V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X


Texto Clássico


JOSÉ ADRIANO BARATA-MOURA - UM FILÓSOFO, UM ARTISTA, UM COMBATENTE1


Justino de Sousa Junior 2



Resumo


Este artigo foi desenvolvido a partir de uma intenção maior: homenagear o filósofo Barata-Moura. Por entender que a melhor maneira de homenagear um intelectual da grandeza de Barata-Moura é tentando fazer o que ele mais preza, que é o exercício do pensar, o artigo se propõe a ir além das menções elogiosas, totalmente merecidas, pondo em discussão aspectos fundamentais da investigação do filósofo sobre a categoria práxis e sua relação com o problema do idealismo. O artigo procura demonstrar o quanto as pesquisas de Barata-Moura sobre a práxis resultam fundamentais para as pesquisas em educação.


Palavras-chave: Barata-Moura; práxis; idealismo; formação humana.



1 Recebido em 27/02/2023. Aprovado pelos editores em 05/03/2021. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57572.

2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor da Faculdade

de Educação (FACED) e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: justinojr66@yahoo.com.br.

Lattes: https://lattes.cnpq.br/5835023680619914. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2614-418X.

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JOSÉ ADRIANO BARATA-MOURA - UN FILÓSOFO, UN ARTISTA, UN COMBATENTE


Resumen


Este artículo se desarrolló a partir de una intención mayor: homenajear al filósofo Barata-Moura. En efecto, la mejor manera de honrar a un intelectual de la grandeza de Barata-Moura es intentando hacer lo que más valora, o sea, el ejercicio de pensar. Así, este artículo propone ir más allá de las menciones elogiosas, poniendo en discusión aspectos fundamentales de la investigación del filósofo sobre la categoría praxis y su relación con el problema del idealismo. Aquí se busca demostrar cómo la investigación de Barata-Moura sobre la praxis es fundamental para la investigación en educación.

Palabras-llave: Barata-Moura; praxis; idealismo; formación humana.


BARATA-MOURA: A PHILOSOPHER, AN ARTIST, A FIGHTER


Abstract

This article was developed from a greater intention: to honor the philosopher Barata-Moura. Indeed, the best way to honor an intellectual of Barata-Moura's greatness is by trying to do what he values most, which is the exercise of thinking. Thus, this article proposes to go beyond the laudatory mentions, discussing fundamental aspects of the philosopher's research on the praxis category and its relationship with the problem of idealism. The article seeks to demonstrate how Barata-Moura's research on praxis is essential for research in education.


Keywords: Barata-Moura; praxis, idealism; human formation.


Introdução


Por falta de diálogos acadêmicos, culturais mais estreitos e profundos entre Brasil e Portugal a obra do filósofo Barata-Moura tardou demasiado para circular mais amplamente entre nós. Essa circulação, todavia, ainda não corresponde à importância da obra, mas vão pouco a pouco as reflexões do intelectual português penetrando em certos ambientes acadêmicos e passando a fazer parte das agendas de estudos de pesquisadores brasileiros.

Curiosamente, no caso do Brasil é entre educadores e pesquisadores do campo da educação que mais cresce o interesse pela obra do filósofo. Grande parcela dos convites feitos a Barata-Moura para conferências e atividades no Brasil parte de fóruns ou entidades ligadas ao campo da educação; quanto às publicações do filósofo no Brasil, os periódicos de educação, como esta Revista Trabalho/Necessário estão, seguramente, entre os que mais divulgam textos do autor; e entre os pesquisadores que procuram Barata-Moura em busca de orientação acadêmica em nível de doutorado ou pós-doutorado ou em busca de estabelecer intercâmbios acadêmicos os pesquisadores da educação certamente estão em quantidade destacada.

A boa receptividade às ideias de Barata-Moura entre pesquisadores do campo da educação certamente se explica devido ao rigor das análises, mas também ao teor


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radicalmente crítico delas. O crescimento do interesse pela obra de Barata-Moura entre educadores brasileiros seguramente se explica pelo casamento perfeito entre o vigor das análises e a avidez desses educadores por teorizações radicalmente críticas que sejam efetivamente capazes de ajudar a compreender e transformar as grandes questões sociais que vivenciam.


Um artista, militante comunista e filósofo


O percurso da formação do filósofo encontra no final dos anos 1960 um estudante universitário vinculado à Juventude Universitária Católica que participava ativamente dos processos de fermentação do 25 de Abril, participação essa que veio a ser potencializada com a atuação política do cantor de intervenção. Naqueles anos de ditadura, vigilância, censura, prisão e tortura a música era uma das formas através das quais os ´cantautores` de intervenção podiam contribuir para a transformação social.

O jovem ativo, artista engajado, comunista seguiu uma carreira acadêmica brilhante ao mesmo tempo em que encontrava tempo para compor canções infantis. Agora o cantor de intervenção que atingia com finalidades políticas e ideológicas os adultos também embalava, divertia e ensinava os miúdos. Com o tempo as tarefas políticas e compromissos acadêmicos foram se sobrepondo aos demais interesses, e a obra filosófica foi se gerando e consolidando ao tempo em que a figura do intelectual e militante, por sua vez, se estabelecia como importante referência teórica. Nessa caminhada foi eleito deputado ao Parlamento Europeu pelo Partido Comunista Português (PCP) em que atuou nos anos de 1993 e 1994 e, posteriormente, eleito reitor da Universidade de Lisboa para uma gestão que durou de 1998 a 2006.

Barata-Moura é autor de uma obra rica e densa que cobre amplamente todo o espectro do que há de mais relevante na filosofia ocidental. Sua obra examina com rigor toda uma tradição filosófica sempre a partir dos textos originais, ao menos no que concerne às principais línguas europeias, ou seja, dos clássicos da Antiguidade aos alemães modernos, sem perder de vista os desdobramentos filosóficos do século XX até os dias de hoje.

O pensador Barata-Moura destaca-se de imediato pelo posicionamento político e ideológico enraizado no melhor da tradição marxista da qual é um profundo conhecedor. Barata-Moura não é apenas um filósofo, como tantos que são rigorosos,


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ilustrados, competentes, mas auto declarados pensadores apolíticos, apartidários, ao contrário, Barata-Moura é homem de partido, militante engajado, disciplinado, além de artista: quem disse que não é possível?

Alguém que por acaso venha a ter a oportunidade de confraternizar com o José Adriano, sem perceber será envolvido por um camarada, homem simples, doce, sensível, inteligente, engraçado, risonho, interessado nas conversas dos outros e se encontrará numa companhia aconchegante, desprovida da vaidade e da prepotência que muitas vezes acompanham certo tipo de intelectual, de tal maneira que o interlocutor se esquecerá que está diante de um grande pensador, ilustradíssimo que acumula dentre outros os títulos de Vice-Presidente da Internationale Gesellschaft Hegel-Marx für dialektisches Denken; Deputado ao Parlamento Europeu (1993-1994); Reitor da Universidade de Lisboa (1998-2006); Membro do Conselho Nacional de Avaliação do Ensino Superior (1999-2006).; Membro do Conselho Nacional de Educação (2007-2011); Sócio correspondente da Academia Internacional da Cultura Portuguesa; Sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa; Grande-oficial da Ordem Militar de Santiago da Espada.

O quadro da personalidade de Barata-Moura compõe-se de qualidades diversas em que ressalta uma figura incomum: o homem simples que é um grande pensador; o comunista, membro de partido que é cantor de músicas infantis; o reitor de universidade que é também um professor acessível aos estudantes; o marxista que é um artista sensível, interessado nos mais diversos temas culturais – esse último par de qualidades não deveria, mas surpreende as noções mais despreparadas.

A obra de Barata-Moura, essencialmente filosófica, transcende a filosofia, enfrenta um amplo espectro de questões sociais e dialoga com interesses bastante diversificados.

Uma das áreas das ciências humanas que se enriquecem enormemente com as reflexões desenvolvidas por Barata-Moura é a da educação. Dentre outros desenvolvimentos importantes para a educação, destacam-se as pesquisas de Barata-Moura dedicadas à categoria filosófica práxis.

As pesquisas de Barata-Moura sobre a práxis importam para os educadores primeiro porque, de partida, representam um enorme avanço conceitual; elas promovem um amplo e fecundo debate com as mais diferentes correntes filosóficas; preenchem lacunas existentes nas teorizações sobre a práxis e elaboram uma


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abordagem original sobre a categoria. Em segundo lugar porque, no que concerne à educação, elas oferecem apoio fundamental às reflexões sobre a formação humana. Da obra do filósofo, ao lado de outras publicações, destacam-se três livros totalmente dedicados ao tema da práxis, são eles: Da representação à práxis itinerários do idealismo contemporâneo (1986); Ontologias da ‘práxis’ e idealismo (1986) e Prática – para uma aclaração do seu sentido como categoria filosófica (1994). Nesses três livros, principalmente, desenvolve-se uma reflexão extremamente importante para a filosofia, que tem significado ainda mais valioso para o campo das pesquisas em educação. Indicamos os aspectos dessa reflexão que consideramos as contribuições mais decisivas para a educação: em primeiro lugar a afirmação do caráter categorial da práxis e, ao lado disso, a altíssima valoração dessa categoria dentro do sistema filosófico marx-engelsiano; em segundo lugar, a reflexão desenvolvida por Barata-Moura nos auxilia na discussão sobre o ponto alto das contribuições marxistas para a educação, particularmente no caso dos debates brasileiros, que consiste na afirmação do trabalho como categoria fundante do ser social, o que conduz à elaboração do postulado do princípio educativo do trabalho e culmina na posição do trabalho como a atividade que explicaria no todo os processos da formação humana e daria, sozinha, sentido a todos os desdobramentos da constituição do humano social; por último, indicamos aquele que parece ser o ponto central das reflexões de Barata-Moura, que é a investigação que empreende, através da práxis, em torno do idealismo filosófico e de seu enraizamento, inclusive em setores

e correntes do marxismo.


Práxis – mais que uma tatuagem no discurso


Quanto ao caráter categorial da práxis é um tema que, de fato, especialmente no âmbito dos debates educacionais, embora não como exclusividade sua, assoma como um grande problema. No campo da educação, de fato, verificam-se dois problemas básicos bastante relevantes: a ausência de uma compreensão da práxis que a reconheça como categoria filosófica e, associada a isso, a enorme carência no que concerne à definição precisa da categoria.

No tocante a isso é importante atentar para o fato de que esse problema realmente não é tão novo, nem muito menos algo exclusivo do campo da educação. Na verdade, nós também padecemos do mal que Kosik já havia indicado há tempos,

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isto é, da “obscuridade conceitual das definições da práxis e do trabalho: o trabalho é definido como práxis, e a práxis nos seus elementos característicos, é reduzida a trabalho” (KOSIK, 1995, p. 222).

Podemos afirmar com segurança que no campo dos estudos e pesquisas em educação a práxis não é reconhecida como uma categoria filosófica, dessa maneira, consequentemente, não cumpre nenhum papel analítico específico e relevante. Se para Marx – ideia retomada depois por Lukács (2013, p. 217) – “as categorias são formas de ser, determinações da existência” - no caso da práxis, esta não expressa, representa, revela ou explica nenhum fenômeno, objeto ou processo social de modo rigoroso a ponto de poder desempenhar função importante no processo de construção do conhecimento da realidade social.

No âmbito dos estudos e pesquisas educacionais, mas não apenas, a práxis se apresenta como uma palavra carregada de simbolismo, que pode estar ou não ali, isto é, sua presença não se impõe como uma necessidade analítica, sua presença se define muito mais conforme as intenções que eventualmente se tenha de atribuir ao discurso alguma marca crítica ou progressista ou revolucionária, ou politicamente avançada, como se queira.

Nesse sentido, constatamos que as reflexões educacionais, mesmo aquelas que podem ser caracterizadas genericamente como reflexões críticas ou mesmo as reflexões assumidamente marxistas, costumam prescindir da categoria filosófica “práxis”, embora se utilizem fartamente do vocábulo “práxis”. É fácil constatar a presença abundante do vocábulo “práxis” nos textos acadêmicos, pedagógicos, especialmente no escopo das análises críticas ou marxistas, contudo, normalmente, esse vocábulo se apresenta investido, revestido de grande valor simbólico, de uma carga semântica associada à criticidade, ao ativismo transformador da realidade social de sentido progressista, politicamente avançado, porém, totalmente destituído de qualquer caráter analítico explicativo.

O que falta ao vocábulo práxis em termos de rigor analítico, de envergadura conceitual, enquanto categoria filosófica lhe sobra em simbolismos. A palavra práxis normalmente empresta ao texto grande peso simbólico ajudando a definir seu caráter ideológico e suas pretensões políticas, pois a práxis está associada à revolução social, às lutas dos oprimidos, à realidade social dos “de baixo”. A práxis normalmente antagoniza com o exercício da dominação social, isto é, não combina com textos que justifiquem os sistemas opressivos e, definitivamente, não se enquadra em discursos

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pragmatistas, técnicos relativos às operacionalizações do sistema social vigente, das empresas capitalistas, do mercado capitalista, das burocracias estatais, sejam jurídicas, políticas, militares.

A práxis é uma palavra, mas não é uma palavra qualquer, é um cravo vermelho3, funciona textualmente como um estandarte, como o brasão representativo de todo um imaginário, de toda uma tradição que não é exclusiva de uma perspectiva política dada, isto é, não é socialista, comunista, anarquista ou social democrata, mas está firmemente fincada como uma bandeira no horizonte ideológico político das transformações sociais progressistas e do chamado pensamento crítico.

A práxis não deixa de ter sua importância, mas essa importância reside na sua condição de recurso à eloquência discursiva de esquerda. A práxis tem funcionado como uma espécie de tatuagem do discurso, sem alcançar, contudo, o estatuto de categoria filosófica. A categoria filosófica ou científica distingue-se da palavra comum porque guarda com o real uma relação explicativa, não necessariamente ideológico simbólica, que é definida de modo científico ou filosófico rigoroso.

No uso corrente a palavra práxis, embora não chegue à categoria e, consequentemente, acabe dispensando maiores esforços teóricos de definição conceitual, não deixa de ter significados genéricos bem enraizados no “senso comum acadêmico” e em certos círculos marxistas.

Um desses significados correntes é o que estabelece a práxis como articulação entre teoria e prática. Conforme essa definição, então, teríamos além da prática e da teoria um terceiro elemento, a práxis, que seria aquele que logra a realização do casamento perfeito dos outros dois elementos, a teoria e a prática. Essa definição, amplamente divulgada e fortemente dominante não deixa de ser bastante curiosa afinal, se resolvermos iniciar uma investigação, talvez tomando de empréstimo a lanterna de Diógenes para iluminar nossas estradas não em busca de um homem honesto, mas para procurar a práxis efetiva, real, pura e os sujeitos realmente capazes de exercê-la enfrentaremos certamente muita dificuldade para encontrá-los.


3 Que o leitor não se confunda. Não se trata de uma tentativa de negar o caráter ideológico do discurso. Trata-se de uma crítica à redução da práxis a uma mera marca simbólica. De resto, concordamos com Eduardo Prado quando defende que “os textos que escrevemos não poderão deixar de incluir estereótipos: palavras que são resenhas, emblemas de reconhecimento, cravos vermelhos”. (COELHO, Eduardo Prado. Aplicar Barthes. Prefácio. In: BARTHES, R. O Prazer do texto. Lisboa: Edições 70, 1973, p. 9-30).

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No interior dessa definição a teoria permanece na sua condição, inalterada, mas no âmbito do fazer humano, da ação humana efetiva, dois termos são contrapostos: a prática, que seria a ação pura, simples, destituída de fundamento teórico (ação cega) e a práxis, essa sim, embutida de - ou baseada em - teoria. De cara ressalta o caráter hierárquico entre os dois termos, caráter esse que, obviamente, terá implicações sobre os sujeitos e suas relações. Ora, como se vê, a práxis se revela como uma atividade elevada, que envolve teoria, logo, apenas os sujeitos portadores de aptidões e qualificações mais elevadas seriam capazes de realizá-la; já a prática representaria todas as atividades comuns da gente comum, de maneira que haveria na realidade uma clara distinção entre o bloco dos sujeitos da práxis e o bloco dos sujeitos da prática. Convenhamos: não pode haver definição mais exótica e mais inadequada ao contexto da perspectiva histórica da emancipação humana.

Essa definição tem outro problema ainda mais grave que é conduzir ao apagamento do que é específico da teoria e do que é específico da prática na linha da crítica de Barata-Moura à teoria prática de Althusser (sobre quê falaremos mais adiante). Seguindo com o filósofo português, mesmo quando trata da categoria filosófica em contextualidade teórica, ele prefere usar o termo prática4 justamente para evitar esse tipo de problema. De acordo com Barata-Moura, no âmbito do fazer humano efetivamente transformador o que há é a prática (a mesma práxis) que significa todo fazer humano transformador de realidades materiais não importando o grau de especialização, de fundamentação, de saberes que elas envolvem: toda ação humana transformadora de realidades materiais é prática (práxis) de modo que resulta totalmente inadequada aos olhos de Barata-Moura aquela mencionada definição. Conforme observa o filósofo, a distinção entre a forma nativa prática e a forma de origem grega práxis “empobrece e mistifica [o conceito], retira-lhe acutilância, embotalhe o gume, remete-[o] para a simples esfera dos ‘ideais’ e das ‘essências desrespeitadas’” (BARATA-MOURA, 1986b, p. 123-4).

Esse não é o único problema existente nas tentativas, muitas vezes aleatórias, de atribuir significado à palavra práxis. Normalmente a práxis vem acompanhada de elementos não ditos que funcionam como adereços do estandarte que ela é. São


4 A fim de evitar alguma confusão: para Barata-Moura a palavra da língua portuguesa prática atende à designação da categoria filosófica, dispensando qualquer necessidade de utilização do termo de origem grega práxis. Particularmente, quando somos nós a argumentar, mantemos o termo práxis, porém, por razões muito distintas das razões de Markovic, isto é, apenas para ajustar mais comodamente o entendimento geral.

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noções acopladas à palavra que, embora não sejam resultado de definições rigorosas, tem peso elevado. Uma delas é aquela que faz pender a palavra práxis para certo horizonte ideológico, como uma espécie de apropriação pela esquerda. O Primeiro passo consiste em identificar a práxis com o campo da política, em seguida esse campo se estreita até que nele só caiba a política exercida pelos “de baixo”, assim só alguns setores da sociedade - os oprimidos – exercitam a práxis. Além disso, há outro aspecto que se soma para tornar a práxis um tipo de atividade realizável apenas por sujeitos muito especiais. Esse elemento é a definição da práxis como atividade elevada, não alienada, não estranhada, superior às reles atividades cotidianas, corriqueiras.

Esses embaraços encontram respaldo e talvez origem em elaborações como as de Markovic que propõe uma distinção entre as práticas humanas elevadas, que se chamariam práxis, e as práticas ordinárias, que seriam designadas simplesmente como prática:


A práxis tem que ser distinguida da categoria puramente epistemológica de prática [practice]. A ‘‘prática” refere-se simplesmente à actividade de mudar um objecto de qualquer Sujeito e esta actividade pode estar alienada. A “práxis” é um conceito normativo e refere-se a uma actividade ideal especificamente humana que é um fim-em-si-própria, uma carreira de valores básicos e, ao mesmo tempo, um padrão de crítica de todas as outras formas de actividade. (MARKOVIC, apud, BARATA-MOURA, 1986b, p. 123).


Por essa razão a opção de Barata-Moura por um só termo - prática – para referir todas as ações humanas transformadoras de realidades materiais sem distinção, isto é, sem artificial e arbitrariamente separar no nível discursivo aquilo que na realidade objetiva está ontologicamente integrado na totalidade social; bem como sua definição concisa e precisa da categoria, terminam adquirindo grande relevância. Primeiro porque, evidentemente, resolve o problema da obscuridade conceitual e, segundo, porque estabelece fundamentalmente uma frontal demarcação com o idealismo.

Para Barata-Moura o que mais importa além de esclarecer o sentido fundamental da categoria práxis é confrontar as visões idealistas: em primeiro lugar se coloca a noção de que fora da práxis ou da prática nenhuma transformação material, objetiva é possível, portanto, nenhuma teoria ou o melhor dos pensamentos nada pode em termos de transformação material, apenas a prática logra realizar transformações materiais. Em segundo lugar vem a demonstração de que a prática,

embora seja uma categoria fundamental para entender a formação humana e a

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posição do ser social, não é ela que cria a materialidade da existência, ela é, antes, algo que pertence a essa materialidade sendo secundária a ela e não uma força a ela externa que a institui.


Que é práxis? o que ela expressa?


O sentido filosófico da práxis enquanto categoria – e aqui já entramos no ponto seguinte – consiste na sua capacidade de definir essencialmente a condição humana: o homem e a mulher são aqueles que se fazem humanamente pela práxis e só pela práxis assim se fazem - o homem/mulher é o ser da práxis. Estamos aqui diante de uma definição essencialmente marx-engelsiana. Por aqui se pode observar o que torna a práxis uma categoria filosófica ao mesmo tempo em que se estabelece seu lugar no sistema categorial marxista. A práxis não só é uma categoria, mas é uma categoria fundamental pois é ela que, em última instância, explica e define as bases do humano social.


a meu ver, decerto polemicamente - um dos contributos maiores de Marx para o patrimônio filosófico da humanidade situa-se precisamente neste quadro duplamente articulado de um reconhecimento do papel central da prática na mediação história do ser pelas coletividades humanas, e de uma sua compreensão essencial como atividade material de transformação (BARATA- MOURA, 1994, p. 88).


A práxis não é só uma palavra que tatua um texto, a práxis se faz categoria filosófica fundamental porque é ela e nenhuma outra que define genericamente o homem/mulher. Não é a religião, não é a linguagem, não é o riso, não é a política, não é a arte, nem mesmo é o trabalho puramente, mas a práxis - e dentro dela também o trabalho - que fundamentalmente define o homem/mulher. O homem/mulher é o ser que se faz a si próprio no metabolismo com o resto da natureza. Esse metabolismo é essencialmente prático, portanto, é por meio da práxis que se realiza o metabolismo com a natureza a partir do qual se erguem outras formas metabólicas sociais também de caráter essencialmente prático.

Por esse caminhar chegamos à definição essencial da categoria práxis conforme Barata-Moura: atividade humana material, transformadora de realidades naturais e ou sociais objetivas. Sem as transformações materiais operadas pela práxis não há desenvolvimento humano; as transformações materiais cujo sujeito é o


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homem/mulher, que começam com o trabalho (práxis produtiva), mas se desenvolvem, complexificam e o ultrapassam, são exatamente as transformações que, vistas em bloco, respondem pela fundação e desenvolvimento do ser social. Se a existência em geral é essencialmente material e sua história se define como um perpétuo processo material de transformações, no plano do ser social dá-se o mesmo, sendo que aqui as transformações são operadas pela práxis.

A dimensão humana, subjetiva, é parte da existência material como totalidade que tudo comporta, nesse sentido a práxis, como elemento integrante dessa totalidade, funda o ser social – o ser social é, portanto, produto das transformações materiais realizadas pela práxis. Daqui desenvolveremos mais adiante algumas linhas sobre o combate de Barata-Moura ao idealismo: fora da materialidade não há existência e fora da práxis não há desenvolvimento humano, portanto, a consciência ou o “mundo das ideias” isolado da materialidade transformadora da práxis é impotente para sustentar a realidade do ser social; o “mundo das ideias” é, antes, produto da existência material, prática, transformadora, embora o pensamento e a consciência sejam ao mesmo tempo ingredientes ativos no processo histórico. Para Barata-Moura (1978, p. 253), “o conhecimento, o pensamento, a teoria, por si sós, não transformam a realidade objetiva. Em si mesmos, carecem de poder material, de eficácia real, para nela determinarem por si próprios alterações objetivas”.


Práxis, trabalho e formação humana


O passo seguinte nesta exposição é a discussão do redimensionamento da posição do trabalho no processo da formação humana. Adianto, para evitar precoces exaltações de ânimos, que não existe aqui nenhuma intenção de negar a posição ontológica do trabalho nem muito menos as contribuições analíticas de Barata-Moura auxiliariam nisso. Então vamos lá ver de que redimensionamento se está a falar e que tipo de auxílio teórico oferecem as contribuições de Barata-Moura para essa discussão.

Uma das contribuições mais importantes que o pensamento crítico, particularmente o marxismo, apresentou à pedagogia foi a reflexão sobre a categoria trabalho mostrando que a educação transcende a escola e defendendo que os processos educativos, que perpassam toda a complexa cadeia das relações sociais,



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estão fundados nos processos materiais através dos quais os indivíduos produzem sua existência.

O marxismo oferece à educação elementos ricos de uma pedagogia que parte de uma fecunda compreensão das linhas gerais e fundamentais da formação humana e culmina numa ambiciosa perspectiva de transformações práticas no horizonte da emancipação humana. Desse modo, as contribuições teóricas marxistas redundam não na negação, obviamente, mas na relativização das preocupações com a escolarização, e terminam revelando as limitações do escolacentrismo estreito.

Nessa perspectiva, o trabalho emerge como a atividade humana material, transformadora que funda e abre o processo histórico, material, prático no qual se dá a feitura do humano. Mas, o trabalho não é só um pilar de sustentação do palco em que se desenrola o drama da formação do humano. Ele é a própria atividade na qual o humano se vai fazendo como tal. Insistimos: o trabalho não é apenas a atividade prática, material que permite ou favorece o exercício pedagógico da feitura do humano como processo externo a ele; o trabalho é em si já um dos momentos em que se exercita essa feitura. Nesse sentido, convidamos o leitor a pensar sobre a elaboração engelsiana:


El trabajo es, dicen los economistas, la fuente de toda riqueza. Y lo es, en efecto, a la par con la naturaleza que se encarga de suministrarle la materia destinada a ser convertida en riqueza por el trabajo. Pero es infinitamente más que eso. El trabajo es la primera condición fundamental de toda la vida humana, hasta tal punto que, en cierto sentido, deberíamos afirmar que el hombre mismo ha sido creado por obra del trabajo (ENGELS, 1961, p. 142).


Quando fala Engels no “hombre mismo creado por obra del trabajo” o que ele nos está a dizer? Suspeito que jamais pensamos sobre essa afirmação de Engels com a radicalidade que ela merece, consequentemente, acredito, nunca extraímos dela todo seu vigor filosófico e pedagógico. Seguramente não era a intenção do autor aventurar-se pelos meandros das questões pedagógicas. Engels não poderia sequer imaginar que aquela sua formulação poderia vir a adquirir quase um século e meio depois a importância pedagógica que lhe estamos a atribuir.

Pois bem, assim como o autor é muitas vezes subestimado, a obra na qual se encontra a afirmação é subestimada, também sua tese, que ora apreciamos, dificilmente tem sua potencialidade crítica devidamente explorada, dela se costuma extrair apenas os elementos mais aparentes que não deixam de ser importantes.

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Engels ao mesmo tempo em que reconhece a grandeza teórica da descoberta dos economistas clássicos, que perspectivaram a positividade do trabalho enquanto força criadora de riqueza, também aponta uma sua limitação e, de imediato, a resolve: o trabalho não cria apenas as riquezas, ele cria o próprio homem. Acontece que a genial proposição de Engels é apanhada, isto é, ela é aproveitada apenas como uma frase que acrescenta outro objeto a mais entre as criações do trabalho, ou seja, agora entre as riquezas produzidas pelo trabalho encontra-se também o próprio homem. Ora, se isso já não era pouco, quer dizer, um intelectual europeu do século XIX, um homem bem situado economicamente, defender o trabalho, atividade de gente subalterna, de homens e mulheres rudes, muitas vezes analfabetos, como a atividade que teria criado a humanidade; então, se essa contribuição já não era pouca, queremos demonstrar ainda que também não era tudo, pois Engels nos favorece ir mais fundo e além desse dado.

O que Engels nos está a dizer é que ao criar o homem, o trabalho realiza, quer dizer, o homem realiza através do seu trabalho a feitura de si mesmo. Mas, o que é criar o homem/mulher? A criação do humano não é simplesmente a posição de um ser que se modelou, que se aprontou e está dado. O fazer-se a si mesmo do homem/mulher envolve necessariamente o conhecer, o descobrir, o eterno fazer, desfazer e, acima de tudo o aprender/ensinar constante, perpétuo. Dessa forma, o pedagógico, o educativo não é apenas aquilo que o trabalho suporta e que lhe é externo e secundário; o pedagógico não é aquilo que apenas se sustenta na práxis produtiva; o educativo, o pedagógico é intrínseco ao trabalho, pertence a ele, é dele um ingrediente essencial. Assim, a elaboração do conhecimento e associado a ela o ensinar e aprender foram desde sempre ao lado da produção dos valores de uso práticas essenciais para a formação e desenvolvimento do humano.

Desse modo, numa interlocução mais profunda com Engels diríamos que o trabalho não é só a fundação do ser social, quer dizer, ele não é apenas a plataforma sobre a qual se ergue a novidade do social. O trabalho é a modalidade de práxis na qual e a partir da qual se faz o humano. Mas, a radicalidade crítica dessa construção pedagógica de Engels reside na ideia de que esse fazer humano não se resolve no fato de que o homem/mulher se tornou capaz de produzir conscientemente seus meios de vida – até porque esse tornar-se consciente não é possível sem a prática do ensinar/aprender.


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A radicalidade da construção engelsiana reside, por fim, em nos permitir pensar o homem/mulher como ser que praticamente se faz e só se faz praticamente e que esse exercício prático envolve não só o produzir consciente, mas também o aprender e ensinar como práticas tão essenciais como as práticas de transformação da natureza com objetivo de produzir os valores de uso necessários para a sobrevivência.

A partir de Engels podemos – devemos – pensar materialista e dialeticamente a posição do humano necessariamente como um processo de formação. Para a posição e desenvolvimento do ser social foi tão essencial quanto a prática produtiva o ensinar e aprender. Resumidamente, é a categoria práxis que efetivamente alcança o processo da formação humana na sua totalidade complexa, pois envolve o transformar prático da natureza e o construir prático da socialidade humana que é, essencialmente, educativo.

Essa possibilidade de desenvolver uma proposição pedagógica de tamanho relevo a partir das elaborações engelsianas do texto de 1876 certamente não estava entre as intenções do autor, contudo, acreditamos ser um caminho de reflexão extremamente fértil e pertinente.

Essa compreensão do trabalho, como atividade geradora do humano, portanto, carregada de dimensão pedagógica que o marxismo propaga e acaba penetrando na Pedagogia é de um significado teórico incalculável. É daí que advém o postulado do princípio educativo do trabalho, talvez a maior contribuição do marxismo para a Pedagogia. Para Marx, assim como para Engels, o homem/mulher transforma-se à medida que transforma a natureza com seu trabalho. Lukács da mesma forma segue expondo a capacidade de o trabalho transformar o ser do homem/mulher – o trabalho é a atividade vital, fundante do ser social.

A rica reflexão marxista penetra na pedagogia trazendo basicamente duas contribuições: a noção materialista do trabalho como atividade fundante do ser social; e o caráter educativo do trabalho. Essa rica contribuição pedagógica, todavia, foi-se, pouco a pouco reduzindo a uma espécie de insígnia e foi perdendo a capacidade de alcançar como um todo o complexo processo da formação humana. Pouco a pouco a rica contribuição marxista foi sendo reduzida de tal maneira que o entendimento do trabalho como atividade vital, fundante, se foi transformando numa ideia rígida e reducionista em que o humano aparece como produto que se obtém mesmo nos limites da práxis produtiva, no âmbito do trabalho e não do metabolismo social como


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totalidade complexa posta e dinamizada pela práxis, isto é, pelas diferentes maneiras práticas através das quais o homem/mulher transforma realidades naturais e sociais. Ora, em Marx, Engels ou mesmo Lukács o trabalho – ainda que seja uma prática produtiva portadora de caráter educativo - nunca foi visto como atividade única, suficiente para dar conta do rico e complexo processo da formação humana, logo, o trabalho sozinho não é uma categoria capaz de explicar o humano social em toda sua complexidade. O trabalho é a práxis ontologicamente primeira, isto é, o trabalho é a primeira resposta humana na direção da defesa da vida e da construção da socialidade humana, mas o trabalho, como metabolismo prático, material com a natureza sustenta o metabolismo social realizado por outras formas de práxis que

estão fundadas na práxis produtiva, mas que não são trabalho.

Esse é o ponto em que pretendíamos chegar: a reflexão marxista sobre o trabalho que turbinou a Pedagogia tornou-se refém de uma noção parcial sobre o trabalho. Essa noção parcial, esse problema teórico foi resultado justamente da não consideração da práxis como categoria filosófica que comporta o trabalho, a práxis produtiva, mas que alcança todo o metabolismo natural e social no qual se dá a formação humana como totalidade complexa.

Os estudos de Barata-Moura sobre a práxis nos ajudam a compreender que trabalho é uma forma de práxis, mas práxis não se reduz a trabalho e que o fazer-se humano do homem/mulher não se realiza apenas na esfera restrita das transformações da natureza em busca da produção material da vida. Nesse sentido Konder também nos adverte afirmando que o “mal-entendido que ocasionou graves prejuízos à compreensão do conceito de práxis elaborado por Marx se encontra na redução da práxis ao trabalho” (KONDER, 1992, p. 125).


Práxis e idealismo


Caminhamos agora para o tratamento do último dos pontos elencados, isto é, aquele que concerne ao exame da relação entre práxis e idealismo. A bem da verdade, embora os três livros de Barata-Moura mencionados desenvolvam reflexões em torno da práxis, isto é, coloquem a categoria práxis no centro do debate, para o filósofo português a pergunta principal não é sobre a práxis, a questão está “essencialmente na órbita de um questionário em torno do estatuto do ser [em torno



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daquilo que é] e das diferentes maneiras de lhe responder” (BARATA-MOURA, 1986b, p. 13).

A preocupação primeira de Barata-Moura é submeter a um exame radical o idealismo filosófico, particularmente sua penetração em círculos marxistas e esse exame passa pelo tratamento da categoria práxis.

Nesse sentido, convém observar que, se o apagamento da práxis enquanto categoria filosófica, como no caso das pesquisas em educação, conforme já apontamos, resulta num grave problema, por outro lado, a reflexão marxista não recupera vigor com a simples valoração da práxis, pois essa valoração pode acontecer no âmbito de uma perspectiva idealista.

Como é sabido, a primeira grande tarefa que Marx e Engels se puseram ainda na sua juventude, tarefa essa cuja posição e enfrentamento serviu para uni-los e estabelecer entre eles uma profunda irmandade intelectual, foi a crítica ao idealismo filosófico que conduziu, como ato contínuo, após se ter apoiado nele, à crítica ao materialismo de Feuerbach e culminou na fundação do materialismo dialético.

Algumas décadas depois, numa nova etapa dos embates teóricos e práticos de Engels e Marx aquele foi convocado a combater os avanços do idealismo no meio do movimento operário que vinha se dando através das ideias do doutor Dühring5. Algumas décadas depois, já no século XX, Lenin colocou-se tarefa semelhante ao escrever seu Materialismo e empiriocriticismo para combater o avanço da influência das ideais de Ernst Mach entre os revolucionários russos.

De certa maneira, o que está em jogo para Barata-Moura ao examinar a categoria práxis é exatamente enfrentar o idealismo como forte expressão sobrevivente nas fileiras do marxismo, nomeadamente sob a forma da praxificação do ser.

Antes, porém, de entrarmos no exame da crítica de Barata-Moura à praxificação do ser, importa estabelecer, ainda que de modo resumido, sua visão sobre o idealismo. Normalmente o idealismo é definido como a anteposição ou sobreposição da consciência frente ao ser ou, dizendo de outra maneira, o idealismo


5 O Anti-Düring - la revolución de la ciencia por el señor Eugen Dühring, publicado como livro em 1878, foi divulgado na forma de artigos no Vorwärts, órgão central da social democracia alemã entre 19 de janeiro de 1877 e 7 de julho de 1878. Depois de muita insistência de Liebknecht, e verificar a crescente influência do idealismo e do revisionismo de Dühring entre militantes e dirigentes da social democracia alemã, Engels se deu conta do tamanho do problema e aceitou o desafio de confrontar as teses do senhor Dühring. Com um nova tradução de Barata-Moura as Edições Avante relançaram o Anti-Düring em 2020, ano em que se comemorou 2 séculos do nascimento de Engels.

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significa sublimar a dimensão material da existência considerando-a secundária em relação à consciência. Para Barata-Moura, no entanto, idealismo é toda forma de condicionar a existência material a qualquer instância subjetiva, não necessariamente a consciência. Dentro dessa configuração do idealismo o ser só é efetivamente quando representado na consciência, quando reconhecido linguisticamente (linguistificação do ser) ou quando criado pela práxis daí a consideração da praxificação do ser. Conforme aponta Barata-Moura (1986b, p. 13), enquanto:

o materialismo reconhece e funda a materialidade do ser, a autonomia ontológica da sua materialidade e da sua determinação, o idealismo caracteriza-se fundamentalmente pela negação imediata ou remota — mas sempre efectiva — da independência e/ou autofundação desse estatuto, mediante, designadamente, a multiplicação de todo um conjunto de instâncias de matriz subjectiva tendentes a funcionarem como suas radicais (e, em geral, ocultas, quando não mesmo dissimuladas) condições de possibilidade.


Para não tornarmos essa exposição demasiadamente longa, vamos mencionar apenas as referências críticas de Barata-Moura a alguns importantes autores marxistas enquadrados na designação idealista acima mencionada.

O primeiro que podemos mencionar é Althusser que, para Barata-Moura, não reconhece o caráter essencialmente material, transformador da práxis, isto é, promove a desmaterialização da práxis. O grande problema de Althusser é considerar o pensar, o filosofar como um trabalho, como uma práxis. Para Althusser,


Aun las filosofías especulativas, aun las filosofías que se contentan con “interpretar el mundo” son activas y prácticas. Tienen por fin (disimulado) actuar sobre el mundo, sobre el conjunto de las prácticas sociales, sobre sus dominios y su “jerarquía”, no para otra cosa que para “encantarlos”, consagrarlos o inclinarlos, a fin de preservar o reformar “el estado de cosas existente” contra las revoluciones sociales, políticas, ideológicas o los contragolpes ideológicos de los grandes descubrimientos científicos.

(ALTHUSSER, 1974, p. 45).


Ao conceber a teoria, a filosofia ou o pensar como prática, Althusser adota uma perspectiva filosófica contrária aos supostos marx-engelsianos exatamente porque assim passa a acreditar que na dimensão intelectual estaria dada a possibilidade das transformações materiais, objetivas.

Esse problema, contudo, não é exclusivo de Althusser, outros autores, mesmo grandes expoentes do marxismo incorrem, segundo Barata-Moura (1978, p. 257), neste mesmo erro:


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György Lukács6 nos fala de uma ‘teoria-prática’, Herbert Marcuse, nos anos 30, igualmente aponta para os efeitos salvíficos de uma teoria que contém em si a ‘prática’, para já não nos referirmos a toda uma plêiade numerosa e variada de revisionistas e ‘marxólogos’ de todas as cores e paladares que amiúde gostam de perorar, à mistura com as tradicionais bujardas sobre o materialismo dialético e o socialismo real, sobre a ‘prática-crítica’, a ‘teoria-emancipadora’, a ‘práxis- ilustrada’ (sic!), etc.

Se em Althusser a crítica de Barata-Moura destaca basicamente a noção equivocada de que a atividade teórica poderia cumprir finalidades que só a práxis pode realizar, pois só esta pode efetivamente transformar realidades materiais, em Gramsci o problema do materialismo adquire maior complexidade.

A análise de Barata-Moura aponta que Gramsci sempre guardou com o materialismo relação complicada. Para Barata-Moura, Gramsci nunca chegou a resolver a contento sua perspectiva filosófica no sentido de assumir plenamente uma concepção materialista dialética. E, diferentemente de algumas interpretações, para Barata-Moura o idealismo de Gramsci não era coisa de juventude, ele segue como registro mesmo na sua obra magana Os Cadernos do cárcere.

Para o jovem Gramsci a perspectiva de Marx e Engels não representava uma ruptura com o idealismo, para ele “a filosofia da práxis [seria não mais que] uma reforma e um desenvolvimento do hegelianismo” (GRAMSCI, apud, LOSURDO 2006, p. 307). A negatividade de Gramsci em relação ao materialismo é muito forte na fase juvenil como se verifica num texto de 19187 quando afirma que “o marxismo funda-se no idealismo filosófico” e que:


“Marx, por não ser filósofo de profissão, às vezes dormitava e permitia elementos de positivismo em seu pensar”; e completa afirmando ainda que “o essencial da doutrina dele [Marx] está na dependência do idealismo filosófico, e que no desenvolvimento ulterior desta filosofia está a corrente ideal” (GRAMSCI apud, BARATA-MOURA, 2018, p 96).


Todavia, como já foi indicado, o idealismo de Gramsci não irá desaparecer com a passagem da fase juvenil, ele persiste nos Cadernos onde se encontra claramente


6 Cabe alertar que o Lukács a que Barata-Moura se refere é o jovem pensador dos tempos da obra

História e consciência de classe.

7 Trata-se do artigo intitulado Misteri della cultura e dela poesia, publicado em 19 de outubro de 1918 no Il Grido del Popolo periódico com o qual Gramsci colaborou por anos e do qual foi também redator chefe entre agosto de 1917 e outubro de 1918, ano de seu fechamento.

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uma visão que indaga incrédula quanto a possibilidade da existência da realidade objetiva, material independente do sujeito:


Sin el hombre, ¿qué significaría la realidad del universo? Toda la ciencia está ligada a las necesidades, a la vida, a la actividad del hombre. Sin la actividad del hombre, creadora de todos los valores, incluso científicos, ¿qué sería la “objetividad”? Un caos, o sea, nada, el vacío, si es que así puede decirse, porque realmente, si se imagina que no existe el hombre, no se puede imaginar la lengua ni el pensamiento. Para la filosofía de la praxis el ser no puede ser disociado del pensar, el hombre de la naturaleza, la actividad de la materia, el sujeto del objeto; si se hace esta disociación se cae en una de tantas formas de religión o en la abstracción sin sentido. (GRAMSCI, 1986, p. 309, t 4, § 52 bis).


Para Gramsci a afirmação da objetividade da realidade material como coisa anterior e independente do sujeito soava como uma metafísica semelhante à religião e era, portanto, tão inaceitável quanto:


El sentido común afirma la objetividad de lo real en cuanto que la realidad, el mundo, ha sido creado por dios independientemente del hombre, antes del hombre; es por lo tanto expresión de la concepción mitológica del mundo; por lo demás, el sentido común, al describir esta objetividad, cae en los errores más groseros” (GRAMSCI, 1986, p. 308, t 4, § 52 bis).


Estamos nesse ponto da exposição unicamente tentando demonstrar que a visão de mundo de Gramsci era também na altura dos Cadernos idealista. Não é parte dos objetivos deste texto discutir a relação entre o idealismo filosófico e a teoria política gramsciana; o exame dos impactos do idealismo sobre as formulações políticas de Gramsci se positivos, se negativos é, certamente, um grande desafio que ainda merece atenção8. Voltando ao exercício que vinha se desenrolando apresentamos mais uma manifestação gramsciana dos Cadernos em que se nega a objetividade do real fora de condicionamentos subjetivos:



8 Podemos mencionar aqui dois caminhos interpretativos, dessa questão. Um deles é o que observa problemas nas elaborações políticas de Gramsci advindos da sua ontologia idealista; o outro é o que aponta consequências positivas geradas pelo idealismo sobre as formulações políticas gramscianas. O primeira pode ser representado por Barata-Moura (1991), e o segundo por C. N. Coutinho (2011). Enquanto o primeiro constata a persistência de traços idealistas que se mostram prejudiciais por exemplo no caso da elaboração do conceito de Bloco histórico, a despeito das boas intenções de se combater o mecanicismo e o determinismo; o segundo identifica uma relação positiva entre a ideia de universal subjetivo e o conceito de hegemonia - para Coutinho o idealismo Gramsciano quando aplicado à ordem social histórica converte-se em ricas e férteis análises.

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Objetivo significa siempre ‘humanamente objetivo’, lo que puede corresponder exactamente a ‘históricamente subjetivo’, o sea que objetivo significaría ‘universal subjetivo’. El hombre conoce objetivamente en cuanto que el conocimiento es real para todo el género humano históricamente unificado en un sistema cultural unitario;” (GRAMSCI, 1986, p. 276, t 4, § 32).


Conforme aponta Barata-Moura, o idealismo de Gramsci não se define apenas e simplesmente pela defesa da antecedência da consciência perante a objetividade do real. Em Gramsci também a práxis aparece como dimensão subjetiva que ontologicamente condiciona a objetividade do real. Em Gramsci não se tem, de acordo com Barata-Moura, uma completa e absoluta negação da objetividade primeira do real, mas sim a ideia de que sem o sujeito ou fora do contexto sócio histórico tudo é caos, é nada, é vazio, não tem sentido. Para o marxista italiano:


El concepto de ‘objetivo’ del materialismo metafísico parece querer significar una objetividad que existe incluso fuera del hombre, pero cuando se afirma que una realidad existiría incluso aunque no existiese el hombre, o se hace una metáfora o se cae en una forma de misticismo. Nosotros conocemos la realidad sólo en relación al hombre, y puesto que el hombre es devenir histórico también el conocimiento y la realidad son un devenir, también la objetividad es un devenir, etcétera. (GRAMSCI, 1986, p.277, T4, § 32 bis).


A praxificação do ser


Dando continuidade ao exame da relação práxis e idealismo veremos o quanto a praxificação do ser se revela como uma expressão idealista. A praxificação do ser se caracteriza como posição filosófica na qual a categoria práxis adquire grande importância e centralidade sendo elevada ao patamar de uma atividade demiúrgica, isto é, convertendo-se na forma através da qual o sujeito cria a realidade objetiva.

Na praxificação do ser a práxis converte-se na categoria que dá sustentação ao idealismo à medida que define a ação humana como a condição da efetividade ontológica do ser, ou seja, aqui a práxis cumpre o papel que no idealismo tradicional cumpre a consciência.

É oportuno observar que se trata de um idealismo de outro tipo, aliás, muito diferente do idealismo tradicional, posto que na praxificação do ser o que condiciona a objetividade do ser em geral de qualquer maneira é a atividade humana objetiva, prática e não a mera consciência. Essa consideração pode ser importante até mesmo



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para se pensar sobre desdobramentos do idealismo filosófico de Gramsci em relação às suas ideias políticas, mas isso é assunto para outras investidas.

Voltando ao ponto, conforme aponta Barata-Moura, a filosofia de Heidegger e o pensamento de Gramsci e também o do jovem Lukács brotam do mesmo contexto histórico e guardam muitas semelhanças, especialmente no que concerne aos problemas da praxificação do ser. Para Heidegger as coisas são ou adquirem sentido apenas quando o ente humano as manipula, quando delas se utilizam: “as coisas não são materialmente; são apenas instrumento de uma acção” (BARATA-MOURA, 1986b, p. 66).

As posições de Heidegger a respeito do materialismo e da práxis de fato se assemelham com as elaborações de Gramsci, conforme o já exposto, assim como se assemelham também às elaborações do jovem Lukács9. A separação radical entre natureza e sociedade e a subsunção da primeira à segunda, bem como a consequente ideia de que a natureza só adquire sentido e importância quando entra no circuito das relações sociais é bem uma demonstração disso - no jovem Lukács a realidade é reduzida ao metabolismo social e a categoria totalidade, tão importante para a dialética, reduz-se a totalidade social. Ideia semelhante ao que propõe o marxista italiano para quem “a história (...) em sentido forte, ou é humana ou então não é” (BARATA-MOURA, 1986b, p. 53).

De fato, na sua História e consciência de classe, o jovem Lukács destaca e valoriza a categoria práxis10, porém, aqui a práxis emerge como a instância subjetiva que funciona como única condição através da qual as coisas podem adquirir estatuto de dado objetivo, ontológico. Mas isso não é tudo, a práxis mesma não é pensada como ação humana material, transformadora, separada da consciência, ela é ação


9 “Os itinerários temáticos do jovem Lukács e de Heidegger cruzaram-se efetivamente sobre este fundo ideológico difuso (gnosiológica kantiana e ontológica hegeliana) onde, acompanhando acentuações diversas de uma formação espiritual que também encerra zonas de convergência, se perfila ora mais nitidamente a referência hegeliana ora o contexto aporético da fenomenologia de Husserl, filtrados e completados por uma comum vivência da Lebensphilosophie” (BARATA-MOURA 1986b, p. 71-2).

10 O autor fez sua autocrítica reconhecendo problemas no seu marxismo juvenil, inclusive no que

concerne à concepção de práxis. Reconhece Lukács (1970, p. 15) que, apesar da positividade do confronto ao caráter contemplativo do pensamento burguês, “la concepción de la praxis revolucionaria de este libro es algo excesiva, lo que estaba de acuerdo con el utopísmo mesiánico del comunismo de izquierda de entonces, pero no con la auténtica- teoría de Marx”. Apresentando uma posição ainda mais contundente ele reconhece: “no tuve en cuenta que sin una base en la praxis real, en el trabajo como su forma originaria y su modelo, la exaltación del concepto de praxis se convierte necesariamente en la exaltación de una contemplación idealista”.

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que funciona como uma espécie de extensão da consciência, é como a realização da consciência materializada.

O exame crítico dos autores acima feito por Barata-Moura de modo rigoroso e independente concentrou-se num aspecto principal: a relação entre práxis e idealismo, portanto, não pretende fazer um julgamento completo e definitivo de suas obras. Porém, representa uma enorme contribuição para a reflexão em busca do fortalecimento do caráter crítico e autocrítico das teorias marxistas.

Esta exposição, por sua vez, modestamente pretendeu destacar apenas alguns aspectos do rico pensamento de Barata-Moura. E, como nesta específica ocasião, trata-se de uma homenagem proposta por um periódico vinculado ao setor da pesquisa em educação, nomeadamente da pesquisa em trabalho e educação, resumiu-se este texto à demonstração, ainda que de modo muito abreviado, do quanto resultam importantes para a educação as reflexões do grande filósofo.


Referências


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