V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X


Memória e documentos


COMENTÁRIO SOBRE O TEXTO “O V INTERCRÍTICA: UMA SÍNTESE POSSÍVEL DO ACÚMULO TEÓRICO E POLÍTICO”1


Lucas Barbosa Pelissari2 Doriedson Socorro Rodrigues3


Em geral, comunidades de pesquisadores são vistas pela sociedade como grupos dissociados dos grandes problemas do povo. Mesmo quando os cientistas têm como preocupações questões sociais, como no caso de sociólogos, educadores ou cientistas políticos, o senso comum interpreta as ações desses grupos com alguma desconfiança. Afinal, o que as grandes discussões acadêmicas, infalíveis, têm a ver com o sofrimento causado pela exploração do trabalho, pela desigualdade ou pelas opressões? Como essas reflexões podem se relacionar com as pessoas comuns, já que são acessíveis apenas àqueles que “sabem” fazer ciência? Para essa visão corrente, produto de uma espécie cientificista de ideologia, ciência é uma coisa e sociedade é outra.

Por outro lado, a ascensão recente de perspectivas políticas de extrema direita em todo o mundo traz consigo um sustentáculo filosófico: a negação da ciência. O negacionismo atual é, antes de tudo, uma estratégia política. Defendendo a purificação de relações cotidianas, desde as familiares até as que são base para a constituição de uma nação, essa visão propõe a substituição de consensos científicos


1 Artigo recebido em 06/03/2023. Aprovado pelos editores em 20/03/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57652.

2 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo.

E-mail: lucasbp@unicamp.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8723394397607851. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3659-5424.

3 Doutor em Educação pela Universidade Federal do Pará (UFPA), Pará. Professor Associado da Universidade Federal do Pará (UFPA), Pará. E-mail: doriedson@ufpa.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/1127076028303549. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5120-2484.


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por teses sem lastro na realidade (CAVALCANTE, 2021). Nesse expediente, o negacionismo se afirma, assim como o cientificismo, como instrumento ideológico, ainda que aparentemente localizado no polo oposto.

A conjuntura brasileira mais recente é uma expressão bastante ilustrativa dessa realidade. As estratégias acionadas pelo movimento neofascista que se fortalece no Brasil a partir de 2016 (BUGIATO, 2019) não se restringiram à defesa das teses terraplanistas ou antiaquecimento global. Foram além, traduzindo-se em políticas públicas de saúde durante a pandemia de covid-19 e defendendo a ideia de que a vacinação é um método ineficaz para o combate à proliferação da doença. O campo progressista, de outro lado, se une na defesa da legitimidade da ciência, buscando diminuir os distanciamentos entre sociedade e universidade em uma corrida por amenizar os efeitos nefastos da necropolítica bolsonarista. Eis uma manifestação dinâmica da luta de classes no Brasil, tal como se desenvolveu entre 2020 e 2022.

Qual o significado de um encontro de pesquisadores em educação em um contexto como esse? Haveria, às vésperas de um processo eleitoral nacional que oporia o neofascismo a uma frente democrática, algum sentido em reunir educadores para socializar resultados de investigações e discutir possibilidades metodológicas de pesquisa?

Pensamos que o texto “O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político”, elaborado por pesquisadores do Grupo THESE – Projetos Integrados de Pesquisas sobre Trabalho, História, Educação e Saúde, ajuda a responder a essas questões, situando o processo de construção do V Intercrítica em uma materialidade histórica muito bem definida. Mais do que isso, compreendemos que o próprio sentido de um texto de memória deve ser o de demarcar com as duas ideologias expostas anteriormente. Se, de um lado, os participantes do V Intercrítica combateram o negacionismo, de outro, desenvolveram suas reflexões a partir do compromisso social com a produção científica, buscando caminhos e alternativas aos próprios desafios apresentados pelo momento histórico.

Nessa perspectiva, entendemos, a partir de Gramsci e interpretando o texto em questão, que o V Intercrítica configurou-se como expressão de uma guerra de posição. Como nos ensina o dirigente italiano, “A luta política é muitíssimo mais complexa” (GRAMSCI, 1988, p. 68) e exige a construção de táticas de enfrentamento que permitam analisar a realidade a partir de nossos objetos de pesquisa. Ajudando-


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nos a compreender esse cenário, o texto tem, pelo menos, três significados fundamentais para a trajetória do Grupo de Trabalho nº 09 – Trabalho e Educação, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPED): teórico- investigativo, político e histórico.

A socialização dos trabalhos dos 31 grupos de pesquisa presentes no evento de 2022, cotejando perspectivas teórico-metodológicas e resultados de análises concretas, operou como síntese importante da contribuição do GT para o campo educacional brasileiro. A reivindicação da pluralidade de ideias correspondeu à defesa da democracia pela qual o evento se posicionou. Ao mesmo tempo, a afirmação da unidade em torno do materialismo histórico-dialético e do compromisso com um projeto de sociedade na ótica dos trabalhadores permitiu retomar elementos da gênese do campo Trabalho e Educação no Brasil. Eis o significado teórico- investigativo do texto de memória.

O documento “O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político”, publicado na seção “Memória e Documentos” da Revista Trabalho Necessário – TN 44, também revela com nitidez a perspectiva antidogmática que permeou o evento. É fundamental o destaque que dá à interlocução do V Intercrítica com instituições, movimentos sociais, entidades de classe e coletivos de trabalhadores, quer do campo como da cidade, considerando diferentes temáticas e as analisando a partir do marxismo. O texto evidencia, assim, que se assumiu um posicionamento no bojo da disputa em questão, construindo e movendo ações contra o projeto de barbárie em intensa ação no país.

Foram expostos elementos de pesquisa e projetos de militância para a formação humana integral e a necessidade da guerra de posição contra os movimentos belicosos presentes nas narrativas desenvolvidas pelo governo que se apresentava, pela segunda vez na história, como candidato à eleição presidencial que ocorreria dali duas semanas. O texto apresenta trechos instigantes, que inclusive nos permitem olhar em perspectiva para aqueles dias de 2022, à luz de acontecimentos atuais:


[...] o V Intercrítica se efetivou dentro de um clima de debate rigoroso, mas fraterno, dimensões que caracterizam a postura necessária dos que buscam construir a sociedade socialista. Um posicionamento da mesma natureza crucial, também, frente ao atual governo, cuja vitória – e a cada dia isto fica mais evidente – nos livrou de uma degradação


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social e humana que se escancara com o genocídio dos Yanomamis. (O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político, p. 28).


Na conjuntura vivida até aquele outubro de 2022, com cortes de recursos públicos para as universidades e a educação de um modo geral, com contrarreformas que negavam direitos aos resultados do trabalho humano, quer na educação como na saúde, o encontro presencial do V Intercrítica se constituía – e se constitui – como necessidade para nossas lutas e utopias. A memória do evento evidencia como o processo moveu companheiros e companheiras do Grupo These em prol de recursos, com o apoio intenso da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com sua Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, além da mobilização de projetos de pesquisa e pesquisadores de diferentes territórios do país. Destaca-se, nesse contexto, o simbolismo da ocorrência de um evento dessa natureza em duas instituições – UERJ e Fiocruz – que tanto contribuíram e contribuem com a diminuição da desigualdade, a garantia de vida digna e o aumento do nível de consciência de trabalhadores do Brasil inteiro. São instituições sínteses da luta popular por uma sociedade mais justa.

Naquela conjuntura, o V Intercrítica reuniu mais de duzentos profissionais, envolvidos(as) com temáticas diversas de pesquisa, como tão bem expressa o significado político do texto “O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político”. Ao identificar uma dupla tendência no movimento histórico da produção do GT09, os autores reafirmam a diversidade de temáticas situando-a politicamente nos enfrentamentos que os próprios recortes de pesquisa indicam.


Um primeiro aspecto a ser observado é uma dupla tendência, a saber:

a) ampliação de Grupos de Pesquisa em Trabalho e Educação presentes com novas temáticas de pesquisa; b) as diferentes novas interfaces têm que a ver tanto com o foco de cada grupo, quanto com particularidades regionais. Assim, além das temáticas que se mantêm ao longo do tempo relativas à crise do capital e seus reflexos na exploração dos trabalhadores no seu conjunto e dos trabalhadores docentes em particular, aparecem as parcerias público e privado nas concepções da educação e formação profissional sob o ideário empresarial, as contrarreformas na educação básica, as ideologias do empreendedorismo e da pedagogia das competência; mas também os contrapontos da educação politécnica, ensino médio integrado sindicalismo, movimentos sociais, educação popular etc. A emergência de novos temas reflete, em alguma medida, o debate mais amplo nas ciências sociais e humanas atualmente. (O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político, p. 20).


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Como se observa, o texto acaba por revelar sua desconfiança com a ideologia cientificista, advogada de uma ciência neutra e apartada da sociedade.

A memória que aqui comentamos tem, em terceiro lugar, seu significado histórico. O V Intercrítica resultou também da reorganização do banco de e-mails de pesquisadores e pesquisadoras do GT09, permitindo-nos o escutar-ler, socializando informações, integrando-nos. Resultou, mais ainda, da perspectiva teórica assumida em nossos processos investigativos, que pressupõe analisar as contradições, estabelecer mediações e mobilizar-se em prol da transformação da realidade social em oposição à ordem estabelecida, como bem destacado no trecho seguinte:


Outro aspecto trazido por este percurso analítico que fizemos desde a gênese do GT 09 até o V Intercrítica, é que, de forma cada vez mais clara se tem o entendimento de não bastar produzir conhecimento crítico, mas é necessário que a práxis ou a prática sustente a motivação e a finalidade dessa produção. É neste terreno que se pode alterar a realidade social, política e cultural e lutar pela construção da sociedade socialista. (O V Intercrítica: Uma síntese possível do acúmulo teórico e político, p. 28, grifo nosso).


Durante dois dias, no Rio de Janeiro, estivemos em tensão, não paralisados, mas em movimento contra o neofascismo. Exigimo-nos, atualmente, a vigilância e a luta para, mantendo-se a perspectiva crítica e propositiva, construir in processos condições “[...] para que as forças nazifascistas não tenham a mínima chance de voltar ao poder do Estado”, (O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político, p. 28).

Depois do intenso contexto pandêmico, o Intercrítica, constituído por homens e mulheres das ciências, voltou a ocorrer nas interações dos espaços-tempos de realidades quase híbridas, a partir de inúmeras reuniões virtuais. Ali, foram definidos formatos, mesas, encontros, fazendo valer o reencontro, ainda que remoto, com novos e velhos companheiros que definiram a opção histórica do GT09: científico, metodológico e objetivo; mas, ao mesmo tempo, combativo, militante, investigativo e atuante.

O registro desse momento, em meio a um dos processos políticos mais complexos da história do Brasil, contribui de maneira fundamental para documentar a natureza viva da pesquisa em Trabalho e Educação no país. Trata-se de contribuição, além de histórica e historiográfica, de leitura obrigatória por aqueles interessados em


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construir uma epistemologia, uma filosofia ou uma genealogia desse campo de estudos.

Com “O V Intercrítica: uma síntese possível do acúmulo teórico e político”, temos a compreensão histórica de temáticas e procedimentos teórico-metodológicos de pesquisa, num apanhado histórico desde a criação da ANPED, passando pela constituição do GT09 e, por conseguinte, pela institucionalização do Intercrítica. É possível notar como o evento se consolidou como ferramenta de mobilização de lutas políticas e científicas, tomando o materialismo histórico-dialético como potência de análise e de transformação social. Esse caldo histórico converge para a formação de novos(as) pesquisadores(as), como intelectuais, em moldes gramscianos, que se integram nas lutas pelos interesses da classe trabalhadora, opondo-se às estratégias do modo de produção capitalista que a tudo busca homogeneizar, para fazer valer seus interesses de classe.

Também destacamos que se trata de texto que permite observar o muito já produzido, mas também a necessidade de aprofundamentos, tanto do ponto de vista teórico como metodológico, bem como de temáticas, que vêm emergindo do envolvimento com a realidade concreta, pressupondo, por extensão, um sempre debate sobre o método. Estamos, assim, com um GT que se impõe cotidianamente à crítica, como elemento importante para o seu crescimento, atuação e mobilização política.

Trata-se de texto que nos permite entender, pois, a histórica luta de um conjunto de pesquisadores e pesquisadoras que, ao longo dos anos e assumindo o trabalho como categoria de análise dos processos formativos – a educação como totalidade concreta dele decorrente – têm se colocado na defesa a favor da vida, a partir da luta por uma educação que permita a homens e mulheres o acesso aos resultados do trabalho humano, opondo-se aos processos de alienação a que são submetidos. Um convite à leitura, pois.


Referências


BUGIATO, C. Para entender o neofascismo no Brasil: um ensaio a partir das contribuições de Nicos Poulantzas. Actuel Marx Intervenciones, Santiago, 27, 2 sem. 2019. Disponível em: <https://www.marilia.unesp.br/Home/Eventos/2020/caio- bugiato.pdf>. Acesso em 01 de março de 2023.


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CAVALCANTE, S. M. A condução neofascista da pandemia de Covid-19 no Brasil: da purificação da vida à normalização da morte. Calidoscópio, 19(1), 4–17, jan./abr., 2021. Disponível em:

<https://revistas.unisinos.br/index.php/calidoscopio/article/view/22745>. Acesso em 01 de março de 2023.


GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. Tradução de Luiz Mário Gazzane. 6ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988.


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