V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X


CONTRIBUIÇÕES DE ALTHUSSER E FOUCAULT PARA OS ESTUDOS SOBRE MILITARIZAÇÃO DE ESCOLAS PÚBLICAS NO BRASIL1


Alexandre Marinho Pimenta2


Resumo

Diante do contexto atual de militarização de escolas públicas no Brasil, o artigo revisa a teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado de Louis Althusser e a teoria do poder disciplinar de Michel Foucault. Indica que a utilização heurística e articulada de tais autores possibilita construir os fundamentos de uma dimensão repressivo-disciplinar da educação no capitalismo. Diante de tais diretrizes analíticas, espera-se contribuir ao estudo das práticas repressivas na/da educação e das dinâmicas de dominação política, reforçadas e rearticuladas em escolas que adotam o modelo militarizado.

Palavra-chave: Educação Básica; Militarização das Escolas Públicas; Aparelhos Ideológicos de Estado; Poder Disciplinar.


Contribuciones de Althusser y Foucault a los estudios sobre la militarización de las escuelas públicas en Brasil


Resumen

Frente al actual contexto de militarización de las escuelas públicas en Brasil, el artículo revisa la teoría del Aparatos Ideológicos del Estado de Louis Althusser y la teoría del poder disciplinario de Michel Foucault. Indica que el uso heurístico y articulado de tales autores permite construir las bases de una dimensión represivo-disciplinaria de la educación en el capitalismo. Frente a tales orientaciones analíticas, se espera contribuir al estudio de las prácticas represivas en/de la educación y de las dinámicas de dominación política, reforzadas y rearticuladas en las escuelas que adoptan el modelo militarizado..

Palabra clave: Educación Básica; Militarización de las Escuelas Públicas; Aparatos Ideológicos del Estado; Poder Disciplinario.

Contributions of Althusser and Foucault to studies on militarization of public schools in Brazil. Abstract

Faced with the current context of militarization of public schools in Brazil, the article reviews Louis

Althusser's theory of the Ideological State Aparatus and Michel Foucault's theory of disciplinary power. It indicates that the heuristic and articulated use of these authors makes it possible to construct the foundations of a repressive-disciplinary dimension of education in capitalism. In light of such analytical guidelines, it is hoped to contribute to the study of repressive practices in/of education and the dynamics of political domination, reinforced and re-articulated in schools that adopt the militarized model.

Keyword: Basic Education; Militarization of Public Schools; Ideological State Aparatuses; Disciplinary Power.



1 Recebido em 10/01/2023. Primeira avaliação em 12/02/2023. Segunda avaliação em 13/03/2023. Terceira avaliação em 24/03/2023. Aprovado em 30/03/2023.

DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57036.

2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília (UnB). Mestre em Sociologia pela UnB. Professor de Educação Básica da Secretaria de Estado de Educação do Distrito Federal (SEE-DF). E-mail: alexmpimenta1@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9704150881132177. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8285-1930.


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Introdução


Desde os anos 2000, o sistema educacional brasileiro tem sido espaço de diversas políticas de militarização de escolas públicas civis. Tal militarização da educação básica ocorreu primeiro em esfera estadual e municipal, como é caso do estado de Goiás e municípios baianos, e sob diferentes formas: transferência e compartilhamento da gestão escolar para corporações militares; acordos de cooperação entre secretarias de educação e corporações militares; transferência ou criação de unidades de ensino para corporações militares; ou mesmo aplicação de doutrina militar e práticas de quartel em unidades escolares civis (SANTOS; ALVES, 2022). Diferentemente das escolas militares, não se objetiva diretamente a formação de futuros militares com tais políticas, mas utilizar práticas e doutrinas militares para e sob uma escola civil pública.

A militarização da educação básica no Brasil ganhou maior relevância com a eleição do presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, em 2018. Em sua campanha, o então candidato já defendia a ampliação de colégios militares no país, o reforço da “disciplina” nos ambientes escolares e o combate à “doutrinação” (de esquerda) nas escolas (BRASIL, 2018), bandeira central do movimento conservador contemporâneo Escola Sem Partido (MIGUEL, 2016). Logo no início de seu governo, Jair Bolsonaro criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares (SECIM), que pouco tempo depois se tornou o órgão dirigente, com o apoio do Ministério da Defesa, do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares (PECIM) (BRASIL, 2019a; BRASIL, 2019b). Assim como as demais medidas de militarização, o PECIM diz objetivar uma melhoria no processo educacional, tomando como inspiração os colégios militares e apoio de membros de corporações militares (polícias, corpos de bombeiros e Forças Armadas).

Desde o surgimento do PECIM, os processos de militarização se intensificaram e se consolidaram sob um programa e apoio de nível federal. Até 2023, a perspectiva é que o programa estimule a militarização de 216 escolas no país. Simultaneamente, outros governos estaduais continuam em paralelo a fomentar políticas semelhantes, como é o caso do Paraná e seu programa de Colégios Cívico-Militares (BRASIL, 2021).

Embora as centenas de instituições educacionais já militarizadas ou em vias de


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militarização, nas suas diversas modalidades, sejam um número pequeno para o tamanho do sistema de educação básica brasileiro, que no ano de 2021 contava com quase 180.000 mil instituições de educação básica (INEP, 2022), tais políticas possuem relevância inegável para o debate educacional. O processo de militarização, também apoiado por diversos movimentos autoritários e conservadores da sociedade civil (SAGRES, 2022; SANTOS, 2020), opõe-se a modelos de gestão e práticas educacionais democráticas e traz graves perspectivas para a educação no país. Segundo Santos (2020, p. 15), a militarização faz “submeter a escola, os sujeitos, suas rotinas, seus corpos e suas culturas ao controle, à padronização, a uma disciplinarização coercitiva”.

Não por acaso, o tema da militarização tem fomentado uma significativa produção acadêmica por meio de diversos artigos, dissertações e teses, e penetrado no debate público nacional. Nos últimos anos, estudiosos, sobretudo na área da educação, buscam as razões de tal política em diversas pesquisas. Dentre as abordagens utilizadas, identifica-se a teoria marxista (BEZERRA, 2019; PAULO, 2019; MIRANDA, 2021; FERRARI, 2022) e a teoria foucaultiana (CRUZ, 2017; ARAUJO, 2021; VIARO, 2022; STRIEDER; SILVA, 2022).

A pretensão do presente artigo é contribuir com o campo de pesquisa emergente da militarização da educação a partir do nível teórico. De acordo com Gamboa (1998, p. 57), esse nível é um dos elementos constitutivos do chamado “esquema paradigmático” do fazer científico. No nível teórico, consideram-se “os núcleos conceituais básicos, autores e clássicos cultivados, pretensões críticas com relação a outras teorias” dentre outros elementos. Ou seja, trata-se do nível no qual se formula as ferramentas analíticas para a análise de um objeto.

Elegeram-se obras de dois filósofos: o marxista franco-argelino Louis Althusser e o francês de trajetória intelectual singular Michel Foucault. Ambos os filósofos, apesar de não terem privilegiado a educação em suas obras, são há muito estudados e utilizados nas pesquisas educacionais do país por suas relevantes contribuições, sobretudo por considerarem a escola como espaço de relações de dominação e poder. E, mesmo possuindo proximidades e convergências em várias conceitos e abordagens (RYDER, 2013; PALLOTTA, 2019; SILVA; PARANÁ; PIMENTA, 2021), o

diálogo e a articulação entre os dois autores não têm sido frequentes nos estudos sobre a militarização nas escolas públicas.


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As questões que motivam o artigo são: quais as principais contribuições teóricas de Althusser e Foucault para os estudos sobre militarização de escolas públicas no Brasil? Sendo autores de tradições teóricas distintas, qual articulação conceitual é possível realizar para auxiliar a análise da militarização da educação básica? Assim, o objetivo deste artigo é analisar os conceitos sobre a educação presentes em ambos os teóricos, explicitando neles as práticas de dominação e de repressão no processo educacional. Especificamente, comparar e articular, à luz das políticas conservadoras e autoritárias de militarização, a teoria dos Aparelhos Ideológicos de Estado (ALTHUSSER, 2022) e a teoria do poder disciplinar (FOUCAULT, 2014), presentes em duas obras centrais dos filósofos.

Revisitar tais teóricos, há muito consolidados nas ciências humanas no geral e que retornam em diversos debates contemporâneos, como na recente literatura sobre militarização da educação, justifica-se para explorar novas possibilidades heurísticas que contribuam ao avanço das pesquisas desse campo específico. De forma mais concreta, considera-se que as contribuições de Althusser e Foucault possibilitam construir os fundamentos de mais uma dimensão do fenômeno educacional (OLIVEIRA, 1991, p. 41) explicitada e rearticulada pela militarização: a dimensão repressivo-disciplinar da escola capitalista.

A análise das obras centrais selecionadas para alcançar esse intuito contou com o auxílio de comentadores como Baudelot e Establet (1987), Saviani (1999), Cassin (2022), Gallo (2014), Silva (2016), Pallotta (2019), Silva, Paraná e Pimenta (2021) e Backer (2022). Também se estruturou nos seguintes eixos, construídos para fundamentar a interpretação e a comparação diante problemática em tela: contexto e intercâmbio teórico; lugar sociopolítico da educação; dinâmica específica do fenômeno educacional; práticas repressivas na/da escola.

Uma relevante observação a se fazer é sobre o caráter dessa revisita. Não se pretende um retorno acrítico ou dogmático às obras. Inegavelmente, as limitações das contribuições de Althusser e Foucault para o debate educacional no Brasil atual são de diversas ordens. Ora, ambos os autores tiveram a realidade europeia, sobretudo a França, como local de produção de conhecimento. Já as obras escolhidas datam da década de 1970. Considerar as múltiplas diferenças em relação à realidade brasileira atual, aguçando assim o rigor analítico, é fundamental para uma análise das particularidades históricas da chamada dimensão repressivo-disciplinar da educação


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no capitalismo. Por isso, tais contribuições são apenas um ponto de partida teórico, uma etapa no processo de produção científica, não uma resposta final às questões relativas à militarização. A revisita, portanto, é também uma revisão tendo em vista os objetivos elencados.

O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira parte, realiza-se um panorama do estado do conhecimento sobre militarização da educação no Brasil, destacando-se produções que se utilizam de Althusser e Foucault. Na segunda, foca- se na análise da obra selecionada de Louis Althusser (2022). Na terceira, analisa-se a obra de Michel Foucault (2014). Na quarta parte, busca-se sintetizar as análises e os conceitos e relacionar tais autores, em suas distâncias, complementariedades e potencialidades, à luz do processo de militarização da educação básica no Brasil.


Panorama do estado do conhecimento sobre militarização da educação no Brasil e a presença de Althusser e Foucault


Nesta seção, pretende-se gerar um panorama do estado do conhecimento sobre militarização da educação, a partir da literatura nacional. Além disso, localizar a presença de Althusser e Foucault no arcabouço teórico de tais produções acadêmicas. Segundo Morosini e Fernandes (2014, p. 155):


estado de conhecimento é identificação, registro, categorização que levem à reflexão e síntese sobre a produção cientifica de uma determinada área, em um determinado espaço de tempo, congregando periódicos, teses, dissertações e livros sobre uma temática específica.


Nos últimos anos, a militarização da educação básica no Brasil foi tema de diversas produções acadêmicas. A partir de busca realizada em fevereiro de 2023 nas bases de dados da CAPES e da BDTD, considerando o intervalo de 2019 e 2022, foram identificadas 29 dissertações e teses e 38 artigos em periódicos científicos de alto impacto (classificação Qualis Capes entre A1 e B2). Foram, em média, cerca de 15 produções anuais nesse período, demonstrando uma presença significativa do tema.

Essa produção é centrada na área da educação. No entanto, também se identificou produções advindas de programas de pós-graduação de outras áreas, tais como Ciência Política, Sociologia, História dentre outras.



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A recente literatura sobre militarização da educação possui uma variedade expressiva de abordagens e objetos de pesquisa. Há um ramo da literatura que lida especificamente com os impactos da militarização na gestão democrática e em outros pilares da legislação educacional vigente no Brasil. Outro ramo que realiza estudos de caso de políticas e processos de militarização em unidades escolares, cidades, estados ou mesmo em nível nacional. Um terceiro que inclui a militarização nos debates em torno do neoliberalismo e do neoconservadorismo. Por fim, além de alguns estudos enfocando os temas da avaliação e qualidade de ensino, há um ramo que se volta para os problemas da violência, da repressão e da disciplina.

Althusser e Foucault são autores encontrados em mais de um desses ramos. A utilização desses autores também varia de intensidade: em alguns casos, são citados de forma pontual; em outros, tais autores compõem o arcabouço teórico da produção científica.

As dissertações Paulo (2019), Miranda (2021) e Ferrari (2022) fazem referências à Althusser. Na pesquisa de Miranda (2021), por exemplo, defende-se, por meio das formulações de Althusser, que a presença de militares nas escolas, representantes do Aparelho Repressivo de Estado, reforça a função reprodutora da escola no capitalismo.

A abordagem foucaultiana é mais presente no campo. Encontra-se, por exemplo, nos artigos de Viaro (2022) e Strieder e Silva (2022). Em Viaro (2022), o PECIM é analisado enquanto processo de militarização que visa produzir sujeitos dóceis, de condutas padronizadas.

No entanto, constata-se a presença separada de tais autores. Na dissertação de Paulo (2019), por exemplo, há tanto referência ao conceito de Aparelho Ideológico de Estado, de Althusser, quanto referência ao poder disciplinar em Foucault para analisar os objetivos das escolas militarizadas. Todavia, ao longo da dissertação, esses autores não se articulam de forma explícita em nenhum momento.

Dada a presença separada de Althusser e Foucault na literatura em tela se justifica o esforço de revisita de tais autores e a tentativa de uma articulação teórica entre ambos.


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Os Aparelhos Ideológicos de Estado em Louis Althusser: reprodução, repressão e ideologia


Louis Althusser é conhecido no debate educacional brasileiro, sobretudo, a partir da caracterização e da crítica de Dermeval Saviani. Segundo ele, Althusser é um teórico “crítico-reprodutivista”, para quem a escola tem a função de “reproduzir a sociedade de classes e reforçar o modo de produção capitalista” (SAVIANI, 1999, p. 27). Apesar de considerar as possibilidades de disputas no âmbito escolar, a partir da luta de classes que também se faz pela escola, o esquema teórico de Althusser não abarca possibilidades de transformações na função da escola no capitalismo (SAVIANI, 1999, p. 35). Interpretação similar também está presente em outros teóricos da educação contemporâneos de língua inglesa (BACKER, 2022).

A posição e a influência de Saviani, assim como o advento de outras correntes pós-estruturalistas e pós-marxistas, acabaram relegando a teoria althusseriana a um lugar menor na reflexão educacional, por seu suposto fatalismo pedagógico. No entanto, há sinais de retorno às contribuições de Althusser no âmbito nacional, como mostra recente compilado de produções acadêmicas sobre o autor (PINHEIRO, 2016). Internacionalmente, também se nota um ressurgimento, em que se busca as potências analíticas do autor, desconsideradas por seus críticos (BACKER, 2022).

Sem dúvida, a obra de maior circulação e influência de Althusser no debate educacional é seu ensaio publicado na revista francesa Le Pensée, em 1970, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado: notas para uma investigação. Este ensaio compõe um conjunto de manuscritos, publicados postumamente com o título Sobre a Reprodução (ALTHUSSER, 1999). O foco de análise deste artigo será o referido ensaio, considerando que ali se encontra o centro da reflexão althusseriana sobre educação.

Na publicação de 1970, o filósofo estruturou, mesmo que sob a forma de notas de pesquisas provisórias, aportes para uma teoria marxista do Estado e da ideologia, incluindo nesse âmbito a escola moderna. Seguindo Marx, Althusser parte da seguinte tese: qualquer formação social só existe sob uma constante reprodução das condições de produção. Tais condições significam não apenas os meios de produção (matéria-prima, instalações, instrumentos etc.), mas também a força de trabalho. No capitalismo, essa reprodução da força de trabalho se dá mediante o salário



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(reprodução material) e a “qualificação” – na qual, o sistema escolar possui um papel central.

Ao abordar a reprodução da força de trabalho, Althusser se defronta com as relações sócio-políticas, de classe, em que a escola se mostra profundamente implicada. Isso porque, a reprodução técnica da força de trabalho, sua qualificação de acordo com a divisão social do trabalho, ocorre ao mesmo tempo de “uma reprodução de sua submissão às normas da ordem vigente. Isto significa, por parte dos operários, uma reprodução da submissão à ideologia dominante” (ALTHUSSER, 2022, p. 63). A qualificação, levada a cabo pela escola e outras instâncias e instituições, para além da empresa capitalista, contribui para a reprodução das próprias relações sociais de produção, portanto, para a reprodução da própria dominação presente na sociedade de classes.

Para avançar na compreensão da reprodução das condições de produção, em suas dimensões sócio-políticas e de classe, Althusser se desloca para o debate marxista da superestrutura, ou seja, o debate em torno do Estado e das formas político-jurídicas e ideológicas. Para ele, a partir do ponto de vista da reprodução que é possível construir uma teoria científica do Estado e da ideologia.

A teoria marxista clássica do Estado, assim como a teoria marxista da ideologia, apresenta variadas limitações, segundo o diagnóstico de Althusser, e sobre elas que o autor busca incidir. Em relação à teoria marxista do Estado, os clássicos do marxismo identificaram e desenvolveram basicamente o aspecto essencial do Estado: ele é “uma ‘máquina’ de repressão que permite às classes dominantes [...] assegurar a sua dominação” (ALTHUSSER, 2022, p. 68). É por meio desse aparelho essencial que a burguesia, possuidora do poder de Estado no capitalismo, exerce sua dominação sobre as classes trabalhadoras, mantendo-se classe dominante. Em relação à teoria da ideologia, considerando as formulações de A Ideologia Alemã, a limitação é ainda maior. No limite, a teoria da ideologia formulada ali não é marxista, exigindo uma reconstrução quase completa do objeto, que consiga afastar a ideologia do terreno de pura inversão da realidade, do erro e da ilusão (ALTHUSSER, 2022, p. 91).

O conceito fundamental de Althusser para avançar sobre esses limites da teoria marxista é o de Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). Aparelhos, no plural: religioso, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, dentre outras “instituições” que, em sua


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pluralidade e sua dispersão, mostram-se presentes inclusive no assim chamado domínio privado, de acordo com o Direito. Para o autor, os AIE também compõem aquilo que se pode chamar de Estado. A reprodução das relações de produção, de classe, portanto, ocorre pela “divisão do trabalho” entre aparelho de Estado, repressivo, e aparelhos ideológicos. A hegemonia nestes últimos é crucial para uma classe dominante permanecer com seu poder de Estado, sob o controle do aparelho de Estado.

O conceito de AIE é influenciado por Antonio Gramsci (2001), segundo o autor, “o único que avançou no caminho que retomamos” (ALTHUSSER, 2022, p. 73), o caminho de pensar o Estado para além do aparelho (repressivo) de Estado, considerando também instituições da chamada sociedade civil. No entanto, Althusser ressalta o caráter não sistematizado dos escritos do sardo impossibilita a construção de uma teoria propriamente dita.

Os aparelhos ideológicos apenas são compreendidos em comparação e em relação ao aparelho de Estado, repressivo. Portanto, a teoria do Estado de Althusser combina Aparelho Repressivo de Estado (ARE) e Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE). O ARE “compreende o governo, a administração, o exército, a polícia, os tribunais, as prisões etc.” (ALTHUSSER, 2022, p. 74), sendo instituições a funcionar predominante pela repressão, violência, coerção e força, física ou não física. Já os AIE funcionam principalmente pela ideologia, sobretudo a ideologia dominante.

Para Althusser, ambos não agem de forma exclusiva pela repressão ou pela ideologia. Todos os aparelhos de estado, repressivo ou ideológicos, funcionam tanto pela violência, quanto pela ideologia, em um duplo funcionamento. A diferença nesse aspecto se dá pela primazia de uma ou de outra. Segundo Althusser (2022, p. 76), “o Exército e a Polícia funcionam também através de ideologia, tanto para garantir sua própria coesão e reprodução, como para divulgar os ‘valores’ por eles propostos”. Já os AIE funcionam “secundariamente através da repressão seja esta bastante atenuada, dissimulada, ou mesmo simbólica” (ALTHUSSER, 2022, p. 76). Os AIE, como o escolar e o religioso “‘moldam’ por métodos próprios de sanções, exclusões, seleção, não apenas seus funcionários mas também suas ovelhas” (sic) (ALTHUSSER, 2022, p. 77).

O terreno em comum entre o ARE e os diversos AIE, em seus funcionamentos duplos, “permite compreender que constantemente tecem-se sutis combinações


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tácitas ou explícitas entre o jogo do aparelho (repressivo) de Estado e o jogo dos aparelhos ideológicos de Estado” (ALTHUSSER, 2022, p. 77). Os exemplos de combinações, são vários, sendo necessários estudos detalhados para uma melhor compreensão dessa realidade. Para Baudelot e Establet (1987, p. 155, tradução livre), que realizaram uma investigação do sistema educacional francês sob as diretrizes althusserianas, a ideologia do ARE de “desprezo aos delinquentes, moralismo dos policiais, lições morais dos juízes etc.”, desempenha no aparelho escolar um “papel de acompanhamento”, por exemplo.

A partir do conceito de Aparelhos Ideológicos de Estado, Althusser (2022) busca construir as bases de uma nova teoria da ideologia. Em síntese, as teses fundamentais de Althusser, úteis para o propósito em tela, são: a ideologia tem uma existência material e a ideologia interpela os indivíduos enquanto sujeitos. A primeira vincula diretamente a existência da ideologia às práticas e rituais internos aos AIE. A ideologia não se caracteriza por um conjunto de ideias e discursos soltos: ela sempre se vincula a uma prática, existe ou se produz em ato. A segunda indica o caráter produtivo, positivo da ideologia, de construção de subjetividades que se reconheçam em determinado ordenamento social e atuem de forma consonante sobre o mesmo. Portanto, indica a ideologia como elemento fundamental à reprodução das formações sociais e econômicas.

Cabe explanar agora sobre como o filósofo compreende especificamente a escola, a qual ele chama de Aparelho Ideológico de Estado Escolar – AIE Escolar. Este possui posição dominante nas “formações capitalistas maduras” (ALTHUSSER, 2022, p. 84). Isso porque a escola:


se encarrega das crianças de todas as classes sociais desde o maternal, e desde o maternal ela lhes inculca, durante anos, precisamente durante aqueles em que a criança é mais “vulnerável”, espremida entre o aparelho de Estado familiar e o aparelho de Estado escolar, os saberes contidos na ideologia dominante (...) ou simplesmente a ideologia dominante em estado puro (ALTHUSSER, 2022, p. 87).


Segundo o autor, pela sua abrangência e eficácia social, a instituição escolar chega a substituir o que foi o aparelho religioso nas sociedades servis: um espaço central e legitimado de preparação dos indivíduos de diferentes classes para suas respectivas posições sociais. De forma geral, é por meio dos processos de



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aprendizagens, da prática educativa e dos saberes que os educandos são interpelados a serem sujeitos, e constituídos enquanto tais, dentro e para a ideologia dominante.


É pela aprendizagem de alguns saberes contidos na inculcação maciça da ideologia da classe dominante que, em grande parte, são reproduzidas as relações de produção de uma formação social capitalista, ou seja, as relações entre exploradores e explorados (ALTHUSSER, 2022, p. 88).


Os Aparelhos Ideológicos Estado, incluindo o Escolar, segundo Althusser, pela sua unidade contraditória e relativa autonomia, são meios e lugares da luta das classes exploradas, sofrendo também efeitos da luta fora dos mesmos, o que é reforçado e desenvolvido em pós-escrito de 1976 (ALTHUSSER, 2022). Segundo Cassin (2002, p. 121), Althusser coloca “a necessidade de se pensar a escola como reprodutora das relações de produção e, ao mesmo tempo, como importante local da luta de classes, que se apresenta, predominantemente, como luta ideológica”. Mas essa abertura não significa completa flexibilidade dos AIE, cujos limites estão ancorados na classe que detém o poder de Estado via repressão (PIMENTA, 2013).


Disciplina em Michel Foucault: poder disciplinar e produção de corpos


Michel Foucault foi um filósofo francês contemporâneo de Althusser que não se vinculou ao marxismo, circulando em torno das contribuições estruturalistas e pós- estruturalistas. A teoria foucaultiana tornou-se significativa no debate educacional brasileiro, sendo seu trabalho divulgado e estudado no âmbito acadêmico, como demonstra Aquino (2013).

Autor de vasta obra crítica sobre as formas de poder e de subjetivação, “Foucault não tratou mais diretamente de questões relativas à Educação, a não ser em Vigiar e punir, mais especificamente na parte sobre a disciplina, e nos cursos finais, sobre os modos de subjetivação na Antiguidade, nos quais aparecem comentários pontuais, muitas vezes críticas, à Pedagogia” (GALLO, 2014). Tal obra, Vigiar e punir: Nascimento da prisão, de 1975, oferece contribuições explícitas para questão da dimensão repressivo-disciplinar da escola moderna.

Sabe-se que após um período de obras “arqueológicas”, nas quais realizou


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investigações epistemológicas sobre as formações discursivas, Foucault partiu para estudos e cursos sobre as transformações modernas nas práticas punitivas e de controle social, período conhecido como uma genealogia do poder. Vigiar e punir aborda a mudança nas formas de punição ocorrida na Europa entre os séculos XVIII-

XIX. Um caso exemplar dessa mudança é o paulatino desaparecimento dos suplícios, das torturas e dos castigos físicos executados publicamente, como espécie de espetáculo de justiça do poder soberano. Concomitante a esse desaparecimento, um conjunto de reformas, concepções e novas práticas de julgamento e de castigo vão ganhando terreno e se consolidando nas instâncias jurídicas, tornando dominante uma nova relação entre o corpo e o castigo, uma nova forma de execução punitiva menos voltada à tortura do corpo. As prisões modernas e a penalidade de detenção são arquétipos finais desse novo estilo penal.

No entanto, o enfoque de Foucault não se restringe a uma historiografia penal e a uma história do nascimento da prisão, como diz o subtítulo da obra. Interessa a Foucault, a partir das dinâmicas punitivas e suas mutações, construir uma genealogia do que chama de sociedade disciplinar e de poder disciplinar. Ele estuda os mecanismos punitivos em seus “efeitos positivos”, produtivos, relaciona-os a “outros processos de poder” e aos discursos científicos (FOUCAULT, 2014, p. 27), estabelecendo relações entre saber e poder advindos do novo estilo penal e das práticas que o conformaram. A pretensão foi identificar um modo específico de sujeição, em que o homem é ao mesmo tempo alvo de poder e objeto de conhecimento científico (FOUCAULT, 2014, p. 28); analisar como o corpo se tornou alvo de um novo investimento de poder para se tornar economicamente útil, propriamente disciplinado à nascente sociedade burguesa.

As incursões historiográficas de Foucault ao longo dos capítulos, que percorrem uma vasta gama de instituições e práticas, servem para captar a construção de uma “tecnologia política do corpo”, de uma “anatomia política”, estabelecidas a partir de procedimentos disciplinares dispersos (FOUCAULT, 2014, p. 31). Estes, segundo o autor, não são reduzidos à simples violência e à ideologia, nem a um aparelho de Estado específico. Conforme Silva (2016, p. 161), em Vigiar e Punir:


a prisão, no entanto, era apenas uma entre as instituições que incorporavam a nova forma de poder descrita por Foucault. Escola, hospital, fábrica e quartel são outros exemplos. De fato, para ele, o


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poder disciplinar ou as relações de poder levadas a efeito pela disciplina são a verdadeira característica das sociedades modernas, isto é, das sociedades disciplinares. Disciplina aparece, então, como a palavra-chave no diagnóstico que Foucault faz da sociedade moderna. Por outro lado, ele concebe disciplina como uma técnica que substitui as velhas formas de relações de poder.


Na parte III do livro, há o conjunto de reflexões mais profícuas para o entendimento sobre essa dinâmica disciplinar fundamental das sociedades modernas, incluindo o ambiente escolar. O poder disciplinar, para Foucault, é um poder produtivo e que difere de outras implicações políticas sobre o corpo existente ao longo da história. Tal poder forja corpos e subjetividades a partir de uma multiplicidade de procedimentos e de mecanismos que organizam de maneira própria espaços e temporalidades e são geridos de forma contínua, extensiva e científica. Segundo o autor, tratam-se de “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 2014, p. 135). Uma operação tecnológica ou anatômica que vincula obediência à utilidade, e utilidade à obediência, assim recompondo o corpo humano, inaugurando um corpo dócil e o fazendo entrar em uma “maquinaria de poder” (2014, p. 135).

De certa forma, trata-se de em movimento análogo ao da expropriação do proletário frente ao produto do seu trabalho: “se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre a aptidão aumentada e uma dominação acentuada” (FOUCAULT, 2014, p. 136). E, portanto, Foucault não esconde a afinidade que há entre a acumulação de capital e a “acumulação de homens”, cada uma servindo de modelo para a outra (FOUCAULT, 2014, p. 213).

Foucault se esforça em fazer uma análise das disciplinas e de sua proliferação ao decorrer dos séculos XVII e XVIII, até o surgimento da sociedade tipicamente disciplinar. Em primeiro lugar, a disciplina opera como uma arte das distribuições: ela distribui uma massa de corpos, uma multiplicidade, em um determinado espaço, sob uma determinada ordem. “Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo” (FOUCAULT, 2014, p. 140), organizando assim um espaço analítico cujos contatos e comunicações são previamente organizados. Por isso, a importância da arquitetura, incluindo a organização dos objetos no espaço, e seus efeitos funcionais, no hospital,


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na fábrica, na escola etc. Em relação às filas nas salas de aula, Foucault comenta:


determinando lugares individuais tornou possível o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos. Organizou uma nova economia do tempo de aprendizagem. Fez funcionar o espaço escolar como uma máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar (FOUCAULT, 2014, p. 144).


Ao mesmo tempo, a disciplina é um controle da atividade. A utilização intensiva do horário, o rigor com o tempo, uma cronometria, também são fundamentais ao exercício do poder disciplinar. Chegando ao ponto de atingir “outro grau de precisão na decomposição dos gestos e dos movimentos, outra maneira de ajustar o corpo a imperativos temporais”. Se a disciplina organiza o espaço de forma analítica, faz isso também com o tempo e o movimento. “O tempo penetra no corpo” (FOUCAULT, 2014, p. 149). Simultaneamente, faz emergir uma compreensão orgânica do corpo enquanto uma “máquina natural” (FOUCAULT, 2014, p. 153).

Esse poder também se fundamenta na organização seletiva e seriada; na composição das forças e dos elementos para constituição de unidades mais eficientes possíveis; em uma cadeia hierárquica e de comando. Em síntese, Foucault diz:


a tática, arte de construir, com os corpos localizados, atividades codificadas e as aptidões formadas, aparelhos em que o produto das diferentes forças se encontra majorado por sua combinação calculada é sem dúvida a forma mais elevada da prática disciplinar (FOUCAULT, 2014, p. 165).


Ou, ainda: “o poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor” (FOUCAULT, 2014, p. 167).

O autor ainda ressalta os papéis fundamentais da vigilância hierárquica e da visibilidade permanente, cujo modelo arquitetônico por excelência é o panóptico de Bentham, e do conjunto de sanções normalizadoras. Pode-se compreender esse último como um “pequeno mecanismo penal” (FOUCAULT, 2014, p. 175), baseada em uma miríade de normas, que age em toda prática disciplinar.


Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção e negligência), da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice), do corpo (atitudes 'incorretas'), da sexualidade (indecência). Ao mesmo tempo é utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que


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vão do castigo físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações (FOUCAULT, 2013, p. 175).

Mais uma vez, agora sob os conceitos de Foucault, fica borrada separação clara entre educação e violência, existindo na escola moderna uma dimensão de interpenetração entre ambas. Sem dúvida, distante da violência espetacular e brutal dos suplícios medievais, mas preservando uma prática de sujeição, mais extensiva, sutil e contínua, que também toma o corpo como objeto, mesmo que seja para ampliar sua utilidade e sua expropriação.

No livro, no entanto, Foucault não discorre de forma explícita sobre as relações de resistência a esse novo poder. No entanto, na parte “metodológica” da História da Sexualidade I, afirma:


onde há poder, há resistência e, no entanto (ou melhor, por isso mesmo) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder. [...] Elas não podem existir senão em função de uma multiplicidade de pontos de resistência que representam, nas relações de poder, o papel de adversário, de alvo, de apoio, de saliência que permite a preensão. Esses pontos de resistência estão presentes em toda a rede de poder (FOUCAULT, 1988, p. 91).


Portanto, é importante também considerar as possibilidades de resistência à tecnologia política que as disciplinas modernas inauguram nas diversas instituições, inclusive a escolar.


A dimensão repressivo-disciplinar da escola capitalista a partir de Althusser e Foucault: contribuição teórica aos estudos da militarização


De acordo com a leitura feita das duas obras selecionadas de Althusser e Foucault, a partir dos eixos de análise elencados para fundamentar a interpretação e comparação em tela, destaca-se algumas especificidades de cada autor, como se vê na tabela abaixo.


Tabela 1 - Mapa comparativo entre Althusser e Foucault sobre educação


Eixos

Althusser

Foucault

Contexto e

intercâmbio teórico

Marxismo. Retificação conceitual.

Estruturalismo e pós-

estruturalismo.

Lugar sociopolítico da educação

Auxílio na reprodução das

relações de exploração e dominação de classe. Luta de

Proliferação do poder disciplinar

na sociedade moderna. Redes de poder e de afrontamentos.


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classes.


Dinâmica específica do fenômeno

educacional

Qualificação da força de trabalho, submissão ideológica e,

secundariamente, repressão.

Distribuição, controle e vigilância dos corpos e de suas atividades.

Práticas

repressivas na/da escola

Relação com aparelho repressivo

de Estado, sanções, repressão simbólica.

Adestramento anatômico, sanções normalizadores.

Elaboração própria a partir da análise de Althusser (2022) e Foucault (2014).


Em Althusser (2022), viu-se que a educação moderna funciona como um dos vários aparelhos ideológicos de Estado, e que, apesar de se tratar de um espaço de disputas e lutas, cumpre uma função primordial: a de auxiliar na reprodução das relações de produção capitalistas, na reprodução da própria dominação de classe burguesa sobre os trabalhadores. Esses aparelhos, incluindo a escola, em primeiro lugar, articulam-se, complementam-se e interpenetram-se com o aparelho (repressivo) de estado. Em segundo lugar, possuem um duplo funcionamento, ideológico-repressivo.

A partir das contribuições de Althusser, pode-se pensar a militarização como uma articulação específica entre Aparelho Repressivo de Estado e o AIE Escolar. No âmbito dessa articulação é possível investigar quais modificações ideológicas e repressivas ocorrem em uma escola militarizada, como as práticas ideológicas e repressivas desse modelo militarizado se combinam, assim como relacionar tais modificações com o cenário mais amplo da luta de classes no Brasil atual.

Em Foucault (2014), a escola moderna se tornou um dos palcos da disseminação de um novo tipo de poder: o disciplinar. Esse poder, que se constituiu de forma dispersa em diversos mecanismos, acaba por produzir corpos dóceis e úteis à nova ordem social moderna, capitalista. Esse poder descentralizado opera além da dualidade violência-ideologia, ou da repressão-ilusão. É uma tecnologia, um conjunto de táticas adestradoras, que amplia a utilidade dos corpos, ao mesmo tempo em que gera mais docilidade, fundamentando-se, por fim, em um conjunto de saberes e verdades.

As contribuições de Foucault para o estudo da militarização da educação estão sobretudo no conceito de disciplina, sob o qual é possível construir uma analítica da “escola-quartel” (SANTOS, 2021). Foucault abre espaço para uma análise dos mecanismos de uma pedagogia militarizada, desde a disposição arquitetônica à


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utilização do tempo no ambiente escolar, passando pelas formas de controle dos corpos docentes e discentes. Além disso, possibilita uma reflexão sobre o reforço do poder disciplinar na sociedade contemporânea (DELEUZE, 1992).

Tais contribuições, como visto, encontram-se de forma variada na literatura recente sobre militarização que lançam mão de ambos os autores. No entanto, o intuito deste artigo é explorar articulações entre Althusser e Foucault visando a análise da militarização da educação.

Evidenciadas as especificidades, busca-se encontrar alguns pontos de conexão e relação que contribuam para a compreensão da dimensão repressivo- disciplinar da escola capitalista. No contexto teórico, Althusser critica a concepção instrumental, repressiva e centralizadora do Estado ao ampliar a teoria do Estado marxista com o conceito de Aparelhos Ideológicos de Estado. Em sua pluralidade e relativa autonomia, os AIE renovam a concepção de poder do marxismo. Além disso, Althusser conceitua ideologia a partir de práticas internas aos Aparelhos Ideológicos de Estado e da interpelação, produção e modulação de sujeitos.

A crítica a uma concepção reduzida de poder aproxima Althusser e a teoria do poder disciplinar de Foucault, mesmo que essa aproximação não tenha sido explícita e trabalhada à época pelos autores. Pallotta (2019, p. 25) contribui com essa interpretação:


o poder disciplinar se exerce sobre o corpo, e os conduz segundo uma certa norma através de um jogo de recompensas e de punições: ele é incontestavelmente material. Pois, precisamente, e é isso que Foucault não quis ver no artigo de Althusser, em 1970, Althusser propõe um novo conceito de ideologia material segundo a qual as ideias de um sujeito são seus atos materiais inseridos em práticas materiais. É assim que podemos nos perguntar se Foucault, em sua rejeição do conceito de ideologia, levou realmente em conta a novidade do conceito althusseriano: de fato o poder disciplinar pensado por Foucault é material assim como é material a ideologia ritualizadas nas práticas reguladas pelos aparelhos ideológicos pensados por Althusser.


É possível identificar também outra proximidade fundamental em ambos os filósofos, quer seja, o exame da problemática da reprodução/disseminação de relações de poder na moderna sociedade capitalista. O lugar sociopolítico da educação, em ambos, é semelhante, apesar da construção conceitual diversa. Novamente, Pallotta (2019, p. 24) comenta que em Foucault há uma “retomada



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manifesta das temáticas althusserianas: a ideia de instituições que assujeitam os indivíduos às exigências da produção capitalista”. O próprio Foucault trata da “acumulação de homens” no processo disciplinar como algo em afinidade com a acumulação de capital.

Na leitura realizada das duas obras, no que se refere à dinâmica específica da educação e às práticas repressivas na/da escola, verificam-se também sobreposições, apesar de dissonantes, entre o funcionamento duplo das práticas nos Aparelhos Ideológicos de Estado (Althusser) e o mecanismo disciplinar (Foucault). A analítica do poder de Foucault, em seu nível micro, tem diversos detalhes sobre a dinâmica de funcionamento das instituições modernas, conseguindo assim definir regularidades nas várias formas disciplinares. No entanto, Foucault apresenta um limite ao não colaborar para pensar disciplinas diversas para diferentes posições sociais (por exemplo, de classe), ou quando o faz é sem dar centralidade a isso. Sua própria concepção de dominação parece por vezes anônima, difusa, assim como se refere a resistências de modo muito geral (POULANTZAS, 2000, p. 42). Em Althusser, há a afirmação de um duplo funcionamento dos AIE e ARE que consegue vincular os aparelhos à estrutura social mais geral, incluindo as classes sociais. Por outro lado, pouco avançou quanto ao funcionamento concreto dessa duplicidade, também incorrendo a generalidades (SILVA; PARANÁ; PIMENTA, 2021).

Ao articular tais pontos de conexão, de forma heurística, pode-se produzir algumas formulações:


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Esse conjunto de práticas e discursos, nomeado aqui de dimensão repressivo- disciplinar da educação no capitalismo, estão no cerne das políticas de militarização da educação. As escolas militarizadas, nessa perspectiva, são escolas nas quais o conjunto interno de práticas e discursos disciplinares e repressivos ganha uma nova predominância, característica e forma, a partir da relação estabelecida entre corporações e/ou técnicas militares, profissionais civis e comunidade escolar. A ampliação de normas disciplinares e dispositivos punitivos, a presença de militares no ambiente escolar e a adoção de rituais de quartel são exemplos concretos pelos quais se pode evidenciar a dimensão repressivo-disciplinar em sua nova forma no Brasil atual.

Um documento no qual essa dimensão fica explícita é o Manual das Escolas Cívico-Militares, do PECIM (BRASIL, 2020). O Manual é constituído por um conjunto extenso de regulamentos e normas que visam enquadrar e direcionar, de forma ampla, a gestão escolar e as práticas educativas nas instituições educacionais militarizadas. A extensa normatização de todas as práticas, papéis e pessoas da escola alcança até mesmo as condutas e atitudes dos responsáveis fora da instituição, passando também pelos corpos dos estudantes, que devem ser uniformizados aos detalhes. Nesse movimento, há uma ampliação concomitante das sanções no âmbito escolar. Perante descumprimento de normas por parte de estudantes, o Manual propõe até mesmo uma espécie de processo penal, encabeçada por militares, cuja codificação envolve ficha de ocorrência, apuração, defesa, aplicação de “medida educativa”, recurso e arquivamento (BRASIL, 2020, p. 289).

Outra implicação bastante significativa da militarização é a constituição de um Corpo de Monitores nas escolas. Tais monitores não são educadores, mas sim militares, inclusive das Forças Armadas. Segundo o Manual, esse novo segmento escolar visa o controle comportamental e das relações entre os membros da comunidade escolar. Cabe a tal Corpo de Monitores assegurar o conjunto de normas, através de rondas pela escola, estimular o “culto aos símbolos nacional” (BRASIL, 2020, p. 38) e realizar rituais diários de formaturas, ordem unida e execução de hinos com os estudantes.

Tais discursos, normas e práticas coercitivas e a constituição de uma educação enquanto subjetivação para a obediência e reprodução das relações e estruturas sociais dominantes, no entanto, não podem ser compreendidas como uma novidade


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completa, inaugurada pelas políticas de militarização da educação. A partir da articulação entre Althusser e Foucault, viu-se que tal dimensão repressivo-disciplinar é constitutiva da educação no capitalismo. Com a militarização, essa dimensão é sim reformulada: os rituais, normas e sanções escolares já em curso em prol da disciplinarização dos estudantes, por exemplo, são reforçados e modificados com a presença direta de militares e sua atual ideologia.

Desenvolver de forma mais aprofundada a compreensão dessa nova forma da dimensão repressivo-disciplinar, importante ressaltar, só será possível considerando as especificidades e a história da formação social brasileira e da conjuntura atual. Tal formação social se estruturou a partir de processos de colonização e dominação imperialista ao longo de séculos e apresenta particularidades muito relevantes quanto à constituição do Estado e de outras instituições sociais, incluindo a escolar (SAES, 2020; BERGER, 1984). Os séculos de escravização de milhões de pessoas trazidas compulsoriamente da África e de extermínio dos povos originários fomentaram no país forte uma tendência autoritária e violenta das formas de controle social, incluindo aí as corporações militares, além de profunda desigualdade socioeconômica e racial (HASENBALG, 2005). Conjunturalmente, o país presencia há vários anos o ressurgimento de uma extrema-direita, que possui, como uma de suas pautas, a política educacional (SANTOS, 2020).

Assim, situar o fenômeno da militarização na recente ascensão conservadora, autoritária e de direita, e na desigual e racista formação social brasileira é um desafio para uma análise ampla e concreta da recente modificação na dimensão repressivo- disciplinar da educação, ainda por se fazer sob a provisória proposta de articulação teórica acima. Assim como um esforço fundamental para qualificar uma intervenção política crítica frente a tal quadro.


Considerações finais


O artigo buscou revisar contribuições teóricas dos filósofos Louis Althusser e Michel Foucault para o recente campo de pesquisas em torno das políticas de militarização de escolas públicas no Brasil. A partir da análise bibliográfica de duas obras centrais dos autores, Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado e Vigiar e Punir, ambas dos anos 1970, constatou-se as potencialidades dos conceitos de


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Aparelhos Ideológicos de Estado e poder disciplinar para o estudo da militarização. Apesar das diferenças nas abordagens dos autores, há também zonas de contato que possibilitam ambas as teorias, heuristicamente, serem pontos de partida para se construir os fundamentos da dimensão repressivo-disciplinar da escola capitalista, reforçada no modelo militarizado. Ao mesmo tempo, propôs-se a continuidade de uma análise mais concreta e contextualizada à realidade nacional de tal dimensão, caminho necessário para fortalecer a crítica à militarização e buscar modelos político- educacionais antagônicos ao retorno de formas mais autoritárias de dominação capitalista.


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