V.20, nº 42, 2022 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


Editorial


OFENSIVA ULTRALIBERAL E ULTRACONSERVADORA NA EDUCAÇÃO PÚBLICA E A LUTA PELO DIREITO A TER DIREITOS1


O número 42 da Revista Trabalho Necessário é publicado em uma conjuntura de grande gravidade política e social no país, que expressa o avanço da estratégia ultraliberal e ultraconservadora frente às políticas sociais e a organização classista da extrema direita, via fascistização da sociedade. O empresariamento da educação, para os setores dominantes, além de representar a ação organizada de disputa do fundo público e incentivo à privatização no campo educacional pelos setores rentistas, também configura a destruição do projeto de escola pública forjado nas lutas sociais. Destacamos, por sua contribuição histórica a esse projeto de escola pública, a figura militante do educador socialista Florestan Fernandes, cujo aporte à leitura da particularidade do capitalismo dependente na formação social brasileira é irrefutável para a compreensão das contrarreformas também como marca do caráter não- clássico da revolução burguesa no Brasil.

O clima antidemocrático agravado pelo golpe de 2016, que depôs a ex presidente Dilma Rousseff, ampliou as possibilidades de realização das Contrarreformas da Previdência e do Ensino Médio. Esta última, revelou de forma explícita que a educação pública no Brasil acompanha o projeto de aprofundamento da sua dependência. Os itinerários formativos implementados na Contrarreforma do Ensino Médio - referendados pelo poder institucional das escolas, que encampam o projeto educacional privatista das classes dominantes-, passam a apresentar o lugar de subordinação a ser ocupado pelos filhos e filhas da classe trabalhadora como correspondente a uma competência natural desses indivíduos, cujas escolas estão situadas em áreas de pobreza. Opera-se o convencimento da classe trabalhadora de


1 Artigo recebido em 20/07/2022. Aprovado pelos editores em 21/07/2022. Publicado em 21/07/2022 DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i42.55296.

que o lugar que ocupam correspondem às suas habilidades naturais, voltadas ao “trabalho braçal”, repetitivo, numa negação da realidade de desemprego estrutural e destruição das Universidades Públicas. As contrarreformas na educação, aliadas ao aumento da precarização do trabalho, ao racismo estrutural, e sexismo - que buscam justificar como natural a situação de penúria experimentada pelos trabalhadores e trabalhadoras -, produzem o consenso de que parte expressiva da população não segue os estudos por possuírem habilidades direcionadas a trabalhos voltados meramente à execução.

A conjuntura de ataques progressivos aos direitos sociais, especialmente a partir do Golpe de 2016, que possibilitou a aceleração das contrarreformas do Governo Temer e a política bolsonarista de subordinação ao imperialismo estadunidense, privatizações, devastação ambiental, ataques à ciência, ao funcionalismo público e ao trabalho docente, e a Universidade (com a determinação de Jair Bolsonaro, em 2022, de cortes de 3,23 bilhões do orçamento do Ministério da Educação), apontam para um cenário de estrangulamento da frágil democracia brasileira, na qual a Câmara de Deputados protagoniza processos de cassação de mandatos de deputados adversários à base do governo. Parlamentares são ameaçados de morte em municípios, à exemplo de Niterói-RJ e a sociedade vivencia um clima de terror, como demonstrou o assassinato de um militante do PT (Partido adversário da base do governo) por um bolsonarista, em Foz do Iguaçu. Concomitantemente, a trágica realidade convive com a criminalização dos movimentos sociais e com um passado recente de desarticulação das lutas sociais, que contribuem para arrefecer as possibilidades de reação organizada da classe trabalhadora nas ruas.

O atual número temático da Revista Trabalho Necessário trouxe a contribuição de intelectuais marxistas como Antônio Gramsci, que nos permite compreender o Estado ampliado na sociedade capitalista, e a necessidade de construção de uma educação contra-hegemônica, que expresse, em seus conteúdos, as necessidades do povo para que se fortaleça uma sociedade, baseada no novo homem e na nova mulher.

A contrarreforma do Ensino Médio define um ataque brutal à perspectiva de formação unitária e integral dos jovens, e representa o selo conservador do nosso capitalismo que projetou para a educação básica o viés economicista, eliminando

conquistas importantes de articulação da formação profissional, e as prerrogativas anunciadas nas DNCEM, onde está pautado a relevância da integração entre ciência, cultura e trabalho no Ensino Médio (FRIGOTTO; RAMOS, 2016).

A EC 95/16 autoriza o congelamento dos investimentos sociais em áreas como saúde e educação por 20 anos. No campo das políticas sociais, a DRU (Desvinculação de Receitas da União) foi expandida até 2023, e a desvinculação de receitas relativas a impostos, taxas e multas, foi ampliada em 30%, tendo como um dos destinos o pagamento dos serviços da dívida externa. Desta forma, compreende-se que a aprovação da Lei nº 13.415/17(contrarreforma do Ensino Médio), da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), e do projeto Future-se para a educação superior configuram como elementos que garantiram a materialidade do atual obscurantismo das ideias e da negação da história presentes no governo Bolsonaro.

Todas as contrarreformas foram aprovadas nos últimos anos como se fossem Reformas progressistas, comprometidas com o desenvolvimento da “nação” e com a modernização do Estado. No governo Bolsonaro, os servidores públicos, especialmente os professores, são duramente prejudicados na possibilidade de planejar e executar o trabalho docente, tanto pela perseguição política (acusações de “ideologia de gênero”, “racismo reverso” e “Marxismo cultural”), quanto pela precarização do trabalho. A atual pandemia do COVID-19, agravada pela posição contrária à vacina do governo Bolsonaro, que resultou na morte de mais de 676 mil pessoas, ratificou estratégias capitalistas de superação da crise, e aprofundou a tragédia social já experimentada pelo conjunto das trabalhadoras e trabalhadores, na qual o Estado aumenta o socorro ao capital em detrimento do trabalho, utilizando-se de seu braço armado para implementar o controle da força de trabalho via genocídio nas periferias das cidades e no campo.

No processo de constituição da independência de Moçambique de Portugal, Samora Machel (2019), em texto publicado originalmente em 1974, demonstrou ao mundo o valor da educação no fortalecimento da luta e resistência popular, onde a escola deveria trabalhar os conteúdos necessários ao avanço da revolução socialista. Na interpretação do líder revolucionário, dirigir a sociedade significa servir aos interesses do grupo dirigente, e a construção de um poder novo exige a construção do poder popular, cujo princípio elementar é a radicalização da democracia.

Em sua atenção aos processos de formação, Samora Machel (2019, p.243), destaca que “a discussão democrática exige uma preparação rigorosa. Antes da discussão devemos proceder a uma investigação cuidadosa do assunto ou assuntos a debater”. Ou seja, na consolidação de uma verdadeira democracia em países de base colonialista como o Brasil, não caberá o dualismo educacional, a repetição dos princípios de formação colonialista, racista, sexista, que criminaliza os povos do campo e negligencia a relevância da Amazônia, mas deverá empenhar-se em construir, com o povo, espaços de produção de conhecimento afinados com a preservação da vida. Condições reais de materialização da democracia precisarão ser edificadas com os movimentos populares, nos quais destaca-se o protagonismo do MST e seu projeto de educação, cuja particularidade aponta elementos de generalidade, imprescindíveis ao fortalecimento das lutas em defesa da escola e Universidade públicas.

As eleições de 2022 colocam para a classe trabalhadora o desafio da derrota do projeto de Bolsonaro e seus aliados para o país. Para uma ampla frente de esquerda, sua derrota representará o rechaço à política de ódio contra negros, mulheres, LGBTQIA+ e a retomada dos direitos sociais que foram banidos no atual governo, que tem como uma das principais políticas para a educação básica a implantação de escolas cívico-militares, a ampliação de parcerias público-privadas, com a finalidade de privatização da educação em todos os níveis, etapas e modalidades, o incentivo ao armamento da população, ampliando as áreas de ação do garimpo e de madeireiras, que ocasiona o extermínio de povos e comunidades tradicionais, e o aparelhamento de órgãos públicos como INCRA, FUNAI e IBAMA que deveriam fiscalizar crimes ambientais e proteger as diversas comunidades. Elementos que fragilizam a classe trabalhadora.

Caberá ao novo governo eleito a tarefa de romper com o pacote de contrarreformas, e organizar a saúde, a educação e a reforma agrária com a classe trabalhadora, o que exigirá governar com o povo. Aos movimentos populares caberá enfrentar o desafio de ocupar as ruas no pré e pós eleições, cuja tarefa será, além de denunciar a tragédia social do atual governo, construir as possibilidades concretas que definam como dirigente a classe trabalhadora organizada. Derrotar o bolsonarismo exigirá da classe trabalhadora organização permanente, considerando a gravidade do cenário atual, no qual há o crescimento em mais de 270% de células

neonazistas, num país de maioria negra e de terras camponesas, indígenas e quilombolas.

Marx argumenta em suas obras que o capital é a potência da sociedade burguesa e nos chama à atenção para que o capital seja compreendido como uma relação social e não como coisa ou mera abstração, visto que manifesta relações sociais de exploração que veremos nos conflitos no campo, na expulsão dos trabalhadores de suas terras, no desemprego, na falta de acesso à escola. Nenhum destes fenômenos poderá ser compreendido, em sua totalidade, se tomados em si mesmos, sem que sejam contextualizados com o mundo da economia, com o mundo do trabalho, com as relações sociais de produção e suas determinações. Por isto, ao partir da crítica da economia política, o estudo da educação não pode ser compreendido apenas a partir da análise das relações escolares, das dinâmicas institucionais, ou encerrado na análise endógena dos currículos, mas sobretudo precisa dialogar com os desafios do tempo presente, com os significados sócio- históricos da correlação de forças vigentes no chão da escola e da Universidade Pública.

Desta forma, se é o direito que pauta a luta dos movimentos sociais na radicalização da democracia, é preciso impor na atualidade a urgência e radicalidade dos processos de democratização, na negação da concepção liberal de democracia, associada à liberdade do indivíduo, segundo a qual é importante garantir que o indivíduo usufrua na esfera privada os bens que ele, nos argumentos liberais, constrói privadamente.


A democracia é a única forma política que considera o conflito legal e legítimo, permitindo que seja trabalhado politicamente pela própria sociedade. As ideias de igualdade e liberdade como direitos civis dos cidadãos vão muito além de sua regulamentação jurídica formal. Significa que os cidadãos são sujeitos de direitos, e que onde não existam tais direitos, nem estejam garantidos, tem-se o direito de lutar por eles e exigi-los. É este o cerne da democracia. (CHAUÍ, 2002, 344).


A igualdade declarada na Constituição não deve se restringir à mera disposição formal. As ações organizadas dos movimentos sociais do campo e da cidade na defesa da educação e dos demais direitos sociais, devem exigir ações concretas do Estado no sentido de materializar o exercício dos direitos a todos os cidadãos. A compreensão do direito a ter direitos fundamenta a ação dos movimentos sociais

como demandantes do que está previsto em lei, mas não materializado na realidade. Os direitos, portanto, a serem dirigidos a todos os cidadãos, devem independer da classe social, da situação socioeconômica, de vivermos no campo ou na cidade, de sexo, cor, sendo o fato de sermos humanos o que nos faz portadores de direitos. É nessa direção que o presente número entende que para que a escola e a Universidade públicas sejam efetivamente públicas, precisarão pintar-se de povo, onde todas as pessoas possam de forma democrática exercer o direito à educação.


Niterói-RJ, julho (inverno) de 2022.


Lia Tiriba, José Luiz Antunes, Jacqueline Botelho, Regis Argüelles, Angela Tamberlini e William Kennedy do Amaral Souza

Editores da Revista Trabalho Necessário


Referências


CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2002.


FRIGOTTO, G; RAMOS, M. Medida Provisória 746/2016: A contrarreforma do Ensino Médio do Golpe de Estado de 31 de agosto de 2016. Revista HISTEDBR. Campinas, nº 70, dez. 2016.


LEHER, R. Florestan Fernandes e a defesa da educação pública. Educ. Soc. 33 (121) Dez 2012. Disponível em < SciELO - Brasil - Florestan Fernandes e a defesa da educação pública Florestan Fernandes e a defesa da educação pública> Acesso em 15 de julho de 2022.


MACHEL, S. Estabelecer o Poder Popular para servir às massas. In: MANOEL, J; LANDI, G (orgs.). Revolução Africana: uma antologia do pensamento marxista. São Paulo, SP: Autonomia Literária, 2019.