V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X
Maria Carolina de Andrade2 Vânia Cardoso da Motta3
“Não pense em crise, trabalhe” foi a frase espalhada pela cidade de Florianópolis em 2016 pelo então presidente golpista Michel Temer, que traduzia muito bem o projeto de sociedade em curso. Argumentamos que a crise orgânica instalada no Brasil em 2013 fez imperioso ajustes estruturais e superestruturais, expressos em um conjunto de contrarreformas que operaram, concretamente, uma nova etapa da reforma neoliberal. Demonstramos que o conjunto de ataques à educação, com foco no Novo Ensino Médio, inauguraram uma nova fase do empresariamento da educação de novo tipo cujos desdobramentos são inaceitáveis.
“No pienses en crisis, trabaje”, fue la frase difundida en la ciudad de Florianópolis en 2016 por el entonces presidente golpista Michel Temer, que traducía muy bien el proyecto de sociedad en marcha. Argumentamos que la crisis orgánica instalada en Brasil en 2013 hizo imperativos ajustes estructurales y superestructurales, expresados en un conjunto de contrarreformas que operaron, concretamente, una nueva etapa de reforma neoliberal. Demostramos que el conjunto de ataques a la educación, con foco en la Nueva Escuela Secundaria, inauguró una nueva etapa de emprendimiento en educación de nuevo tipo cuyas consecuencias son inaceptables. Palabras clave: nueva escuela secundaria; Empresariamento da educación de nuevo tipo; crisis orgánica.
"Don't think about a crisis, just work" was the phrase spread around the city of Florianopolis in 2016 by the then coup president Michel Temer, which translated very well the ongoing society project. We argue that the organic crisis installed in Brazil in 2013 made imperative structural and superstructural adjustments, expressed in a set of counter-reforms that operated, concretely, a new stage of neoliberal reform. We demonstrate that the set of attacks on education, with a focus on the New Secondary School, inaugurated a new phase of entrepreneurship in education of a new type whose consequences are unacceptable.
1 Artigo recebido em 27/02/2023. Primeira avaliação em 15/03/2023. Segunda avaliação em 24/03/2023. Aprovado em 03/04/2023. Publicado em 13/04/2023.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44/57573.
2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Docente na rede privada de educação do Rio de Janeiro.
E-mail: carolina.andradep@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7385344808311775. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2946-5130.
3 Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Serviço Social pela mesma universidade. E-mail: vaniacmotta@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9019395807508288. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7946-928X.
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São tempos árduos para todos aqueles que defendem uma educação escolar pública, universal, laica, gratuita e de qualidade. As bandeiras de luta no campo educacional, quase óbvias no período de redemocratização, foram apropriadas e ressignificadas de modo quase inacreditável nos últimos trinta anos, de modo que não basta mais fincar palavras de ordem. É imperativo “defender o óbvio”, parafraseando Brecht, para deixar claro que nos posicionamos do lado diametralmente oposto da trincheira em que se encontram aqueles que, aparentemente, defendem o mesmo que nós.
“Aqueles” a quem nos referimos se organizam naquilo que chamamos “empresariado educacional”, organizado, majoritariamente, no assim chamado “Movimento Todos Pela Educação” (TPE). O TPE personifica a apropriação e a ressignificação de nossas bandeiras de luta das décadas de 1980 e 1990, quando assumia a máxima importância reconstruir o caráter público e a referência social de qualidade educacional, que haviam sido execradas pela ditadura empresarial militar.
A correlação de forças negativa do período ditatorial, que em nada favorecia qualquer projeto educacional do tipo “republicano liberal clássico” (voltaremos ao tema adiante) foi rapidamente substituída por uma nova correlação negativa, pendente aos privatistas da educação. Como demonstram vários autores, reunidos no trabalho de Andrade (2020), a disputa de projetos em torno da Constituição de 1988 conseguiu garantir alguns aspectos importantes que, todavia, tiveram seu caráter público diluído na ambígua e minimalista Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Nesse sentido, a despeito do esforço organizado dos profissionais da educação, refletido, por exemplo, nas Conferências Nacionais de Educação, a disputa entre as forças foi enormemente favorecida pelo tsunami neoliberal que alagou o Brasil mormente a partir da eleição de Fernando Henrique Cardoso.
Conforme demonstram autores como Castelo (2011), o bloco histórico neoliberal se consolida como resposta da classe dominante à crise orgânica do bloco fordista-keynesiano. No plano mundial, as classes dominantes foram incapazes de responder ao esgotamento da onda longa expansiva, mantendo as concessões arrancadas pelos dominados no contexto da real possibilidade de uma revolução socialista. De modo perigosamente sucinto, podemos dizer que a crise que afetava o Brasil atingiu o auge em 1982, arrastou-se pelo período da chamada transição “lenta,
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segura e gradual” e teve a “solução” neoliberal consolidada pela contrarreforma do Estado de 1995.
Defendemos em trabalhos anteriores (ANDRADE, 2020) que o processo de consolidação do bloco histórico neoliberal no Brasil abre uma nova fase da educação brasileira que chamamos de empresariamento da educação de novo tipo. Isso porque o conjunto das novas legislações vigentes (amplamente respaldadas pelos organismos internacionais), pari passu a inauguração de um novo nível de consciência política do empresariado brasileiro (BIANCHI, 2001), conferem as condições materiais necessárias a dois processos importantes na educação brasileira.
O primeiro deles é a elevação da mercantilização e da mercadorização da educação - tendências históricas-estruturais do capitalismo - a novos patamares e escalas de concentração. O segundo é o que denominamos de subsunção da educação ao empresariado, um processo característico do bloco histórico neoliberal através do qual uma parcela específica do empresariado, o empresariado educacional, assume e mantém a hegemonia, na acepção gramsciana do termo, no campo da educação escolar. De modo geral, o empresariamento da educação de novo tipo combina esses três processos operando na mesma direção, qual seja, a de cimentar as mudanças estruturais e superestruturais impostas pelos novos padrões de acumulação e sociabilidade.
A crise que se abre no Brasil em 2013 impõe novas necessidades. Buscamos demonstrar ao longo desse trabalho que os ataques que a educação brasileira sofreu ao longo da última década conduzem o empresariamento da educação de novo tipo, mais uma vez, a um novo patamar, cumprindo a funcionalidade de (re)soldagem dos nexos entre estrutura e superestrutura, então distendidos pela crise. Noutros termos, demonstramos que as medidas de contrarreformas na educação, especialmente o Novo Ensino Médio (NEM), integram logicamente um conjunto maior de medidas de contrarreforma operadas com vistas a restabelecer as condições requeridas pela acumulação capitalista em escala ampliada.
Para tal, a seguir, apresentamos uma primeira parte de cunho mormente teórico, no qual discorremos sobre os conceitos de crise e empresariamento da educação de novo tipo, clareando suas dimensões. Na segunda parte, fazemos uma retrospectiva do processo de produção, aprovação e implementação das medidas de contrarreforma na educação, demonstrando algumas de suas fragilidades e incoerências internas. Na terceira parte demonstramos sua integração lógica ao
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conjunto maior de contrarreformas operadas sobretudo a partir do golpe de 2016. Por fim, defendemos que somente a radicalização da utopia pode nos conduzir a um caminho diferente daquele que desemboca no precipício.
Existem inúmeras explicações para as crises capitalistas: para suas causas, desdobramentos e saídas. Ainda no século XIX, Marx e Engels demonstraram o absurdo de algumas explicações para as crises capitalistas, a exemplo daquelas propagadas por Thomas Malthus ou mesmo por David Ricardo, que explicava quedas de lucro por problemas distributivos. Se é fato que hoje as crises apresentam complexidade crescente, também o é, a nosso ver, que em Marx e Engels é possível encontrar as bases do entendimento dos fenômenos atuais, guardando-se o respeito aos distintos níveis de abstração presentes em suas análises.
Além do mais, tal afirmação não elide, de modo algum, a importância de trabalhos posteriores para entendermos a realidade hodierna, a exemplo de autores como Mandel e Mészaros. Enfim, diante da imensidão de obras a respeito das crises, no que tange à base deixada por Marx e Engels, optamos por, no escopo deste texto, sinalizar o que a crise capitalista não é, haja vista a existência de uma gama de compreensões equivocadas sobre os trabalhos supracitados.
A crise estrutural capitalista não é uma crise permanente. Dizer que o capitalismo produz suas próprias crises, ou que seu funcionamento caminha para crises não significa dizer, nem poderia, que o capitalismo está fadado ao fim, ou que está sempre em crise. Esse pensamento é bastante presente em análises de crises baseadas, por exemplo, na “Lei tendencial da queda na taxa de lucro”, como se houvesse uma relação mecânica e causal entre desenvolvimento capitalista, aumento de produtividade e queda da massa de lucro; como se a crise fosse precisamente a manifestação dessa lei ou, ainda, como se a base do lucro estivesse em algum outro lugar que não a exploração da força de trabalho. No escopo do texto vale lembrar que o conteúdo de um fenômeno não pode ser a causa de si mesmo; que a lei tendencial da queda na taxa de lucro é a própria lei geral da acumulação capitalista com determinações mais concretas, de modo que não pode ser ela mesma o “problema” do capitalismo. A crise é, precisamente, a melhor contratendência que o capitalismo
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pode operar às suas próprias leis. Contratendências são operadas “contra as leis de tendência” de forma cíclica, e não contra suas crises.
Um segundo ponto a se destacar é o de que nem toda crise é uma crise econômica. Nesse sentido, optamos por conferir maior espaço às análises de Antonio Gramsci sobre as crises, haja vista que o autor ainda possui menos espaço na literatura a respeito do tema “crises e educação”.
Gramsci salienta o caráter complexo das crises e o perigo da sua análise fenomenológica, que anuvia as diferenças entre manifestações e elementos determinantes. Para o autor, a crise é um processo de “muitas manifestações e no qual causas e efeitos se interligam e se sobrepõem. Simplificar significa desnaturar e falsear” (GRAMSCI, 2007, p. 316). Outrossim, fazia-se necessário distinguir movimentos orgânicos, que são relativamente permanentes, dos movimentos conjunturais, isto é, ocasionais ou mesmo acidentais, onde não reside amplo significado histórico.
Para o autor, a configuração inédita que o capitalismo assumiu no limiar do século XX o elevara a um novo patamar, impactando radicalmente a natureza e os desdobramentos das crises. “Controlar esta crise é impossível, precisamente pela sua amplitude e profundidade, que atingiram tal ponto que a quantidade se torna qualidade, isto é, trata-se de crise orgânica e não mais de conjuntura” (GRAMSCI, 1999, p. 447).
Deve-se ter claro que a crise orgânica é mais do que uma grave crise econômica; ela apresenta uma face política-ideológica que se manifesta como “crise de hegemonia”. Em miúdos, o conteúdo da crise orgânica é a crise de hegemonia da classe dirigente, que não se reduz a um problema político entre classe dominante e a classe dominada, embora o envolva. De nossa ótica, Gramsci está chamando atenção para o perigo que constitui a descolagem das massas do partido tradicional, sem afirmar que, por isso, as massas se organizarão em um efetivo movimento contra hegemônico. Interessa-o as consequências: “O problema é este: uma ruptura tão grave entre massas populares e ideologias dominantes, como a que se verificou no pós-guerra, pode ser ‘sanada’ com o puro exercício da força que impede as novas ideologias de se imporem? (GRAMSCI, 2007, p. 184). Prossegue:
Se a classe dominante perde o consenso, ou seja, não é mais "dirigente", mas unicamente "dominante", detentora da pura força coercitiva, isto significa exatamente que as grandes massas se destacaram das ideologias tradicionais, não acreditam mais no que
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antes acreditavam, etc. A crise consiste justamente no fato de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste interregno, verificam-se os fenômenos patológicos mais variados (GRAMSCI, 2007, p. 184).
Entendemos que, na crise orgânica, há um problema entre classes, mas também intraclasses; de um lado, trabalhadores enfrentam problemas de organização que os tornam “incapazes de organizar em seu proveito esta desordem de fato” (GRAMSCI, 2007, p. 265); de outro, a classe dominante, em seu interior, tem dificuldades de reestabelecer a mínima homogeneidade necessária para redefinir a direção a seguir, abrindo o caminho para pensamentos que contém “perigosos fermentos ideológicos, impedem a formação de uma unidade ético-política na classe dirigente, [e] ameaçam adiar para o infinito a solução do problema de 'autoridade"' (GRAMSCI, 1999, p. 323), conduzindo à imposição de soluções à força. Parece ser neste sentido que Gramsci afirmou que, entre a morte do velho e o nascimento do novo, nascem os monstros.
Precisamente nessa linha entendemos que a educação escolar ocupa um lugar de suma importância, especialmente nos momentos de crise. Isso porque a educação escolar é um dos elementos de soldagem, de articulação entre estrutura e superestrutura. Nesse sentido, a educação escolar não é apenas elemento da estrutura ou da superestrutura, mas de ambas as esferas, contribuindo para o compasso e organicidade entre elas. Em termos mais concretos, a educação integra historicamente a acumulação capitalista, seja adequando a classe trabalhadora à estrutura produtiva de forma a potencializar a extração de mais-valor; seja contribuindo para manutenção da coesão social, apassivando a parcela da classe trabalhadora que integra o exército de reserva e conformando a classe de que esse é o único modo de reprodução social possível, ou, ainda, sendo ela mesma tornada como mercadoria comercializada no mercado.
Em trabalhos anteriores (ANDRADE, 2020) argumentamos que a mercantilização da educação é um processo tendencial-histórico do capital, haja vista sua capacidade e necessidade de subsumir todas as formas de existência e manifestação da vida à forma e à lógica da mercadoria. Ao tornar-se a forma dominante do metabolismo social, a forma-mercadoria penetra o conjunto das manifestações vitais remodelando, à sua imagem, todas as formas de relação humana. Por isso, é a mercadoria o problema central e estrutural que influencia decisivamente todas as formas de produção e reprodução da vida.
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A subsunção do trabalho ao capital é um aspecto central do processo de generalização da forma-mercadoria, dado que a força de trabalho aparece para o trabalhador, ela mesma, como uma mercadoria a ser vendida. Nesse âmago, não apenas o dispêndio da força de trabalho continua a ser o determinante do valor oculto pela forma–mercadoria, como também a negação da troca de equivalentes, impressa pela troca entre capital e trabalho, é fortemente velada pela forma-salário. Oculta-se, assim, que a exploração da força de trabalho é precisamente o lócus de origem de todo valor novo que alimenta a reprodução ampliada do capital.
A subsunção do trabalho ao capital abarca a racionalização da produção e a especialização da força de trabalho, para os quais a adaptação física, cognitiva e psíquica dos trabalhadores é imperiosa. Nesse processo, algumas das qualidades psicológicas do trabalhador são separadas do conjunto de sua personalidade e objetivamente colocadas em oposição à ela como coisa – uma mercadoria que pode ser adquirida via treinamento, disciplina, entre outros.
Na sociedade capitalista, portanto, a educação escolar está intimamente vinculada a essa adaptação. Deve-se lembrar que a escola – criação da sociedade burguesa – nasce atravessada por um corte de classe, com explícito objetivo de conformar o cidadão produtivo, promovendo a lapidação da capacidade de trabalho e transformando-a em força de trabalho. A educação escolar subjugada ao capital, além de fornecer pessoal devidamente treinado à maquinaria, torna-se mais um dos meios de disseminação da ideologia burguesa, induzindo tanto a perpetuação da exploração do trabalho como mercadoria quanto sua aceitação passiva. Em suma, serve à acumulação capitalista como meio de potencialização da produção de mais-valor e de apassivamento, logrando êxito em fazer com que a classe trabalhadora comungue de sua ideologia.
Nessa lógica, entendemos que a educação escolar passou a ser elemento constitutivo do valor da força de trabalho, que varia com o valor dos elementos necessários às suas produção e reprodução, as quais, nesse caso, podem ser também de ordem histórica e moral. Em um nível de abstração bastante elevado, podemos considerar que, sendo a educação elemento indispensável à produção da mercadoria força de trabalho, seus custos “são incluídos no valor total gasto em sua produção” e “variam de acordo com o caráter mais ou menos complexo da força de trabalho” (MARX, 2013, p. 319), já que esse caráter incide também sobre o tempo necessário a tal formação.
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Assim, anuvia-se a finalidade social do processo educativo, da mesma maneira que a forma-mercadoria oculta que a troca é essencialmente uma relação entre atividades humanas. Noutros termos, a subsunção da força de trabalho à forma- mercadoria induz sua reificação, oculta o caráter humano e social de sua produção, e abrange também seus processos subjacentes. Nesse meandro a educação, que é uma forma de reprodução social da existência, construída e operada diária e coletivamente, aparece aos seres humanos de modo turvo, sendo entendida antes como coisa produzida por outrem, de consumo obrigatório por parte daqueles que desejem ocupar um lugar no mundo do trabalho, receber um salário e galgar melhores condições de vida. Nesses moldes, a educação torna-se uma coisa que deve ser consumida pelo trabalhador, mas que somente tem utilidade vinculada à venda de sua força de trabalho. É precisamente nesse sentido que consideramos que a mercantilização da educação está intimamente associada à mercantilização da força de trabalho, de modo que são intrínsecas à sociedade capitalista.
Esse processo se diferencia, embora não se dissocie, da comercialização no mercado da educação escolar e de seus constitutivos, no qual tanto o processo educativo quanto suas ferramentas são mais diretamente subjugados à lógica da lucratividade. Essa transformação da esfera educacional em nicho de mercado, abarcando tanto a educação escolar em si, como processo pedagógico, quanto suas ferramentas subjacentes (materiais didáticos, prédios, avaliações, sistemas de ensino e outros) trocados pela forma fenomênica (equivalente universal) do valor, chamamos mercadorização da educação - processo cuja expressão mais característica ao longo do século XX é o crescimento da educação privada.
Decerto a mercantilização e a mercadorização não são especificidades do bloco histórico neoliberal, dado que tanto as escolas privadas quanto a comercialização de livros e materiais didáticos em escolas públicas são de longa data, assim como a destinação de recursos públicos para os setores privados. Especificamente no Brasil, os setores privatistas, em forte aliança com os educadores católicos, estiveram sempre organizados em torno do tema.
Defendemos minuciosamente em Andrade (2020) que os ajustes estruturais e superestruturais em prol da consolidação do bloco histórico neoliberal no Brasil alavancaram a mercantilização e a mercadorização da educação na medida em que, resumidamente: i) as transformações na base produtiva impuseram um tipo de “pedagogia da acumulação flexível” (KUENZER, 2017) e ii) as instabilidades do
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cotidiano e da manutenção da vida deveriam ser de responsabilidade individual de cada um. Nesse sentido, a tônica da política educacional passa a ser capacitar o indivíduo não só para disputar uma vaga no mercado de trabalho, mas para transitar entre elas ou por fora delas sem maiores dificuldades cognitivas, comportamentais, emocionais etc.
É precisamente nesse sentido que, de um lado, as competências diferenciadas associadas aos postos de trabalho se articulam e se integram nas cadeias produtivas e, de outro, que um conjunto de competências básicas e gerais torna o indivíduo capaz de aprender novos padrões, seja de prática laboral, seja de comportamento social; seja aprender uma função nova, seja não ter função alguma. É justamente nessa lógica, também, que o processo de capacitação é essencialmente apassivador: não só pela ênfase nas então chamadas competências sociais ou comportamentais (hoje socioemocionais), mas pela exacerbação da expropriação do acesso ao conhecimento.
Tal capacitação representa, a nosso ver, um novo grau de expropriação que, por sua vez, torna a mercantilização da educação qualitativamente diferente no seio do bloco histórico neoliberal. A elevação considerável do caráter expropriador dos conhecimentos histórico-elementares, e a exacerbação da dimensão instrumental e apassivadora reduzem substancialmente o valor da força de trabalho à medida que: i) comprime sua formação; ii) tem expropriado qualquer tipo de valor de uso da educação escolar para o trabalhador que não seja diretamente vinculado à troca, já que os mesmos são estimulados a assumir a realidade como inapreensível pela razão, imutável e ininteligível, bem como naturalizá-la em seus aspectos mais perversos e iii) a massiva expansão do acesso à educação precarizada e pulverizada contribui para “capacitar” o exército de reserva e pressionar os salários para baixo.
Na mesma linha, os ajustes propiciaram uma expansão qualitativa dos nichos de mercado, que serviu, inclusive, como movimento de resposta às crises. Sob a égide do discurso da incapacidade financeira e da ineficiência da administração pública, ocorre não apenas a privatização de tipo clássico, em que há venda de patrimônio público para alguma empresa ou conjunto de investidores, mas também a mercadorização do processo educativo nas redes públicas. Além do mais, as mudanças legislativas permitiram ainda a abertura de capital em empresas de educação na bolsa de valores, concorrendo para a elevação a um novo patamar da concentração de capital na área.
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O aprofundamento da mercantilização e da mercadorização estabeleceu uma relação retroalimentativa com a subsunção da educação ao empresariado, isto é, o processo pelo qual o empresariado educacional brasileiro assumiu, em íntima relação com o Estado estrito e com o empresariado internacional, o protagonismo da formulação, aprovação e implementação das políticas públicas de educação. Tal subsunção parece ser a forma mais eficiente que o capital encontrou para maximizar o seu controle sobre o processo educativo, determinando seu conteúdo e forma em fina sintonia com os seus interesses.
O curioso é que, nessa tomada da dianteira, as ações do empresariado aumentam a precarização e o esvaziamento do processo educativo, a partir da sua subsunção à lógica empresarial e ao ethos gerencialista de controle. Tais ações reverberaram no tempo e no conteúdo da (con)formação da classe trabalhadora, bem como na discriminação dos valores relativos às mercadorias e na dinâmica do mercado educacional. Essa hegemonização se gesta no período de revalorização da educação escolar sob a égide da rejuvenescida ideologia do capital humano (MOTTA, 2008), em escala nacional e internacional, bem como no bojo da onguização descrita por Fontes (2010).
É importante atentar para o fato de que, realmente, esse empresariado a que nos referimos é majoritariamente constituído por organizações da sociedade civil, com ou sem fins lucrativos. Todavia, isso não deve anuviar o fato de tais organizações, muitas vezes, lançarem fumaça sobre seus verdadeiros comandantes. Quase sempre, por trás de uma organização da sociedade civil atuante na educação, existe uma complexa rede de empresas, nacionais ou não. Em suma, que essas organizações funcionam como braços ou aparelhos privados de hegemonia – a exemplo do Cenpec, que desde a década de 1990 participa ativamente da educação escolar da classe trabalhadora, sobretudo na vertente do tempo integral. O que se fala muito pouco, entretanto, é que o Cenpec é estreitamente vinculado ao Banco Itaú e suas organizações.
A despeito das várias organizações e movimentos importantes dessa época, podemos dizer que o corolário desse processo é o Todos pela Educação (TPE), criado em 2006 e pelo grande empresário Jorge Gerdau Johannpeter. Entre seus sócios- fundadores figuras vinculadas ao Estado estrito (como o então ministro da educação, Fernando Haddad, e o recentemente presidente do CNE, Cesar Callegari), quanto a grandes empresas e bancos, inclusive empresários-proprietários, à exemplo de
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nomes como os de Jorge Paulo Lemann, Gustavo Ioschpe, Emílio Odebrecht e Maria Alice Setúbal.
Além do mais, desde 2006, o TPE conta com o apoio de representantes de empresas como Itaú Social, DPaschoal, Bradesco, Fundação Telefônica (Telefônica/Vivo), Gerdau, Itaú BBA, Instituto Península, Gol, Fundação Victor Civitta, Editora Moderna, Canal Futura e vários outras, bem como o apoio de organismos internacionais, tal como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) (ANDRADE, 2020). Vale ainda ressaltar o apoio ao TPE por parte do LIDE (Grupo de Líderes Empresariais) cuja direção é exercida “por um Comitê de Gestão, composto por representantes de grandes corporações, ex-ministros de Estado, especialistas em diversas áreas de atuação, que tem como objetivo orientar, avaliar e decidir sobre as diretrizes do Grupo de Líderes Empresariais” (LIDE GLOBAL, 2018, s.p.).
A partir de então, o controle sobre as escolas cresce de forma exponencial e assustadora, de modo inacreditavelmente legítimo. Ao nosso ver, o que difere esse empresariado daquele organizado nos anos 1990 é, para além de seu porte e organicidade, a feição democrático-republicana liberal que este assume nos anos 2000, que não só viveu, mas apoiou e reivindicou, por exemplo, a ampliação da educação básica obrigatória, conquistada pela promulgação da Lei nº 12.796/2013.
A história nos mostra, portanto, que entre educação, acumulação capitalista e crise existe uma relação importante. Isso porque a educação é peça chave da acumulação capitalista, sobretudo porque é um dos elementos constitutivos mais importantes da força de trabalho. No exercício da hegemonia, e nos momentos de crise, não sem disputas, funciona como ferramenta da classe dominante tanto no âmbito estrutural quanto superestrutural, bem como nos movimentos de soldagem de seus vínculos.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Novo Ensino Médio (NEM) são medidas de contrarreforma na educação que atravessam os debates da última década. Hoje em fase de implementação, o debate sobre os efeitos deletérios deu lugar ao pânico de ver o pior lado das reformas instalando o caos em escolas de todo o país, enquanto alunos têm as aulas de história, geografia, filosofia e sociologia
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substituídas por matérias como “o que rola por aí”, “brigadeiro caseiro” e “RPG” (O GLOBO, 2023).
Muito se discutiu sobre os problemas internos das reformas, sobre os impactos da BNCC no trabalho docente, o currículo e o cotidiano escolar (FREITAS, 2014) e sobre como o NEM expressa o que dá de mais asqueroso e cruel no que tange a projeto de formação para a juventude (ANDRADE, 2020). Aqui, não se objetiva repetir tais críticas, mas realizá-las por outro ângulo. Noutros termos, aqui, confrontamos as propostas de reforma tal como foram apresentadas, demonstrando que elas mesmas não se sustentam em suas próprias proposições e objetivos. Vale lembrar que, como demonstramos em Andrade (2020), a BNCC é uma reforma de responsabilidade sobretudo empresarial, haja vista que o Movimento pela Base (MPB) é um braço do TPE que foi criado justamente para cuidar dessa medida. Após a cisão da BNCC em duas partes, seguindo o modelo de Ensino Médio aprovado via Medida Provisória pelo governo golpista, o MPB também se articulou para implementá-lo.
O primeiro ponto a se destacar é precisamente o discurso que erigiu a necessidade de uma BNCC, qual seja, o da existência de grandes disparidades educacionais. Nesse sentido, na época inicial de produção de consenso em torno da BNCC, falava-se da necessidade de promover os mesmos direitos de aprendizagem para todos, haja vista a imperatividade de reduzir as gigantescas desigualdades regionais. O modelo de Ensino Médio aprovado pouco depois, e vinculado a BNCC, promoveria, todavia, exatamente o oposto: a educação igualitária, de qualidade e democrática a ser promovida pela BNCC seria complementada pelo NEM, que restringe significativamente o acesso dos estudantes do ensino médio ao conhecimento historicamente acumulado e pulveriza as trajetórias formativas de modo quase infinito, igualando educações absolutamente distintas e desiguais.
Um dos pontos mais sedutores do discurso de legitimação do NEM, sobretudo para os jovens, é o de que a reforma proporciona “liberdade de escolha” dos estudantes. Mas, no contexto da própria Lei no. 13.415 de 2017, não há nada que obrigue as escolas a oferecer todos os itinerários formativos, muito pelo contrário. Está posto no texto de regulamentação da lei que “Os sistemas de ensino devem garantir a oferta de mais de um itinerário formativo em cada município, em áreas distintas (...) atendendo assim a heterogeneidade e pluralidade de condições, interesses e aspirações” (BRASIL, 2018, Art. 12, § 6º, grifos nossos). Isso sem mencionar, ainda, que a reforma do Ensino Médio não o divide apenas em itinerários: cada itinerário
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pode apresentar configurações radicalmente distintas, de modo que a escolha do itinerário significa muito pouco perto da quantidade de trajetórias que ele pode oferecer.
Outro ponto importante é a jornada integral, possibilitada pelo Programa Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI). Nas propagandas de rádio e televisão, até hoje, afirmam-se que foram disponibilizadas 500 mil novas vagas para o ensino médio em tempo integral ao custo de 1,5 milhão de reais até 2020. Apesar dos números vultosos, deve-se destacar que o Brasil tem quase 8 milhões de alunos matriculados no Ensino Médio e que, destes, cerca de 13% estão na rede privada (algo em torno de 1 milhão de alunos). Restam quase 7 milhões. Destes restantes, 670 mil já são contemplados com a jornada integral, ou seja, permanecem uma média de sete horas na escola em aulas ou em atividades extracurriculares. Restam, ainda, cerca de 6 milhões de alunos a serem contemplados. 500 mil alunos contemplados pelo EMTI é algo em torno de 10% da quantidade de alunos que deve ser atendida. Isso sem contar que até hoje não se inclui no debate a questão do Ensino Médio noturno, que conta com quase 1 milhão de estudantes. Não parece crível que eles disponham de jornada integral, haja vista que, para cumpri-la, os alunos precisariam estudar das 18 às 23 horas, ou mesmo das 19 às 00 horas.
Várias outras contradições foram exploradas em Andrade (2020). Dentre elas, podemos mencionar a primazia do direito à aprendizagem como contraface do esvaziamento do direito à educação, além da alienação a outros direitos básicos da criança e do adolescente. Dizer que uma BNCC, por exemplo, “assegura” direitos de aprendizagem é quase cômico, haja vista que relatórios como o da Fundação Abrinq (2019), mostram que 9,4 milhões de crianças brasileiras entre zero e 14 anos, ou 22,6% destas, viviam em situação de extrema pobreza, isto é, com uma renda domiciliar per capita mensal inferior ou igual a um quarto de salário mínimo, ou R$ 234,25 em valores de 2017, incapazes de garantir os direitos à saúde, lazer, transporte e outros - além do próprio direito à educação, esvaziado e anuviado pelo direito à aprendizagem.
Na LDB/1996, por exemplo, consta a “garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida” (BRASIL, 1996, Art. 3º), de modo que este não substitui, mas integra, complementa, constitui aquele. Nesse sentido, o direito à aprendizagem significa uma redução do direito humano à educação à medida que a aprendizagem é um dos fins, dos resultados individuais a ser alcançado por meio do
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processo educativo, isto é, da educação multifacetada, coletiva, processual e contínua. A nosso ver, o direito de aprender mistifica e reifica o processo de aprendizagem ao apresentá-lo com origem e fim em si mesmo, independente de um processo anterior, desenvolvido em determinado tempo e condições materiais; como um objeto fornecido (vendido) por professores e adquirido (comprado) por estudantes, como se a relação aluno-escola ou aluno-professor fosse ausente de qualquer mediação e eminentemente comercial. Nesta lógica, adquire algum sentido o fato de que as reformas endossam o direito de aprender sem propor, nem mesmo no discurso, alguma solução mínima para as péssimas e graves condições estruturais em que se dá a educação pública no Brasil.
Todos esses problemas não incluem, ainda, o fato que os propositores na BNCC, por exemplo, negam a sua própria história, omitindo que a ideia de uma Base para os currículos remonta aos anos 1980 e a própria luta em prol da reconstrução da educação pública, que havia sido destruída pela ditadura empresarial militar. Não incluem também que, a despeito da proposta mirabolante de Ensino Médio, em 2020, na Região Norte do país, por exemplo, passa de 70% o percentual de escolas públicas que não dispõem de esgoto sanitário, sendo os estados com menor cobertura de esgoto sanitário o Pará, Maranhão, Amapá, Acre e Amazonas (ANDRADE, 2020). Grande parte das escolas brasileiras que deveriam contemplar, além das competências digitais associadas à BNCC, itinerários formativos calcados em processos criativos e investigações científicas, por exemplo, não contam com rede pública de abastecimento de água; que de modo geral, considerando-se a rede estadual, que concentra aproximadamente 70% das matrículas nessa etapa, cerca de 20% não contam com laboratório de informática, 63% não contam com laboratório de ciências e 15% não têm uma biblioteca ou uma sala de leitura (ANDRADE, 2020).
Qual o sentido da implementação de reformas educacionais nessas condições?
Como, diante de tantos problemas, elas poderiam se tornar prioridade?
A despeito dos bons indicadores econômicos de 2013, o ano foi marcado por eventos importantes. Apesar da então presidente ter sido reeleita em 2014, pode-se afirmar que seu governo foi bastante tensionado. Em 2012 houve uma das maiores
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greves da educação pública; o ano de 2013 superou todo o histórico de greves no Brasil (DIEESE, 2015) e, nesse mesmo ano, as Jornadas de Junho, apesar dos objetivos confusos, expressavam tanto o recrudescimento da luta dos trabalhadores e a sua inquietação social, como o lado mais conservador da política – a exemplo da organização de movimentos tais como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o grupo de Estudantes Pela Liberdade (EPL) que, financiados por empresas de capital internacional (as mesmas que provém grupos ultraconservadores nos Estados Unidos, como o caso do movimento Tea Party), tinham como tônica o combate à corrupção pelo apoio à face messiânica-weberiana da Lava-Jato. Discorrem Motta e Leher (2017, p. 250):
É preciso agregar, também, as denúncias de corrupção do “Mensalão” e, principalmente, da Lava-Jato; acrescido das ásperas condições de trabalho do jovem proletariado precarizado; a agenda homofóbica na Câmara dos Deputados; a crescente degradação do serviço público em virtude da crise nos governos estaduais (provinciais); o custo do transporte e da repressão policial selvagem nos atos de protesto contra o custo do transporte urbano, fatores que, em conjunto, contribuíram para a irrupção, na forma de movimentos multitudinários, das Jornadas de Junho de 2013, somados às 2.050 greves dos trabalhadores, denotando um forte ascenso das lutas, tendência que permaneceu nos anos seguintes. As massivas manifestações a partir de 2013 evidenciaram o fim da hegemonia do PT e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), corroída pelo transformismo, sobre os movimentos sociais, particularmente sobre a juventude precarizada e a mal conceituada “Nova Classe C”.
Afetada a arrecadação de tributos, o forte e ortodoxo ajuste fiscal de 2015 exigido pelas frações representantes do grande capital, com vistas à proteção do pagamento do serviço da dívida, teve desdobramentos notáveis. De um lado, descontentou frações burguesas que já vinham apresentando problemas de acumulação, queda no lucro líquido e pautando a diminuição do custo da força de trabalho; de outro, agravou a insatisfação da classe trabalhadora ao retirar seus exíguos direitos e ao colocá-la diante da contração do consumo, da trajetória ascendente do desemprego e do crescente endividamento das famílias, além do decréscimo da força de trabalho ocupada na indústria.
Em 2015, a composição do Congresso Nacional sofreu alterações importantes: o número de sindicalistas caiu pela metade, a bancada empresarial manteve composição significativa e aumentou o número de parlamentares ligados a segmentos religiosos, militares e ruralistas – somente este último passou dos 14 senadores e 191
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deputados para 16 e 257, respectivamente. Estes dados foram divulgados em uma reportagem do jornal Valor Econômico, intitulada “Nova composição do Congresso é a mais conservadora desde 1964” (AGÊNCIA BRASIL, 2015 apud ANDRADE, 2020). Nesse cenário, o discurso da direita e suas ideias mais inócuas ganharam grande amplitude e, com grande apoio financeiro de fundações nacionais e internacionais, de direita e extrema direita – tais como o Instituto Millenium, o Fórum pela Liberdade e o Students for Liberty –, seus representantes alastraram-se pela sociedade política: pelo poder Executivo, Legislativo e Judiciário.
Nesse contexto, a burguesia brasileira não hesitou em demonstrar que se fazia necessário um conjunto de ajustes e uma celeridade no ajuste fiscal e na implementação das reformas impossíveis sob a égide petista, as quais foram prometidas pela cúpula do MDB no documento “Uma ponte para o futuro”. Nesta direção, a amálgama de interesses foi constituída pelo apoio das frações burguesas ao MDB, e pelo movimento popular que reuniu os grupos mais odiosos e descontentes.
A partir da ascensão da direita ativa e beligerante em 2016, as reformas ganharam novo impulso. Aprovou-se a Emenda Constitucional 95 (EC) que limita os gastos públicos com as despesas primárias por vinte anos (medida que foi adotada por diversos países, mas em nenhum país do mundo por tantos anos). Em 2017, aprovou-se o desmonte e a fragilização das leis trabalhistas, institucionalizando “o trabalho intermitente, a terceirização das atividades fins e a prevalência do negociado sobre o legislado. Doravante, o trabalho precário, vulnerável, indigno, característicos do trabalho informal, agora é trabalho regulado” (MOTTA; LEHER, 2017, p. 253); retirou-se da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) o artigo que incluía entre as prioridades para 2018 o cumprimento das metas previstas pelo PNE; desmembrou-se o processo de construção da BNCC e insistiu-se na Reforma da Previdência, justificada pelo mito do déficit previdenciário. No âmbito político-jurídico, assistimos à manutenção do mandato de Temer à despeito das denúncias e escândalos de corrupção envolvendo seu nome, a fragilidade da coordenação política, o tensionamento da funcionalidade e da legitimidade das instituições e do sistema político e partidário – à exemplo do caso da “prisão/soltura” de Lula, ocorrido em 2018. Na conjuntura que se estabeleceu para os trabalhadores, notadamente marcada pelo aumento da violência, pela perda de direitos, pela instabilidade econômica, pela perda do poder de compra e outros, fazia-se absolutamente
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necessário um novo modelo de educação. A política educacional então sustentada pelo modelo liberal republicano, calcado na vertente social-liberal do neoliberalismo, não poderia mais dialogar com a radicalização neoliberal imposta pelo capital.
Motta e Leher (2017) sinalizaram que a celeridade da Reforma do Ensino Médio tinha como pano de fundo a administração da “questão social”; que a questão das competências socioemocionais, tais como a resiliência, denotam “que os setores dominantes estão atuando no sentido de educar a juventude para a situação de precariedade e vulnerabilidade do mercado de trabalho no Brasil”. Andrade e Motta (2020) mostraram que o NEM arrancava dos trabalhadores conquistas extremamente recentes, tais como a obrigatoriedade do EM, no modelo então em voga, que foi conquistada em somente em 2013, quando da inclusão dessa etapa na educação básica, e a obrigatoriedade das disciplinas sociologia e filosofia, que ocorreu somente em 2008, quando as ganharam o status de disciplina escolar obrigatória.
Por esses e tantos outros aspectos, concebemos tanto o NEM quanto a BNCC como medidas de contrarreforma, posto que as mesmas apontam no sentido da retirada, da expropriação de direitos, e não de sua ampliação – medidas plenamente coerentes, por conseguinte, com a contrarreforma neoliberal, onde as “reformas” postas em marcha “têm por objetivo a pura e simples restauração das condições próprias de um capitalismo ‘selvagem’, no qual devem vigorar sem freios as leis do mercado” (COUTINHO, 2012, p. 123). Estendendo um pouco as margens documentais e abarcando outros aspectos do discurso de seus protagonistas, também encontramos problemas. Não se pode dizer que seus discursos são falsos ou mentirosos na sua totalidade, pois ninguém pode responder negativamente ao ser interpelado sobre as condições mínimas e decadentes da educação brasileira.
De modo geral, a tríade formada pela EC 95/2016, que congela os gastos públicos, pela contrarreforma da previdência e pela destruição da legislação trabalhista representa um profundo desmonte da limitada dimensão social da Constituição de 1988. De forma semelhante, o NEM e a BNCC (que, vale lembrar, contam com grande incentivo e financiamento do Banco Mundial) representam um profundo retrocesso no que se refere às duras, limitadas e recentes conquistas da classe trabalhadora em torno da educação básica e superior. O objetivo desse trabalho não fora, contudo, demonstrar a coesão interna do conjunto de medidas de contrarreforma em curso, mas iluminar a coerência desse conjunto diante da crise.
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No que tange ao presente, consideramos que o golpe de 2016, sucedido pelo governo protofascista de Bolsonaro, reafirma a natureza coercitiva e violenta da classe dominante brasileira, sua incapacidade de realizar concessões, mesmo que nos limites da ordem vigente, e a sua tendência de ataque à democracia, sobretudo quando esta se apresenta como trava à acumulação capitalista. Nesse sentido, é “[...] sob um novo clima de temor-pânico, de compulsão repressiva e de abuso do poder político institucionalizado [que] as classes sociais privilegiadas (...) aplicando à participação social ampliada das massas no poder o modelo desmoralizado da democracia restrita”. (FERNANDES, 1973, p. 41).
É diante de uma nova fase de estorvo na acumulação e de crise de hegemonia que a fração da classe dominante mais reacionária, com o apoio do empresariado, reforça os mecanismos de sobre apropriação, e retoma com afinco as medidas que aprofundam a barbárie social e excluem das decisões políticas as grandes massas. E é precisamente nessa perspectiva analítica que compreendemos que a educação escolar não se desvincula dos aspectos estruturantes da formação dependente que, sob novas roupagens e a depender dos elementos dinâmicos da política, continuam a atravessar o desenho e a concretude da educação brasileira. A negação da imaginação inventiva, a persistente tentativa de suprimir conteúdos propedêuticos e de negar conhecimentos técnico-científicos mais complexos no ensino médio, a resistência ao investimento público em educação, o atentado à socialização ideológica da juventude trabalhadora e a conservação da dualidade educacional estrutural, se de fato são elementos presentes no NEM e na BNCC, são também elementos que atravessam a história da educação brasileira com distintas intensidades.
Como abordamos, a mercantilização da educação escolar é dimensão insuperável no bojo da sociedade capitalista, posto que, na ótica do capital, vale a máxima do conhecimento estritamente necessário à geração de mais-valor – aspecto diretamente vinculado às especificidades das distintas cadeias produtivas integrantes da cadeia global de valor. Noutros termos, o conteúdo da educação escolar, crescentemente subsumida à forma-mercadoria e aos seus aspectos fetichizantes e reificadores, deve-se resumir, na perspectiva do capital, a valor de uso para si, espremendo todos os constituintes que poderiam acrescer o valor da força de trabalho.
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Nesse sentido, deve-se atentar ao fato de que tanto a BNCC quanto o NEM, como já vimos, arrancam explicitamente todas as dimensões científicas do conhecimento, cujo acesso foi duramente conquistado, resumindo-o a competências.
Tal processo é entendido por nós como o aprofundamento da mercantilização da educação na medida em que, resumidamente, espreme-se o valor de uso da educação escolar na perspectiva dos trabalhadores, pressiona para baixo o valor da força de trabalho e mantém-se o valor de uso na perspectiva do capital, inclusive diante das significativas modificações nas cadeias de produção de valor, germinadas a partir do big crash de 2008.
De modo transversal, vimos que a mercadorização da educação, indissociável de sua mercantilização, é outra dimensão estrutural-histórica da educação escolar na sociedade capitalista, à medida que a tendência do capital é subjugar todas as esferas da vida ao assim chamado “mercado”, tornando tudo, material ou não, passível de troca, isto é, de comercialização. Vimos concretamente como a BNCC amplia, por exemplo, o nicho de mercado relacionado aos pacotes avaliativos, aos sistemas de ensino, aos livros didáticos e outros, sob o comando das grandes empresas de capital aberto. Isso vale para o NEM no que tange à reorganização do Ensino Médio e, principalmente, aos itinerários formativos, sem considerar ainda as formas legítimas de acesso ao fundo público, direto ou indireto, por parte das empresas privadas doravante integrantes da formação desse alunado. É um nicho de mercado direto na educação básica que se constitui, no caso das empresas de capital aberto, de modo verossímil e que merece significativa atenção.
No que tange à subsunção da educação ao empresariado, apresentamos o TPE como busílis desse processo, e discorremos sobre as formas com que esses empresários assumiram o controle sobre a educação básica pública a nível nacional, mormente via integração de cadeiras do Estado estrito e parcerias público-privadas. O Movimento pela Base, que se constitui como um braço do TPE, opera de modo semelhante, definindo o conteúdo da educação escolar, doravante atuando diretamente sobre o currículo nacional – não só em sua parte homogeneizante, posto que todas as brechas foram abertas para que o empresariado pudesse atuar, também, sobre os itinerários formativos, ainda que, a princípio, regionalmente. Precisamente assim o empresariado educacional exacerba o controle sobre a lógica escolar, imprime uma dimensão fortemente apassivadora à mesma e, paralelamente, cria as
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condições necessárias à expansão hegemônica da própria classe, que abarca as dimensões políticas, jurídicas, sociais e econômicas.
Nesse bojo está ainda o caráter ideológico do discurso de legitimação propalado por esse bloco social, que mistifica a realidade à medida que apartam os reincidentes problemas educacionais da totalidade social, omitem a sua historicidade e os tratam como problemas efêmeros, cujas soluções imediatistas estão intimamente ligadas à sua particular concepção de mundo e de educação. Outrossim, reforça para nós que as bandeiras “formação geral/intelectual para todos”, “educação emancipatória de qualidade”, “cultura geral e educação profissional para o povo brasileiro” e outras tão sonhadas e requeridas pelos trabalhadores, não têm lugar duradouro no capitalismo dependente, no qual as contradições do capitalismo se manifestam com faces exacerbadamente antidemocráticas.
Indubitavelmente, a primeira luta contra as medidas de contrarreforma hodiernas, que mais uma vez nos atacam enquanto classe trabalhadora que somos, deve clamar pela democracia, afinal, ela “[...] não teria nenhuma utilidade para o proletariado se não servisse de maneira imediata para realizar algumas medidas que atacam diretamente a propriedade privada e asseguram a existência do proletariado.” (ENGELS, 2016, p. 35). Nesse sentido, a suspensão da medida provisória e da reforma do Ensino Médio é uma exigência. No entanto, é com base no exposto brevemente aqui que (re)afirmamos a necessidade de unir a luta contra os ataques à educação à luta pela revogação de outras medidas de contrarreforma já aprovadas. Mais além, é com base nessa compreensão que afirmamos: caso queiram-se resultados duradouros, a luta dentro da ordem precisa estar vinculada à superação do capitalismo dependente que exige, necessária e obrigatoriamente, a destruição completa das relações sociais vigentes.
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