V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X


RELAÇÕES SERES HUMANOS-NATUREZA: TRABALHO, CULTURA E PRODUÇÃO DE SABERES1


Resumo4

Maria Clara Bueno Fischer2 Doriedson do Socorro Rodrigues3

O presente texto traz, a partir do materialismo histórico-dialético, uma contribuição à análise do intercâmbio seres humanos-natureza mediados pelo trabalho como crítica do modo de produção capitalista, que impõe uma ruptura dessa relação nesse intercâmbio. Contudo, contrapondo-se a essa perspectiva, é possível identificar outros modos de vida que resistem a isso no interior das contradições capital-trabalho. As reflexões propostas almejam colaborar com o aprofundamento de análises sobre as relações entre trabalho e educação, em particular o trabalho como princípio educativo, a partir do enfoque do tema relações entre seres humanos e natureza.

Palavras-chave: Relações entre seres humanos-natureza; Trabalho como princípio educativo; Modos de vida. Povos e comunidades tradicionais.

RELACIONES SERES HUMANOS-NATURALEZA: TRABAJO, CULTURA E PRODUCCIÓN DE SABERES

Resumen

El siguiente texto trae, partiendo del materialismo histórico-dialéctico, una contribución a el análisis de intercambio seres humanos-naturaleza por medio de el trabajo como crítica de el modo de producción capitalista, que impone una ruptura de esa relación en ese intercambio. Sin embargo, y en oposición a esa perspectiva, es posible identificar otros modos de vida que resisten a eso en el interior de las contradicciones capital-trabajo. Las reflexiones propuestas buscan colaborar con la profundización de análisis sobre las relaciones de trabajo y educación, en particular el trabajo como principio educativo, enfocando en el tema relaciones entre seres humanos y naturaleza.

Palabras-llave: Relaciones entre seres humanos y naturaleza; Trabajo como principio educativo; Modos de vida; Pueblos y comunidades tradicionales.

HUMAN-NATURE RELATIONS: WORK, CULTURE AND KNOWLEDGE PRODUCTIO

Abstract

The present text brings, from the historical-dialectical materialism, a contribution to the analysis of the human-nature interchange mediated by labor as a criticism of the capitalist production mode, which imposes a rupture of this relation in this interchange. However, in opposition to this perspective, it is possible to identify other ways of life that resist this within the capital-labor contradictions. The proposed reflections aim to collaborate with the deepening of analyses about the relations between labor and education, in particular labor as an educational principle, from the focus of the theme relations between human beings and nature.

Keywords: Relations between human beings and nature; Labor as an educational principle; Ways of life; Traditional peoples and communities.


1 Artigo recebido em 17/08/2022. Primeira avaliação em 17/08/2022. Segunda avaliação em 18/08/2022. Aprovado em 17/09/2022. Publicado em 10/11/2022.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.55637.

2 Doutora em Educação pela Universidade de Nottingham, Inglaterra. Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa Trabalho, Movimentos Sociais e Educação. Grupos de Pesquisa: Trabalho Educação e Conhecimento (GPTEC/UFRGS) e Trabalho, Movimentos Sociais e Educação (TRAMSE/UFRGS). Bolsista CNPq - PQ1. E-mail: mariaclara180211@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3835786000876089. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2289-5282.

3 Doutor em Educação. Docente da Universidade Federal do Pará, Campus Universitário do Tocantins/Cametá - Pará, Brasil. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Trabalho e Educação (GEPTE/UFPA) e do Grupo de Pesquisa História, Educação e Linguagem na Região Amazônica (GPHELRA/UFPA). Bolsista CNPQ – PQ2. E-mail: doriedson@ufpa.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1127076028303549. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5120-2484.

4 Este artigo é uma síntese do conteúdo do minicurso “Relações Seres Humanos-Natureza: trabalho, cultura e produção de saberes”, ministrado pelos autores nos dias 14 e 16 de setembro de 2021, pelo GT 09 – Trabalho e Educação - no contexto da 40ª Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED).


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Introdução


“Minha comunidade não consegue viver sem peixe e o rio Xingu é o que dá o peixe pra gente. Então, morreu o Xingu pra gente, a gente também morre junto. O rio é nossa vida. Se o rio secar, a gente morre junto, porque o rio é nossa vida” (Watatakalu Yawalapiti, 2009)5.


Essa afirmação é contundente de ações do capital contra povos e comunidades tradicionais e seus processos de resistência, considerando-se que tem sido um imperativo desse sistema o estabelecimento de uma ruptura do vínculo entre a humanidade e a natureza, comprometendo, drasticamente, a vida no planeta em suas diferentes dimensões, como as decorrentes das relações entre trabalho e educação.

Em termos investigativos e de lutas a favor da vida, trata-se de uma ruptura que vem sendo problematizada por um conjunto de pesquisadores e pesquisadoras do campo Trabalho-Educação6, a partir da análise sobre modos de vida em oposição ou resistência ao capital. Referimo-nos a pesquisas sobre experiências que acontecem em:

[...] espaços/tempos que se inter-relacionam, constituindo-se no cruzamento das determinações do capital e da auto atividade de mulheres e homens trabalhadores que insistem em afirmar modos de vida fundados em formas não capitalistas de organização social. São eles: a) espaços/tempos revolucionários–quando são produzidas mudanças estruturais na sociedade. Verifica-se a dualidade de poderes, ou o confronto entre capital e trabalho que se manifesta por meio de revoltas e rebeliões ; b) espaços/tempos da atual crise do capital e do trabalho assalariado– nos quais as estratégias associativas de trabalho se configuram como parte integrante da economia popular, da economia popular solidária, dos movimentos de ocupação de fábricas e moradias, do MST, das experiências de agroecologia fundadas no trabalho coletivo e nos laços de solidariedade estabelecidos no conjunto da comunidade; c) espaços/tempos das economias e culturas dos povos e comunidades tradicionais–comunidades indígenas, quilombolas, seringueiros, caiçaras, ribeirinhos, pescadores artesanais, pantaneiros, pequenos produtores rurais, entre outros grupos vinculados à agricultura ou à pecuária, aos rios ou aos mares, ao agroextrativismo e a ecossistemas específicos (FISCHER; CORDEIRO; TIRIBA, 2022, p. 5).


5 Trechos de fala de Watatakalu Yawalapiti no Filme - Povos do Xingu contra a construção de Belo Monte (2009). Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=Vqo2MZzYPHU.

6 Considerem-se, a esse respeito, os trabalhos de Fischer, Cordeiro e Tiriba (2022), Souza (2020), Tiriba e Fischer (2015), Santos (2021), dentre outros.


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Sob essa perspectiva investigativa, realizou-se o minicurso cujo objetivo foi contribuir com o aprofundamento das análises sobre as relações entre trabalho e educação, em particular o trabalho como princípio educativo, a partir do enfoque do tema relações seres humanos-natureza, partindo-se da compreensão do trabalho como categoria ontológico-histórica e que é princípio educativo. Teoricamente, dialogamos com textos de Marx (1962; 1984), especialmente, mas também de Engels (2020), com a mediação de leituras de pesquisadores, teóricos, estudiosos da obra de Marx como Löwy (2014), Saito (2021), entre outros.

Num primeiro momento buscamos articular reflexões sobre: a) a ideia que o ser humano é parte da natureza; b) o trabalho, nas suas dimensões ontológico-históricas, enquanto mediação central da relação ser humano-natureza;

c) como tem se dado o metabolismo entre seres humanos e natureza é tema central para entender a crise socioambiental no contexto do capitalismo bem como para apreender modos de vida que a ele se opõem; d) as categorias mediações de primeira ordem, que promovem nexos íntimos entre seres humanos e natureza, e as mediações de segunda ordem do capital que tornam hegemônico o modo de produção capitalista.

Na sequência, refletimos sobre modos de vida de povos e comunidades tradicionais cuja investigação demanda discutir e problematizar, epistemologicamente, as relações entre os seres humanos mediadas pelo trabalho e, por conseguinte, o trabalho como princípio educativo. Decorre daí a análise sobre processos de produção de saberes, considerando a relação intrínseca entre economia e cultura, oriunda da relação entre seres humanos e natureza mediada pelo trabalho, e os desafios da integração desses saberes no interior de processos formativos em contextos formais e não formais. Como fio condutor empírico-teórico, partimos da análise das tecnologias de produção da vida e saberes do trabalho da pesca em comunidades ribeirinhas. A seguir, ensaiamos alguns desafios para o aprofundamento do tema em tela para estudiosos e ativistas do campo Trabalho-Educação.


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Relações seres humanos-natureza mediadas pelo trabalho


Analisar as relações seres humanos-natureza mediadas pelo trabalho é de fundamental importância para pesquisadores e pesquisadoras do Campo Trabalho-Educação dada a centralidade que a categoria trabalho tem para o Campo. O materialismo histórico-dialético é um dos referenciais que nos ajuda a entender processos sócio-econômico-culturais atuais de aprofundamento de rupturas naquelas relações no capitalismo; e, ao mesmo tempo, de identificar e analisar outros processos que, na contracorrente, resistem à destruição da natureza, incluindo o próprio ser humano.

Partimos da assunção marxiana de que o ser humano é parte constitutiva da natureza e o trabalho é central no metabolismo estabelecido na relação entre o ser humano e a natureza. Na lógica do capital, há uma ruptura radical desse metabolismo, o que nos leva à convicção da imperativa necessidade de identificar e analisar, como parte da historicidade desse fenômeno, outras lógicas existentes, no tempo presente, dessa relação em que grupos sociais lutam para preservar perspectivas de complementaridade e não promover ruptura destrutiva entre ser humano e natureza.

O tema em questão, portanto, assume centralidade para entender, “para além das aparências”, a crise ambiental e ecológica que temos vivido, como nos mostram estudos do campo do marxismo. Isto posto, citamos e comentamos aqui algumas referências teóricas que contribuíram significativamente para nos conduzir, em diálogo com algumas de nossas pesquisas, a reflexão realizada no minicurso e aqui apresentada: a obra de Kohei Saito (2021), intitulada O Ecossocialismo de Karl Marx; o livro de Michael Löwy (2005), Ecologia e Socialismo; o verbete Ecologia e Meio Ambiente de Barbara Harris-White (2020); Dicionário da Educação do Campo, organizado por Roseli Caldart, Isabel Brasil Pereira, Paulo Alentejano e Gaudêncio Frigotto (2012) e o livro História, Natureza, Trabalho e Educação - Karl Marx e Friedrich Engels, organizado por Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta e Roseli Salete Caldart (2020). A seguir, alguns comentários acerca desses textos.

As análises do livro O Ecossocialismo de Karl Marx (Saito, 2021) foram particularmente importantes na construção de nossos argumentos. Saito (2021), que apresenta uma reflexão densa, resultante da sua tese de doutorado defendida em


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2016, busca reconstruir de forma sistemática a presença de uma crítica de Marx ao capitalismo no que diz respeito às relações entre ser humano e natureza. Para Saito (2021) não é possível compreender de forma plena o escopo da crítica da economia política de Marx se for ignorada a dimensão ecológica presente na obra marxiana,

Já o verbete 'Ecologia e Meio Ambiente', de Barbara Harris-White (2020), traz uma contribuição relevante ao apresentar uma síntese de alguns autores, como John Bellamy Foster, que o próprio Saito também comenta, que têm feito esse percurso de analisar em que medida a dimensão ecológica está presente na obra de Marx.

A referência ao Dicionário da Educação do Campo de Caldart, Pereira, Alentejano, Frigotto (2012) nos parece fundamental por apresentar um conjunto de verbetes que tratam do tema da relação Ser Humano-Natureza, como os seguintes: agroecologia, agrobiodiversidade, meio ambiente, agrotóxicos, agricultura camponesa, entre outros. A obra incorpora elementos teórico-práticos sobre o tema, “encarnando-os” nos fundamentos da Educação do Campo. À época do minicurso não estava disponível o Dicionário da Agroecologia e Educação de Dias, Stauffer, Moura, Vargas (2022), cujos verbetes, praticamente todos eles, permitem ter uma visão sintética e precisa de vários temas que desdobram e materializam elementos teórico-práticos referentes às análises e proposições contemporâneas de religação emancipatória entre seres humanos e natureza.

História, Natureza, Trabalho e Educação - Karl Marx e Friedrich Engels (FRIGOTTO, CIAVATTA e CALDART, 2020), é uma seleção de vários de seus textos; sendo que alguns deles remetem mais diretamente à relação Ser Humano-Natureza. Em síntese, a realidade da crise ecológica que temos experimentado e o diálogo com esses trabalhos teóricos e de pesquisa nos levou a destacar, para a reflexão no minicurso, os seguintes aspectos: a) ser humano como parte da natureza; b) o processo de trabalho como realização do metabolismo entre ser humano e natureza; c) o capitalismo e as relações ser humano-natureza como ruptura desse metabolismo; d) pensar as relações ser humano-natureza para além

do capital.


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O trabalho como mediação da interação metabólica seres humanos-natureza


Nos Manuscritos Econômicos-filosóficos, Marx (1962, p. 84) afirma que o homem é parte da natureza: “O homem vive na natureza – significa que a natureza é seu corpo, com o qual deve permanecer em intercâmbio contínuo, caso contrário ele morre [...] homem é parte da natureza”. A natureza é parte do “seu corpo” com o qual deve permanecer em intercâmbio contínuo: homens e mulheres vivem da e na natureza. Do contrário, o ser humano morre. Dizer, como o faz Marx, que a vida psíquica e intelectual do homem está indissoluvelmente ligada à natureza não significa outra coisa senão dizer que a natureza está indissoluvelmente ligada consigo mesma e, portanto, a nós, homens, mulheres. Isso quer dizer que refletir sobre a relação seres humanos-natureza é imprescindível para analisar o presente e projetar o futuro. Neste sentido, é essencial, ao pensarmos sobre as características do intercâmbio seres humanos-natureza, mediado pelo trabalho, reconhecermos que elas são condicionadas pelas mediações de primeira e de segunda ordem, de acordo com Mészáros (2006), presentes nas manifestações históricas da relação ser humano-natureza.


Ao produzir, o homem pode apenas proceder como a própria natureza, isto é, pode apenas alterar a forma das matérias. Mais ainda: nesse próprio trabalho de formação ele é constantemente amparado pelas forças da natureza. Portanto, o trabalho não é a única fonte dos valores de uso que ele produz, a única fonte da riqueza material. Como diz William Petty: o trabalho é o pai, e a terra é a mãe da riqueza material. (MARX, 1984, v.1, p.167).


Assim [...] o trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é fonte de valores de uso (que são, de qualquer forma, a riqueza real!) tanto quanto o trabalho, que não é em si nada além da expressão de uma força natural, a força do trabalho do homem. (MARX, 2010, p. 128).


Tais compreensões são centrais porque nos alertam para o fato que a natureza é fonte de valores de uso, tanto quanto o trabalho humano. Nos indicam que ser humano-natureza se constituem numa unidade.

Para Marx (1984), o trabalho é uma “atividade orientada a um fim para a produção de valores de uso”, por meio da apropriação de outros elementos da natureza “para a satisfação das necessidades humanas”, sendo condição universal do metabolismo entre ser humano e natureza, dos processos de transformação


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econômico-culturais que nos constituem como seres sociais sendo “condição natural da vida humana”, independentemente “de qualquer forma particular dessa vida”, sendo “comum a todas as suas formas sociais” (MARX, 1984, p. 290).

Saito (2021, p. 131) salienta, então, que “o trabalho como mediação metabólica é essencialmente dependente e condicionado pela natureza”. Nesta perspectiva, é preciso analisar criticamente que, como seres humanos, temos dominado a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro e o submete ao seu controle; como alguém que se encontra fora dela e dela se apodera e não como quem é parte dela. Somos parte da natureza com a vantagem de, diante de todas as outras criaturas, podermos conhecer as suas leis e, as conhecendo, interferirmos para dominá-la ou com ela nos relacionarmos no sentido do estabelecimento – ou restabelecimento – de formas de metabolismo de equilíbrio e não de ruptura. Pensando como equilíbrio, o desenvolvimento das forças produtivas teria como fundamento principal a produção de valores de uso, de bens necessários à satisfação das necessidades humanas. No entanto, aquilo que é vantagem do ser humano sobre os outros seres da natureza tem se tornado, contraditoriamente, desvantagem, porque tem promovido a destruição do planeta e, portanto, de si mesmo.


A ruptura do metabolismo nas relações seres humanos-natureza


A relação seres humanos - natureza, mediada pelo trabalho, assume determinada forma histórica no capitalismo. No processo de acumulação, concentração e centralização da riqueza, próprio do modo de produção capitalista, a forma como se dá tal relação, que é de ruptura, é produtora de um conjunto de mazelas que pode levar à extinção de todas as formas de vida. A título de ilustração, na Amazônia, hidrelétricas do Rio Madeira7 foram responsáveis por uma enchente em Rondônia que chegou a São Carlos, comunidade de trabalhadores ligados à pesca, e destruiu modos de produzir a vida na região, cujas populações tinham uma



7 No minicurso, apresentamos o documentário “A cheia levou: os abandonados do rio Madeira” (2017), que reúne relatos de como projetos hidrelétricos, a exemplo dos presentes no Rio Madeira, destroem modos de vida de povos e comunidades tradicionais, tal o que ocorreu em 2014. Acesso pelo link: https://www.youtube.com/watch?v=RhKenVw54-w.


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relação antagônica ao modo de produção capitalista. A lógica do capital é de exploração e privatização da existência em todas as escalas.

Marx analisa como o processo de trabalho concreto, como um metabolismo incessante entre seres humanos e natureza, é radicalmente modificado pela lógica do capital. O trabalho, que é um recurso natural, no interior do modo de produção capitalista torna-se mercadoria que produz outras mercadorias. É um processo de alienação do trabalho e, portanto, é um processo de alienação da natureza. Na produção de mercadorias para troca, matéria e energia são transformadas continuamente. O trabalho é alienado das condições de produção e, portanto, o equilíbrio físico e biológico é interrompido. Se o caráter do trabalho, que realiza o metabolismo ser humano-natureza, é transformado pelo capital, segue-se que todo metabolismo e todas as ações que transformam outros elementos e natureza e nós mesmos são radicalmente alteradas. O “desejo” insaciável do capital de produção de mais valor, condição de sua própria existência e manutenção, produz sua própria “vocação” destrutiva da natureza e, portanto, do próprio ser humano. Através dos processos de reificação, o capital transforma o que é desejo do capital em desejos dos humanos e coloca toda a natureza em prol da sua valorização máxima. O modo de produção capitalista produz uma subjetividade do mercado que conduz a humanidade ao extremo nos processos de ruptura na relação com a natureza.

Reproduzimos, na sequência, uma passagem do livro I d’O Capital, a conclusão que trata da grande indústria e da agricultura, em que o tema da ruptura do metabolismo é tratada. Segundo Löwy (2005), é um dos textos em que Marx coloca explicitamente a questão das devastações provocadas pelo capital sobre o ambiente natural.


Com a preponderância sempre crescente da população urbana, que amontoa em grandes centros a produção capitalista, acumula, por um lado, a força motriz histórica da sociedade. Mas perturba, por outro lado, o metabolismo entre homem e terra. Isto é, o retorno dos componentes da terra consumidos pelo homem sob forma de alimentos e vestuários. A terra, portanto, é eterna condição natural da fertilidade permanente do solo. Com isso, ela destrói simultaneamente a saúde física dos trabalhadores urbanos e a vida espiritual dos trabalhadores rurais. Mas, ao destruir as condições desse metabolismo desenvolvidas espontaneamente, obriga-o simultaneamente a restaurá-lo, de maneira sistemática, como lei reguladora da produção social. E numa forma adequada ao pleno desenvolvimento humano.


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E cada progresso da agricultura capitalista não é só um progresso da arte de saquear o solo, pois cada progresso no aumento da fertilidade por certo período é simultaneamente um progresso na ruína das fontes permanentes dessa fertilidade. Quanto mais um país, como por exemplo os Estados Unidos da América do Norte, se inicia com a grande indústria como fundamento desse desenvolvimento, tanto mais rápido é o processo de destruição. Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social ao minar simultaneamente, a terra e o trabalhador. (MARX, 1984, apud LÖWY, 2005, p. 28-29).


Percebe-se, então, que apreender a ruptura do metabolismo entre seres humanos-natureza nos permite entender um conjunto de problemas sociais, ambientais, culturais, que assolam a humanidade no interior das relações sociais capitalistas.

O capital luta, constantemente e incansavelmente, pela superação de suas limitações de expansão por meio do desenvolvimento de forças produtivas. Mas, precisamente como resultado de tais tentativas contínuas de expandir sua escala, reforça sua tendência incontrolável de explorar os recursos naturais à exaustão (SAITO, 2021), incluindo a força de trabalho humana como no desmatamento massivo da região amazônica e na poluição das águas. Na lógica do capital parece que a natureza é inesgotável; mas não o é.

Pelo exposto até aqui, pode-se afirmar que entender criticamente e prospectar relações Seres humanos-natureza não é uma escolha, mas um imperativo de sobrevivência de todos os seres da Terra. Neste sentido, é necessário conhecer e entender outras formas de relação com a natureza, como a de povos e comunidades tradicionais que são atravessados pelas ordens do capital, e também como lutam para manter e também construir outras possibilidades de metabolismo com a natureza, em que a maximização do lucro não é a tônica nos permitindo “na busca de um reino da liberdade diante do abismo” (FERNANDES, 2021, p. 14).


Seres humanos-natureza, povos e comunidades tradicionais da Amazônia, territórios e saberes do trabalho


Para refletirmos sobre o tema em questão, entendemos a necessidade teórico-metodológica de considerar as categorias (i) povos e comunidades tradicionais, (ii) territórios e (iii) saberes do trabalho, partindo-se do pressuposto de que esses saberes nos dão evidências sobre experiências econômico-culturais


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pautadas na solidariedade, no trabalho coletivo, na valorização da vida em desproveito das relações de mercado, auxiliando-nos na busca de um reino da liberdade distante do abismo imposto pelo modo de produção capitalista, sendo necessário, para tanto, entender os territórios, para além da perspectiva geográfica, dos povos e comunidades tradicionais, a partir dos quais os saberes são produzidos. Quanto à categoria Povos e Comunidades Tradicionais, ela diz respeito a uma territorialidade econômico-sócio-antropológica-cultural e política (CRUZ, 2012; TIRIBA; FISCHER, 2015), considerando-se suas lutas a favor da vida em oposição às materialidades e subjetividades de mercado contra seus territórios, em que homens e mulheres plasmam a natureza em prol do atendimento de suas necessidades, como mediações de primeira ordem e com atravessamentos por mediações de segunda ordem do capital8. De acordo com Cruz (2012, p. 596), essa

categoria abarca:


[...] os Povos Indígenas; Quilombolas; Populações agroextrativistas (Seringueiros, Castanheiros, Quebradeiras de Coco de Babaçu); Grupos vinculados aos rios ou ao mar (Ribeirinhos; Pescadores artesanais; Caiçaras; Varjeiros; Jangadeiros; Marisqueiros); Grupos associados a ecossistemas específicos (Pantaneiros; Caatingueiro; Vazanteiros; Geraizeiros; Chapadeiros) Grupos associados à agricultura ou à pecuária (Faxinais; Sertanejos; Caipiras; Sitiantes-Campeiros; Fundo de Pasto; Vaqueiros.


Ainda conforme Cruz (2012, grifos do autor), esses diferentes grupos possuem, dada a relação com a natureza, uma racionalidade ambiental com forte relação com território e com o sentido de territorialidade, bem como uma racionalidade econômico-produtiva que se contrapõe ao modo de produção capitalista, embora possam ter relações parciais de atravessamentos, vendendo o excedente da produção e comprando produtos manufaturados e industrializados. Atualmente, entretanto, é preciso considerar, para além dessas parcialidades, as subjetividades9 capitalistas, a partir das mediações de segunda ordem do capital, que vão sendo forjadas no interior da produção da existência de povos e


8 No decorrer do minicurso, apresentamos o vídeo “As dificuldades dos quilombolas”, presente no Canal Preto, com evidências da luta pelos territórios quilombolas, considerando suas ancestralidades, oposição ao modo de produção capitalista. Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=gDXPK49-FAM.

9 Quanto à categoria Subjetividade numa perspectiva marxista, tomamos considerações a partir de Sève (1989).


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comunidades tradicionais, como o empreendedorismo e as práticas produtivas de individualização em oposição às ações coletivas e solidárias de trabalho.

Porém, mesmo diante dessas contradições, entendemos que esses diversos grupos possuem processos de organização social, materializados em saberes com amplas dimensões (política, cultural, econômica, social, técnica, dentre outras), que consubstanciam processos de autoidentificação, com “[...] um sentido político-organizativo [...] como alternativa ao modo de produção e ao modo de vida capitalista” (CRUZ, 2012, p. 597), constituindo-se o território como espaços-tempos de reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, conforme o disposto pelo Decreto Presidencial nº 6.040/2007, ao destacar que os povos e comunidades tradicionais:


[...] são grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).


Nessa perspectiva, o território experienciado10 por povos e comunidades tradicionais, enquanto “[...] base de reprodução e fonte de recursos [...]”, em termos materiais, mas também com “[...] forte valor simbólico e afetivo [...]”, coloca-se como “[...] referência para a construção dos modos de vida e das identidades dessas comunidades [...]” (CRUZ, 2012, p. 597), aí também instituídas suas ações no interior de lutas de classes, “[...] como uma espécie de identidade sociopolítica mobilizada por esses diversos grupos na luta por direitos” (CRUZ, 2012, p. 597).

Trata-se de uma perspectiva teórica que nos permite considerar os territórios de povos e comunidades tradicionais como condição importante para as discussões sobre saberes do trabalho, concordando com o disposto por Fischer, Cordeiro e Tiriba (2022, p. 203, grifo nosso), ao discutirem premissas político-epistemológicas voltadas para investigações sobre relações seres humanos-natureza e saberes do trabalho associado, para quais o “Apreender como os saberes do trabalho associado se manifestam requer apreender mediações, contradições, particularidades e singularidades dos espaços/tempos onde eles se constroem [...]”, a partir do que


10 Tomamos a categoria experiência a partir de Thompson (1981).


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podemos interrogar como os saberes do trabalho são construídos, materializados, decorrentes dos territórios de vida das experiências de trabalho.

Nesse sentido, entendemos, com base em Santos (2002, p. 8), que o território “[...] não é apenas o conjunto dos sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas [...]”, mas os diferentes usos que os sujeitos dele fazem, nele se constituindo suas diferentes identidades, entendidas como “[...] o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence [...]”, sendo o “[...] fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida”, aí também compreendidas suas lutas por direitos, opostas aos interesses de mercado, “[...] o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência [...]”.

É, pois, a partir dessa compreensão de território, como espaços-tempos de contradições, de experiências de classe e fundamento do trabalho, conforme Santos (2002), também com conotações políticas, que podemos entender a categoria analítica saberes do trabalho, como a materialidade objetiva-subjetiva da unidade trabalho-educação, a partir da qual homens e mulheres socializam suas experiências políticas, organizativas, tecnológicas, identitárias, dentre outras perspectivas experienciais sentidas, percebidas e modificadas, a partir de suas materialidades econômico-culturais, considerando o disposto por Thompson (1981).

O exame, portanto, dos territórios de povos e comunidades tradicionais é crucial para a análise dos saberes do trabalho, de modo a compreender diferentes realidades plasmadas [como as econômicas, culturais, sociais, políticas, afetivas, identitárias, classistas] por seus sujeitos, a partir da categoria trabalho (MARX, 2008), considerando as mediações de primeira ordem e os atravessamentos das dimensões de segunda ordem do capital (MÉSZÁROS, 2006), conforme o disposto por Fischer, Cordeiro e Tiriba (2022).

De acordo com Mészáros (2006, p. 213), as mediações de primeira ordem dizem respeito às “determinações ontológicas” estabelecidas pelo trabalho, que permitem a reprodução da existência humana, a partir da relação de complementaridade entre o ser social, que é natureza, com outros elementos da natureza. Por outro lado, as mediações de segunda ordem do capital alteram:


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[...] cada uma das formas primárias [...], [...] de modo a se tornar quase irreconhecível, para adequar-se às necessidades expansionistas de um sistema fetichista e alienante de controle sociometabólico, que subordina absolutamente tudo ao imperativo da acumulação de capital [...] se interpõem, como ‘mediações’, em última análise destrutiva da ‘mediação primária’, entre os seres humanos e as condições vitais para a sua reprodução, a natureza.


Nessa perspectiva, os saberes do trabalho podem expressar as mediações de primeira ordem como as de segunda ordem do capital, sendo produzidos nos territórios de povos e comunidades tradicionais e entendidos, a partir de Rodrigues (2012), como materialidades objetivas-subjetivas do trabalho, quer em sua dimensão abstrata como concreta, expressos em tecnologias, mas também em relações econômico-culturais vividas, percebidas e modificadas por esses sujeitos, não se constituindo, uma realidade abstrata, como que deslocada na existência cotidiana, mas “[...] uma evidência da unidade entre pensamento e prática, expressão do ato único do homem que na ação elabora a realidade, recriando, transformando-a” (DAMASCENO, 1995, p. 21). E como resultado “[...] do trabalho e da luta [...]”, sendo “[...] a expressão concreta da consciência de um grupo social, um saber que é útil ao trabalho, aos enfrentamentos vividos cotidianamente [...]” (DAMASCENO, 1995, p. 25).

Em termos analíticos, o exame dos saberes do trabalho decorrentes desses territórios pode contribuir com as discussões sobre as relações trabalho, conhecimento e educação (TIRIBA; FISCHER, 2015), considerando o trabalho como princípio educativo (GRAMSCI, 1988) e os processos de integração saberes e conhecimentos na formação de trabalhadores e trabalhadoras, numa perspectiva de luta de classes (RODRIGUES, 2020), bem como sobre as relações de produção econômico-culturais e os metabolismos nas relações seres humanos-natureza, no interior das contradições capital e trabalho.

Em síntese, consideramos que a compreensão de modos de produção da vida de povos e comunidades tradicionais encontra-se integrada à de territórios, de onde resultam diferentes saberes do trabalho, neles podendo haver, conforme Marañón (2012), evidências de relações de produção e reprodução de uma solidariedade econômico-cultural opostas as de natureza capitalista (fundadas na sempre extração da mais-valia e da implementação-intensificação da racionalidade de valores de troca), porque buscam, de acordo com Tiriba e Fischer (2015, p. 409),


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“[...] a preservação das funções vitais de reprodução individual e da totalidade dos seres humano [...]”, constituindo-se, de acordo com as pesquisadoras:


Modos de estar no mundo, em que o metabolismo entre ser humano e natureza pressupõe a regulação do processo de trabalho em sintonia com a natureza [...], [...] a organização, coordenação e controle das múltiplas atividades, materiais e culturais, visando um sistema de reprodução social cada vez mais complexo.


Na sequência analisamos experiências de trabalho de pescadores e pescadoras artesanais do município de Cametá11, situado na região do baixo Tocantins12, Pará, Brasil.


O Modo de produção da vida de pescadores artesanais da Amazônia – entre saberes


Entendemos que os modos de produzir a vida de povos e comunidades tradicionais, como os modos de vida de pescadores e pescadoras artesanais da Amazônia Paraense, têm muito a dizer sobre relações seres humanos-natureza voltadas para a complementaridade em oposição à ruptura do metabolismo, nelas atuando as mediações de primeira ordem, atravessadas por mediações de segunda ordem do capital.

Em termos metodológicos, entendemos que esse campo empírico permite analisar, a partir de suas territorialidades, processos de produção da vida, em termos econômico-culturais e políticos, plasmados em saberes do trabalho e em processos formativos opostos à fragmentação da formação humana, porque voltados para uma perspectiva formativa que considera a integração saberes do trabalho e conhecimentos como prática pedagógica, nos moldes propostos por Rodrigues (2020).

Correlacionado a tais questões, defendemos, a partir de Tiriba e Fischer (2015, p. 423), a necessidade de compreender as relações entre economia e cultura presentes na produção da vida de povos e comunidades tradicionais, (re)conhecendo os saberes e valores daí decorrentes, ampliando nossos horizontes sobre o trabalho como princípio educativo, por meio de “[...] inventários e análises


11 Para um conhecimento sobre o município de Cametá, indicamos a leitura de Rodrigues e Castro (2022).

12 Para um conhecimento sobre o baixo Tocantins, indicamos a leitura de Rodrigues e Castro (2022).


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dos processos de produção e transmissão desses saberes da experiência de produzir a vida em comunidade”, sendo necessário, para tanto, “[...] descrever como se dá a organização da própria vida”, a partir de seus territórios.

A partir de tais considerações, destacamos, a seguir, elementos de pesquisa sobre saberes do trabalho da pesca, decorrentes de modos de produzir a vida de pescadores e pescadoras artesanais do baixo Tocantins, estado do Pará, considerando o contexto do município de Cametá.

Isto posto, destacamos, inicialmente, que ribeirinhos(as)13 do município de Cametá, pescadores e pescadoras artesanais, produzem a vida na relação com outros elementos da natureza, sem a ruptura do metabolismo seres humanos-natureza, ao plasmarem, por exemplo, a partir do trabalho, tecnologias de pesca, a fim de atender suas necessidades de alimentação, mas também com atravessamentos das mediações de segunda ordem do capital. Nessa perspectiva encontra-se, por exemplo, o paredão, consistindo, em termos de saberes do trabalho, de acordo com Castro e Rodrigues (2020, p. 166-167):


[...] em uma enorme parede feita de caule de açaizeiro (paxiba) ou de paxiubeira (árvores nativas da região), trançada com cipó de timbuí, vegetal da região. Esse equipamento tem o objetivo de capturar o pescado nas margens próximas das ilhas. Esse paredão é construído nas praias ou próximo das ribanceiras para dentro do rio. Possui 2 ou 3 gaiolas posicionadas no meio e nas extremidades, construídas com uma tecnologia nativa onde as entradas das mesmas são feitas em forma de “V”, por onde os peixes entram e não conseguem sair. Esse equipamento de pesca, por ter grande porte, é normalmente construído para durar anos, não sendo removido pelos pescadores.


Trata-se de uma tecnologia de pesca como valor de uso, não estando destinado à captura de peixes em grande escala, mas relacionado à garantia do alimento familiar, mantendo um equilíbrio na relação ser humano e outros elementos da natureza [podendo durar anos em contato com as águas], embora o excedente da captura possa ser vendido em prol da compra de produtos manufaturados e industrializados.


13 Entendemos a categoria ribeirinhos a partir das discussões de Rodrigues e Castro (2022) e Neves (2009). Com base em Corrêa (2017), compreendemos que, atualmente, os ribeirinhos, para além das mediações de primeira, têm seus modos de vida atravessados por mediações de segunda ordem do capital, com as relações de mercado determinando a coleta de frutos da região, como a indústria do açaí e de produtos para a indústria de cosméticos, como a Natura.


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Outra tecnologia de pesca produzida por pescadores artesanais do baixo Tocantins, no contexto do município de Cametá, é o matapí, consistindo, de acordo com Castro e Rodrigues (2020, p. 267-268):


[...] em uma gaiola em formato cilíndrico que possui, nas extremidades, entradas em formato cônico; no meio, possui uma portinhola que serve para a coleta do pescado. O matapí é utilizado para a captura de camarão. O crustáceo é capturado quando entra por uma das extremidades cônicas do equipamento, em busca do alimento (isca geralmente de babaçu), o qual é previamente colocado no interior do apetrecho; uma vez dentro, o camarão não consegue encontrar a saída.


Trata-se de uma tecnologia de pesca que, em termos de saberes do trabalho, demonstra a engenhosidade humana expressa no e pelo trabalho, envolvendo múltiplos saberes, desde os relacionados à sua construção até àqueles que dizem respeito aos locais de rios, em suas margens, onde e como pode ser colocado em prol da captura de camarões. Todavia, há de se destacar que, em decorrência de produção em larga escala, essa tecnologia vem sendo atravessada por outras mediações, já sendo produzida com fibras de nylon, embora ainda persista a produção com base no disposto por Castro e Rodrigues (2020, p. 268), sendo “[...] confeccionado comumente com talas retiradas da palmeira jupati [...]”, ou com o “[...] caule da palmeira marajá [...], [...] trançado por fibras de jacitara (cipó espinhento comum na região) ou fibras de buritizeiro e arumã (vegetais da região)”.

Além dessas tecnologias de pesca, aqui tomadas como exemplos, há processos de captura de peixes em Cametá, no baixo Tocantins, como a pesca do mapará, que nos fornecem evidências sobre como o processo de organização de pescadores e pescadoras acontece, contra as investidas do capital na região, ao se construir, por exemplo, uma hidrelétrica, partindo-se do pressupostos de que a constituição de classe, em seu sentido amplo, ocorre quando os homens, “[...] como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si [...]” (THOMPSON, 1981, p. 10).

Nessa perspectiva, os trabalhadores se organizam, por exemplo, na época da captura do mapará14, direcionando-se em grandes coletivos para diferentes setores do Rio Tocantins, com um saber experiencial sobre os locais de pesca. Trata-se de

14 No minicurso, apresentamos o vídeo sobre a captura do pescado mapará (CASTRO, Toninho. Pesca do Mapará 2021 em Cametá). Acesso em: https://www.youtube.com/watch?v=Am2_mFKHQhw.


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um conjunto de sujeitos com diferentes tarefas para a captura: há os responsáveis pelo saber onde está o cardume com o auxílio de uma comprida tala – nisto há um saber da percepção; há os responsáveis pelo mergulhar e pelo amarrar a rede no fundo do rio, para que o peixe possa ser trazido à tona, não sendo qualquer pescador capaz de realizar essa ação; e há os responsáveis por retirar o pescado do rio.

Além disso, há de se considerar que a produção resultante da captura do mapará é partilhada entre os pescadores e membros da comunidade a que estão ligados, podendo ser vendida a produção excedente. Contudo, esse modo de produzir a vida, no contexto de ribeirinhos e ribeirinhas de Cametá, vem sendo impactado pelos interesses de mercado. Grandes redes de supermercados começam a entrar na região, a fim de comprar a produção, encarecendo o preço local dos produtos, dada a pouca presença do mapará para os habitantes do município, implicando, contudo, a venda com preços um tanto baixos em outros territórios, comprometendo as relações econômico-culturais de quem vive na região.

Isto posto, salientamos que as necessidades de manutenção da vida impulsionam processos de organização, voltados também para uma perspectiva de classe (THOMPSON, 1981), considerando o trabalho coletivo na captura do mapará e do camarão, por exemplo, oportunizando uma cultura de organização, de companheirismo nas comunidades ribeirinhas, constituindo-se elementos potencializadores de suas organizações, em termos de colônias de pescadores, de sindicato, de mobilizações.

Todavia, esses povos e comunidades tradicionais, pescadores artesanais e também agricultores, vêm sofrendo a ruptura de suas relações metabólicas com outros elementos da natureza, dada a presença de grandes projetos de interesse do capital na região, como os ligados ao plantation de dendê e da pimenta-do-reino, por exemplo, que tomam os territórios dos agricultores para a alta produção dessas culturas, tornando-os, posteriormente, improdutivos para as necessidades da agricultura familiar, favorecendo, por consequência, a constituição de saberes, não como experiências vividas, mas sim como territórios onde resultam as práxis produtivas orientadas pela lógica capitalista e não mais pelas práticas produtivas ligadas aos interesses da vida de povos e comunidades tradicionais.


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Além dessa questão, outras ações do capital na região vêm também contribuindo para a ruptura do metabolismo seres humanos-natureza em Cametá, como a construção da Hidrovia Araguaia-Tocantins (ZUKER, 2019) e a Hidrelétrica de Tucuruí (RODRIGUES, 2012), além da substituição do extrativismo com valor de uso pelo extrativismo com valor de troca, dados os interesses do mercado mundial pela produção do açaí e por outros frutos, destinados às indústrias alimentícia e de cosméticos (CORRÊA, 2017).

Some-se a isso a crise estrutural de desemprego que produz a base para as subjetividades de empreendedorismo individual, em detrimento das ações coletivas e solidárias de trabalho. Isso acaba provocando, por exemplo, a criação individual de peixes em cativeiro, associada também à diminuição de pescados na região, consequência direta da presença da Hidrelétrica de Tucuruí. Tudo isso conduz a relações moldadas pela intensificação de valores de troca em desproveito de valores de uso, em virtude das intensas desigualdades sociais intensificadas mais ainda pelas ações atuais do capital na região.

Trata-se, enfim, de um modus operandi nada neutro, que destrói as bases do trabalho coletivo, em prol do individualismo, tão necessário aos interesses do capital. Esse mesmo capital precisa fragmentar os processos de organização dos trabalhadores, desterritorializando-os, desenraizando-os de suas subjetividades (MARAÑÓN, 2012), silenciando os territórios, como fundamentos do trabalho (SANTOS, 2002), uma vez que desterritorializar os povos e comunidades tradicionais é importante para dominar, ocupar e produzir a exploração da riqueza na sua totalidade – a riqueza enquanto força de trabalho; a riqueza enquanto outros elementos da natureza.

A esse respeito, acrescente-se a intensificação de tecnologias de produção aligeiradas plasmando novos saberes em tecnologias, como a construção de barcos mais rápidos e ligados à indústria naval, operando novas relações de tempos-espaços na região, dadas as necessidades de mercado e as alterações do fluxo do rio, proveniente da construção da Hidrelétrica de Tucuruí (POMPEU, 2017). São tempos-espaços de povos e comunidades tradicionais que vêm sendo alterados pelos tempos-espaços do mercado, parafraseando Thompson (1998), manifestando-se na produção de barcos mais velozes ou na produção de tecnologias que coletam o peixe em quantidades e numa maior rapidez, aí incluindo


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tipos de redes que capturam indiscriminadamente todo tipo de pescado, inclusive filhotes de peixes e os que ainda estão em período de reprodução.

Com base em Pompeu (2017), entendemos que a produção de saberes do trabalho vem sofrendo, assim, mudanças significativas, em decorrência de grandes projetos na região, em virtude das subjetividades de mercado, como o empreendedorismo, e também em razão da destruição dos territórios desses povos e comunidades tradicionais, alterando suas identidades de pescadores, que passam a se constituírem como sujeitos detentores-produtores de saberes de mediações de primeira ordem e também de mediações de segunda ordem do capital, sendo detentores dos meios de produção, deles o capital requerendo, por enquanto, a força de trabalho e os meios de produção (a terra e os produtos nela produzidos – como a produção do açaí –, que ainda pertencem a homens e mulheres de povos e comunidades tradicionais), “pagando” apenas um valor pelos dois elementos, nos moldes descritos por Marx (2011).

Gostaríamos ainda de destacar que, na produção de tecnologias de pesca, como trabalho não alienado, seja na produção de paredões, matapis, barcos, processos de captura do peixe mapará, há a engenhosidade, a criatividade, o planejamento e a execução pelo ser humano, num processo formativo por inteiro, em que os sujeitos dominam a totalidade do processo produtivo, podendo alguns sujeitos realizarem determinadas ações diferentes de outros. Mas não se trata de uma lógica imposta pelo modo de produção capitalista, senão pela lógica do trabalho coletivo, da produção da vida, constituindo-se situações de trabalho saturadas de normas de vida, indicadores de processos importantes para a constituição de classe, como o viver coletivo e o sentir-se membro de uma totalidade social, constituindo o trabalho associado como princípio educativo. Não estamos dizendo com isso, contudo, que não haja normas de trabalho já saturadas por interesses de mercado, conforme já aludido.

No mais, está o fato de que povos e comunidades tradicionais em seus territórios fomentam o trabalho como princípio educativo (GRAMSCI, 1988), pois, parafraseando Marx (2008), à medida que vão moldando a natureza às suas necessidades, vão também aprendendo materialidades objetivas e subjetivas de sua relação com aquela e com outros homens, tendo os saberes como produtos desse processo formativo.


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É um processo educativo, nos moldes propostos por Ciavatta (2009), mediado pelo e no trabalho, de onde emergem os saberes do trabalho da pesca, em que homens e mulheres, em termos pedagógicos, assumem a função de mediadores “[...] entre o mundo do trabalho, com os conhecimentos dele resultantes, e os sujeitos que nele iniciam um processo de participação” (RODRIGUES, 2012, p. 173), atuando a família como “[...] unidade de cooperação e socialização de aprendizados [...]” (RODRIGUES, 2012, p. 174), considerando-se ainda “[...] que o trabalho de produção da social é em si educativo” (ALVES; TIRIBA, 2018, p. 137).


Considerações finais



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vocês existem, entendam que existe esse modo de vida e aprendam a respeitar que a gente existe, que é um povo que tem dificuldades, mas que também é muito feliz e que quer permanecer dessa maneira.

(Falas presentes no documentário As dificuldades dos Quilombolas – Canal Preto15)


Inspirados nesta fala tão profunda, concluímos nosso texto nos perguntando: que desafios o estudo do tema das relações seres humanos-natureza, mediadas pelo trabalho humano, traz ao Campo Trabalho-Educação e à luta de classes? Identificamos alguns:

  1. Aprofundamento, do ponto de vista teórico-prático, do significado político-epistemológico e as consequências da assunção, aparentemente óbvia, de que somos parte da natureza e que participamos dos processos sociometabólicos da relação seres humanos-natureza. Que consequências têm este pressuposto para nos questionarmos sobre os polêmicos e polissêmicos conceitos de progresso e resistência, considerando as experiências históricas do capitalismo e das lutas socialistas em diferentes partes do mundo, incluindo a América Latina?

  2. O (re)conhecimento e a análise da complexidade da realidade atual do trabalho - dos mundos do trabalho. Como as dimensões ontológico-históricas do trabalho humano se materializam no espaço-tempo das culturas milenares de comunidades e povos tradicionais? Que lugares ocupam e como se articulam a categoria trabalho e outras como território, comunidade, identidade? O que essas formas de trabalho e de vida nos indicam sobre sociedade de produtores livremente associados?

  3. Aprofundamento da categoria trabalho como princípio educativo, a partir de diálogos profícuos entre análises sobre experiências de trabalho distintas, do ponto de vista dos atravessamentos das mediações de primeira e segunda ordem, que coexistem no modo de produção capitalista. O que temos a aprender sobre trabalho como princípio educativo considerando as experiências de povos e comunidades tradicionais? O que temos a aprender sobre trabalho como princípio educativo em experiências atuais de trabalho associado nas periferias urbanas? O que temos a aprender com os movimentos sociais que têm produzido experiências de organização da produção e do consumo em princípios agroecológicos?


    15 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gDXPK49-FAM.


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  4. Ampliação do repertório de leituras de teóricos marxistas latino-americanos que discutem o trabalho a partir da experiência histórica da América Latina, em especial sobre a experiência de trabalho nas comunidades e povos tradicionais e das periferias urbanas e suas implicações para pensar as relações entre trabalho e educação.

  5. Aprofundamento e/ou ampliação do repertório de categorias teóricas para leituras sobre as relações entre trabalho e educação, como por exemplo as categorias território, o comum e o comunal, modos de vida, as relações entre singularidade, particularidade e totalidade na configuração de territórios e modos de vida.


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