V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X


Memória e documentos


PL 1.603/1996: O JOGO IDEOLÓGICO E ECONÔMICO DA EDUCAÇÃO DOS MAIS POBRES NO BRASIL NEOLIBERAL1


Acacia Zeneida Kuenzer2

Introdução



O estudo das políticas públicas para o ensino médio e educação profissional tem sido um dos objetos privilegiados pelo GT 9 da Anped, ao longo da sua história. Nesse momento histórico que estamos vivendo, em que políticas de ensino médio e educação profissional e tecnológica têm sido formuladas sem o necessário debate com as entidades representativas dos trabalhadores, professores, pesquisadores e estudantes, o resgate de outros momentos em que essa mesma estratégia foi utilizada para impor diretrizes curriculares que aprofundam a desigualdade da oferta em prejuízo da classe trabalhadora, é um movimento necessário. Isso porque o passado nos ajuda a compreender o presente, que por sua vez traz anúncios do futuro, reforçando a necessidade do enfrentamento das políticas estabelecidas de forma autoritária que desqualificam a educação disponibilizada para os que vivem do trabalho, com o que se aprofundam as diferenças de classe.

É com essa finalidade que recebi a tarefa de resgatar a história da imposição do Projeto de Lei (PL) 1603/1996, que propôs a criação de um sistema de Educação Profissional em separado da educação básica, com distintas modalidades, sempre na perspectiva da oferta de formação precarizada para o trabalho para jovens oriundos da classe trabalhadora, naturalizando sua inclusão em trabalhos precarizados.


1 Artigo recebido em 02/03/2023. Aprovado pelos editores em 14/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57608.

2 Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC/SP). Professora Titular aposentada da Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Paraná. Professora permanente do Programa de Pós-graduação em Educação Profissional do Instituto Federal do Rio Grande do Norte (PPGED/IFRN) - Brasil, área Trabalho e Educação. E-mail: acaciak4@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9099032959087648. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6429-9345.

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O contexto


O movimento de criação de um sistema de Educação Profissional em separado da educação básica já não era novo em 1996, uma vez que em 1991, no governo Collor, já houve uma tentativa nesse sentido, que fracassou. Contudo, a proposta gestada em 1996 reveste-se de singularidade, por várias razões: ser gestado em dois espaços distintos, a partir de 1995, com distintas concepções, dentro do mesmo governo, mas mantendo o mesmo viés neoliberal: no Ministério do Trabalho (MTB), especificamente na Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional (SEFOR), e no Ministério da Educação e Cultura, especificamente na Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC). Embora nos dois documentos, PLANFOR e PL 1603/1996, a justificativa fosse a mesma – as demandas que a globalização da economia e o avanço tecnológico traziam para a educação – as propostas, mais do que diferentes, eram contraditórias quanto ao processo de sua elaboração, e em parte, quanto ao seu conteúdo.

A segunda razão para a singularidade desse movimento foi o fato de o PL 1603/1996 servir como moeda de troca na negociação com o Banco Mundial, em busca de financiamento para a Educação Profissional.

E, finalmente, pelo PL 1603/1996 – apresentado à Câmara dos Deputados pelo Executivo – ter sido retirado por este mesmo poder, uma vez sua finalidade se perdeu em virtude da promulgação do Decreto 2.208/1997, de abril de 1997, que regulamentou o § 2o. do art. 36 e artigos 39 a 42 da Lei 9.394/96. A alternativa do Decreto foi uma oportuna estratégia do Executivo, face à resistência a ele demonstrada pela sociedade civil em diversas audiências públicas realizadas por seu relator, o Deputado Severiano Alves (PDT) – que se mostrou, juntamente com outros Deputados, sensível às críticas – e, consequentemente, pelas mais de três mil emendas propostas.

Ainda, é importante destacar que o referido PL é contemporâneo da substituição do Projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de autoria do Deputado Jorge Hage, amplamente discutido com as entidades da sociedade civil e fruto do debate coletivo, pelo projeto apresentado pelo Senador Darcy Ribeiro, atropelando o processo democrático que vinha se desenvolvendo; nesse substitutivo, a educação profissional já se anunciava separada do ensino

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médio; o artigo 36, que trata do ensino médio, não contemplava, na versão original, a possibilidade de integração entre ensino médio e educação profissional; foi por um esforço do Senador Roberto Requião, que presidia a Comissão de Educação à época, que foi introduzido o §2º, que admitia que o ensino médio, desde que atendida a formação geral do educando, poderia prepará-lo para o exercício de profissões técnicas. Ou seja, embora de forma ambígua, manteve-se a possibilidade do ensino médio integrado, à revelia das intenções do governo, tanto que o Decreto 2.208/1997 elimina essa possibilidade no seu Art. 2o., ao dispor que a educação profissional será desenvolvida em articulação com o ensino regular, e não em integração.

Todos os esforços do governo neoliberal convergiam, portanto, para a separação entre educação básica e profissional, em oposição à proposta de educação básica integrada à ciência, trabalho e cultura, que vinha sendo construída pelas entidades da sociedade civil comprometidas com a formação humana integral. Essa separação tinha como característica a fragmentação do percurso formativo da educação profissional em diferentes níveis, básico, técnico e tecnológico, com vistas ao atendimento às necessidades do mercado de trabalho e aprofundando a polarização da formação.

Assim é que o art. 4o. do Decreto 2.208/1997 concebia o nível básico como espaço de reprofissionalização, qualificação e atualização para o exercício de funções demandadas pelo mercado e não sujeitas à regulamentação curricular, cuja qualificação poderia ser obtida por educação não formal; formação precária, portanto, para o exercício de funções precarizadas.


Resgatando o processo da proposição do PL1603/1996


Como já se mencionou na introdução, o PL1603/1996, proposto pela SEMTEC/MEC, e o PLANFOR, proposto pelo MTB, expressaram o campo de disputas entre os dois ministérios visando o controle e o poder de financiar o Sistema de Educação Profissional, cuja principal característica era a separação do Sistema de Educação Básica, tendo seu foco no atendimento às demandas do mercado de trabalho, principalmente no que tange aos processos de requalificação e reinserção de trabalhadores com qualquer nível de escolaridade, pela certificação de qualificação profissional, a ser obtida inclusive por instituições de educação profissional não formal

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e/ou por certificações parciais de competência.

É importante, contudo, compreender a origem dessas duas propostas, e de seus pontos de divergência, bem como o contexto em que se desenvolveram.

A primeira proposta a ser elaborada, já em 1995, foi a do PLANFOR, no âmbito da SEFOR/MTB, cujo secretário era Nassim G. Mehedff, apoiado por Elenice Leite, ambos oriundos do SENAC e, portanto, com larga experiência na formação profissional. Cumpre destacar, contudo, que Mehdeff foi uma das lideranças de grupos de jovens nas ações promovidas pela Igreja Católica, tendo participado ativamente da Juventude Estudantil Católica e da Juventude Universitária Católica; teve, também, militância política na Faculdade Católica de Filosofia de Minas Gerais e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da UFMG nos anos 1960. Tinha, portanto, sólida formação na esquerda, o que, de algum modo, se fez sentir no documento por ele elaborado para lançar o PLANFOR (MTB/SEFOR 1995). Dada sua tradição democrática, iniciou o processo com uma ampla discussão com representantes do governo, da academia, dos empregadores e dos trabalhadores, o que gerou vários documentos que orientaram a formulação de políticas pela SEFOR.

As discussões contemplaram a educação brasileira como um todo, identificando seus pontos críticos com relação à educação do trabalhador, tendo em vista a elevação da competitividade internacional do Brasil e, desta forma, a melhoria da qualidade de vida do povo brasileiro, para depois definir as políticas de educação profissional. Das discussões resultaram os pressupostos que orientariam a proposta de educação profissional adotada pela SEFOR: a rejeição das interpretações equivocadas da teoria do capital humano3, que levaram à profissionalização do 2º grau em 1971; a negação do falso entendimento que os objetivos e prioridades da formação profissional da educação técnica são voltados a uma “certa parte da população pobre, desprovida da sorte, direcionados à formação de trabalhadores para o desempenho de tarefas específicas em postos de trabalho para um setor produtivo organizado e baseado no modelo fordista de produção”. (MTB/SEFOR, 1995).


3 Em busca do resgate da memória em conversa com a Dra. Marise Ramos sobre a afirmação acerca de interpretações equivocadas da Lei n. 5.692/1971 sobre a profissionalização compulsória, ela lembra que a referida Lei incorpora a Teoria do Capital Humano como uma interpretação possível e específica da realidade brasileira com seu "capitalismo tardio" de caráter dependente. Assim, a política da profissionalização compulsória não teria sido equivocada para a elite, mas fazia sentido para a classe trabalhadora. (vídeo chamada em 24/02/2023).

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A partir desses pressupostos, o texto apontava a necessidade de refletir sobre as exigências que a nova etapa de desenvolvimento das forças produtivas trazia, criando alternativas que alcançassem “a relação harmoniosa dos resultados da ação educativa”, como um todo, “com as atuais necessidades da realidade brasileira”, voltadas não só para as demandas do mercado internacional e interno, mas, “em especial, para a consolidação do processo democrático no que concerne à formação do cidadão produtivo”. A partir desse entendimento, a SEFOR elaborou o seu projeto para a educação profissional, tendo em vista o desenvolvimento sustentado. (MTB/SEFOR, 1995).

Contudo, no mesmo documento, são estabelecidas as relações entre a proposta de criação de um sistema de educação profissional com as prioridades do governo neoliberal, segundo a concepção do Governo Fernando Henrique Cardoso, gestada pelo PSDB, que podem ser resumidas em dois pontos: a consolidação da estabilidade econômica do país e a construção do desenvolvimento sustentado, tendo por base a eqüidade social. A SEFOR, então, chamou a si a tarefa de consolidar uma política pública de trabalho e de educação profissional integrando as três funções do MTB: intermediação, pagamento de benefícios e qualificação/requalificação profissional, buscando, dessa forma, integrar a política de educação profissional à política pública de emprego, trabalho e renda, voltadas para o desenvolvimento sustentável país.

Ficava, dessa forma, definida claramente a competência do MTB, através da SEFOR, relativa à implementação do Sistema de Educação Profissional, financiado pelo Fundo de Amparo ao Trabalhador; ao MEC, considerado um dos parceiros, competiria a responsabilidade por implementar o Sistema Nacional de Educação, sendo a SEMTEC uma instância de articulação, mas não a única, uma vez que a educação profissional não se restringe ao nível médio, mas articula-se com todos os níveis, da educação fundamental à pós-graduação, e às estratégias contínuas de educação permanente.

Como o próprio texto diz, a educação profissional exige “foco no mercado” e não se confunde com a educação básica, cujo foco são os direitos universais do cidadão. A educação profissional, portanto, não a substitui. Por ter foco no mercado, a educação profissional, embora priorizasse os desempregados e excluídos, não teria sentido nem eficácia como estratégia contencionista ou assistencialista, voltada para

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reter o acesso ao 3º grau ou a “ajudar os pobres ou retirar os menores da rua.4 A priorização, portanto, visava abrir alternativas a quase dois terços da força de trabalho, a maioria na plenitude da vida ativa, que não possuía mais de quatro anos de escolaridade e não voltaria à escola, mediante a qualificação profissional que articularia o conhecimento tácito e o conhecimento científico, cada vez mais exigido pela reestruturação produtiva.

Não obstante esse discurso, a proposta de duas redes separadas, embora articuladas, porém não integradas, aprofundaria a dualidade estrutural capitalista pela desigualdade na formação dos trabalhadores, orientada pela origem de classe.

Ao mesmo tempo, o MEC vinha desenvolvendo na SEMTEC a discussão sobre a função que as escolas técnicas e agrotécnicas desempenhava na educação de jovens, no âmbito da discussão sobre o significado do ensino médio. É, portanto, uma discussão de outra natureza, que se inicia a partir de avaliações feitas por consultores do Banco Mundial e de instituições públicas nacionais, cujo foco era a elevação da demanda a par de custos elevados das escolas técnicas e agrotécnicas, que, segundo sua visão, constituíam-se em oferta seletiva, sem que os filhos dos trabalhadores fossem incluídos e com desvio de sua finalidade, que passou a ser propedêutica. Havia, pois, que formular uma proposta que melhorasse a relação custo-benefício.

Sobre essa questão, manifestou-se Cláudio de Moura Castro, à época consultor do Banco Mundial, acerca do fato de as escolas técnicas e agrotécnicas terem se transformado em excelentes escolas acadêmicas que preparavam para o vestibular, em muitos estados cooptadas pelas elites locais: "ora, faz pouco sentido ensinar Máquinas e Motores a custos elevadíssimos a quem nada mais quer do que passar no vestibular de Direito. Mesmo para os que vão para Engenharia, não parece ser um bom uso dos dinheiros públicos, que ocupem um vaga que poderia ser melhor aproveitada por alguém que vai diretamente para uma ocupação técnica (CASTRO, 1995, p. 8).

Em outro documento oriundo das discussões da SEMTEC, da autoria de Ruy


4 Na mesma vídeo-chamada citada na nota 3, concluímos que a interpretação equivocada da Lei 5692/1971 apontada pela SEFOR significava que, mesmo sob a lógica da Teoria do Capital Humano, agregar valor à força de trabalho não implicaria em tornar a profissionalização obrigatória no 2o. Grau para formar trabalhadores para o desenvolvimento industrial acelerado ou para conter o acesso ao nível superior.


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Berger Filho, destacam-se, na mesma linha, os pontos críticos do ensino médio: a sua falta de identidade, com implicações sobre a perda de qualidade, em função de seu caráter indefinido com relação à tensão universidade/terminalidade e a escassez de recursos financeiros para cobrir os elevados custos.

Como consequência, o MEC propõe-se, através da SEMTEC, a dirigir o processo de redefinição do ensino médio, buscando definir as modalidades de educação acadêmica e profissional através de um modelo flexível; rever os currículos, as articulações com o MTB e com o setor produtivo; redefinindo as funções da União, dos estados, dos municípios e do setor produtivo; e assim por diante.

Contrariamente à proposta da SEFOR, a questão central que justificou o PL 1603/1996 foi a pressão do Banco Mundial para a redução dos custos das escolas técnicas e agrotécnicas. A solução encontrada pela SEMTEC foi a criação de uma rede de Educação Profissional desvinculada do ensino médio, e de mais baixo custo, que melhor respondesse às necessidades do mercado de trabalho e que racionalizasse o uso dos recursos conforme a opção do aluno: o ingresso no mundo do trabalho ou o acesso à universidade.

Para implementar tal política, busca a articulação com os setores responsáveis pelas áreas de trabalho, indústria e comércio, agricultura, ciência e tecnologia e política social, com o Sistema S e demais agências formadoras, com a representação dos empresários e dos trabalhadores, como princípio central da formulação política e de gestão do Sistema. E, embora estivesse participando das articulações com a SEFOR para a criação do PLANFOR, o MEC correu em paralelo, batendo de frente com o MTB.

É interessante observar uma diferença significativa no processo que o MEC/SEMTEC vinha desenvolvendo: enquanto a SEFOR buscava interlocutores entre os pesquisadores e profissionais que acumulavam conhecimento teórico/prático sobre a relação trabalho e educação em tempos de reestruturação produtiva, demonstrando nos seus documentos conhecimento da literatura e da prática, a SEMTEC manteve a discussão interna a seus técnicos, abrindo-a para interlocutores selecionados. Entre eles, destacou-se como parceiro privilegiado o Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED); a rede de escolas técnicas federais (ETF) e Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFET) foram chamados a participar de algumas reuniões que não tiveram caráter deliberativo, mas apenas consultivo. A

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formatação da proposta final foi feita pela SEMTEC, “ouvidos” os interlocutores especialmente selecionados.

Sua rede de acadêmicos, consultores e pesquisadores das universidades públicas e privadas qualificados pelo próprio MEC através da CAPES com recursos públicos, não foram sequer contatados, recebendo, com surpresa, e de forma acidental, a primeira versão do PL. O GT 9 da ANPEd, composto por pesquisadores nacionalmente reconhecidos na área de trabalho e educação, em sua maioria professores das Instituições Federais de Educação Superior (IFES) e, portanto, servidores públicos lotados em instituições vinculadas ao MEC, também não foi consultado.

Certamente, isso se explica, como dizia Moura Castro (1995, p. 2), por sua caracterização como representantes das “ideologias igualitárias” que resistem a qualquer solução “que ofereça programas mais aguados para certos grupos” ou que não tenham equivalência ao secundário e, portanto, não assegurem o direito à continuidade de estudos no ensino superior; pesquisadores e professores que se negam a aceitar a existência de alunos que “nascem” por efeito de alguma determinação exclusivamente biológica, porém jamais social, “academicamente menos dotados”, que caminhariam mais cedo para a preparação ocupacional através de currículos “mais aplicados”, mais práticos e, portanto, não acadêmicos e terminais. Desta rápida análise, emerge uma questão: qual a razão da pressa em regulamentar a educação profissional, que sequer podia aguardar a tramitação da LDB, já avançada, após a adesão ao substitutivo do Senador Darcy Ribeiro? Por que, já em março de 1996, sem nenhuma discussão sequer com os mais diretamente atingidos — as ETF e CEFET —, como atestam os documentos e discursos, o ministro Paulo Renato encaminha ao Congresso o anteprojeto de Lei que recebe o nº

1603/1996?

Qual teria sido a razão desse atropelo, se o próprio MTB já tinha recursos do FAT e o PLANFOR estruturado, que não dependia de nova legislação, e que já começava a ser implementado, particularmente através de parcerias com as secretarias de Estado e agências formadoras, com a participação dos representantes dos trabalhadores e empresários nas discussões técnicas e políticas? Mesmo não defendendo a criação desse Sistema em separado, tanto no âmbito do MTB como no do MEC, causa estranheza esse açodamento.

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Certamente, uma das razões terá sido o acordo do MEC com o Banco Mundial, veiculado na imprensa pelo próprio ministro Paulo Renato em 4 de Março de 1996, por ocasião do lançamento do Programa Educação Profissional em Belo Horizonte, pelo presidente da República. Como o Banco Mundial não financia projetos a não ser a partir de certas condições, que já vinham sendo negociadas pelos seus consultores, resolvidos os termos e os montantes do acordo, necessário se fazia o cumprimento do compromisso com o ajuste normativo que permitiria reduzir os custos da Educação Profissional ministrada na esfera pública com qualidade e de forma integrada ao ensino médio5.

Assim é que, ao mesmo tempo em que se anunciou o Programa, encaminhou- se ao Congresso o PL, elaborado às pressas por uma equipe interna isolada, sem fundamentação teórica e clareza conceitual, cujo texto é frágil, confuso e anacrônico. Outra razão articulada à primeira, porquanto derivada das políticas do Banco Mundial como estratégia para melhor enfrentar a relação entre custo e benefício, uma vez que os consultores do Banco recomendavam aos países pobres apenas a garantia do ensino fundamental aos que não ingressariam em ocupações qualificadas no mercado de trabalho, foi a redução do custeio da educação profissional pela União, repassando-o para os estados, municípios, setor produtivo e organizações não- governamentais, que passariam a manter e gerir os estabelecimentos que viessem a ser criados, com o apoio do governo federal apenas para investimentos em obras e equipamentos. Para os secretários estaduais, essa parceria com apoio na lei era interessante, uma vez que lhes permitiria realizar acordos internacionais com o BID ou com o Banco Mundial para financiar uma linha de ensino médio e tecnológico (separados), já que atendia às concepções de políticas educacionais daquelas instituições. Já historicamente responsáveis pela maior fatia da oferta e da manutenção do ensino médio, sem fonte específica de financiamento, as secretarias estaduais puderam resolver dois problemas de uma só vez: ampliar a oferta


5 Em 10 de Setembro de 1997, o MEC exara a Portaria n. 1005, que implementa o Programa de Reforma da Educação Profissional (PROEP), considerando, explicitamente, a “Recomendação nº 444, de 30 de junho de 1997, publicada no Diário Oficial da União de 04.09.97, da Comissão de Financiamentos Externos - COFIEX pela aprovação da continuidade da preparação do PROEP, identificado como passível de financiamento externo, por meio de Operação de Crédito Externo com o Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID”. Certamente essa implementação se efetiva porque as exigências para o financiamento externo já estavam contempladas, não por uma lei decorrente da aprovação do PL 1.603/1996, mas sim, de forma ainda mais eficaz e rápida, pelo Decreto n. 2208/1997. O organismo financiador seria, então, o Banco Interamericano de Desenvolvimento.

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atendendo às pressões políticas e obter financiamento específico com prazo de carência superior à duração das suas gestões, cumprindo parte de seus compromissos de campanha expressos nos planos estaduais sem ter que pagar a conta, que ficaria para o próximo período de governo6.

Entende-se, assim, o apoio dado pelo CONSED ao PL 1603/1996, voz dissonante do conjunto, uma vez que sua rejeição conseguiu uma quase unanimidade nacional, como se presenciou no seminário realizado pela Comissão de Educação no Congresso Nacional e nas audiências públicas promovidas pelo deputado relator Severiano Alves. Por essa razão, o MEC usou como estratégia retirar o PL da Comissão de Educação e encaminhá-lo para a Comissão do Trabalho, em julho de 1996, iniciada a sua discussão em agosto do mesmo ano.

Em fevereiro de 1997, a Casa Civil solicitou a retirada do processo, imediatamente deferida.

Em abril de 1997, o Decreto n. 2.208 foi promulgado, cumprindo a função a que se propunha o PL 1603/1996, que perde, então, a sua finalidade na esfera normativa; contudo, cumpriu sua principal função, que foi o atendimento às condições impostas pelo Banco Mundial para a concessão do financiamento, já no período das negociações. O seu cumprimento, por sua vez, estava assegurado pelo novo Decreto.

Destaque-se, finalmente, a partir da memória oral, uma vez que ignoro se o fato foi documentado: os gestores dos CEFET e Escolas Técnicas foram convocados pela SEMTEC para que fossem informados que os recursos oriundos do acordo com o BID só seriam disponibilizados àqueles que cumprissem o disposto no Decreto 2208/97.


Considerações finais


O PL 1603/1996 refletiu, sem sombra de dúvida, a política neoliberal que caracterizou o Estado brasileiro naquele momento histórico, sendo uma das expressões superestruturais da reorganização produtiva, através da qual o país se articulava ao movimento mais amplo, no bojo da internacionalização da economia, buscando a racionalização do uso dos recursos finitos, a redução da presença do


6 Além do PROEP, a MEC lançou o Programa de Melhoria e Expansão do Ensino Médio (PROMED), também com financiamento do BID, destinado aos Sistemas Estaduais de Educação, visando o “reordenamento” de suas redes para a oferta exclusiva do ensino médio separado da educação profissional.

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Estado no financiamento das políticas sociais, maior flexibilidade, qualidade e produtividade do sistema produtivo.

Embora tenha sido retirado de pauta, cumpriu uma importante função: viabilizar o acordo com organismos multilaterais, cujos recursos possibilitaram a expansão, a aquisição de materiais e equipamentos e a manutenção das escolas responsáveis pela Educação Profissional, em particular as da Rede Federal de Educação, mas também as das redes estaduais. Parodiando uma novela de época, o PL 1603 foi sem ter sido, o que revela sua importância e a necessidade do seu resgate nos registros da história das políticas de formação profissional e tecnológica.

Assim foi que o PL 1603/96, substituído pelo Decreto 2208/97 representou um espaço de negociação que viabilizou a formulação de políticas nacionais neoliberais orquestradas pelo Banco Mundial e com ação financiadora do BID, através do exercício de sua grande “missão”: reduzir a pobreza de forma sustentada nos países em desenvolvimento, mantendo os jovens no lugar definido pela sua origem de classe, o que vale dizer, viabilizando o processo de acumulação capitalista pela inserção do país no mercado internacional e preservando o mundo para os ricos, protegendo-o da destruição que fazem os pobres, o que demandava, minimamente, educação fundamental seguida de qualificação profissional. Em resumo, formar subjetividades que se submetessem ao trabalho precarizado e se comprometessem com a sustentabilidade...para a acumulação do capital.

Qualquer semelhança com as políticas públicas que vêm sendo formuladas, não é mera coincidência!


Referências


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BERGER FILHO, Ruy. Política para o ensino médio. Brasília: Ministério de Educação e Cultura, Secretaria de Educação Média e Tecnológica, 1995.


BERGER FILHO, Ruy. Política para a educação tecnológica. Brasília: Ministério de Educação e Cultura, Secretaria de Educação Média e Tecnológica, 1995.


BRASIL. MEC. Planejamento político-estratégico, 1995-1998. Brasília: Ministério da Educação e Cultura, 1995.


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BRASIL. MEC. Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Reforma do ensino técnico. Brasília, Ministério da Educação e Cultura, 1996.


BRASIL. MEC. Ministério do Trabalho. Questões críticas da educação brasileira. Brasília: Ministério do Trabalho, 1995.


BRASIL. Ministério do Trabalho. Secretaria de Formação e Desenvolvimento Profissional. Educação profissional: um projeto para o desenvolvimento sustentado. Brasília: Ministério do Trabalho, 1995.


BRASIL. Lei 9324 de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, 1996. Publicado no D.O.U. de 23.12.1996.


KUENZER, Acacia Z. As novas bases materiais de produção e a educação dos trabalhadores. Conferência proferida no CONED, Belo Horizonte, jul./ago. Mimeo, 1996.


KUENZER, Acacia Z. A questão do ensino médio no Brasil: a difícil superação da dualidade estrutural. Coletânea CBE - Trabalho e Educação. Campinas: Papirus, 1994.


KUENZER, Acacia Z. O ensino médio no contexto das políticas públicas de educação no Brasil. In: KUENZER, Acacia Z. Ensino médio e profissional: as políticas do Estado neoliberal. São Paulo: Cortez Editora, 2007.


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