V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X


Reportagem fotográfica (acessar fotos)


VIAGEM DE CAMPO:

A EXTENSÃO DO CRIME AMBIENTAL NA BACIA DO RIO DOCE 1


Mahalia Aquino2



Rio Doce: o rio proibido. Vista da janela da residência de uma família de pescadores que se mudaram para o bairro São Judas Tadeu (Colatina – Espírito Santo) - 10 de junho de 2022.

Autoria: Mahalia Aquino


1 Ensaio recebido em 29/07/2022. Aprovado pelos editores em 02/08/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.

2 Professora de Geografia e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: mahaliagcaquino@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1716949253761324. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1392-8487.


1

“Morar à beira do rio é ter contato com a natureza. Hoje a gente não tem mais esse contato com a natureza. Antes tínhamos o rio como algo nosso. Escolhemos ser pescadores pelo direito e ir e vir, e de ser livre.” Pescadora de Maria Ortiz, vila pesqueira em Colatina (ES). Junho/2022.


Como pesquisadora do campo Trabalho-Educação, tenho valorizado o que Edward P. Thompson chama de “história vista de baixo” ou “história vista pelos de baixo”. Isso significa olhar a sociedade na sua historicidade pelo viés da classe trabalhadora: operários, camponeses, ribeirinhos, quilombolas e outros homens e mulheres que resistem como povos e comunidades tradicionais. São histórias de vida e trabalho tecidas por memórias, tradições, valores e saberes violentamente apagados pelas narrativas da classe dominante e pelo poderio do capital que expropria territórios, e com eles, modos de vida calcados em relações estreitas aos demais elementos da natureza.

Estar presente de corpo e alma nos espaços historicamente ocupados e reivindicados pela classe trabalhadora; ouvir sobre anseios, vitórias e derrotas são práticas que inspiram pesquisadores das ciências humanas e sociais e, também a mim, como trabalhadora. Nessa perspectiva, não me caberia uma pesquisa apenas ancorada em documentos ou pautada em relatos de fontes secundárias. Seria necessário ir até a experiência, aos modos de existência e resistência de trabalhadoras e trabalhadores. Em síntese, é uma possibilidade de apreender a história sob o olhar daqueles que têm sido subjugados, pelo capital, à condição de subalternidade.

Acredito que a indignação é o primeiro passo para a movimentação das engrenagens da mudança. Sendo assim, para a pesquisa desenvolvida no doutorado em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense3, parto da indignação gerada pela forma com que o meio ambiente – seres humanos e natureza em relação –, vem sendo, cada vez mais, explorado, expropriado e tornado mercadoria pelo modo de produção capitalista, o qual é hegemônico em relação a outros modos de produzir a vida social. Não por acaso, destruição, poluição, contaminação, fome, crimes e violência



3 Sob orientação da Profa. Dra. Lia Tiriba, que esteve comigo na viagem de campo em junho de 2022.


2

ambiental são visíveis nos territórios ocupados por povos e comunidades tradicionais.

Para essa reportagem fotográfica apresentada a Revista Trabalho Necessário, o lócus da viagem de campo consiste na Bacia do Rio Doce4, região diretamente atingida pelo crime ambiental que repercutiu no rompimento de uma das barragens de rejeitos minerários do Complexo de Germano Fundão (Mariana – MG), em novembro de 2015. A barragem é de responsabilidade da mineradora Samarco e suas acionistas, as multinacionais extrativistas Vale e BHP Billiton.

As primeiras localidades atingidas foram os subdistritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo (na zona rural de Mariana). A enchente de lama também destrói o distrito de Gesteira e centro urbano de Barra Longa (MG). De Barra Longa em diante a contaminação se estende aos Rios Gualaxo do Norte (primeiro rio atingido), do Carmo e Doce. A lama chegou a Regência Augusta (Linhares – ES), no encontro


com o mar, na tarde do dia 21/11/2015. Veja o mapa abaixo:


4 O Rio Doce localiza-se na região Sudeste, banha os estados de Minas Geais e Espírito Santo. Com extensão de 879 km, o Rio Doce é um dos principais rios da Bacia Hidrográfica do Rio Doce e abastece mais de três milhões de pessoas. Fonte: https://www.cbhdoce.org.br/institucional/a-bacia.


3

Mapa do percurso do rejeito de Mariana (MG) até Regência (Linhares – ES) Fonte: Mahalia Aquino (arquivo pessoal)


O processo de chegada da lama até os municípios, distritos e vilas pesqueiras foi caótico, com muita desinformação e ausência do poder público e das empresas responsáveis em mediar, controlar e gerar explicações sobre o que estava acontecendo. A chegada da empresa Samarco na região se resumiu a reuniões às portas fechadas com comerciários, prefeitos, vereadores, presidentes das colônias de pesca, enquanto a maioria da população atingida foi excluída, sem saber sequer o que havia acontecido.

Com esse crime ambiental que devastou o Rio Doce e seus afluentes, os modos de vida dos trabalhadores mudaram radicalmente. Para as pessoas que vivem nas vilas pesqueiras foi uma grande tristeza vivenciar a morte em massa de peixes. Pescadoras e pescadores foram convocados às pressas para salvar o máximo de fauna antes da chegada da lama na foz do Rio Doce. E com a chegada da lama, foram novamente convocados para tirar da água toneladas e toneladas de peixes mortos da água contaminada. Para uma pescadora de Mascarenhas, em entrevista realizada em junho de 2017, além da lembrança do cheiro forte no ar, “foi desesperador ver os peixes correndo da água (...)”.

Entende-se que os desdobramentos do crime recaíram, de forma mais adensada, sobre os pescadores, agricultores familiares, indígenas e quilombolas. Esses sujeitos vivenciaram o rompimento de suas práticas econômico-culturais (entre elas as ambientais), que tinham como ponto de partida o Rio Doce – como seus laços históricos de convivência, as formas de subsistência, o trabalho com a pesca, seus conhecimentos tradicionais, entre outros. Suas práticas laborais e a relação com o rio foram extintas pelo crime ambiental. Inicia-se assim, um longo processo de exclusão de inúmeros pescadores e pescadoras de seus territórios, o que perdura até hoje, quase 7 anos após o ocorrido. A expropriação desses modos de vida faz parte de um projeto de violência ambiental do capital, que separa (historicamente) seres humanos e natureza, trabalhadores e seus meios de produção da existência.

Para essa reportagem fotográfica, tem-se como recorte espacial o estado do Espírito Santo, margeando o rio principal até o seu encontro com o mar. A pesquisa de campo ocorreu entre os dias 08 e 14 de junho de 2022 e foram entrevistados: I.


4

Pescadores nas vilas pesqueiras de Mascarenhas (Baixo Guandu – ES), Maria Ortiz (Colatina – ES) e Povoação (Linhares – ES); II. Trabalhadores rurais no Assentamento Sezínio Fernandes de Jesus (Linhares – ES), do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); III. Lideranças (e ex-pescadores) do bairro São Judas Tadeu em Colatina – ES, juntamente com representantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) que participaram da atividade da Roda de Conversa sobre o crime ambiental5. Para realizar a pesquisa de campo, foi utilizado como meio de transporte o trem de passageiros da Vale que se desloca pela Estrada de Ferro Vitória a Minas (EFVM)6 de Ipatinga (MG) com destino a Colatina (ES)7, percorrendo as margens do Rio Doce.

Busca-se com esta reportagem fotográfica evidenciar o meio ambiente da Bacia do Rio Doce após o crime do rompimento da barragem de Fundão e de como esse ambiente não favorece, ou não propicia mais, as condições necessárias para a realização do trabalho com a pesca e com a terra. O crime atingiu rios, mar, a agricultura e a água que não pode ser bebida ou ser utilizada como meio de lazer. Ou seja, a relação histórica entre trabalhadores ribeirinhos e o Rio Doce – entre seres humanos e natureza – fora rompida. Apesar da beleza na paisagem retratada, a contaminação, as precárias condições de vida e os riscos à saúde, são evidenciados nas falas e nos corpos da classe trabalhadora ribeirinha, que convivem diariamente com as consequências desse crime ambiental. Os impactos são inúmeros, atingindo água, terra, ar, fauna e flora.

Sendo assim, retrato alguns aspectos ambientais da realidade vivenciada por trabalhadores atingidos pelo crime, os quais tiveram seus modos de vida expropriados e coexistem hoje com os problemas socioambientais, que estão longe de ter resolução. Essas fotografias denunciam o abandono e sofrimento que passa a classe trabalhadora atingida do Rio Doce, que encontra na luta coletiva um meio de


5 A roda de conversa foi proposta pela pesquisadora e a orientadora, Lia Tiriba, como parte da pesquisa de campo para a região.

6 A estrada de ferro liga Belo Horizonte (MG) a Vitória (ES) e está sob concessão, até 2027, para a Vale.

7 A intenção inicial do campo era começar por Belo Horizonte, mas por conta das fortes chuvas durante o verão de 2022 em Minas Gerais, o trajeto está interrompido até a estação Mário Carvalho, em Timóteo (MG). Sendo assim, a estação escolhida para começar o trajeto pala EFVM, foi Intendente Câmara, em Ipatinga (MG), pela facilidade de deslocamento por Juiz de Fora (MG), ponto de partida da viagem.


5

falar sobre suas experiências e de se fazer ouvir. Desejamos que essa reportagem se some à luta, e que as pessoas e a natureza não sejam esquecidas.

Deixemos que falem as imagens... Link de acesso às fotografias.


6