V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X


NEGACIONISMO E IDEOLOGIA: A ATIVIDADE TEÓRICA NOS PROCESSOS DE CONSCIÊNCIA1


Giovanni Frizzo2


Resumo

O objetivo deste texto é analisar a relação entre o negacionismo, entendido como uma expressão ideológica do atual período de crise sistêmica, e a atividade teórica que incide sobre os processos de consciência. O negacionismo articula as manifestações do senso-comum, da mitologia (religião) e da ciência/filosofia em torno de um projeto de dominação no qual o conhecimento crítico da realidade é combatido por uma perspectiva de ultrageneralizações e exacerbação do individualismo.

Palavra-chave: Negacionismo; Ideologia; Consciência.


NEGACIONISMO Y IDEOLOGÍA: LA ACTIVIDADE TEÓRICA EN LOS PROCESOS DE CONCIENCIA


Resumen

El objetivo de este texto es analizar la relación entre negacionismo como una expresión ideológica del actual período de crisis sistémica y la actividad teórica que incide sobre los procesos de conciencia. El negacionismo, articula las manifestaciones del sentido comum, de la mitología (religión) y de la ciencia/filosofía cerca de un proyecto de dominación en lo cual el conocimiento crítico de la realidad es combatido por una perspetiva de sobregeneralizacion y exacerbación del individualismo

Palabra clave: Negacionismo; Ideología; Conciencia.


DENIALISM AND IDEOLOGY: THE THEORETICAL ACTIVITY IN THE CONSCIENSE PROCESS


Abstract

The objective of this text is to analyze the relation between denialism as an ideological expression of the current period of sytemic crisis and the theoretical activity that focuses on the processes of consciousness. Denialism articulates the manifestations of common sense, mythology (religion) and science/philosophy around a project of domination in which critical knowledge of reality is fought from a perspective of overgeneralization and exacerbation of individualism.

Keyword: Denialism; Ideology; Conscience.



1 Artigo recebido em 10/02/2023. Primeira avaliação: 20/03/2023. Segunda avaliação: 22/03/2023. Aprovado em 30/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57641.

2 Doutor em Ciências do Movimento Humano pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Rio Grande do Sul.

E-mail: gfrizzo2@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2344138672288053. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0025-9947.

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Introdução


O objetivo deste texto é analisar a relação entre o negacionismo como expressão ideológica do atual período de crise sistêmica e a atividade teórica que incide sobre os processos de consciência. Compreendemos que o pensamento sobre o real é atravessado, neste momento, por um contexto de reconfiguração do padrão de acumulação capitalista que modifica a base produtiva e em decorrência disso altera também as representações que os sujeitos fazem da realidade. Este novo padrão de acumulação capitalista ultraliberal acompanhado da crise sanitária pandêmica ampliou o negacionismo como expressão ideológica para sustentar o conjunto de medidas da burguesia que precarizam ainda mais as condições de vida do povo trabalhador e sustentar políticas que se preocuparam com “o lucro acima da vida”, levando milhares de trabalhadores e trabalhadoras ao contágio e morte por Covid-19. O negacionismo como expressão ideológica é ampliado para as mais diversas esferas da vida cotidiana e para a definição de políticas de Estado. Não é apenas pelos aplicativos de bate-papo que se disseminam as chamadas “pós-verdades”, arraigadas em fakenews distribuídas nestas redes, mas também na produção do conhecimento científico/filosófico se proliferam pós-verdades e negacionismo que buscam relegar o conhecimento da realidade a um segundo plano em que a verdade não existe, que a realidade está em cada pessoa, que tudo é discurso e que a disputa se dá entre narrativas e não entre classes sociais, dentre outras expressões. Ou seja, se constitui uma ciência anti-científica que vai servir de argumento da classe dominante para justificar políticas de carestia e desmonte dos direitos sociais que

estamos vivenciando.

A argumentação que apresentamos neste texto discorre sobre estas relações que se apresentam no plano do senso-comum, da mitologia (religião) e da ciência/filosofia para compreendermos o negacionismo como uma expressão da ideologia da classe dominante. Para este fim, esboçaremos elementos sobre os processos de consciência que, dentre outros aspectos, também são colocados em movimento pela atividade teórica de sujeitos e de sua classe, pela representação que fazem de si internalizando a ideologia dominante ou confrontando estas transformando sua consciência.


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Consciência, ideologia e alienação


O ponto de partida é que a consciência é expressão das relações sociais de produção da existência. Portanto, na imediaticidade do que os indivíduos tomam para si como compreensão do mundo aparece a reprodução de ideias e valores próprios da classe dominante que se expressam como seus e que, atravessados por contradições da vida cotidiana, incorporam uma sociabilidade alienada também de si mesmo. Essa alienação é também uma expressão da consciência da classe e aqui importa destacar que não há um momento de “não-consciência” dos indivíduos, como se a consciência da classe fosse uma revelação profética ou um insight na vida de cada pessoa em sua caminhada.

Como expressa Iasi (2013, p. 72),


O proletariado não vive em outras relações, ele vive nas relações constitutivas do capital. Portanto, a primeira expressão de uma consciência social, que os trabalhadores tomam como sua, é a expressão das relações que eles compartilham com a burguesia na existência mesma da sociedade capitalista, na sua imediaticidade.


O conjunto das ideias dominantes da classe dominante é incorporado pelo indivíduo de forma invertida: não é uma consciência de si ou para si, mas uma forma ideológica em que o sujeito internaliza esse conjunto de ideias provenientes das relações de dominação capitalista e, mesmo com contradições entre os valores ideais que se chocam em contradições com o real, assume para si os objetivos que não são seus, mas da classe dominante, do capital na sociedade capitalista.

Com base na dialética materialista, nos cabe dizer uma obviedade - que contém ironia - e que, por vezes, é deixada de lado pela filosofia idealista: a consciência de classe “é o que ela é”, ela “não é o que ela não é”. Ou seja, por mais elaborada que a teoria política desenvolva seus preceitos e avaliações de conjuntura, o fenômeno material não é resultado destas teorias, o concreto é síntese de movimentos precedentes. É esta síntese que analisamos para compreender o fenômeno e isso não nos permite projetar uma ideia sobre a realidade como se as narrativas e discursos modificassem a situação real da consciência.

É a partir desta conexão entre a produção da vida material e as decorrentes

formas determinadas de consciência social que partimos para a investigação de nosso objeto. Assim como, a compreensão geral sobre os processos de consciência que nos

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fundamenta, parte do entendimento de Iasi (2014, p. 36): sendo o estudo da consciência “uma maneira de aferir o grau de maturidade da luta de classes expressa na luta entre concepções de mundo antagônicas, como grau de amadurecimento de novas formas de consciência que lutam ainda sob o invólucro da velha sociedade”.

A partir da luta entre classes antagônicas, se colocam em oposição as ideias da classe dominante e a forma objetiva do ser da classe dominada. Isto é, relações de poder e dominação de uma classe sobre outra vão constituir processos que visam a internalização dos preceitos burgueses para o conjunto da classe trabalhadora. Esta internalização não é imediata e absorvida como a verdade absoluta, mas atravessada por diferentes aspectos do ser da classe. As lutas de resistência, as individualidades isoladas, as manifestações de coletivos e outras determinações são fundamentais para compreender que as ideias da classe dominante são lastreadas pela forma como sujeitos, coletivos e classe assumem ou confrontam tal ideologia.

“As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, ou seja, a classe que é o poder material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, o seu poder espiritual dominante” (MARX; ENGELS, 2007, p. 67). Esta clássica frase explicita a compreensão geral da ideologia enquanto manifestação de dominação de classe a partir da objetividade do modo de produção.

E tendo em vista que o modo de produção capitalista vai se modificando de acordo com as suas próprias demandas produtivas e de poder político em cada período histórico e contexto particular, as suas ideias também se modificam ao longo do tempo correspondendo às novas situações e exigências para forjar e reproduzir a subjetividade da classe explorada e oprimida. Assim, se compreende que não há uma “ideologia absoluta” que atravessa o tempo como única expressão de dominação burguesa. O imperativo de ontem, hoje está superado.

Isso não significa dizer que a classe dominante foi superada, pelo contrário, suas ideias são revigoradas para adequar-se ao movimento próprio da história produzida pela massa de trabalhadores e trabalhadoras em contradição com as relações sociais de produção de cada contexto. A superação das antigas ideias não é originada em novas ideias, mas surgem a partir da realidade objetiva e concreta (com suas lutas e contradições), cujas transformações dão lugar à novas elaborações que correspondem a determinadas formas de consciência social necessárias para a burguesia manter-se dominante. A Internalização das ideias dominantes é diferente


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de absorção pura, simples e total; a internalização é um tipo de tradução das ideias dominantes pelo indivíduo através dos recursos (ou ferramentas) cognitivos e psíquicos que alcança naquele momento, ou seja, são mediações entre a ideia universal dominante e o estágio cognitivo do indivíduo que tem como resultado a tomada do particular como universal. Ou, ainda, como afirma Vigotski (2007, p. 56) a internalização é “a reconstrução interna de uma operação externa”.

Portanto, é imperativo compreender o movimento como elemento fundamental dos processos de consciência e sua relação com a ideologia que é uma forma de consciência social, porém não é a única expressão desta. Como afirmou Mészáros (2004, p. 65), “ideologia não é ilusão nem superstição religiosa de indivíduos mal- orientados, mas uma forma específica de consciência social, materialmente ancorada e sustentada”.

A ideologia faz parte da dominação de uma classe sobre outra, dominação esta que prescinde da existência de classes para sua estrutura de produção. Mesmo que dominante esta classe necessita de outra para dominar. Diferente da perspectiva de superação da sociedade de classes em que o proletariado não necessita da burguesia para a transformação revolucionária, não nos parece fazer sentido as noções de “ideologia proletária”. Ainda que no início do século XX, alguns dirigentes comunistas tenham apontado linhas políticas que se aproximavam dessa noção (por exemplo, Lenin, Gramsci e Lukács), cabe destacar que uma das obras fundamentais de Marx e Engels para essa compreensão da ideologia enquanto dominação de classe - “A Ideologia Alemã” - não havia sido publicada de nenhuma forma até 1932. Portanto, essa noção de ideologia proletária se confunde em seu conteúdo com a perspectiva de consciência de classe do proletariado como elemento necessário para o avanço da classe trabalhadora em direção à ruptura com o capitalismo. A ideologia sempre vai se apresentar a partir de um “reflexo invertido” do real exatamente para dominar a classe explorada e sustentar um modo de produção cindido em classes antagônicas. Do ponto de vista da consciência, a ideologia é uma força que age de fora para dentro do sujeito que absorve para si as ideias da classe dominante como forma natural e universal do ser social. Davis (2016, p. 127) indica tais aspectos quando

afirma que


a ideologia burguesa - e particularmente seus componentes racistas - realmente deve possuir o poder de diluir as imagens reais do terror em obscuridade e insignificância e de dissipar os terríveis gritos de

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sofrimento dos seres humanos em murmúrios quase inaudíveis e, então, em silêncio.


Ao mesmo tempo, há uma força de dentro para fora que se torna independente e que controla o indivíduo: a alienação. Ideologia e alienação são duas forças que elaboram na consciência a reprodução da estrutura social baseada na propriedade privada e das classes sociais decorrentes desta estrutura. Essas determinações - ideologia e alienação - são fundamentais na constituição da primeira forma de consciência.


A primeira forma de consciência já apresenta o particular como universal, o histórico como natural, a ideologia é apenas a funcionalidade deste processo como exercício de dominação política de uma classe. Se a consciência imediata tende a viver o particular como universal, a ideologia é a expressão organizada e sistemática deste particular para permanecer como universalidade com fins de dominação política de uma classe sobre outra (IASI, 2007, p. 223).


Na sociabilidade do capital, a classe dominante articula duas esferas correspondentes para seu projeto de dominação: na base da produção material da existência, intensifica a extração de mais-valia através da exploração do trabalho; desta forma de produção da existência, se origina a estrutura política-jurídica e a ideologia enquanto uma forma de consciência social. Na atual crise sistêmica do capitalismo, a burguesia atua nestas duas frentes, resumidamente, assim: a) para retomar os patamares e elevar as taxas de lucro ampliam-se a precarização do trabalho através da retirada de direitos e do desemprego, acompanhado do chamado “assalto ao fundo público” em que predominam as formas de privatização (clássica e não-clássica), a transformação de direitos em capital, a diminuição progressiva da remuneração de trabalhadores e trabalhadoras, a flexibilização de legislações ambientais, culturais e sociais para facilitar o avanço capitalista destrutivo na produção agrária, industrial e no sistema financeiro; b) a ideologia se aprofunda no irracionalismo, negacionismo e no conjunto de ciências e filosofias que são desenvolvidas com o intuito de manutenção da ordem vigente de exploração do povo trabalhador e da opressão às minorias sociais, através de ultrageneralizações que de tão abstratas não encontram correspondência na realidade concreta, apenas na ideia transmitida e assumida pelo sujeito subsumido pela ideologia que é uma “inversão, um velamento, uma justificação” (IASI, 2014, p. 31).


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No caso do Brasil, em particular no período recente de crise econômica e política, é bastante ilustrativa a expressão ideológica que uma fração da classe dominante que hoje está à frente do governo federal elabora em suas manifestações para conduzir a política ultraliberal. Do ponto de vista da atividade teórica, a síntese dessa manifestação da ideologia pode ser assim projetada: o indivíduo, dentro de sua mesquinhez egocêntrica, imagina-se acima de tudo e de todos ao generalizar suas ideias retrógradas como próprias da humanidade e “naturais”, ainda que exclusivamente ligada à esfera de sua empiria irracional em que suas experiências individuais supostamente o certificam para imaginar que sua opinião singular é a verdade universal. Quando o se disseminam frases do tipo: “pergunta para seu avô se a ditadura era ruim” ou “não houve golpe militar em 1964”, se observa esses movimentos articulados: a ultrageneralização teórica em que “a percepção da parte pelo todo, onde o que é vivido particularmente como uma realidade pontual torna-se ‘a realidade’” (IASI, 2007, p. 18), incluindo o aspecto de que a própria ultrageneralização é baseada em experiências sensoriais de terceiros. Ou seja, a empiria da vida cotidiana é elaborada pela via daquilo que conforta melhor o sujeito que - sabedor ou não - reproduz a ideologia dominante, mesmo que lance mão de opiniões de “seu avô” sobre um momento histórico que, sob qualquer análise, não pode ser tomado como a explicação real dos acontecimentos.

Essa noção do conhecimento baseada em ultrageneralizações busca sustentar a posição teórica e política dominante de uma classe exploradora em cada momento histórico e vai se reproduzindo nas disputas de compreensão da história, assim os juízos e opiniões aleatoriamente selecionados para sustentar o projeto de dominação vão se tornando narrativas e discursos que se replicam na batalha das ideias e tornam “normais” a negação da história repetida incessantemente por um chefe de Estado Presidente da República. A conhecida frase de Joseph Goebbels, ministro da propaganda da Alemanha Nazista, é a referência dessa fluidez discursiva que disputa a ideia sobre o real: “uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. Toda ultrageneralização, como afirma Heller (2016, p. 71), “é um juízo provisório ou uma regra provisória de comportamento: provisória porque se antecipa à atividade possível e nem sempre, muito pelo contrário, encontra confirmação no infinito processo da prática”. Portanto, serve à ideologia enquanto manifestação de uma determinada


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forma de consciência social para a perpetuação de determinado modo de produção dividido em classes e baseado na exploração e na opressão.

Na produção dos meios para produzir a sua própria existência, condição especificamente humana para sua sobrevivência como espécie, a práxis enquanto atividade humana sensível concebida como atividade prático-crítica constitui o ser social. Estes elementos envolvem a vivência das relações existentes na base material de produção da vida, bem como a expressão no pensamento das representações que o sujeito faz de si e do mundo. Portanto, compreende-se que a atividade teórica é uma expressão da constituição do ser social, no sentido de que as representações ideais que o sujeito faz de si e do mundo são elaborações do pensamento e circunscrevem- se nos processos de consciência do sujeito e de sua classe.

A clássica formulação de Gramsci de que todo ser humano é intelectual ou filósofo, explicita o aspecto da atividade teórica do sujeito.


Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um "filósofo", um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção do mundo, isto é, para promover novas maneiras de pensar (GRAMSCI, 1982, p. 7-8).


Esta mesma atividade teórica - intelectual - não é, em si mesma, sempre crítica ou positiva, pois as representações ideais são atravessadas por diferentes formas de serem concebidas no pensamento. Há momentos e formas da atividade teórica que, atravessadas pelo antagonismo da luta de classes, são determinações que se expressam na consciência.

A revolucionária passagem do modo de produção feudal para o modo de produção capitalista, por exemplo, envolveu transformações nos mais diferentes aspectos da vida social; o Iluminismo francês, ou Século das Luzes (século XVIII), implementou seu projeto de dominação fundadas nos marcos da “razão”. Essa racionalidade elevou os patamares culturais e sociais que, embora formais e limitados, estabeleceram algum grau de avanço do modo de vida em relação ao antes experimentado no feudalismo, como o “desencarceramento” de trabalhadores e trabalhadoras da força do Rei, da Igreja e de senhores feudais. Porém, embora clamando por liberdade, “todos os esforços da Filosofia das Luzes para racionalizar,


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isto é, para reconstruir segundo as leis da razão as relações sociais e individuais, apoiavam-se na propriedade privada dos meios de produção, que devia constituir a pedra angular da nova sociedade, fundada na razão” (TROTSKY, 2009, p. 32). Portanto, a partir da base das relações econômicas mercantis vai se desenvolver um modo de vida também mercantil, expandindo o mercado como regulador de todos os aspectos da vida, incluindo a família, a comunidade, consciência etc. E,


É exatamente por isso que as normas concretas do catecismo burguês estão escondidas sob abstrações morais padronizadas pela religião, filosofia, ou aquele híbrido chamado “senso-comum”. O apelo a normas abstratas não é um erro filosófico desinteressado, mas um elemento necessário no mecanismo de ilusão de classe (TROTSKY, 2009, p. 63).


Assim que, aqui, abordaremos três formas da atividade teórica que somente se separam do sujeito real - da sua atividade prática sensível - na exposição. Quais sejam: o senso-comum; a mitologia (religião); a ciência /filosofia.


Atividade teórica e movimentos da consciência


A partir destas ilustrações do modo de vida burguês no contexto atual de crises generalizadas, aprofundemos a compreensão da atividade teórica como parte importante do movimento da consciência. A atividade teórica é um processo de elaboração no pensamento de alguma forma de explicação da realidade. Embora imbricada com alguma interpretação da prática enquanto realidade objetiva, a teoria nunca é, em si, a realidade ou o real concreto. Por mais que alguns intelectuais especializados se amparem em perspectivas idealistas da ciência e da filosofia que concebem o mundo a partir da ideia e não da vida real, e insistam em compreensões de que o mundo real não existe apenas discursos, narrativas e universos singulares que são tomados como o todo; existe uma realidade concreta que independe daquilo que homens e mulheres pensam sobre ela. Até porque, mesmo que em meu pensamento imagine surgir asas em minhas costas capazes de me fazer voar, dificilmente vá escapar de uma trágica morte ao me atirar de um penhasco.

E esta mesma realidade nunca é estanque, o movimento é uma propriedade de todo fenômeno material concreto, portanto também da prática, da realidade objetiva. Este movimento é sempre permanente e se manifesta não apenas no espaço, mas também no tempo; sobre essa perspectiva dialética, a clássica frase

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atribuída à Heráclito de Éfeso é ilustrativa: “você não pode banhar-se duas vezes no mesmo rio porque nem as águas, nem você, permanecem o mesmo”.

A realidade concreta está em constante processo de mudança, de transformação; isso não significa que estas mudanças se circunscrevam em um processo linear evolutivo, pois há uma primazia das determinações sociais humanas na produção da existência cindida em classes que incide sobre essa prática condicionada pela estrutura de dominação de uma classe sobre outra. Assim, as mudanças da prática - ou as transformações da realidade concreta - podem ser tanto involutivas, representando retrocessos que a conjuntura atual tem demonstrado cotidianamente suas possibilidades, como também podem ser transformadoras. Pois, a partir da estrutura de dominação de classes, quem vive a situação de exploração ou de opressão também movimenta a realidade concreta através de suas lutas, suas ações enquanto classe, e isso pode levar a processos históricos de ruptura com o modo de produção vigente em sua época. Os exemplos da história são diversos: epopeias de libertação de oprimidos e oprimidas em determinadas regiões e tempos históricos; as transformações dos modos de produção anteriores (por exemplo, a transformação do modo feudal em modo de produção capitalista); a superação do escravagismo enquanto política de dominação racial e econômica (ainda que o capitalismo mantenha a lógica do racismo estrutural); as lutas sociais de independência contra o colonialismo europeu; as derrotas das ditaduras nas lutas da classe trabalhadora da América Latina; dentre tantos outros momentos da história.

Nesses movimentos da história, é imprescindível compreender que ao mesmo tempo em que existe uma realidade concreta que é anterior ao pensamento sobre ela mesma, a atividade humana sensível de interpretação desta realidade, é também objetiva na medida em que incide sobre a realidade posta previamente; constituindo aí parte dos processos de transformações do real concreto. Portanto, sujeito e objeto se constituem como uma unidade dialética da qual as contradições entre o real e o pensamento, entre o concreto e o abstrato, entre a matéria e a ideia, colocam em movimento a própria realidade.

A atividade teórica do sujeito concebida como atividade humana sensível tem papel fundamental na investigação sobre os processos de consciência. É a partir desta atividade teórica que o indivíduo atribui algum grau de coerência (ao menos julga ter) à sua vida cotidiana, mesmo que esta coerência se manifeste através de


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contradições entre o que pensa e o que vivencia. Isto é, em diferentes momentos, as ideias anteriormente concebidas já não correspondem mais às novas ideias elaboradas a partir da atividade humana sensível articulada à objetividade de sua vida. Pois, em toda a atividade teórica há uma concepção de mundo - consciente ou mecânica - vinculada. Em um primeiro momento, a interpretação da realidade se manifesta a partir das relações previamente estabelecidas na qual o sujeito se defronta e a reproduz como se fossem naturais e suas (mesmo que não o sejam), pelo mecanismo da percepção ultrageneralizada, “as relações vividas perdem seu caráter histórico e cultural para se tornarem naturais, levando à percepção de que ‘sempre foi assim e sempre será’” (IASI, 2007, p. 18, 19). Essa primeira forma da atividade sensível, vai ser categorizada por Gramsci (2010, p. 69) como “filosofia espontânea”.

Essa espontaneidade é atividade teórica não sistematizada em que predomina a relação imediata e direta das experiências pessoais, tradições, crenças e opiniões aleatórias. Nesta forma primeira, a teoria - enquanto interpretação da realidade (da prática) - vai se apresentar em dois sentidos principais: senso-comum e mitológico.

O senso-comum é permeado de espontaneidades conceituais baseadas no irracionalismo; isto é, se fundam na secundarização da razão, da ciência e filosofia arraigadas na realidade concreta priorizando a vivência imediata, a tradição, a intuição, a ultrageneralização etc, que constituem o fundamento do negacionismo. Embora de forma localizada em indivíduos ou pequenos grupos que compartilham dessas mesmas noções, o senso-comum tem determinações que extrapolam apenas a forma individual do sujeito conceber o mundo. Mesmo sem ter a noção do que significa o “seu mundo”, o indivíduo se imagina no centro do universo e suas noções, por serem “suas”, parecem atribuir algum grau de autonomia do sujeito para disseminar as mais variadas formas alienadas de interpretação da realidade.

Na atualidade em que os meios virtuais e as redes sociais constituem uma importante parcela daquilo que o sujeito se instrumentaliza para posicionar-se sobre as coisas, o compartilhamento das ideias retrógradas e/ou reacionárias criam uma força na massa de trabalhadores e trabalhadoras capaz de insurgir contra quaisquer ideias contrárias ao modo de vida burguês. Mesmo que sem domínio intelectual acerca da máquina ideológica de disseminação do irracionalismo que prolifera o senso-comum, o sujeito afirma: “cada pessoa tem a sua opinião de acordo com sua realidade”, portanto as diferentes concepções de mundo convivem em uma suposta


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liberdade de expressão em que se imagina serem válidas simplesmente pelo fato de que o sujeito se imagina dono de sua vida e de suas ideias. Pois cada um tem “sua” opinião e vive a “sua” realidade. Nada mais idealista e individualista nessas afirmações em que a realidade reside em cada indivíduo, assim não existe “a” realidade, mas cada sujeito é a “sua “realidade.

A difusão das notícias falsas (fake news) em aplicativos de bate-papo são muito expressivas para ilustrar a máquina de disseminação do senso-comum e do irracionalismo. O sujeito que defende a “sua” opinião de acordo com a “sua” realidade, mesmo que supostamente respeitando a opinião alheia, expressa todo tipo de contradições e incoerências. A confortável condição de homem branco heterossexual no sistema do capital, “atormentada” agora pelas lutas de combate às opressões, encontra sustentação naquela mensagem que contém um link que recebeu em um grupo de aplicativo de bate-papo e que enaltece a sua condição de opressor agora supostamente com um recurso de autoridade (afinal de contas, se alguém publicou algum texto na internet dizendo algo, parece que este algo é verdadeiro simplesmente porque alguém disse, escreveu, publicou e recebeu likes).

O senso-comum é desagregado, genérico em que não há coerência entre as ideias e formas de ser. Mesmo que compartilhado por grupos de pessoas, o senso- comum é extremamente individualista e as experiências singulares são tidas como ferramenta principal para o sujeito acreditar ser o centro do universo a partir de suas vivências que não podem ser acessadas por outra pessoa que não ela. Ou seja, é ultrageneralizado a tal ponto que se torna, nessas bases, inquestionável. Pois, se o fundamento é a experiência individual do sujeito e esta é inacessível para outra pessoa, portanto se legitima a ideia da experiência como noção geral de conceber o mundo. De tal maneira que, quando o sujeito é defrontado por elementos que superam e problematizam as noções tidas como suas, a resposta imediata é mais ou menos expressa assim: “respeito a sua opinião, porém eu tenho a minha. Cada um vive a sua realidade. Só posso falar sobre a minha experiência que diz que as coisas devem ser como eu as quero e não como os outros dizem”. A pessoa parece realmente acreditar que a sua experiência de vida é que supostamente constitui a realidade no pensamento.

Lukács (2010, p. 37), contribui nessa direção: “os modos de manifestação imediata encobrem o realmente essencial no plano ontológico, em parte, nós mesmos


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projetamos no ser, como silogismos analógicos precipitados, determinações que são totalmente estranhas a ele, apenas imaginadas por nós”.

Se o senso-comum opera, em linhas gerais, da vivência singular para a ultrageneralização, há uma forma inversa e também irracional que vai da ultrageneralização para a singularidade das vivências. Aqui identificamos a mitologia (religião) como uma expressão ideológica que, embora criada pelo ser humano, ela oculta o ser em torno de uma representação abstrata fantasiosa da divindade sobrenatural de algum tipo de deus que regra a vida na terra a partir do céu. E a “consciência autonomizada na forma religiosa se volta contra seu criador como uma força estranha que o domina, ela que surgiu para dominar forças estranhas naturais se tornou, ela própria, uma força estranha divina” (IASI, 2014, p. 52).

Essas representações - do senso-comum e da mitologia - advém, necessariamente, da limitada relação do sujeito com a vida material encharcada de ilusões produzidas por formas rudimentares de consciência.

Essa expressão ilusória, de fantasia, se desenvolve em um terreno ideológico que se impõe como força estranhada e naturaliza as relações sociais desiguais de todas as sociedades divididas em classes que a humanidade experimentou até aqui. Ou seja, é da vontade divina que a vida de muitas pessoas seja de miséria e exploração, como um tipo de provação na vida terrena para uma promessa fantasmagórica de plenitude no paraíso após a morte; enquanto para outros poucos a vida é de fartura e riqueza por alguma razão (nunca explicada substancialmente pelos textos bíblicos) supostamente natural e por decisão de algum tipo de divindade. E a história se torna, assim, “uma mera história de ideias ilusórias, uma história de espíritos e fantasmas, enquanto a história real, empírica, que constitui o fundamento dessa história de fantasmas, só é explorada a fim de produzir os corpos para esses fantasmas” (MARX; ENGELS, 2007, p. 134), ou seja, os deuses e demônios só existem porque foram inventados por sujeitos que necessitam acreditar que eles existem.

No desenvolvimento da história da humanidade a religião foi, e ainda o é, também pressuposto para processos de dominação de classe e o extermínio - material e imaterial - de povos originários. A força oculta que age sobre seu criador expande- se para a esfera do Estado que, em nome de algum tipo de deus, empenha suas campanhas militares e evangelizadoras para dominar e doutrinar comunidades e


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povos porque “deus quis assim”. Porém, o que não é “dito por deus” é o sentido real destas campanhas sanguinárias da classe dominante por sua expansão de poder pelo mundo e acúmulo de riquezas saqueadas destes povos.

As campanhas da igreja católica (com todas as suas derivações), sempre vinculadas à classe dominante e a forma do Estado correspondente de cada período, foram e ainda são importantes iniciativas de dominação dos povos oprimidos. Em “nome de deus”, papas e padres abençoavam os navios que saíam da África levando centenas de negros e negras escravizadas para serem explorados na América; em “nome de deus”, papas e padres condenavam à morte as mulheres que renunciaram à subordinação aos homens; em “nome de deus”, papas e padres participaram das cruzadas que foram responsáveis pelo extermínio de vários povos árabes; em “nome de deus”, papas e padres apoiaram as ditaduras mais sanguinárias da América Latina. A ideologia da classe dominante encontra uma poderosa aliada na ideologia religiosa e, juntas, constituem processos de dominação e exploração cujo fim último é a perpetuação no poder desta mesma classe dominante. Quando chefes governamentais e padres falam em “nome de deus” nunca é em nome de algum tipo de divindade, sempre é em nome das demandas de acumulação de riqueza e poder. Se há um tipo de deus a ser reivindicado pela burguesia, este é o deus-mercado. E, como tal, o que este “mito” expressa nunca é a palavra divina, mas sim as ideias a serem internalizadas pelos povos oprimidos que sem nenhuma outra possibilidade de encontrar caminhos e esperança na vida reproduz na forma da alienação os preceitos de deus imaginando ser algum nominado na bíblia, mas desconhecem que o deus

que veneram é o espírito que se manifesta nas tensões do mercado.

A força ideológica da religião, como inversão do mundo real, se constitui também como uma forma estruturante da disseminação alienada da consciência, constitui um modo de vida que determina formas de ser do indivíduo com seus grupos que vão definir aspectos da cultura e da moral que fortalecem as perspectivas conservadoras e reacionárias no plano da política e da economia. Pois, em meio à miserabilidade da população, os indivíduos nas suas comunidades pobres e periféricas não encontram possibilidades de futuro ou de quaisquer formas de sair da situação de fome, desemprego e pobreza em todas as suas decorrências. No contexto rural, o papel que a religião e as igrejas cumprem por vezes são organizadoras da vida social das comunidades. Os rituais, símbolos e eventos (nascimento, missa,


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casamento, funerais) são tidos como parte integrante dos costumes e hábitos dessas comunidades que se engajam nos trabalhos da igreja tanto quanto na produção de suas lavouras.

Como afirmou Marx (2010, p. 145), “a miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo”. Essa passagem é bastante significativa quando pensamos que a busca ou captura da fé é resultado, por um lado, da realidade concreta da vida extremamente desigual no capitalismo em que o indivíduo aspira alguma mobilidade social e, ao mesmo tempo, é também a negação (protesto) dessa mesma vida em que é acometido e que quer encontrar alguma saída deste mundo, mesmo que acreditando na fantasia, na ilusão de um universo controlado por deuses e demônios.

Assim como na religião, a auto-atividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do indivíduo e sobre ele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do trabalhador não é a sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo (MARX, 2004, p. 83).


Nesta passagem, Marx vai estabelecer relações entre a alienação da vida material, em contraposição a auto-atividade, e a fantasia religiosa que atua sobre os indivíduos. A religião é, portanto, uma forma da ideologia e uma forma de atividade teórica, no sentido de atribuir algum grau de representação mental interpretativa da vida material. Enquanto atividade teórica atravessa um caminho da vida cotidiana à organização do Estado e do modo de vida da sociedade cindida em classes. Por mais que tenhamos constitucionalmente um Estado laico, na realidade concreta esse aspecto é facilmente rechaçado quando elencamos alguns dados singelos da realidade: nos palácios do poder executivo, legislativo e judiciário, é bastante comum encontrarmos bíblias ou símbolos cristãos pendurados nas paredes, escolas e hospitais públicos que também fixam crucifixos nas paredes, prédios e obras públicas são batizados com nomes de personagens bíblicos, feriados nacionais alusivos à datas comemorativas da religião cristã, dentre outras formas, o ser social já nasce integrado às referências de um determinado tipo de fé na qual se subordina, participa dos rituais, reza, espalha símbolos e embora não saiba exatamente porquê cumpre com a tarefa cristã.


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É nesta elaboração fantasiosa do pensamento que homens e mulheres vão ser capturados em torno das narrativas ilusórias sobre poderes sobrenaturais que agem sobre a vida na Terra e, assim, justificam as segregações como ordem natural divina. Justificam, a partir de algum deus, a opressão às mulheres cujo papel reprodutivo e de subjugação ao homem estão inscritos em alguma fábula mitológica e não podem ser questionados pois seria alguma forma de heresia; justificam a divisão de classes como ordem natural e divina, em que ser rico ou pobre, escravizado ou senhor, é decisão de algum deus e somente os cabem aceitar essa determinação.

É também a partir da crítica à religião que Marx vai indicar o sentido desta crítica vinculada ao movimento da consciência. Isto é, para elevar a consciência, a superação da religião enquanto doutrina ideológica precisa abandonar as ilusões de uma condição que necessita de ilusões: “a supressão [...] da religião como felicidade ilusória do povo é a exigência da sua felicidade real. A exigência de que abandonem as ilusões acerca de uma condição é a exigência de que abandonem uma condição que necessita de ilusões” (MARX, 2004, p. 145-146) [grifos do autor].

Até aqui trabalhamos com as formas de atividade teórica não-sistematizadas (senso-comum e mitologia). Essas formas de interpretação da realidade são baseadas na ultrageneralização idealista, espontâneas e estruturadas pela ideologia dominante com intuito de não apenas naturalizar a condição do sujeito, mas também de incutir em seu modo de vida um caráter de reação a toda forma de pensamento que problematize a realidade e o próprio pensamento. Tais determinações das elaborações teóricas são formas de consciência social que movimentam sujeitos a aceitação do mundo aparente, mesmo que internamente estes não queiram aceitar o mundo em que somente vivenciam a miséria, a exploração e a opressão. A crítica à estas formas de atividade teórica são passos fundamentais para o salto de consciência que não se expressa na própria atividade teórica, mas sim no que o sujeito faz com esta nova forma elaborada de pensar o mundo.

A superação da alienação da consciência está diretamente ligada à superação da forma material que constitui a alienação, isto é, as relações sociais de produção capitalistas. Ao mesmo tempo, há uma determinação importante no processo de superação da alienação e avanço da consciência que diz respeito ao conhecimento, à teoria científica e filosófica. O indivíduo isolado e com restrito acesso às interpretações do mundo, por si só, não irá desenvolver conceitos necessários para a


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compreensão das contradições do real e suas possibilidades de superação. Nos movimentos iniciais dos processos de elaboração teórica, “a percepção e também a sensação e a intuição são premissas necessárias, mas não suficientes para a captura das relações e conexões mais complexas que constituem os fenômenos” (TORRIGLIA, 2018, p. 33).

Portanto, a teoria filosófica e científica tem função determinante no movimento da consciência e são atividades teóricas que se diferenciam das anteriormente expostas exatamente por serem sistematizadas, com método e formas de correspondência com dados da realidade (mesmo quando algumas teorias ou filosofias idealistas neguem a realidade, ainda assim se correspondem com alguma noção de realidade).

De maneira geral, o método da atividade teórica científica e filosófica compreende a forma de organizar a realidade no pensamento, a articulação entre o singular e o universal, o caminho percorrido entre o abstrato e o concreto, a forma de apreender os nexos, leis e relações da realidade objetiva. Todo método implica em uma teoria da ciência, que, por sua vez, se baseia em uma teoria do conhecimento. Mas, ao mesmo tempo, toda teoria do conhecimento envolve necessariamente um fundamento ontológico, concepções de mundo que, na sociedade de classes, se chocam em conflito.

Cada período histórico configura necessariamente um sistema ideológico de códigos e signos que reproduz a forma hegemônica de produção da existência, isto é, as mudanças da economia capitalista também fazem mudar a ideologia capitalista. Esta forma ideológica específica do atual período histórico de crise estrutural e fragilidade da base produtiva necessita disseminar uma forma de consciência social adaptável à insegurança, a incerteza, a fluidez, a salvação individual e à aceitação de um mundo “desigual eternamente”. Essa necessidade de auto-reprodução do sistema do capital é habilmente transformada em esquemas epistemológicos expressos nas perspectivas pós-modernas da produção do conhecimento, em que se encontra a primazia do individual sobre o coletivo, da construção de subjetividades descoladas do mundo objetivo, da negatividade da crítica que não produz alternativas positivas, da desestabilização de discursos que conduzem à aceitação do mundo em crise e da busca de consensos que negam as contradições e antagonismos sociais.


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Assim, as categorias e conceitos são modificadas, o capitalismo ou o sistema do capital passa a ser concebido como “mundo moderno” (MÉSZÁROS, 2004); a classe social passa a ser constituída por “grupos”; sujeitos históricos se tornam “atores”; as condições objetivas de existência são substituídas por “cenários”; o próprio termo classe social se dissolve em meio a representatividade liberal de raça, gênero, sexualidade ou religião sem aprofundar as análises na origem e continuidade das opressões em uma sociedade de classes.

Nesse movimento que advoga a crise da racionalidade moderna, se desloca a realidade concreta para o relativismo, o ecletismo e o pluralismo epistemológico. O pensamento pós-moderno que desestabiliza, desconstrói e perambula por incertezas não dimensiona possibilidades para além de sua imbricação com aquilo que critica, não consegue desvencilhar-se de sua negatividade crítica por não apresentar nada além de mudanças discursivas. Sendo que, “o que se oculta na construção discursiva que pretende desconstruir discursos é que ele supõe universais absolutos, mais absolutos e abstratos do que aqueles que a razão dialética supõe” (IASI, 2017, p. 32). A base concreta material permanece eternamente intacta.

Para que seja possível “desconstruir discursos” é preciso que os discursos existam, mas, se não houver construção de alternativas aos discursos desconstruídos, tanto os discursos quanto as suas “desconstruções” mantém a estrutura atual intocada, pois precisa manter a mesma forma de organização para que a apropriação crítica, ainda que somente no campo discursivo, seja possível. Esta perspectiva que se encerra na negatividade se difere da dimensão positiva da negação dialética materialista, cuja crítica formulada na antítese é pressuposto “negativo negado” pela positividade de sua superação elaborada na síntese dinâmica, cujo movimento é interminável. Esse é o pressuposto positivo da lei dialética da negação da negação. Daí a necessidade de que as críticas à realidade social não sejam no sentido de negá- la ou simplesmente desconstruí-la, mas de superá-la e transformá-la.

É esta fundamentação da negação da negação que é apresentada pela clássica tese sobre Feuerbach: “os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; o que importa é transformá-lo” (MARX; ENGELS; 2007, p. 535). Para o avanço da consciência é fundamental que a atividade teórica tenha como pressuposto não apenas a interpretação da realidade, mas também suas


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possibilidades de transformação, pois o movimento da consciência necessita um horizonte transformador da realidade imersa em contradições e alienação.

Essa concepção de mundo pode tanto ser vinculada à aspectos da alienação e da ideologia como também podem circunscrever a atividade teórica nos marcos da crítica à sociabilidade do capital. Nos diz Gramsci (2010, p. 70),


Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria personalidade é composta de uma maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens das cavernas e princípios das ciências mais modernas e progressistas.


A concepção hegemônica da ciência também produz conhecimentos que incidem diretamente na vida social. As teorias econômicas sustentadas por ilustres personificações do capital - intelectuais e grupos de pesquisa vinculados às demandas de mercado - são referências estruturantes da dominação burguesa sobre o povo trabalhador. Na medida em que estas teorias são disseminadas em periódicos acadêmicos e atendem às necessidades do capital, vão se transformando em políticas públicas que os governos e parlamentos subordinados ao imperialismo definem como políticas de Estado. Na América Latina, os Chicago Boys servem para exemplificar. Durante a década de 1950 e 1960, a Universidade Católica do Chile firmou um convênio acadêmico para que 25 jovens economistas estudassem junto à “Escola de Chicago” nos EUA que tinha Milton Friedman e Friederich Von Hayek como principais ideólogos do neoliberalismo. Ao retornarem ao Chile, os Chicago Boys vão se aliar com as iniciativas conspiradoras da sanguinária ditadura empresarial-militar de Augusto Pinochet formulando suas bases econômicas e políticas de desmonte do Estado, sendo participantes ativos das políticas de privatização, destruição de direitos sociais e controle total do mercado sobre a vida. Tal projeto só foi possível de ser levado adiante em razão do autoritarismo violento que o governo ditatorial implementou sobre o povo trabalhador chileno. Interessante demarcar com este exemplo que o neoliberalismo surge exaltando discursos de liberdade especialmente econômicas sem intervenção do Estado e em defesa do livre comércio. Porém, essa teoria social mascara que todo projeto neoliberal experimentado no mundo sempre necessitou da força do Estado (inclusive militarmente), dos governos e do charlatanismo de parlamentares e do judiciário para impor, à força e sem liberdade alguma, seu projeto de dominação autoritária em nome de uma suposta liberdade.

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O negacionismo da ciência não é apenas de quem a nega, mas também da negação da ciência e da filosofia comprometida com os reais problemas sociais existentes que devem ser enfrentados por ela, com intuito de elevar as condições de vida do povo trabalhador. A ideologia é tão inversão da realidade que vai ser recorrente afirmar por intelectuais burgueses e seus governos aliados que ideológica é a perspectiva de superação da realidade posta. Explicitando assim o caráter da ideologia enquanto velamento, inversão e justificação.


Considerações finais


As ilustrações do cotidiano e a análise apresentada explicitam o caráter do fenômeno do negacionismo da atualidade enquanto ideologia da classe dominante para levar à frente seu projeto de dominação. Esta é articulada com a reconfiguração do padrão de acumulação capitalista como resposta da burguesia à crise sistêmica do capital, na qual a ampliação da miséria, do desemprego e da retirada de direitos sociais promovem uma reconfiguração também na sociabilidade do capital. Com a alteração da base produtiva, eleva-se também uma superestrutura jurídico-política que constitui uma consciência social, uma ideologia, na qual a atividade teórica enquanto representação que os sujeitos fazem do real, mascaram e invertem a realidade no pensamento. O negacionismo, portanto, articula as manifestações do senso-comum, da mitologia (religião) e da ciência/filosofia em torno de um projeto de dominação na qual o conhecimento crítico da realidade é combatido por uma perspectiva de ultrageneralizações e exacerbação do individualismo.

As relações existentes na forma do capital incidem no modo de vida de maneira determinante na representação que os sujeitos fazem do real. Essa representação é um elemento estruturante do ser social e o caminho por este traçado em distintos momentos de sua jornada. A partir das formas contraditórias que vivencia, o indivíduo vai responder à estas contradições enaltecendo a forma alienada do ser e individualizando em si as razões pelas quais permanece em condições que o desagradam objetiva e subjetivamente (uma mistura de culpa cristã com auto-punição sobre sua “incompetência”).

Porém, também há uma possibilidade positiva da compreensão das contradições cotidianas que, embora não modifique as circunstâncias imediatas,


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aponta para um engajamento ativo em determinadas pautas ou iniciativas que dizem respeito a si mesmo e também a outras pessoas. Esse movimento vai ser identificado como “drama” em Vigotsky, “personalidade trágica” em Leontiev ou como “crise” em Mauro Iasi. Essa crise, drama ou tragédia é um estopim para a elevação da consciência alienada para uma consciência em si nos quais as ações do indivíduo e da sua classe contribuem decisivamente para este salto a partir de determinada concepção de mundo.

É exatamente a concepção de mundo que coloca em movimento a disputa por projetos de sociedade, que vai expressar no movimento da consciência da classe seus avanços e recuos. Os movimentos da consciência alienada, em si ou para si, sempre são consciências da classe que definem os rumos das lutas sociais e das ações da classe. Aqui não se trata de analisar o resultado das lutas sociais - se foram vitoriosas ou não, mas sim de compreender os parâmetros definidores das ações da própria classe.

A consciência de classe, portanto, não está apenas na representação que o indivíduo faz de si mesmo, mas também daquilo que a sua classe faz por si. E isso só pode ser aferido pelas ações de sua própria classe, manifestadas pelo conjunto das lutas sociais e da forma de organização política de cada período histórico. A consciência de classe se movimenta através de avanços e recuos dos indivíduos e de suas organizações, na qual a elaboração teórica diretamente vinculada aos movimentos da classe é um dos fundamentos da necessidade de avanço da consciência.


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