V.20, nº 43, 2022 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X


BRASKEM E BRUMADINHO: O CINEMA E A POESIA EM CARLOS PRONZATO 1


Denise Belo2



Agora Atravessado como uma estaca

No peito da lama O corpo é subterrâneo Gesto petrificado

Na solidão do mineral.


1 Ensaio recebido em 10/10/2022. Primeira avaliação 13/10/2022. Segunda avaliação 13/10/2022. Aprovado em 14/10/2022. Publicado em 10/11/2022. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v20i43.56159.

2 Licenciada em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora de Língua Portuguesa na rede municipal de Betim (Minas Gerais). E-mail: deniserbello@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3223495468729899. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7404-6269.


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Nascido em Buenos Aires em 1959 para o mundo, Carlos Pronzato é escritor, cineasta, teatrólogo, ativista social e anarquista. O interesse pelo universo cinematográfico foi herdado de seu pai, Victor Pronzato, que era roteirista e ator, músico compositor de inúmeras trilhas de filmes, programas de TV e teatro, dentre outras coisas. Além da inspiração para a sétima arte, o pai tinha uma biblioteca onde Pronzato iniciou também, ainda na infância, seu gosto pela literatura. Desde então, Pronzato se dedica à produção cinematográfica e literária, evidência disso é que lançou mais de 80 documentários e tem algumas dezenas de livros publicados. Seus documentários são conhecidos por quem circula na militância política pelo Brasil afora, pois, a maioria dos seus trabalhos tem como recorte questões sociais e políticas, fundamentam-se em denunciar as tantas mazelas causadas pelo modo de vida capitalista, culpabilizando seus mais diversos dirigentes: políticos, mineradoras, organizações, dentre outros.

Uma das principais lutas contra o capitalismo se encontra no âmbito da luta contra o ecocídio, pois o capitalismo mantém a prática de apropriação e comercialização da natureza levando ao limite a nossa forma de subsistência, transformando em mercadoria até mesmo os pedaços das montanhas. Segundo essa lógica (KRENAK, 2019, p. 23):


(...) tudo é mercadoria, a ponto de projetar nela tudo o que somos capazes de experimentar. A experiência das pessoas em diferentes lugares do mundo se projeta na mercadoria, significando que ela é tudo o que está fora de nós. Essa tragédia que agora atinge a todos é adiada em alguns lugares, em algumas situações regionais nas quais a política — o poder político, a escolha política — compõe espaços de segurança temporária em que as comunidades, mesmo quando já esvaziadas do verdadeiro sentido do compartilhamento de espaços, ainda são, digamos, protegidas por um aparato que depende cada vez mais da exaustão das florestas, dos rios, das montanhas, nos colocando num dilema em que parece que a única possibilidade para que comunidades humanas continuem a existir é à custa da exaustão de todas as outras partes da vida.


Fenômeno inédito na história humana forjado pelo capitalismo é a produção da vida humana estar centrada na mercadoria, e para tanto é justificável a completa destruição da natureza em prol de produzi-la incessantemente ao bel consumo. Mas porque, como dizia Chico Mendes, “ecologia sem luta de classe é jardinagem” é que se faz fundamental denunciar e inflamar as massas.


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Por isso, no catálogo dos documentários sociais de Pronzato encontram-se trabalhos com essa temática ambiental, como é o exemplo do Lama: o crime Vale no Brasil, feito em parceria com Richardson Pontone, gravado em 2019 após o rompimento da barragem do Córrego do Feijão em Brumadinho/Minas Gerais, resultando em 272 pessoas mortas e 6 desaparecidas, além do desastre ambiental que atingiu parte do rio Paraopeba, intoxicando e matando as formas de vida na água. Atrelado a esse trabalho está o Alguma poesia para Brumadinho, título que foi inspirado na obra Alguma Poesia de Carlos Drummond de Andrade, poeta que sofreu com a mineração desde sua cidade natal – Itabira/MG – onde surgiu a Companhia do Vale do Rio Doce, em 1942. Sobre Brumadinho, Pronzato escreveu:


O meio-dia Cravou seu punhal Na hora anunciada

E vertical


Nesses versos o poeta revela um dado sobre a tragédia de Brumadinho: o rompimento da barragem se deu no início do horário de almoço, meio-dia, que é um horário que mantém os ponteiros na vertical, posição marcante na relação entre a mineração e a população, pois que não há horizontalidade na tomada de decisões, não há diálogo, apenas o lucro sobrepujando a vida. Talvez tenha sido essa a imagem poética projetada nos versos do autor.


Às margens do rio Os peixes mortos

O sangue das folhas E o dilacerado grito

Da paisagem


O rompimento da barragem do Córrego do Feijão espalhou rejeitos tóxicos por boa parte da extensão do rio Paraopeba, causando a intoxicação dos peixes, o que prejudicou, também, as comunidades ribeirinhas que tinham na pesca sua forma de sobrevivência. A aldeia Naô Xohã do povo pataxó hã-hã-hãe, em São Joaquim de Bicas, às margens do Paraopeba, bem como a ocupação Pátria Livre, do MST, tiveram suas rotinas alteradas devido ao contágio do rio. Um crime que além de ambiental configurou-se como humano, tendo não somente precarizado existências, mas também ceifado vidas, como Pronzato registrou em seus poemas:


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Dona Vicentina Viu o filho partir Funcionário da Vale Em Córrego do Feijão


O dia foi o mesmo de todos os dias

O som do portão O beijo no rosto

O até logo


A humanização de sua poesia encontra-se, inclusive, em trazer para os versos a particularidade, um rosto definido e não abstrato, afinal de contas, o poeta escreve com os pés nos trilhos. Dona Vicentina é uma das entrevistadas no documentário. O período de luto na região do Córrego do Feijão em Brumadinho se estendeu, e dados da Prefeitura de Brumadinho apontaram que o município registrou alta de suicídio e prescrição de remédios após a tragédia. Os dados da prefeitura mostram que o uso de antidepressivos por pacientes da rede pública de saúde foi, em agosto de 2019, 60% maior que no mesmo período do ano de 2018. Em relação aos ansiolíticos, o crescimento foi de 80%. Por isso, a importância de transformar a tristeza que estagna na justa indignação que movimenta, transformar o substantivo “luto” no verbo “luta”:


Queria ver milhares de punhos em alto

Na porta desta empresa

Rios de gente Interrompendo o silêncio da manhã


Silêncio esse que foi interrompido brutalmente com o rompimento da barragem no fatídico dia 25 de janeiro de 2019. O documentário, por sua vez, também cumpre a importante função de denunciar o crime, de deixar registrado para que não seja esquecido, e serve de instrumento de luta. É uma forma de amplificar a voz das atingidas e atingidos pelo crime ambiental da Vale, que, aliás, não é o primeiro: lembremo-nos de Mariana. O documentário Lama, o crime Vale no Brasil


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conta com mais de 50 entrevistas de especialistas no assunto, moradores da região, militantes de movimentos sociais e representantes de órgãos oficiais.


Além desse trabalho, no ano passado foi gravado o A Braskem passou por aqui: a catástrofe de Maceió, documentário que denuncia a petroquímica Braskem pelo afundamento de cinco bairros na capital alagoana, que vem causando enormes rachaduras em edifícios e abrindo crateras nas ruas, tragédia que afeta mais de 50 mil pessoas por causa do lucro retirado das minas de sal subterrâneas. O documentário traz depoimentos de moradores, associações de vítimas, líderes comunitários, cientistas, militantes de movimentos sociais e representantes de órgãos públicos.


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Sobre esse episódio criminoso da ganância capitalista, Pronzato escreveu o Poemas para resistir: o caso Braskem, uma coletânea com 20 poemas de resistência feito sobre as ruínas dos edifícios abandonados. Coletânea que também traz os rostos e amplifica a voz dos vitimados:


Dona Geni Não saiu da sua casa Resistiu até o fim


As paredes que escutaram o pranto Quanto ela nasceu há 90 anos

Decidiram proteger A última habitante do bairro

Foram solidárias O teto de antigas telhas

– Testemunhas de chuvas e noites de estrelas – Decidiu não aceitar as migalhas da Braskem


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Dona Gení, moradora do bairro Pinheiros, um dos bairros afetados pela catástrofe, não aceitou deixar sua residência. Resistiu até o fim.


Mas uma noite A porta se abriu

Para deixar passar Dona Geni O dia em que seu corpo

Decidiu partir


Os poemas de Pronzato contam história, são registros da vida do povo, do operário, dos trabalhadores da sofrida América Latina, tão explorada por interesses capitalistas. Poemas que seguem empunhando palavras e, de modo humano, traduzindo o cansaço e persistência das lutas contra-hegemônicas que são travadas em toda região dos tristes trópicos:


Até quando Os braços vão segurar Faixas de protesto?


Até quando As vozes vão insistir Neste deserto?


Os anos de luta se sucedem A empresa provoca desistências

Esgota as paciências Num plano certeiro e criminal

De tempo


O ânimo cede A saúde vira um fio Movido pelo vento Paredes se erguem Em torno do indivíduo E a asfixia o elimina Inexoravelmente


No entanto Sempre há resistências E essas empresas Aliadas de governos

Sabem que tudo tem um preço Algozes sempre foram pegos

Aqui Ou no inferno.


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A Braskem se instalou em Maceió ainda durante o regime militar, nos anos 70, e durante todo o processo foram acontecendo acidentes sucessivamente, sinalizando o que seria a presença da mineradora no estado de Alagoas. Desde então, como disse uma das entrevistadas no documentário, “os lucros são privados e os danos são coletivos”. As casas começaram a apresentar rachaduras e afundar, fato que foi descrito no poema intitulado Resistência 1:


O que afunda Não é uma casa

Paredes Azulejos

Janelas tampadas com cimento

Portas fechadas Pela última vez


O que afunda Não é uma escola

Um Hospital O campo de treinos

Do CSA

Tijolos infinitos Como lágrimas de sal

O que afunda

É a luz Do quarto das crianças As flores que ficaram Os gatos perdidos

No silêncio do bairro


O que afunda Somos nós


Por fim, percebe-se que pelas lentes de sua câmera e pela esfera de sua acurada caneta, Pronzato constata a situação de opressão e olha para ela com a justa indignação de que nos fala Paulo Freire. Os documentários de denúncia e os poemas de testemunho vão se construindo a partir de um olhar de dentro, sintonizado com outros olhares que testemunharam a tragédia. Seus trabalhos partem de uma longa trajetória de formação política fazendo-se na prática, de uma consciência que se sabe sujeito da história. Um olhar que convoca para a luta, não por pretensão de ser “poema de protesto”, mas por ser o autor um sujeito político, que traz consigo mesmo, nas plasticidades da sua produção, a rosa da revolução, flor que nasce do asfalto e, por vezes, da lama.


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Para assistir ao documentário Lama, o crime Vale no Brasil (2019), acesse o seguinte link:


https://libreflix.org/i/lama-o-crime-vale-no-brasil#:~:text=LAMA%3A%20O%20Crime%20Vale%20no% 20Brasil%204.8&text=Vozes%20amplificadas%20dos%20atingidos%20e,Gerais%20no%20in%C3%A Dcio%20de%202019.


Para assistir ao documentário A Braskem passou por aqui: a catástrofe de Maceió (2021), acesse o link https://www.youtube.com/watch?v=zBOJbOGcBwo&t=1028s


Para conhecer mais do trabalho do autor, acesse o catálogo: http://www.lamestizaaudiovisual.com.br/ Canal de Carlos Pronzato no YouTube: https://www.youtube.com/channel/UCpQbUHc34JoE-j_qQ8UOXCg


Referências


A BRASKEM PASSOU POR AQUI: a catástrofe de Maceió. Direção: Carlos Pronzato. Brasil: La Mestiza Audiovisual, 2021. YouTube.


FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 50ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.


KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2019.


LAMA, O CRIME VALE NO BRASIL: a tragédia de Brumadinho. Direção: Carlos Pronzato e Richardson Pontone. Brasil: La Mestiza Audiovisual, 2019. YouTube.


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