V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X


A LUTA DOS TRABALHADORES É A LUTA AMBIENTAL E VICE-VERSA: ENTREVISTA COM DERCY TELES1

Entrevista realizada pelo Grupo de Pesquisa Trabalho-educação e Educação Ambiental (GPTEEA) do IFRJ – Campus Nilópolis 2

Alexandre Maia do Bomfim3 Thiago da Silva Oliveira4 Juliana Rodrigues de Souza5


1 Entrevista recebida em 20/07/2022. Avaliada pelos editores em 29/07/2022. Aprovada em 10/08/2022. Publicada em 11/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55419.

2 Entrevista realizada no dia 03 de fevereiro de 2022, de forma remota. Resumimos um pouco a entrevista, assim como editamos parcialmente para facilitar o entendimento. Não obstante, mantivemos o tom coloquial da conversa.

3 Doutor em Ciências Humanas-Educação. Professor Associado III do Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências (Propec) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) E-mail: alexandre.bomfim@ifrj.edu.br ORCID: 0000-0002-5617-2229.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9426535856477661

4 Mestre em Ensino de Ciências pelo Programa Pós-graduação em Ensino de Ciências (Propec) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) - Brasil.

E-mail: thiagosilvaoliveira1989@gmail.com; Lattes: http://lattes.cnpq.br/7417803107136987; ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8855-470X

5 Graduanda do curso de bacharelado de Produção Cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), campus Nilópolis.E-mail: jully.rodrigues2012@gmail.com .

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8660-7107. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1261988630021649.


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Nossa entrevistada é Dercy Teles, seringueira, primeira mulher a presidir um Sindicato de Trabalhadores Rurais na Amazônia, exatamente o mesmo sindicato que seria liderado depois por Chico Mendes. Antes da presidência e martírio de Chico, era ela quem liderava os trabalhadores rurais em Xapuri-Acre. Sua formação política se deu no interior das Comunidades Eclesiais de Base, influenciada pela Teologia da Libertação da Igreja Católica. O mandato de Dercy no Sindicato iniciou em 1981, ainda sob o Regime Militar e conforme suas próprias palavras, esteve sob “duas ditaduras: a ditadura militar e a ditadura dos camaradas homens”. A força de Dercy não deve ser registrada só nesse passado relativamente remoto, porque ela continuou militando e refletindo a situação dos trabalhadores por muito tempo, especialmente com esses que ficaram, assim como ela, nas “colocações” e na própria Reserva Extrativista Chico Mendes. A Dercy ainda tem muito a nos dizer e vai nos dizendo; ouvi-la é mexer também com nossas próprias convicções políticas...

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Alexandre: Dercy, vou explicar para você qual a intenção dessa entrevista e logo depois vamos fazer as perguntas. Eu coordeno um grupo chamado Grupo de Pesquisa em Trabalho Educação e Educação Ambiental (GPTEEA). É um grupo ligado à educação, mas sempre reflete sobre educação ambiental. A gente está fazendo essa entrevista por conta da revista Trabalho Necessário, que é uma revista da UFF de colegas envolvidos principalmente com a reflexão em Trabalho-Educação, mas que acolhe várias outras perspectivas, de movimentos sociais à universidade. Então, viemos conversar com você, de maneira geral, sobre como você vê os problemas do Acre, os problemas nacionais que envolvem os trabalhadores do campo, os trabalhadores rurais, o desafio de ter essa questão ambiental sendo posta. É um pouco sobre isso que vamos conversar hoje. Eu queria começar devagar. Você disse que está agora na sede do PSOL...


Dercy: Sim... No momento estou numa rua das mais antigas, uma das primeiras ruas fundadas na cidade... Estou na chamada Rua Major Salinas, próximo ao Hospital Epaminondas Jácome, bem no centro antigo da cidade de Xapuri, à beira do Rio Acre. A casa onde eu estou, o quintal dela, vai para as margens do rio. Essa casa é onde funciona o diretório municipal do PSOL.



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Alexandre: Dercy, qual a distância de Xapuri para Rio Branco? mais ou menos


Dercy: Pra Rio Branco? A distância é de 185 quilômetros.


Alexandre: E a estrada, está boa?


Dercy: Ela está razoável, sempre tem uns tapa-buracos, e a gente consegue fazer entre duas horas e duas horas e meia esse trecho, sem correr muito.


Alexandre: Mas hoje você ainda mora em Xapuri?


Dercy: Eu morei em Xapuri de 2006 a 2017, quando estive na direção do sindicato, aí, em 2017 a gente perdeu a eleição e eu retornei à minha propriedade na zona rural, que estava entregue às traças. Eu fui reativar [a propriedade] porque foram 11 anos afastada. Hoje eu moro lá na zona rural, que fica a 10 quilômetros aqui da cidade.


Alexandre: É perto da reserva Chico Mendes?


Dercy: Eu moro no entorno da reserva [Chico Mendes], ela está mais ou menos de três a quatro quilômetros distante de onde eu moro. A estrada de terra que dá acesso à reserva Chico Mendes corta a minha propriedade. Toda a movimentação que acontece lá dentro passa por onde eu moro.


ENFRENTADO DUAS DITADURAS


Alexandre: Vou passar pra [sua] história. Por onde você quiser, Dercy... Se você quiser resgatar sua infância...


Dercy: Minha história é como a história da maioria dos acreanos. Sou filha de nordestino que migrou para o Acre na época da guerra... Nasci no seringal. Aos 4 anos de idade meus pais se mudaram para esse lugar que eu moro atualmente. A gente6 foi criado lá e continuamos morando lá, com exceção da minha irmã que mora em Rio Branco e do meu irmão mais novo que já é falecido há três anos.


6 Referência aos quatro irmãos, na ordem de nascimento: Pedro Teles de Carvalho; Dercy Teles de Carvalho; Bernadete Teles de Carvalho; Emi Teles de Carvalho.

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Eu me criei no seringal Boa Vista, na Colocação Pimenteira, que hoje já não é mais colocação7, porque houve uma divisão da área. Com a desvalorização do extrativismo, a falta de mercado e de uma política de incentivo para o extrativismo, as colocações foram loteadas e a nossa não foi diferente.


Fiz um pouco de tudo na roça, roçando as estradas de seringa, preparando as seringueiras pro [sic] corte, ajudando meus irmãos. Sempre tive uma vida ativa, tanto no trabalho de campo, como no trabalho doméstico. Tanto que hoje, apesar da idade, moro só e consigo administrar minha propriedade, cuidar da criação. Só eu e Deus. [São] Os deuses e os anjos que dão a força pra gente continuar essa luta...


Muita gente me pergunta como é que eu cheguei aonde cheguei. Porque muita gente procura conhecer minha história. Não é comum as mulheres nascidas e criadas na zona rural terem destaque no campo político e eu comecei a me destacar quando meu pai morreu. Meu pai faleceu em 1974, eu tinha 20 anos. A minha mãe era aquela mulher do lar, aquela mulher que o marido escolhia a cor do tecido. Naquele tempo, a gente comprava a “fazenda”, não se chamava tecido, era fazenda pra confeccionar as roupas. Meu pai comprava pra ela e pra nós, escolhia o modelo, ia na costureira. Ele que decidia tudo. Então, quando meu pai faleceu a minha mãe ficou perdida, e aí eu fui forçada a assumir o comando, porque meu irmão mais velho era alcoólatra e a gente sabe que quando a pessoa é dependente é um problema, nem precisa detalhar... Então, eu assumi a governança da colocação. A partir daí, eu vou me inserindo no campo político.


Em 1977, é fundado o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Xapuri, que se inicia a partir dos conflitos que começaram nos anos 1970 com a transição do extrativismo pra [sic] pecuária intensiva. Os seringalistas começaram a vender os seringais com as famílias de seringueiros morando lá dentro. E os novos donos das terras começaram a expulsar as pessoas e cometer sérias atrocidades. E aí começou o grande problema do Acre, que foi o inchamento das periferias, principalmente em Rio Branco, que é a maior cidade e por ser a maior cidade as pessoas sempre


7 “Colocação” é uma média extensão de terra, geralmente área que cabe a uma família, onde se encontra a casa do extrativista e as plantações de subsistência, rodeadas pela floresta. Cada colocação é formada por no mínimo por três “estradas de seringa”. “Colocação” é uma expressão muito utilizada no Acre.

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migravam pra Rio Branco na expectativa de conseguir trabalho, de ter uma vida digna.


Nessa história, em 1977 é fundado o sindicato e em 1978 inicia a Teologia da Libertação aqui no Acre. Capitaneada pelo bispo Dom Moacyr Grechi, que também já partiu pra eternidade, mas, assim, foi um excelente pastor, que ajudou muito no fortalecimento dos sindicatos e incentivou muito esse trabalho da Teologia da Libertação, que propiciou a formação política de trabalhadores e trabalhadoras, assim como eu. Com isso a gente conseguiu fazer o sindicato de Xapuri, (...) um sindicato reconhecido nacional e internacionalmente, que fez muitas badalações, muitas lutas, né, nos anos 70, 80... A gente fez muita luta aqui, teve muitas conquistas também.


Essa formação da Teologia da Libertação, do Moacyr, trazia grandes pensadores, cientistas pra promover formação pros [...] animadores de grupo, [grupo] que se chamava Grupo de Evangelização nas Comunidades. Tinha Clodovis Boff, Carlos Mesters, Leonardo Boff, grandes figuras. Hoje uma colega de São Paulo mandou uma página de um livro, que o Clodovis escreveu sobre o Acre, que se chama “Deus e o homem no inferno verde”, não sei se vocês conhecem... Ela conseguiu localizar esse livro e me mandou uma página onde ele me cita.


A gente com essas formações aprendeu muita coisa e continua aprendendo. Essa conversa que a gente está tendo aqui é uma troca, a gente conta a história e ouve a história de vocês, essa troca de experiência, de vivência de cada lugar, é uma coisa que enriquece e fortalece as esperanças de cada um de nós... Então, em 78, eu ingressei nas Comunidades Eclesiais de Base e comecei a participar dessas formações dada pela igreja.


Eu fui delegada sindical da minha comunidade, não era comum as mulheres serem sindicalizadas, só as viúvas. Mas, eu me sindicalizei, fui delegada sindical da minha comunidade e, em 1981, fui a primeira mulher a presidir um sindicato na Amazônia: o Sindicato de Trabalhadores Rurais da Amazônia. Os sindicatos iniciaram como um espaço extremamente masculino e eu sempre falo que enfrentei duas ditaduras: a ditadura militar e a ditadura dos camaradas homens, que eu convivi no sindicato. Muitos não aceitavam que uma mulher presidisse um sindicato dos trabalhadores

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rurais. Mas, a gente conseguiu descobrir estratégias e quebrar esse paradigma. Tem pessoas que me perguntam como eu sobrevivi a isso tudo. Eu descobri que eu tinha que me nivelar nas informações para debater de igual pra igual com eles, [saber sobre] os problemas que eram comuns à classe trabalhadora rural naquele momento, procurei me informar e me nivelar nos debates e por aí a gente foi socializando as ideias de homens e das mulheres... A gente conseguiu trazer outras mulheres pra se sindicalizar. Eu fui a segunda presidente do sindicato de Xapuri. O primeiro foi o fundador, Luiz Damião do Nascimento, e depois de mim teve o Osmar Facundo, que também é nordestino, depois do Osmar que entra o Chico Mendes, ele foi o quarto presidente...


Alexandre: O Wilson Pinheiro não foi presidente do sindicato de Xapuri, ele era de outro lugar...


Dercy: Do município de Brasiléia, que foi fundado em 1975, fica bem próximo de Xapuri. [Foi] o primeiro sindicato a ser fundado aqui na nossa região, que a gente chama região do Alto Acre. Ele [Wilson Pinheiro] era muito parecido com Chico Mendes, parecido no sentido de lutar. Era um negro de estatura média, uma pessoa muito simpática e tinha o mesmo carisma que o Chico Mendes, de aglutinar pessoas, de conquistar a confiança dos trabalhadores, uma pessoa simples e muito responsável.


Alexandre: Eu ia te perguntar sobre ele. Ele também tinha formação católica?


Dercy: Tinha. Eventualmente ele participava desses eventos de formação, que aconteciam no mês de julho de cada ano, era uma semana de evento que acontecia em Rio Branco, na capital do estado.


Alexandre: Ele morreu em 1980. Isso foi um baque muito duro, né? Como foi a morte dele?


Dercy: Foi muito duro e teve uma repercussão local muito grande. Inclusive, os trabalhadores de Brasiléia revidaram assassinando um capataz de [da] fazenda [dos proprietários suspeitos de encomendarem a morte de Wilson Pinheiro]. A primeira e última vez que eu estive em um presídio foi visitando esses camaradas [os que


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mataram o capataz] que foram presos após esse episódio... Eles ficaram lá uma porção de tempo, mas depois foram liberados.


Os fazendeiros, os proprietários das terras, eles nem andavam aqui, tinham os capatazes, os chamados gerentes, que comandavam as fazendas. Esse [tal capataz] foi assassinado porque ele era visto pelos trabalhadores de Brasiléia como um dos mandantes do assassinato do Wilson.


Alexandre: Qual era a maior motivação para esses embates?


Dercy: A principal motivação desses embates era garantir a posse da terra para os seringueiros, para as famílias seringueiras. Tanto que, a partir dessa organização do movimento sindical, a gente foi diagnosticando alguns instrumentos essenciais para fortalecer a luta, um deles foi a alfabetização de jovens e adultos, porque a maioria era analfabeta... Só tinha escola para os filhos dos gerentes e dos funcionários que trabalhavam ali pros [sic] seringalistas e depois pros funcionários dos fazendeiros.


A gente conseguiu fazer, com um grupo de intelectuais, a partir de uma tese de doutorado da Maria Allegretti, que estudou a vida e o modo de vida dos seringueiros do Juruá... [A gente conseguiu] elaborar uma cartilha específica pra essa alfabetização, com palavras geradoras, toda dentro do contexto do vocabulário do seringal.


A gente começou a abrir escolas alternativas. Havia, digamos, ONGs que financiaram, como a (...) CEDI, que financiou a elaboração de cartilhas8, (...) e o próprio Ministério da Cultura. Tinha um departamento chamado de Pró Memória que investia na Cultura, na Educação, que era do governo, lá do Ministério da Cultura, em Brasília. E junto com a alfabetização de jovens e adultos, a gente trabalhou também a inserção da assistência à saúde. Para resolver o problema econômico, trabalhamos com a questão do cooperativismo, que culminou com a fundação da Cooperativa Agroextrativista de Xapuri, inaugurada no ano que o Chico foi assassinado, em junho de 88 [alguns meses antes do assassinato]. E foi um sucesso muito grande [a organização dos trabalhadores entorno da Cooperativa].


8 Cartilha Poronga era o nome de um conjunto de materiais didáticos destinados à alfabetização dos seringueiros do estado do Acre. Foi elaborada pelo Centro de Trabalhadores da Amazônia (CTA) com a colaboração do Centro Ecumênico de Documentação e Informação.

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Infelizmente, depois da morte do Chico teve várias dissidências. Porque começou a chegar muito recurso e o pessoal começou a brigar e deixou de dar importância para aquilo que custou tantas vidas (...).


Nessa história toda, além das escolas, da assistência à saúde e de tentar resolver a questão financeira com a cooperativa, a gente fundou, também em 1985, o Conselho Nacional dos Seringueiros, para que essa entidade trabalhasse exclusivamente propondo políticas que fortalecesse o extrativismo e garantisse a permanência das famílias de seringueiros sobrevivendo do extrativismo. Também foi criada uma entidade chamada Centro dos Trabalhadores da Amazônia, para trabalhar exclusivamente a questão da educação e da saúde. Porque a gente precisava ter um CNPJ para poder receber recursos, tanto do governo, como de entidades não-governamentais, para investir no fortalecimento dessas ideias. É tanto que, a gente conseguiu reconhecer as primeiras escolas, a gente conseguiu contratar os professores, [fazer] reconhecer o material didático utilizado. Tudo isso a gente conseguiu no primeiro governo eleito depois da ditadura, que foi o governador Nabor Júnior. Não porque eles fossem bonzinhos, mas porque a classe trabalhadora estava organizada, a da cidade, da periferia ao campo... Toda a categoria estava organizada, desde a lavadeira aos trabalhadores domésticos, até chegar na zona rural.


Nós conseguimos contratar o pessoal, os agentes de saúde, construir postos de saúde para fazer os primeiros socorros na zona rural (...). Porque acontecia muito acidente e não tinha ninguém que soubesse fazer nada [sic]. A gente conseguiu treinar pessoas, até dentista amador que extraia dente e fazia prótese, porque o pessoal tinha muito problema por causa da falta de educação com a saúde bucal. Muito problema de dor de dente, de dente estragado, e a gente conseguiu fazer tudo isso.


Alexandre: Eu fiquei curioso, como foi a sua formação?


Dercy: Olha, a minha formação se deu assim, o meu pai era um dos poucos seringueiros que dominavam a leitura e a escrita. Ele ensinou a gente a ler e escrever em casa. Quando ele morreu, eu e meus irmãos sabíamos ler e escrever. (...) Ler e escrever, não éramos alfabetizados... Porque a alfabetização é uma coisa

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bem complexa, muito mais refinada. Mas, como eu sempre gostei muito de ler, aquilo que eu não entendia as pessoas foram me ajudando...


Eu consegui um dicionário e fui aprendendo sozinha, nunca tive muito tempo para ir para escola, porque estava na luta, uma hora eu estava aqui, uma hora eu estava acolá.


Eu consegui me certificar no Ensino Fundamental e no médio através daquele provão que se fazia antigamente, a gente se inscrevia, ia lá, fazia a prova e, se alcançasse a pontuação, era certificado. Não consegui fazer o curso superior por falta de tempo. Porque tinha que ficar na cidade e a minha vida sempre foi muito instável, sempre acompanhando as escolas, viajando para outros estados pra [sic] falar da experiência que a gente tava trabalhando, e aí não dava pra estudar e frequentar a escola. Até fiz dois vestibulares, fui classificada na primeira fase para pedagogia e, na segunda fase, eu fiquei reprovada. Quando as pessoas me perguntam em qual escola me formei, eu digo “na escola da vida”, que continua me formando a cada dia.


A SUPERIORIDADE DA RAZÃO


Alexandre: Dercy, você é super bem formada, super articulada, por isso essa sua política que nos dá muita coisa... Mas, uma coisa chamou a atenção, no momento que você assume como presidente, o Wilson tinha morrido há um ano mais ou menos... Era um momento de medo.


Dercy: E assumi em 1981, quando o terror estava instalado, quando estava todo mundo estremecido. Tem pessoas que dizem que os homens me usaram porque não tinham coragem de assumir a presidência. Que a presidência sempre foi muito visada. Mas, aí a gente articulou algumas estratégias de defesa. Porque o presidente não é o dono do sindicato, não é ele que decide. Inclusive, nas discussões com fazendeiros, que eles tentavam me cooptar para eu poder baixar a guarda (...), para eles conseguirem os seus objetivos, que era desocupar a área, eu falava: não! (...) Eu tô aqui em nome de uma categoria e eu só estou autorizada a falar isso que estou falando. Mas você é a presidente! [Interpelavam os fazendeiros] Eu sou a presidente representante política da classe, eu não sou a dona da classe,


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eu não estou autorizada a decidir pela classe sem ter uma ata registrando que eles me autorizaram a fazer em tal negociação... E aí, eles me xingavam, sabe. O presidente da UDR9 era, assim, tipo um leão enjaulado, ele gritava, xingava, palavrão e eu me mantinha calma... Ele não conseguia me tirar do sério. Geralmente, uma estratégia de quem não está com a razão é fazer com que você perca a sua, para ficar igual a ele. (...)


Teve uma oportunidade que eu fiquei estremecida sabe, não fiquei apavorada, eu fiquei preocupada. Todos os poderes do estado estavam a favor do latifúndio e quando eu estava na presidência, foram presas 112 pessoas, em um “empate”. Antes de acontecer essa prisão, o delegado mandou me chamar na delegacia e juntou um pacote de papel em cima da mesa. Que eram os mandatos, as ordens que ele tinha do secretário de segurança para agir. E para me pedir que evitasse que o episódio acontecesse. Eu falei: “Olha, teve uma assembleia geral, onde se discutiu essa situação e eu não posso desfazer o que uma assembleia deliberou. Infelizmente, está todo mundo ciente do que pode acontecer”. Eu passei trinta dias dentro dessa área, foi no período da semana santa (...). Eu passei trinta dias dentro dessa área discutindo minuciosamente o que podia acontecer. Porque o Estado estava em peso contra a gente, o poder do Estado pesa, mas os trabalhadores decidiram que íamos fazer o empate. E o empate foi feito (...).


Alexandre: Dercy, nem todos sabem o que é empate...


Dercy: O empate no futebol é quando os dois times fazem o mesmo total de gols. Na nossa linguagem, o empate era um mutirão de pessoas que ia lá dialogar com os peões e com os capatazes, do chefe lá do desmatamento e convencê-los a desistir do desmatamento pacificamente. Ia homem, mulher, criança, ia todo mundo e aí se denominou de empate. Empatamos a derrubada.


Eu não participei de nenhum empate porque, como estratégia, nessa época matava tudo que era gente de cabeça... Tinha sido assassinado Wilson Pinheiro recentemente, então eu não ia, nem eu e nenhum presidente ia aos empates. Tinham outros diretores, mas a gente ficava fazendo o trabalho de articulação política, mas não ia lá porque eles tinham que se desiludir de que matar o presidente


9 União Democrática Ruralista

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não resolvia... Porque a luta continuava, porque a luta não era do presidente, mas do sindicato, [que] era uma luta de classe. Nesse período, Chico Mendes era vereador do MDB. Na época só existiam os dois partidos: A ARENA e o MDB10, e tinha uma ala progressista dentro do MDB. O Chico Mendes se identificava com esse pessoal, se identificava com a luta do povo, como Aluísio Bezerra, (...) tinha Arthur Virgílio, do Amazonas.


Nesse período, da minha primeira experiência como presidente, o Chico dava apoio político na câmara. Ele denunciava da tribuna tudo que estava acontecendo e dava suporte para gente, assim como o [bispo] Moacyr e os padres da nossa paróquia. Tinha um grupo da universidade do Acre, inclusive uma dessas pessoas era doutor em enfermagem e ajudou na formação dos agentes de saúde da zona rural.


O Chico terminou o mandato filiado ao PT, mas no PT não conseguiu se reeleger a nada, nem para vereador e nem para deputado. Ele fez várias tentativas, mas não conseguiu. O primeiro vereador do PT no Acre foi o presidente do Sindicato de Xapuri que me sucedeu em 1983, ele tinha que se desincompatibilizar para assumir a cadeira de vereador e aí o Chico assumiu a presidência do sindicato.


Alexandre: Muitos foram ameaçados. Por que o Chico foi martirizado?


Dercy: Olha, o Chico levou mais ou menos 10 anos sobrevivendo em ameaças. Por ser a pessoa que mais se articulava nacional e internacionalmente, ele conseguiu arranjar muitos aliados e, como ele foi aos Estados Unidos denunciar a abertura da BR 364, que liga Rondônia ao estado do Acre, que foi uma estrada extremamente perversa... Ela [essa estrada] foi feita de uma forma desordenada, sem nenhum estudo de impacto ambiental. O Chico fez essa denúncia pro [sic] banco que estava financiando a obra e isso criou uma rixa muito grande por partes daqueles que tinham interesses na abertura dessa estrada. Ele também denunciava a questão do desmatamento, da pecuarização dos seringais. [Esses seringais] que estavam sendo devastados para dar lugar ao pasto e à criação de gado intensiva.


O estado de Rondônia foi desconstruído e reconstruído dentro de uma outra lógica dessa cultura, porque lá também era um estado extrativista, mas se você chegar lá


10 Aliança Renovadora Nacional e Movimento Democrático Brasileiro

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hoje, tem gente de todo lugar do Brasil e até de outros países, mas você não encontra os originários. Os que ainda existem, estão lá nas cabeceiras dos rios, no isolamento dos índios Suruí. (..).


O Darly Alves e seu filho (Darcy Alves) foram apenas bodes expiatórios [os assassinos condenados pela morte do Chico Mendes], mas, na verdade, tinha todo um complô que articulou esse assassinato. Tanto é que... São 185 quilômetros, numa estrada de terra na época e, no período chuvoso, que foi dezembro, mas, uma hora depois do tiro que assassinou o Chico, o jornal que pertencia a uma das figuras que mais odiava já estava fazendo a cobertura. Então, se imagina que já estava tudo preparado para acontecer naquele dia, naquela hora. Porque a gente conhecia a estrada, a gente tinha absoluta certeza que era impossível, no período de uma hora, andar 185 quilômetros numa estrada de terra, no inverno e cheia de buracos, lá em Xapuri... (...).


Alexandre: É a expressão do próprio sistema do capital... Um detalhe importante, até pro [sic] nosso grupo, em que a luta dos trabalhadores convergiria com a ambiental. O próprio Chico enxergava essa convergência?


Dercy: Teve uma distorção. Na verdade, o Chico não era ambientalista ou um ecologista propriamente dito, mas ele defendia a permanência da floresta e dos trabalhadores que sobreviviam dela, automaticamente, ele defendia o meio ambiente. Mas, na verdade, o foco da luta dele mesmo era as condições de vida para as pessoas que nasceram, cresceram e viveram da floresta. Tanto que, a gente idealizou a Reserva Extrativista Chico Mendes como um modelo de reforma agrária específico para os seringueiros. Porque os assentamentos, esses tradicionais que o governo já fazia, a gente já sabia que não funcionavam. Aqui, o primeiro assentamento que o governo fez no estado do Acre, que foi o governador Jorge Kalume, no final dos anos 1960, você pode perguntar, ninguém conhece, porque os bem-sucedidos vão comprando os lotes dos menos sucedidos.


Quando eu estava no sindicato, o INCRA vivia me mandando ofício perguntando se o sindicato tinha interesse em desapropriar o seringal Aquidaban. E eu me perguntava, mas que seringal é esse? O Aquidaban foi desapropriado nos anos 1960. Mas, já era uma segunda desapropriação, porque o governo desapropriou,

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assentou, os assentados venderam, virou duas ou três fazendas, se não me engano... E aí o INCRA queria desapropriar pra assentar de novo. Eu falei, não faz sentido, o povo vai ficar no assentamento onde só tem pasto e que o governo não dá assistência para que eles possam produzir?


A CENTRALIDADE DA LUTA DE CLASSES


Alexandre: [Agora] Queria caminhar no período que você entra no PT... O PT daquele momento é um partido progressista, de intelectuais, de pessoas dos movimentos sociais, cria uma grande esperança, de maneira geral... Como é que foi esse período: a relação com o Estado, a questão agrária, a ecologia?


Dercy: Olha, é lamentável, mas foi uma grande decepção... O rebanho bovino nunca se multiplicou tanto como no período que o PT governou. Hoje, o rebanho bovino do estado do Acre é maior, mais populoso do que a população do Estado, tem mais boi do que gente. Então, isso é uma contradição muito grande e que deixa a gente muito triste, porque a gente lutou muito para construir esse partido. Suou a camisa, gastou o solado do sapato e teve essa grande decepção e o mais triste e revoltante é eles usarem o nome do Chico, dizendo que os sonhos do Chico estavam sendo realizados. [Especialmente o sonho:] “Que era o homem sobreviver da floresta com dignidade”. Agora me diga que dignidade é essa? As famílias ficaram numa situação de vulnerabilidade total, porque eles não conseguiram construir uma política de geração de renda para garantir sua sobrevivência com dignidade... Então, os que eram seringueiros naquela época foram forçados a virarem criadores de gado, porque é o produto que tem mercado garantido.


Alexandre: E a luta sindical, a luta de classes?


Dercy: A luta sindical praticamente foi anulada. A maioria dos sindicatos foram subornados. Passaram a ser cabos eleitorais. Com cargo de confiança no governo, deixaram a causa dos trabalhadores de lado. E quem se atreveu, como eu, modéstia à parte, não me vendi. Eu fui muito perseguida, muito marginalizada. Você precisava ver no dia da eleição do Sindicato de Xapuri, parecia eleição do município. Você olhava a rua na frente do sindicato e só tinha chapa branca, deputado do secretário, do chefe de gabinete, tudo que é gente do governo fazendo pressão e fazendo


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campanha pra chapa deles, que era chapa da situação. Mas, a gente conseguiu vencer três eleições. Na quarta a gente perdeu. Eles conseguiram comprar o presidente da atualidade, que foi secretário geral do sindicato na minha primeira gestão e vice-presidente na segunda. Na terceira, houve uma inversão, ele foi presidente e eu fui a vice dele. E olha que eu investi nesse cara, era a grande expectativa da minha vida... Porque ele era um jovem e eu investi alto na formação dele, para que ele desse continuidade à luta, mas infelizmente essa questão da corrupção é uma coisa que parece estar no sangue da maioria dos seres humanos...


Eu não sei se aquilo foi articulado propositalmente, porque a primeira coisa que ele fez foi começar a roubar o dinheiro do sindicato e eu não poderia ignorar... Convoquei a diretoria, foi feita uma auditoria, foi comprovado [o roubo] e a gente seguiu os passos que o estatuto nos permitia, até a Assembleia Geral, que decidiria se ele seria expulso ou não. Nessa assembleia, o governo entra com tudo, lota o auditório, e a gente não tinha condições para concorrer, [então] eles conseguiram manter o cara no poder, para que ele facilitasse o acesso na próxima eleição, como de fato eles conseguiram.


Hoje ele continua na direção do sindicato, mas o sindicato só tem o prédio, não tem mais nenhuma ação, até porque não tem autoridade. O pessoal que está lá no sindicato é todo esse pessoal que o governo cooptou, esse pessoal que passou esses 20 anos na cola do governo e não apresentou nenhuma política pública que garantisse a sustentabilidade das famílias na forma tradicional, [que pudesse ser um caminho] sem devastação, sem que tivessem que virar criadores de boi.


Com que autoridade eles vão questionar o governo atual se eles passaram 20 anos e não apresentaram nenhuma proposta que viabilizasse a manutenção da floresta? Eles não têm como fazer [essa] luta, porque eles tiveram 20 anos pra transformar e nem sequer tentaram.


Alexandre: Hoje eles não podem nem fazer oposição...


Dercy: Eles tiveram um posicionamento no governo idêntico ao da direita. Trouxeram as madeireiras para roubar a reserva extrativista, empobrecer as pessoas cada vez mais. Trouxeram tudo o que você pode imaginar que é nocivo ao


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ser humano, eles destruíram as comunidades. Eles destruíram a cultura. Aumentou o nível de prostituição infantil, de alcoolismo e droga dentro da zona rural. Todo esse pessoal chama isso de projeto de desenvolvimento dos produtos florestais comunitários. Mas, não tinha nada comunitário, era tudo feito por empresas que vinham de fora, que eram contratadas por agentes de fora, que se inseriram dentro das comunidades destruindo toda organização, todo modo de vida.


Alexandre: E o PSOL está se articulando com os trabalhadores?


Dercy: O PSOL faz essa tentativa, mas, ele tem uma aproximação muito grande com o PT, inclusive, nas eleições eles sempre fazem aliança... Então, assim, as pessoas veem e tem gente que já perguntou assim pra mim: O PSOL é tão ligado ao PT, por que por que esse pessoal não fica numa sigla só?


Alexandre: Agora, como é que está o cenário, o governo estadual tem um representante do latifúndio, né?


Dercy: Está muito difícil Alexandre! Porque teve toda uma desarticulação. Primeiro, abriram-se as estradas de terra no meio da floresta, levaram-se rede de energia para o meio da floresta. Ninguém tem mais aquele hábito dos anos 70, do vizinho visitar vizinho. Todo mundo se fala quando precisa ou se fala por telefone, porque tem antena, tem torre em tudo quanto é lugar. Não tem mais aquela de parar na casa do vizinho para tomar uma água ou café, porque todo mundo anda de carro, anda de moto. Assim, foi um desastre total. Eu sempre digo que eu não consigo ver um horizonte que se possa voltar a articular esse povo, a não ser quando eles caírem na real... As escolas que trabalhavam isso, que propiciaram esse fortalecimento do sindicato no passado, se transformaram em escolas tradicionais. As crianças sequer aprendem o ofício de trabalhar na zona rural porque eles ficam naquela ilusão de que se estudam para arranjar emprego e não aprendem a trabalhar na zona rural, com isso o índice de marginalidade aumentou. O presídio está com superlotação e essa população, essa juventude, ficou na terra de ninguém. Eu chamo “terra de ninguém” porque eles nem são rural e nem são urbano [sic], eles acabam se envolvendo com as facções e terminando atrás das grades.


Alexandre: E como está a reserva Chico Mendes hoje?


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Dercy: Com essa desvalorização do extrativismo, as “colocações de seringa” deixam de ter importância para quem mora naquele local e aí eles começaram a lotear, eu chamo de favela rural. Onde morava uma família, já chegou a ter doze e, como eu falei antes, os bem-sucedidos vão comprando dos menos sucedidos e acaba ficando um ou dois donos daquela área enorme, que antes era uma colocação de seringa. Porque as colocações de seringa eram de 400, 500 até 1000 hectares, dependendo da localização, eram áreas extensas. Com esses loteamentos as pessoas ficam sem ter onde morar e migram para a periferia da cidade. As propriedades se tornam propriedades de pessoas da zona urbana, que investem no setor rural para criar boi, mas aí não mora ninguém. Por exemplo, daqui, nesses dez quilômetros, se você depender de tomar um copo de água nesse trecho, você não consegue, porque todas as propriedades têm dono, mas as casas estão todas fechadas, porque os donos moram na cidade. Eles vão lá no final de semana olhar o gado e domingo à tarde retornam. É uma pastagem só! Nesses dez quilômetros, daqui até onde eu moro, você só vai ver floresta lá onde eu moro. Mas, daqui até lá, é uma pastagem só...


E na reserva não é diferente, porque não tem como sobreviver sem pensar na geração de renda para que as pessoas possam adquirir os bens que se tornam [cada vez mais] necessários, [ainda mais] com a chegada da energia e com a chegada da estrada. Com a estrada no meio do sol ninguém consegue andar. Debaixo da floresta a gente andava o dia inteiro. Aí chega a energia e a primeira coisa é uma televisão, né?


Outro detalhe que também está contribuindo pra esse amortecimento das lutas são as igrejas protestantes. Porque elas pregam que Jesus está prestes a fazer o arrebatamento, então, a gente não precisa se preocupar com a situação, porque Jesus vai levar todos os seus para o céu, e pra entrar no céu tem que entrar na igreja primeiro... Tem igrejas nos recantos mais longínquos que você pode imaginar, dentro da floresta...


Alexandre: E nenhuma articulação da igreja católica?


Dercy: A Teologia da Libertação também foi banida. Porque, a gente às vezes se recusa a admitir que as igrejas são grandes empresas e que elas têm interesses

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capitalistas por trás. A Teologia da Libertação estava levando as pessoas a fazerem esses questionamentos.


Alexandre: Como foram as eleições de 2018 e qual a perspectiva para 2022?


Dercy: O Bolsonaro teve a maioria dos votos dos acreanos. Como as pessoas não têm formação política para fazer o discernimento, eles querem saber de se vingar. [Embora] às vezes eu fale de informação, de falta de instrução, nem sempre é assim, porque, inclusive um amigo meu, que trabalhou num projeto que eu falei de educação e saúde, ficou tão decepcionado com as atitudes dos governos petistas, que se filiou ao PSDB e passou a ser formador político do PSDB. Então, [para esse caso] não é falta de informação... É, tipo assim, uma forma de manifestar a insatisfação. De manifestar o ódio. Isso não resolve nada. O que deveríamos ter feito, era ter sido vigilante. Porque eu acho que uma coisa nos faltou (...): que foi a gente não vigiar. Eu sempre digo que a gente tem que confiar, mas tem que vigiar para que antes que o barco afunde a gente possa se salvar. O PT deixou um saldo tão negativo, que só quem defende são aqueles poucos que se beneficiaram. Por isso a maioria votou no Bolsonaro e no Gladson [de Lima Cameli, atual governador do Acre], independentemente de ser o que são... E as pesquisas que estão sendo feitas previamente tão dizendo que, se as eleições fossem hoje, Bolsonaro ganharia no Acre e o Gladson ganharia no primeiro turno.


Alexandre: Dercy onde você depositaria sua esperança?


Dercy: Nessas conversas que a gente tem, [que possam] despertar a juventude para retomar a luta, que alguém inicie esse chamamento de retomada da luta de classes, para poder botar ordem nessa baderna que virou o Brasil. Que é cada um por um e Deus por todos [sic]. Mas, aqui em Xapuri, que já foi o berço da luta no passado, eu não consigo visualizar muita esperança... Porque os jovens do próprio Chico Mendes não conhecem a história dele. As filhas do Chico Mendes participaram de toda essa barbárie que o PT cometeu no governo. Elas estavam juntas apoiando e legitimando esse falso discurso que [deturpava] os ideais do Chico [dizendo que] estavam sendo realizados. Tudo em troca de dinheiro.


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Alexandre: Sobre partidos, representação partidária, participação democrática e futuro...


Dercy: Em relação às perspectivas, no momento são um tanto remotas... Eu, por exemplo, acredito muito na organização de classe, eu acho que a mudança só vai ocorrer se as classes estiverem organizadas, para, a partir disso, conduzir os partidos políticos através da eleição. Na representação eleita onde eles ficam lá e nós cá, nada vai mudar e a prova já aconteceu... Então, a gente tem que aproveitar todos esses erros que a gente viveu e quando tiver a oportunidade de ter um partido de confiança da maioria dos brasileiros, quando um parlamentar for eleito [sic], a gente tome o cuidado de acompanhar e de fazer com que essa pessoa entenda que ela não é dona do mandato, o mandato pertence a quem o elegeu. Eu, como presidente do sindicato, sempre usei essa estratégia: eu sou a presidente dos trabalhadores, não a dona. O mandato pertence a eles, eles me deram e tiram quando quiser. O problema é que a gente ainda não aprendeu a lidar com essa função, a gente elege e aí deixa o cara lá, ninguém procura cobrar o plano que ele apresentou no decorrer da campanha. Isso é um aprendizado que eu, particularmente, acho que prevalece.


Em relação ao que fazer para manter a coragem, acho que a questão está em compreender o nosso papel de cidadão e cidadã, a nossa história de vida, do nosso país, do nosso município, no nosso estado, da nossa comunidade. Nós temos uma responsabilidade enquanto cidadãos. As pessoas sempre perguntam como que eu resisto, porque desde os 24 anos de idade que eu vivo nessa luta. Agora eu dei uma recuada, mas digo assim: agora eu só conto a história e vocês fazem a luta. Não dou mais conta, mas, o que faz a gente ter coragem é a compreensão do dever. Eu sempre uso o exemplo da beija-flor: “estava acontecendo um incêndio na floresta e a beija-flor, um pássaro minúsculo, começou a carregar água no bico, gotículas d’água, e jogar no incêndio; os outros pássaros disseram, ‘Mas você tá ficando louca? Você não está vendo que com essas gotinhas d’água você não combate esse incêndio?’ e ela responde, “Estou fazendo minha parte, se cada um fizer a sua a gente constrói o todo, a gente consegue apagar o fogo’”. É isso que mantém a esperança viva, de que cada um de nós tem que fazer a nossa parte. Se a gente


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não conseguir, não vamos ficar com o peso na consciência. A gente só vai saber se dá resultado ou não se a gente tentar...


Em relação aos partidos políticos, como eu disse, a gente tem que ser vigilante, tem que estabelecer compromissos. Fazer como o PT iniciou fazendo... No início, o PT agia assim. Inclusive, o primeiro deputado estadual eleito no Acre foi expulso por não cumprir o que estava estabelecido no regimento interno do partido. Só depois que assumiram os poderes executivos de fato, eles começaram a mudar o comportamento, porque era cômodo para quem estava lá no poder.


Eu fico muito feliz por ter essa oportunidade de dialogar com vocês e acho que é trocando ideia que a gente se fortalece e constrói uma nova estratégia de luta pra esse Brasil, para essa moçada aí, essa moçada que precisa de uma sociedade justa e igualitária. Porque eu já estou descendo a serra...


Alexandre: Dercy, eu discordo totalmente do “descendo a serra”. Você tem muita luta ainda pela frente. Agora queria aproveitar para dar realmente o fechamento dessa conversa. Você está dizendo que só está contando história, mas essa história é importantíssima para gente. Ela precisa ser contada e recontada e não é só contar história, como se fosse pouco, mas o fato de você tentar se organizar para estar aqui hoje, sei o quanto foi difícil, por isso queria reforçar uma coisa que é o seguinte: a luta é importante e a gente luta também com as armas que tem. No momento você nos deu quase duas horas de fala, isso é muita coisa... Temos todas as contradições pela frente. Os desafios dessa luta de classes que você reivindicou e que eu reivindico também, essa luta que tem nuances, tem aprendizados, tem revisões... O que a gente não pode deixar de ter à frente é a compreensão de que ela é necessária enquanto luta de classes e cada vez isso fica mais claro. É fato que a gente tem diante de nós alguns desafios, um é, pelo menos, recuperar uma trilha ou um caminho, trazer, de novo, a luta, a esperança política e, sobretudo, a discussão política. Agora, eu queria muito agradecer porque você veio firme, como sempre, na sua integridade, você nos deu muita coisa e muito do que você nos deu a gente vai [precisar] debater e conversar. Te agradeço muito, Dercy... Foi um dos maiores momentos do nosso grupo, um momento muito bonito.


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Dercy: Para mim também foi muito importante, até porque esse período de pandemia [Covid 19], aliado com o momento político que a gente tá vivendo, está afastando muito mais as pessoas, umas das outras, impedindo esses debates de forma presencial, que é muito mais salutar... [De qualquer maneira,] a tecnologia nos possibilitou fazer um debate, uma discussão dessas, sem ter que se deslocar. Eu estou aqui sentada confortavelmente e vocês também...


Agradeço pelo convite, pela escolha, de fazer parte dessa conversa com vocês e dizer também que estou à disposição para outras oportunidades, se porventura forem necessárias. Eu já tive aí no instituto de vocês duas vezes, agora é nosso terceiro diálogo. Eu espero que a gente continue dialogando para fortalecer as ideias e trocar as experiências que são necessárias. Um grande abraço para todos vocês e sucesso aí na luta, a gente continua junto...


Alexandre: Obrigado, querida Dercy...


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