. Tendo como procedimento de investigação a análise documental, o estudo parte da concepção de Estado Ampliado para apreender mecanismos de atuação empresarial em âmbito internacional. Ainda, as autoras destacam que, no bojo dessa atuação, objetiva-se proceder a conformação e a desintelectualização dos docentes.

No derradeiro artigo coligido neste dossiê, Tiago Fávero de Oliveira analisa o projeto Somar. Assim, o artigo “Projeto Somar: diminuindo o público e multiplicando o privado no ensino médio em Minas Gerais” buscou analisar a experiência do projeto em particular, ressaltando e identificando formas de empresariamento e avanço do público sobre o privado.

Na seção reservada à Resenha, Cinthia Cristiane da Silva Marujo analisa o livro organizado por José dos Santos Souza e Jussara Marques Macedo, cujo título Crise do Capital, Recomposição Burguesa e sua Ofensiva no

Campo Educacional oferta ao leitor precisa síntese do tema abordado bem como sua pertinente presença neste número temático.

A seção Entrevista deste número traz uma das últimas lives que a professora Lisete Arelaro participou no Festival Paulo Freire (novembro de 2021), projeto de extensão da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, comemorando o centenário do nosso Patrono da Educação. Não se trata de simplesmente fazer uma homenagem para quem nos deixou a pouco tempo, mas sim o reconhecimento do compromisso político assumido e do legado deixado para todos nós, pela professora Lisete. Como nos diz Angela Tamberlini, na apresentação, em “O legado de Lisete Arelaro: presente ontem, hoje e sempre em seus enredamentos com Paulo Freire”, a entrevista-live representa “o contraponto da investida dos pensamentos ultraneoliberal e ultraconservador e do capital, o que demonstra a presença de muitas lutas, resistências e experiências emancipatórias, compondo outros discursos, mesmo que não hegemônicos, mas que se faz necessário o reconhecimento, explicitando que um outro mundo, uma outra educação é possível”. Fazendo dos organizadores as palavras de Angela Tamberlini, registramos neste número a importância da Lisete Arelaro na produção acadêmica e militante em defesa da educação pública: Lisete, presente!

Na seção Teses e Dissertações, o presente número pode contar com o resumo expandido de duas belas pesquisas. Esta seção se inicia com o resumo expandido da pertinente tese de doutorado de Tássia Gabriele Balbi de Figueiredo Cordeiro, intitulada A hegemonia do agronegócio do campo à educação: coerção e consenso na ofensiva contra a luta por terra e por Educação do Campo”. A autora não deixa restar dúvidas que iniciativas no sentido do empresariamento da educação não se limitam à conformação do trabalhador urbano, mas se espraiasse, também, em direção ao trabalhador do campo e à educação do campo. A seção é completada com a resenha de Alex Kossak, que produziu a dissertação “Novo Ensino Médio ou renovação das condições da manutenção da velha dualidade educacional?”

A seção Memória e Documentos da TN 42, com o artigo intitulado “As contradições do Salário-Educação para além do público-privado”, Regis Argüelles tem por objetivo analisar criticamente a lei do salário-educação, proposta em 1946 e instituída a partir de 1964. Pretende-se, a partir da discussão

do contexto histórico de proposição e execução da lei, colocar em perspectiva os limites e as possibilidades da garantia do direito à educação no capitalismo.

Dado o elevado número de artigos submetidos pelos - autores convidados e por outros autores - nesta edição da revista não teremos a seção Artigos de outras temáticas, pois todos os artigos convergiram para a temática do número. Compensando esta sentida ausência está a felicidade do presente número ter despertado grande atenção nos pesquisadores da área e temática a quem, sem exceção, agradecemos a submissão.

Decerto que o conjunto de reflexões aqui reunidas, ademais a miríade de objetos distintos, têm como cerne fundante – para além da análise das formas variegadas de atuação do empresariado na sua incidência sobre políticas educacionais e ou a educação – a percepção de que esta análise das formas pelas quais operam as classes dominantes é tarefa histórica da classe trabalhadora. Retraduzir a ‘novilíngua’ neoliberal ao léxico histórico das bandeiras urdidas na longa trajetória de luta da classe trabalhadora no Brasil e em outros países é, sobremaneira, fundamental. Outrossim, ressaltamos que tão somente este passo é insuficiente para o efetivo enfrentamento do problema em questão. Tal qual como dito por Marx, na famosa Tese 11: para além de interpretar o mundo é fundamental transformá-lo. Dessa maneira, propositamos que este dossiê, mais do que um importante – ao menos creem os organizadores – compêndio de reflexões teóricas sobre o empresariamento da educação no ano de 2022, sirva de base reflexiva para os que, na prática da luta política, doam parcela de suas vidas, militâncias, esforços, energias física e psíquica na construção da luta em defesa da educação pública no Brasil e no mundo, e consequentemente na superação do capitalismo.


Referências


ANTUNES, R. Coronavírus: o trabalho sobre fogo cruzado. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2020.


EVANGELISTA, O. SOUZA, A. G. de. Pandemia! Janela de oportunidade para o capital educador. Disponível em: https://contrapoder.net/colunas/pandemia- janela-de-oportunidade-para-o-capital-educador/. Acesso: 17 jul. 2022.

FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva: um (re)exame das relações entre Educação e Estrutura Econômico- Social Capitalista. – São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1984.


GRAMSCI, A. O Leitor de Gramsci. Carlos Nelson Coutinho (Org.). Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 2011.


GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Vol. 1/ Antônio Gramsci; edição e tradução, Carlos Nelson Coutinho- 5ª ed.- Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.


LAMARÃO, M. V. M. Aspectos históricos do financiamento da educação básica pública brasileira: a “democratização autocrática”. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 23, nº 3, p. 803-820, 2021. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v23n32021p803-820. Disponível em: https://essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/15985. Acesso em: 06 jul. 2022.


NEVES, L. M. W. (org.) A Nova pedagogia da hegemonia. Estratégias do Capital para educar o consenso/ Lúcia Maria Wanderley Neves (org.). São Paulo: Ed. Xamã, 2005.


SILVA, A. M. da. Formas e Tendências de Precarização do Trabalho Docente: o precariado professoral e o professorado estável-formal nas redes públicas brasileiras. Curitiba: Editora CRV, 2020.