V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X


MARIA CIAVATTA: UMA PESQUISADORA MILITANTE DA EDUCAÇÃO DOS TRABALHADORES1

Ramon de Oliveira2




O que constitui a verdade nos objetos e nos acontecimentos. O que constitui a sua interioridade, a sua essência. O que importa conhecer não se dá imediatamente na consciência. Não é aquilo que se nos oferece à primeira vista, desde o primeiro momento. É preciso refletir, e eu acrescentaria, refletir obstinadamente, insistentemente, para chegar à verdadeira natureza do objeto, ou seja, a sua essência, a sua universalidade, a sua totalidade (IANNI, 2011, p. 399).



1Artigo recebido em 02/03/2023. Aprovado pelos editores em 11/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57611.

2 Doutor em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Pernambuco. Bolsista PQ – CNPQ. E-mail: proframondeoliveira1966@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/9016348910585182. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6441-1488.


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Produzir um texto para homenagear uma pesquisadora com vastíssima produção científica, larga experiência na formação de recursos humanos para o trabalho científico, para o exercício da profissão docente, bem como para a atuação em espaços nos quais se exige a formação acadêmica e científica, é uma tarefa extremamente difícil e, de certa forma, delicada. Delicada, em mais de um sentido.

Primeiro, antes de tudo, no sentido de ser uma honra ter sido convidado para escrever sobre uma pesquisadora cuja história de vida profissional confunde-se com uma das áreas mais combativas na academia brasileira: GT 09 – da ANPEd – Trabalho e Educação, no qual a Professora Maria Ciavatta já atuou como coordenadora e tem uma contribuição efetiva desde a sua criação, ainda na década de 1980.

Também deve-se considerar a importância que este GT tem tido na proposição e no embate no âmbito das discussões sobre as políticas para o ensino médio e para a educação profissional. Neste sentido, não se está escrevendo sobre uma personagem qualquer, mas sobre alguém que carrega consigo a marca de uma militância política e acadêmica que tem ressonância no âmbito acadêmico e científico, como também nos espaços relativos ao debate sobre os rumos da educação básica brasileira.

Delicado também no referente ao ser respeitoso. O respeito à sua obra tem um pouco de sinônimo de cuidado, pois como, ao homenageá-la, não considerar a diversidade de obras e temáticas que marcam a sua respeitosa e bela trajetória profissional? São dezenas de artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais, 37 livros e mais de uma centena de capítulos de livros. Seria impossível conseguir, em um texto como este, contemplar, o minimamente possível, toda a sua produção e fazer a justa homenagem que ela merece, considerando a sua produção científica e sua trajetória política e acadêmica.

Também se faz necessário considerar a sua grande expressividade na formação de pesquisadores, a qual se expressa pela orientação de mais de 50 mestres e doutores. Aqui a delicadeza para mim tem mais uma vez o sinônimo de honra, pois tive o prazer e a felicidade de ter sido sua primeira orientação de doutorado concluída.

Embora tenhamos feito referência a um pouco do que tem sido a Professora Ciavatta quanto à produção científica e à formação de recursos humanos, inclusive alunos de iniciação científica, não vamos conduzir este texto por tal caminho.

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Embora saibamos que estes indicadores sejam atualmente os critérios mais valorizados para se mensurar o quanto um pesquisador produz retornos para a sociedade, entendemos que se procedemos assim, submetemos a homenagem à valoração de aspectos quantitativos, reproduzindo aqui o propagado e estimulado pelas instituições de fomento à pesquisa ou pelo que é estruturante da avaliação da pós-graduação no Brasil.

Não temos a competência de fazer esta homenagem adentrando-nos na sua história de vida, articular sua vida profissional com sua trajetória enquanto mulher, mãe, esposa etc. Para nossa felicidade, este tipo de homenagem já foi feita, de forma ímpar por Eunice Trein e José da Silveira Lobo Neto (TREIN; LOBO NETO, 2004).

Como ex-aluno e orientando de doutorado, sabemos da importância da Professora para a Universidade Federal Fluminense, particularmente na sua atuação no Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação – Neddate, vinculado à Faculdade de Educação e ao Programa de Pós-Graduação em Educação. O grupo de pesquisa criado por ela e pelo Professor Gaudêncio Frigotto, em 1985.

Preferimos então dialogar com a produção e o pensado pela Professora Maria Ciavatta, a partir de uma questão central para o processo de pesquisa e balizador da obra da nossa querida professora: para quem e para o que se produz conhecimento? Logo, considerando a sua obra, o que deve ser valorado não é o quantitativo do que se produz, mas o objetivo que leva à realização desta produção, o que se espera com a socialização destes resultados e quem são os principais destinatários destas produções.

Neste sentido, peço, com muito respeito, licença à Professora Ciavatta, para fazer esta homenagem privilegiando o debate não em temáticas que nortearam sua produção científica: estudos comparados, a história da educação dos trabalhadores, a relação trabalho e educação, a historiografia em trabalho e educação, a fotografia como mediação, o ensino médio integrado etc, mas para focar este texto no que tem sido e representa a sua contribuição – a partir de suas obras e de suas intervenções nos variados espaços acadêmicos, políticos e de Estado –, enquanto uma educadora militante na construção de uma sociedade menos desigual e na construção de um projeto de escola e de formação humana atento aos interesses da classe trabalhadora.


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Quando levamos em consideração o que se produz e para quem se produz, o discurso da homenagem toma outro sentido e estrutura-se a partir de outros conteúdos, os quais normalmente não são aqueles mais valorizados pelas instituições de fomento e nem por aqueles que detêm o poder de selecionar e disseminar o conhecimento produzido.

Sua produção científica é lastreada em um rigor científico, pouco visto nos dias atuais. Ela produz referenciada na inquietação e na prática do confronto com a naturalização das desigualdades que historicamente se produzem e se reestruturam na sociedade brasileira. Por isso, nos coloca diante do compromisso de enaltecer e reafirmar a sua contribuição para a pesquisa educacional no Brasil e América Latina, considerando o princípio político de sua atuação enquanto professora, pesquisadora e mulher de confrontar-se com práticas que tornam os sujeitos desiguais (ARROYO, 2010), as quais se fortaleceram ao longo dos últimos anos na sociedade brasileira.

Elas ampliaram-se em função de que se concatenam com uma lógica econômica que impulsiona o aumento da desigualdade social, privando boa parte da população brasileira de uma vida com um mínimo de direitos sociais. Práticas que, além de se pautarem por preceitos de um liberalismo perversamente excludente, articulam-se a outras agendas neoconservadoras, racistas, misóginas etc., ampliando a segregação social, a violência contra as mulheres, negros, indígenas e os grupos LBGTQIA+. Elas reafirmam ações e posturas contrárias à democracia.

São contrárias a uma ordem social, política e econômica e a qualquer projeto de formação humana que não seja aquele que sirva para assegurar os interesses do grande capital e das elites brasileiras.

Referenciando-nos em Boaventura de Sousa Santos (SANTOS, 2001), entendemos que a Professora Ciavatta cumpre seu papel enquanto intelectual e cientista de rejeitar qualquer insinuação da neutralidade. Ela tem claro de que lado está. Sabe que assumir o posicionamento político não fere a objetividade tão perseguida pela ciência. Atenta e sabedora de qual lado se encontra, ela assume o compromisso de pensar o real, de articular a produção do saber científico à conquista do bem comum, de um mundo melhor, de uma sociedade estruturada em bases solidárias e voltada para o fim da desigualdade social. Considera a desigualdade reflexo de uma ordem social na qual as pessoas são secundárias em relação aos interesses da acumulação, dos grandes grupos econômicos e do grande capital em todas as suas formas de expressão.

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Maria sempre nos lembra que a cidadania não faz parte do dicionário das elites brasileiras, quando pensam nos setores mais pobres da população.


A própria questão da cidadania é, originalmente, uma questão alheia à constituição histórica da sociedade brasileira, situação que teria se prolongado sob o fenômeno da exclusão dos “cidadãos” brasileiros de diversas instâncias da vida social. A questão subjacente, até hoje, é sobre quem pertence à comunidade política, como deve ser a participação da população em um processo que se pretende democrático e, consequentemente, quem são os cidadãos e quais são os seus direitos de brasileiros (CIAVATTA, 2002, p. 40).


Como destaca Boaventura de Sousa Santos, o cientista tem um papel importante de ser tradutor desta complexa realidade, contribuindo assim para as mobilizações sociais. Ser intelectual da transformação, papel exercido por Maria Ciavatta. Ela não tem, em relação à realidade, uma ação de contemplação. Produz conhecimento a partir do concreto, para nele atuar e transformá-lo. É na sua práxis, na ação intencional enquanto sujeito social que comprova o poder do conhecimento por ela produzido.

Esta ação tem sido a marca dessa professora enquanto cientista e intelectual; daí acharmos pertinente trazer para este texto um trecho do tributo que Trein e Lobo Neto fizeram a ela, o qual representa uma boa síntese do que desejamos expressar:


E, ao revisitar seus textos, nos convencemos de que para ela, o que para muitos era um teto a ser alcançado, sempre foi o chão e a base, concreto ponto de partida, de percurso e de chegada. Não um mundo de ideias a ser reproduzido- ou, simplesmente, contemplado-, mas ideias de mundo a serem construídas com as histórias de realidade que se entrelaçam em mediações que viabilizam o conhecer. Este, nascido e fluente no movimento da história, logo se faz real no ato de mediar ações de transformação e criação de novas realidades (TREIN; LOBO NET0, 2004, p. 59).


Na apresentação de seu livro “Mediações históricas de trabalho e educação” (CIAVATTA, 2009a, p. 11) ela diz que: “no processo de pesquisa, geralmente, é mais importante saber fazer perguntas do que respondê-las. Isso porque a pergunta revela a identificação do problema cuja compreensão ou solução buscamos”. Segundo ela, as respostas alcançadas, determinadas também pela pergunta mobilizadora, relacionam-se diretamente com a capacidade de compreensão do real, bem como têm implicações reais na capacidade de transformá-lo.

O motivo pelo qual ela faz pesquisa tem relação direta com a posição política e epistemológica que norteia o seu trabalho científico. Qualquer que tenha sido a

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temática de sua ação enquanto pesquisadora: educação básica, ensino médio, educação profissional, a relação trabalho-educação, estudos comparados, ensino superior, formação de professores, história da educação dos trabalhadores, a fotografia como fonte histórica etc., o central está em sua abordagem pautar-se pela perspectiva de os resultados contribuírem para avançarmos na edificação de uma sociedade mais justa, fraterna e democrática.

Sob este princípio político, ela nos faz o seguinte esclarecimento quando abordou os estudos historiográficos da relação entre trabalho e educação:


Analisar a relação entre trabalho e educação, sob o risco de sua historicidade, obriga-nos a explicitar nossos pontos de vista sobre algumas questões. Em primeiro lugar, o compromisso com a construção de uma história que sirva de meio de expressão de demandas manifestas pelos setores populares e, portanto, concorra para alargar a consciência no sentido da democratização da educação (CIAVATTA, 2009a, p. 39).


Ela deixa evidenciado o quanto seu trabalho de pesquisadora não se define em função do atendimento a um padrão estabelecido de pesquisador, no qual o quantitativo se sobressai em relação à dimensão qualitativa, padrão este que impera no âmbito acadêmico, onde a produção ou socialização do conhecimento produzido atrelam-se ao atendimento de uma lógica produtivista. Lógica pela qual o imperativo de produzir subsume o compromisso ético e político do pesquisador.

Neste contexto, o cientista preocupado, cada vez mais, em atender aos requisitos impostos pelas agências de fomento à pesquisa, descola o seu papel de pesquisador do papel de educador. A ciência, enquanto possível propulsora de transformação da realidade, sucumbe à lógica da aplicabilidade imediata, do retorno econômico.

Por essa lógica, a razão de fazer pesquisa sobre o que é a realidade concreta, sua transformação, se inverte para ser a de produzir para a inovação; conhecimento que, na prática, termina por ser mecanismo concreto de adequação à realidade, de criação de mecanismos de adaptação e de ausência de questionamento das distorções sociais e das práticas de desigualdade que insistem em se manter como modeladoras da convivência humana.

Em uma sociedade estruturada pela luta de classes – pressuposto que a Professora Ciavatta considera imprescindível para a análise da realidade concreta – a produção científica não tem neutralidade. O que se produz e se dissemina nos meios

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de comunicação, nos espaços de divulgação científica, na produção de imagens e fotografia, estão, ou a serviço da ordem instituída, ou mobilizados no sentido de desvelar as relações de dominação e de subjugação às quais a maioria da população está submetida.

Romper com a lógica da dominação, para aqueles que produzem conhecimento no campo das ciências sociais, demanda mobilizar-se no sentido de se confrontar com a ideologia burguesa, com os fenômenos que aparecem para os indivíduos como coisas naturais. Confrontar-se com o que parece natural é, ao mesmo tempo, afrontar a dominação, a perpetuação das relações de desigualdade. Pois como ela destacou (CIAVATTA, 2019), a realidade não é apreendida apenas pela observação dos aspectos aparentes.

A fotografia, por exemplo, temática e objeto de investigação, para a qual ela tem dedicado sua atenção em várias pesquisas, não pode ser vista apenas como uma imagem sem vínculos, sem propósitos e desprovida de historicidade.


O conceito da fotografia como mediação não expressa apenas sua face aparente, a representação, mas também, seus conteúdos ocultos, não percebidos ou não revelados à primeira vista, sua essência, as múltiplas relações que a contextualizam e permitem a compreensão de seu sentido e significado histórico (CIAVATTA, 2021, p. 21).


A fotografia é resultado de uma atividade social. No entanto, conseguir captar o que se expressa através da fotografia demanda pensá-la em sua totalidade.


No sentido marxiano, a totalidade é um conjunto de fatos articulados ou o contexto de um objeto com suas múltiplas relações ou, ainda, um todo estruturado que se desenvolve através das mediações, processos sociais complexos que sintetizam as múltiplas determinações de um objeto (Ciavatta, 2002). Consequentemente, as totalidades são tão heterogêneas e tão diversificadas quanto os aspectos da realidade (CIAVATTA, 2016, p. 145).


Ela pensa a fotografia como produção social e cultural de um tempo histórico específico. Daí ser necessário saber quem a produziu, qual o objetivo de sua produção e para quem se produz. Além disso, demanda ser necessário analisá-la a partir de outras fontes que permitam conhecer o objeto e apropriar do que está oculto na imagem.

Daí, como destaca a nossa professora, a fotografia precisa ser analisada em um processo de intertextualidade.


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Mas a fotografia não fala por si sobre tudo que oculta além de sua sedução, da aparência sensível, estetizada com o que se nos apresenta. Necessitamos de outras fontes documentais para identificá-la no tempo e no espaço, de modo a saber quem a produziu, a preservou, como está sendo utilizada, com que finalidades. Precisamos proceder a um processo de intertextualidade, isto é, de leitura das fotos recorrendo a outros textos para sua compreensão como fonte histórica (CIAVATTA, 2009b, p. 46).


Tomei como exemplo o trato metodológico para o trabalho com fotografia para pensar o processo de formação que se desenvolve historicamente na educação profissional brasileira. Recentemente, com a contrarreforma do ensino médio, ficou evidenciado, mais uma vez, a disposição das elites de negarem uma formação mais ampla para os jovens da classe trabalhadora. O empobrecimento e a fragmentação curricular, a existência do itinerário da formação técnica e profissional desvinculado da Base Nacional Comum Curricular, evidenciam que se quer estabelecer um processo formativo que seja impedimento de uma leitura mais complexa dos fenômenos sociais, políticos, econômicos etc.

Se fizermos referência à necessidade da intertextualidade para o trabalho com fotografia, não menor é a importância de se garantir a apropriação do conhecimento historicamente produzido para que os egressos da educação básica tenham a possibilidade de analisar e compreender os objetos de estudos, a partir de variadas dimensões. Neste sentido, o ensino médio integrado, alvo da militância intelectual e política da nossa professora, se coloca como um dispositivo fundamental para se garantir um modelo de educação básica e profissional que seja possibilitador de uma formação intelectual mais capaz de levar a juventude para além de uma mera e empobrecida adaptação para o trabalho.


A ideia de formação integrada sugere superar o ser humano separado historicamente pela divisão social do trabalho entre a ação de executar e a ação de pensar, dirigir ou planejar. Trata-se de superar a redução da preparação para o trabalho ao seu aspecto operacional, simplificado, escoimado dos conhecimentos que estão na sua gênese científico-tecnológica e na sua apropriação histórico-social. Como formação humana, o que se busca é garantir ao adolescente, ao jovem e ao adulto trabalhador o direito a uma formação completa para leitura do mundo e para atuação como pertencente a um país, integrado dignamente à sua sociedade política. Formação que, nesse sentido, supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os fenômenos (CIAVATTA, 2005, p. 85).


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Os estudiosos da relação trabalho e educação – e nisso os seus estudos sobre a história da educação dos trabalhadores muito nos ajudam – mostram que, na história educacional brasileira, a ideologia que permeia os projetos educativos objetiva tornar o trabalhador cada vez mais submisso e reprodutor do pensamento burguês. Desta forma, confrontar-se com a ideologia da dominação converte-se, para aqueles que se mobilizam pela construção de uma sociedade para além do capital, em tarefa inadiável. Neste sentido, ela ressalta a importância e o sentido da pesquisa científica como dispositivo, como produção social, que pode e deve opor-se às práticas que naturalizam a dominação e convertem os sujeitos dominados em “autores” da sua própria dominação. Daí ela afirmar que “a superação do aparente em busca de determinantes mais profundos, em busca de nexos reais, é condição sine qua non para fazer ciência, para conhecer a história que aparece permeada pela ideologia” (CIAVATTA, 2009a, p. 74).

Os trabalhos da Professora Ciavatta com relação à memória dos feitos dos trabalhadores deixam evidenciado que o tomar consciência do presente tem relação direta com o conhecer o passado.

A ação de contestação à ordem burguesa no tempo presente tem relação direta com o saber que as desigualdades de hoje têm vínculo com o projeto de dominação que ao longo da história brasileira vem se repetindo. Neste sentido, confrontar-se à naturalização das desigualdades que as elites nacionais tentam impor, demanda reconstruir a história no sentido de questionamento da própria história que nos é contada.

A história não é narrativa de fatos passados, das ações dos reis, príncipes e líderes políticos. A história é a produção social da existência humana. Logo, o passado deve ser visto como uma processualidade. Como ação dos indivíduos na construção de sua existência. A história é relação, contradição, conflito. Processos que se efetivam e determinam o tempo subsequente.


O mundo da história, em uma visão dialética, é o mundo do movimento, da transformação que pauta a vida tal qual a conhecemos como humanidade. No materialismo histórico é o mundo do ser social, dos homens e mulheres em sociedade, agindo, produzindo as próprias condições de vida, nas circunstâncias que lhes são dadas a viver (CIAVATTA, 2019, p. 20).


Seus estudos nos ajudam a perceber que para as elites os trabalhadores não fazem história. São coisas, objetos, não têm história (CIAVATTA, 2020). São dignos

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de registro como sujeitos ativos quando estão a serviço da lógica da acumulação, quando estão imbuídos de levar à frente um projeto social e econômico que interessa a quem detém este poder político e econômico.

A ausência de relatos da história nos quais se evidenciem os trabalhadores como protagonistas de um projeto político, social e econômico; além de expressar que a memória conservada e propagada é aquela que as elites buscam consolidar como narrativa de tempos passados, também se configura como mecanismo de impedimento de que as gerações futuras façam leituras que não sejam aquelas que as elites buscam impor como verdades.

A sua ação enquanto pesquisadora vai no sentido de reconstruir a história, de pensar o tempo presente, não como uma determinação do tempo passado, mas como consequência de práticas históricas que estruturaram, mantiveram e reconfiguraram relações de dominação que se potencializaram ao longo do tempo. Ter consciência deste passado é também uma das condições para desnaturalizar a desigualdade.

Aos trabalhadores há de ser pedagogicamente assegurada a possibilidade de releitura do mundo, de se pensar enquanto sujeito que faz história e perceber que muitos dos desafios postos no presente mostraram-se existentes em tempos passados e foram confrontados por gerações anteriores que não abriram mão de fazer história.


No Brasil, como em outros países, as elites sempre estiveram preocupadas em preservar seus feitos, suas vitórias e sucessos, suas dinastias e descendentes para a posteridade. Mas, é restrita a memória das lutas de resistência, das revoltas e das revoluções dos setores populares, das ações de resistência das classes trabalhadoras. Em nosso tempo, com a história oral, participamos de uma tomada de posse de todas as memórias e dos relatos históricos que com elas se constroem, por aqueles longamente excluídos de sua própria história. Os trabalhadores, as mulheres, os negros, os índios, os idosos tomam a palavra e se fazem ouvir no mundo silenciado pelos poderosos. Por que lutar, por que preservar a memória das lutas, são perguntas que adquirem um novo significado neste processo, o de passar às gerações futuras, aos mais jovens, o legado da esperança das conquistas de vida longamente ansiadas. Se a palavra não basta para transformar as estruturas sociais, ela alimenta o conhecimento e instaura verdades possíveis (CIAVATTA, 2016, p. 148).


Ela deixou muito claro em suas pesquisas, particularmente aquelas relacionadas à história da educação dos trabalhadores, que a escola tem relação direta com a conservação de valores, projetos e ações das classes hegemônicas.


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A escola sempre tende a naturalizar as práticas de dominação e se volta, no âmbito da formação profissional, para muito mais do que formar tecnicamente os trabalhadores, mas quer também a construção de subjetividades a serviço do capital. Há sempre a busca por adequar, ajustar, formatar os comportamentos dos trabalhadores de maneira que possam, “harmoniosamente”, submeter-se aos imperativos do capital. Seja nos períodos de início da industrialização, seja no momento de reestruturação do capital com a ascensão da produção flexível.


As condições históricas de exploração e alienação do trabalho educam no sentido adverso aos interesses da classe trabalhadora, para a realização dos interesses de classe do proprietário dos meios de produção (CIAVATTA, 2019, p. 27).


Em qualquer tempo histórico desde o início da industrialização, a relação entre escola e trabalho norteia-se pela subsunção da formação do trabalhador aos interesses do capital. No entanto, a escola enquanto espaço contraditório, como também é o mundo do trabalho, é um território de formação de consciência, de possibilidade de reconstrução história. Ela acredita e direciona seu trabalho no intuito (para que ela produz conhecimento) de garantir que o conhecimento científico possibilite aos jovens da classe trabalhadora (para quem se produz conhecimento) realizarem novas leituras das histórias, dos relatos e das imagens. Ela busca que se tornem mediações para estes sujeitos atuarem enquanto agentes das mudanças.


Se a realidade da escola a serviço do sistema capital cultiva o trabalho na sua negatividade, ela também oferece aos jovens a oportunidade de acesso aos conhecimentos técnicos, tecnológicos, científicos e histórico-sociais presentes no exercício teórico-prático da educação profissional. A totalidade social dos processos educativos não se esgota na alienação prevista pelo sistema, ela gera também a resistência que pode conduzir à sua superação (CIAVATTA, 2019, p. 28-29).


No entanto, não é qualquer escola que será capaz de contribuir para um projeto de emancipação. Particularmente a educação profissional, na perspectiva emancipatória, da tomada de consciência do real, não prescinde de uma formação científica, de uma formação de caráter geral que assegure os conhecimentos fundamentais a uma leitura crítica de mundo, dos fatos, das imagens, para além da aparência.

Neste sentido, ao defender, de forma intransigente, uma educação profissional diferente da que tem sido ofertada à classe trabalhadora, a Professora Ciavatta, está,

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tal qual Antonio Gramsci, afirmando o papel mediador que tem a formação escolar no processo de construção de lideranças capazes de ter uma práxis real de construção de um outro projeto de sociedade.


Todo empenho teórico e prático dos pesquisadores que utilizam a base teórica do materialismo histórico, está no sentido de superar a compreensão de formação profissional apenas como treinamento para atividades manuais, e conceber a educação como formação humana, como um processo de ampliação do conhecimento e da leitura do mundo. Como o trabalho, a formação humana deve ser entendida e praticada em relação aos conceitos de totalidade da vida social e do trabalho como atividade estruturante da vida humana em todo seu potencial, dignidade e ética (CIAVATTA, 2019, p. 28).


Apreendemos com a nossa Professora que não há neutralidade no trabalho pedagógico escolar, assim como não há neutralidade nos espaços de formação frequentados pelos indivíduos ao longo da sua vida.

Toda prática pedagógica, estruturada sempre em função e decorrente do mundo do trabalho, é necessariamente constituinte de um novo ser. Como ela destacou “o ser é e não é ao mesmo tempo, porque constitui-se no movimento, na permanente transformação” (CIAVATTA, 2019, p. 17). Desta forma, pensar o papel do pesquisador enquanto formador de novas subjetividades, de novas práticas, de ser proporcionador de novas leituras de mundo, nos leva a pensar que embora o pesquisador na área de educação desenvolva o seu trabalho no interior das instituições de pesquisa, o que ele produz deve reverberar em outros espaços formativos.

Pensar a ação do pesquisador como mediação para a construção de nova realidade é pensar o quanto ele necessita dialogar com os espaços que também formam os trabalhadores. Ou seja, a escola, ainda que seja o lócus principal de atenção dos pesquisadores da educação, não é o único e nem o melhor local de construção de práticas na perspectiva de uma nova sociedade. Ela nos alerta para o quanto precisamos dialogar com os movimentos sociais e com outros espaços informais de educação.

Cabe ressaltar que os processos educativos não ocorrem apenas na escola, mas também nos espaços informais da educação para o trabalho, nas experiências de vida para a cidadania, para a cultura, nos movimentos sociais e no desenvolvimento das capacidades organizativas e de resistência (CIAVATTA, 2019, p. 28).


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Por último, quando o pesquisador se conforma com a lógica da dominação, quando perder sua rebeldia, seu papel de questionador da ordem instituída, quando não mostrar sua indignação e não se mobilizar de forma intransigentemente contrária à desigualdade; quando ele se moldar à lógica da competição que tende a estruturar e orientar o trabalho acadêmico, sua ação tenderá ser apenas de reforço ao instituído pela ordem burguesa. Será mais um a naturalizar as arbitrariedades históricas que vivenciam e vivenciaram os grupos e classes sociais que historicamente são exploradas ou desprezadas pelas elites e classes dominantes. Se lembrarmos de Pablo Milanés diríamos: pobre do pesquisador que um dia a história o apague sem a glória de ter tocado espinhos.

Quando há esta perda de rebeldia, a realidade que efetivamente demanda transformação, passa a ser apenas alvo de contemplação. O conhecimento novo termina por não questionar as velhas relações de dominação que impedem a maioria da população de viver um projeto novo de sociedade, no qual as pessoas vêm em primeiro lugar, e não o capital.


Mais fortes que a produção social e da vida acadêmica, contudo, são as imposições da inquietação e da inconformidade humana. É neste espírito de insatisfação e “rebeldia” que nos dispomos a tentar a travessia do campo obscuro dos objetos que constituem a prática político-pedagógica (CIAVATTTA, 2009a, p. 47-48).


Neste sentido, como destaca Maria Ciavatta, a inconformidade deve pautar a nossa ação. E esta inconformidade tem pautado a ação desta pesquisadora militante que muito nos tem ensinado a não sermos apenas sujeitos contemplativos, mas sim, sujeitos históricos que se fazem no mundo do trabalho.

Com ela, aprendemos sempre a nos lembrar de Gramsci. De termos sempre o pessimismo da inteligência, do pensar criticamente, mas ter otimismo da vontade, da esperança de construir algo novo, de pôr fim ao que produz a negatividade de direitos e a vida indigna a milhões de pessoas.


Obrigado, Professora Maria Aparecida Ciavatta Pantoja Franco.


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Referências


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