V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X


O MUNDO DE HOJE ENTRE A UTOPIA E A BARBÁRIE NAS REFLEXÕES DE UM INTELECTUAL - ENTREVISTA COM GAUDÊNCIO FRIGOTTO1


Lucas Pelissari2 Marise Ramos3


Registro fotográfico de Gregório Albuquerque no plenária final do V Intercrítica (EPSJV/Fiocruz, 11/10/2022).


1 Entrevista recebida em 15/03/2023. Aprovado pelos editores em 31/03/2023. Publicada em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57745.

2 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professor da Universidade Estadual de Campinas. Pesquisa políticas de educação profissional a partir dos conflitos de classe da sociedade capitalista. E-mail: lucasbp@unicamp.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8723394397607851. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3659-5424.

3 Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense. Pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz e professora associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na linha de pesquisa Estado e Políticas Públicas. É uma das coordenadoras do Grupo These. Bolsista CNPq -PQ-2 e Cientista do Nosso Estado Faperj.

E-mail: ramosmn@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3796863111902233. ORCID: 0000-0001-5439-3258.


1

O entrevistado deste número é Gaudêncio Frigotto, que respondeu às questões por escrito no início do mês de março de 2023. Ele nos fala sobre a atual conjuntura brasileira, considerando a ascensão do neoconservadorismo no mundo e no Brasil nas últimas décadas. Destaca desafios a serem enfrentados pelas forças progressistas no contexto do atual governo e discorre sobre interesses que estão em jogo na disputa pelo ensino médio. Por ser uma “traição à juventude brasileira”, “a revogação se constitui no pilar das mudanças imperativas”, não sinalizada pelo grupo dirigente do MEC, estranhamente da “cota de escolha do núcleo decisório da Presidência da República”. Ao tempo que aponta algumas estratégias que poderiam ser tomadas nesse sentido, critica a opção, até então demonstrada por esse grupo, de ignorar o conhecimento científico produzido em Educação.

Como diz o próprio entrevistado, no conjunto das respostas às questões que lhe foram formuladas, o dominante é o “pessimismo da razão”. “Mas de forma nenhuma está ausente o otimismo da vontade” calcado sobre conquistas da classe trabalhadora. “É sobre esta herança de luta que nos movemos no presente”.

Esse movimento caracteriza a práxis de Gaudêncio Frigotto, como atesta sua história acadêmica e política4. Fundamentalmente, sua atuação se orienta pelo projeto anticapitalista e pela utopia da sociedade sem classes. As ideias e a prática desse intelectual são referências para várias gerações, não importa de onde o conheçam: como professor, como conferencista, como autor, como militante, como companheiro



4Tendo se graduado em Filosofia (1971) e em Pedagogia (1973) pela hoje UNIJUI (RS), Gaudêncio Frigotto é mestre em Administração de Sistemas Educacionais pela Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (1977) - Brasil e doutor em Educação: História, Política, Sociedade, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1983) – Brasil. Aposentou-se recentemente como Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e, antes, como Professor Titular da Universidade Federal Fluminense (UFF). Na UERJ continua compondo o quadro de docentes permanentes do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH), sendo Pesquisador AI – Sênior do CNPq. Foi membro dos Comitês Científicos da Área de Educação no CNPq, CAPES e FAPERJ, onde continua como consultor ad hoc até o presente. É sócio fundador da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação (ANPEd), com atuação relevante no GT 09 – Trabalho e Educação. A relevância de seu trabalho se estende, no âmbito internacional, principalmente, à América Latina, sendo representante do Brasil no Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO), com sede em Buenos Aires. Também é membro do Comitê Acadêmico do Instituto de Pensamiento y Cultura de America Latina (IPECAL) com sede na cidade do México. Atualmente é um dos coordenadores do Grupo These – Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde UFF/UERJ/EPSJV-Fiocruz (THESE). Dentre os prêmios recebidos, todos atestam o compromisso ético-político com a luta da classe trabalhadora: Personalidade Educacional no Estado do Rio de Janeiro (2011) – ABI, Jornal Folha Dirigida e ABE; Prêmio Cora Coralina (2013) –

ANPEd; Prêmio Luta pela Terra (2015) – MST.


2

em muitas disputas travadas contra a injustiça, a exploração, a desigualdade, a discriminação; contra todo tipo de barbárie. Há bons motivos para conhecer sua entrevista. Boa leitura!


****


Lucas e Marise: A conjuntura política brasileira mais recente é marcada, pelo menos desde 2016, pela ascensão de linhas de extrema direita, denominadas de diversas maneiras: fascistas, neofascistas, protofascistas, ultraconservadoras, ultrarreacionárias etc. Esse contexto parece sofrer influências da conjuntura internacional, em geral, e latino-americana, em particular. Como o senhor enxerga essa situação?


Gaudêncio Frigotto: Certamente os movimentos que conduziram ao golpe de 2016 e à vitória de Jair Messias Bolsonaro refletem o avanço da extrema direita no mundo e formas de governar que retomam e ampliam as concepções e práticas fascistas e/ou nazifascistas. Formas estas que ganham novas determinações econômicas e sociais e novas tecnologias, mormente as digitais, para influenciar e manipular grandes massas. O fato de que no Brasil o bolsonarismo tenha conquistado ampla adesão popular e se caracterizado por concepções nazifascistas radicais demanda um olhar sobre nossa particularidade histórica que tratarei brevemente num segundo aspecto desta questão.

O primeiro aspecto diz respeito à compreensão de que o avanço da extrema direita no mundo e suas concepções e práticas nazifascistas se inserem no processo histórico que o capital enfrenta por ser uma relação que engendra estruturalmente a possibilidade de crises e contradições cada vez mais profundas e menos sanáveis. Este foi o foco central de Karl Marx ao analisar, inicialmente, os modos de produção pré-capitalistas e, mais especificamente, a natureza do sociometabolismo do sistema de produção capitalista. Por isso, como indica o historiador Eric Hobsbawm: Não podemos prever as soluções dos problemas com que se defronta o mundo no século XXI, mas quem quiser solucioná-los, deverá fazer as perguntas de Marx, mesmo que não queira aceitar as respostas dadas por seus discípulos.” (2011, p. 24).


3

E é este historiador que sintetiza, à luz de Marx, a questão fundamental a ser enfrentada no Século XXI: “Se pensarmos em termos de como “os homens fazem a própria história”, a grande questão é a seguinte: historicamente comunidades e sistemas sociais buscam a estabilização e a reprodução criando mecanismos contra saltos perturbadores no desconhecido. Como, então, humanos e sociedades estruturados para resistir a transformações dinâmicas se adaptam a um modo de produção cuja essência é o desenvolvimento dinâmico interminável e imprevisível?” (HOBSBAWM, 2010. p. 4-6).

O “desenvolvimento interminável e imprevisível” tem a crise como parte intrínseca da sua dinâmica, de suas contradições e de seu caráter destrutivo. A natureza intrínseca da crise se explicita pela desconexão entre a produção de mercadorias e serviços e a sua venda, sem o que não se realiza a mais-valia e pelo não controle sobre a produção, por ser um sistema que se move pela competição intercapitalista. A partir da segunda década do século XX, quando se acelerou a globalização do capital, a crise, como indicam as análises de István Mészáros, assume caráter universal no sentido que afeta todas as esferas da sociedade e da vida; não se localiza mais numa nação ou região como no passado, mas é global no sentido literal do termo; e a escala no tempo é gradual, mas extensa e contínua podendo assumir dimensão de convulsões abruptas.

A apropriação privada dos saltos tecnológicos da produção social da ciência constitui-se na arma da competição intercapitalista e tormento para a classe trabalhadora. No primeiro caso, acelerando a acumulação e concentração do capital em cada vez menos mega conglomerados supranacionais; ademais, uma manifestação dramática é o agravamento da crise ambiental e climática. Esta se materializa pela ruptura metabólica que o capital produziu entre os seres humanos e a natureza.

Uma outra consequência se materializa pela superexploração dos trabalhadores, aumento exponencial das mais diversas formas de informalidade e o agravamento do desemprego estrutural. Uma realidade que é muitíssimo mais grave atualmente do que quando Karl Marx, há quase 150 anos, analisou o efeito da privatização da ciência e da tecnologia aplicados na “grande indústria e agricultura”. Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo



4

da produção social ao minar simultaneamente a fonte de toda a riqueza: a terra e o trabalhador”. (MARX, 1984, p. 102).

A partir da década de 1970, a mudança qualitativa da crise do capital demarca uma alteração em seu caráter destrutivo de direitos da classe trabalhadora em todo mundo, mas mais ferozmente nos países como o Brasil e outros da América Latina, pautados por projetos de capitalismo dependente e de modernização conservadora. A essa mudança qualitativa mais destrutiva, a inteligência do capital denominou de neoliberalismo, entendido como um conjunto de regras para que as economias da periferia do sistema capitalista se ajustassem às demandas do capital. Mas o termo neoliberalismo carrega, nas relações sociais, o sentido oposto do que quer fazer internalizar no imaginário coletivo como algo que vem para melhor. Francisco de Oliveira, antes de demarcar a década de 1990 como o tempo histórico em que o Brasil assume e aplica o ideário neoliberal, traduz a mudança que altera o ideário sobre o qual se afirmou a revolução burguesa de liberdade, igualdade e fraternidade.

Nos termos de Oliveira: “(...) o que talvez seja mais preocupante, a mudança do que poderíamos chamar o paradigma do Iluminismo pelo paradigma do Conservadorismo ou da Reação, em sentido forte do termo”. (...) “Quais são os sentidos fortes político-sociológicos do Conservadorismo e da Reação como orientadores gerais da sociabilidade? Que significa dizer que habitam no imaginário e, portanto, caucionam todas as políticas, não políticas e anti-políticas públicas que justamente poderiam tentar, no sentido do Iluminismo, cumprir a velha promessa da igualdade. O primeiro sentido é o da substituição do ‘princípio da esperança’ pelo “princípio da realidade. No discurso político, essa mudança é claríssima. O ‘princípio da esperança’, não era a transferência para o futuro das resoluções dos problemas; ao contrário, o ‘princípio da esperança’ queria dizer que todos os problemas eram históricos, podiam ser resolvidos, que eles constituíam desafios, ao contrário de constrangimentos. O ‘princípio de realidade’, ao contrário, diz que há limites, como os 40 milhões de brasileiros que o Presidente Fernando Henrique Cardoso admitiu, em conferência internacional, estarem condenados a permanecer excluídos no novo Brasil globalizado”. (OLIVEIRA, 1998, p. 224-227).

A análise de Oliveira nos permite demarcar a regressão do projeto societário da burguesia mundial e sua especificidade em nossa realidade. Regressão esta, que não somente aumenta a desigualdade em todas as esferas da vida, mas a naturaliza.


5

O vocabulário social e educacional que sustenta esta naturalização é o da ideologia da meritocracia, do esforço individual na concretização das competências que o mercado agora exige. Uma inversão profunda onde o mercado subordina a sociedade e o Estado e, portanto, com esta inversão o estrangulamento das políticas públicas as quais unicamente podem garantir direitos universais.

O segundo aspecto nos remete a assinalar a especificidade desta mudança em nossa sociedade e porque a mesma tem efeitos mais profundos no plano econômico, cultural, político e jurídico. Do mesmo modo, nos interpela a entender que o Golpe de Estado de 2016 completa, e de forma radical mediante o conjunto de contrarreformas, o projeto neoliberal começado no governo Fernando Collor de Mello, estruturado e aplicado no Governo Fernando Henrique Cardoso. No entanto, é importante perceber que este golpe não se completou por conta dos inúmeros movimentos de resistência ativa da luta de classe.

A transição do “princípio da esperança” para a “reação e o conservadorismo” ensejou a condição histórica para um governo de extrema direita que se pautou por concepções e práticas nazifascistas. E como analisa o sociólogo Michael Löwy, o governo Bolsonaro, entre os governos de direita e extrema direita do mundo “é o que mais tem traços neofascistas”. (LÖWY, 2019). Traços estes que se caracterizam pela estratégia da ameaça, do ódio, de criar medo e culto às armas e à violência, no limite a eliminação de oponentes.

Os atos de ódio e violência de oito de janeiro de 2023, destruindo os símbolos da tríade que expressa a legalidade e a legitimidade da democracia liberal burguesa, sem precedentes em nossa história, é reconhecidamente mais grave do que foi a tentativa de invasão do Capitólio nos Estados Unidos em seis de janeiro de 2022. A ascensão ao poder do Estado de um bloco de forças sociais e políticas de extrema direita nos remete a duas ordens de questões correlatas. Um olhar na longa e média duração nos planos econômico, político, cultural e jurídico onde se alimentou e alimenta o projeto de extrema direita em curso no Brasil e porque se trata de algo que não é apenas conjuntural e por isto não pode ser subestimado.

Nossa formação histórica colonizada e os quase quatrocentos anos de escravidão forjaram uma classe dominante sob o duplo estigma: do colonizador e do escravocrata, ambos geridos sob o arbítrio e pela violência. O colonizador caçando os povos originários e fazendo os que sobreviviam cultuar o seu deus e seus valores. Os


6

escravocratas, naturalizando a compra, a venda e o trato dos escravos como animais que falavam. Heranças que nunca foram superadas pela raiz e que se manifestam na brutalidade da relação capital e trabalho, no racismo e no que estamos vendo estarrecidamente com a política de extermínio dos Yanomamis pautada pelo governo Bolsonaro.

A entrada do Brasil nas relações propriamente capitalistas não superou esta herança. A burguesia brasileira se constitui tardiamente e, diferente das burguesias que produziram as revoluções clássicas e buscaram constituir nações autônomas e soberanas, optou por um projeto de capitalismo dependente. Este, como mostram vários autores, destaco aqui Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira, se desenvolve dentro uma modernização conservadora. Trata-se de um capitalismo que se moderniza, mas sem abandonar a simbiose com o atraso. Vale dizer, um capitalismo que convive com grande concentração da capital e renda, uso de tecnologias de última geração, altíssimo consumo, escolaridade e qualificação profissional na mão de poucos com uma brutal desigualdade que se manifesta na pobreza de um quarto da população e extrema pobreza em mais de trinta milhões de brasileiros vivendo em favelas, poucos escolarizados, trabalhando na informalidade ou desempregados. Uma sociedade, como a define Francisco de Oliveira na metáfora do Ornitorrinco, cuja classe dominante produz a miséria e se alimenta dela.

No plano político um projeto que se mantém, ao longo de nossa história, pelo autoritarismo que se expressa por ditaduras, mais de um quarto do Século XX, e golpes de Estado que interrompem movimentos e pequenas conquistas que alteram os privilégios da minoria. Ditaduras e golpes que se estruturam, se efetivam e se materializam dentro de uma agenda cultural conservadora em defesa da família, da religião e da propriedade privada sob o imaginário do risco do comunismo. No plano jurídico este projeto societário se sustenta aplicando, dominantemente, o código civil para a classe dominante e o código penal para a classe trabalhadora. Neste particular o racismo estrutural mantém vivo o estigma escravocrata sobrepondo, para os negros, à desigualdade de classe, o fato de serem negros. O mais perverso é a condenação em massa à prisão de jovens pelo preconceito de serem negros ou a criminosa matança pela mão armada do Estado.

A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em outubro de 2022 indica que a história não é uma linha reta e abriu-se uma oportunidade de estancar, pelo menos no curto


7

prazo, o pior. A composição de forças políticas que viabilizaram a vitória indica, do mesmo modo, as dificuldades de confrontar a natureza das relações sociais acima sinalizadas, pois a grande maioria destas forças são protagonistas do projeto de capitalismo dependente na sua conformação modernizadora, autoritária, moralista e, juridicamente, salvo exceções, mantenedora do status quo. A montagem da operação “lava jato” é expressão do papel do campo jurídico, agora não mais nas ditaduras, mas no tecido da legalidade da democracia liberal burguesa.

Se o que acaba de ser situado faz sentido, há que se atentar para a nova materialidade do tecido econômico, político, cultural e jurídico em que se alastrou a direita e extrema direita no Brasil ao longo do Século XX e não a subestimar. As estratégias de manipular e conduzir, com tecnologias digitais sofisticadas, um contingente crescente da população a aceitar o fundamentalismo econômico, seguir as práticas da ameaça, do ódio e da violência do fundamentalismo político e o uso do fundamentalismo religioso para subordinar a ciência à crença e a legitimar agenda nazifascistas dos costumes se constitui uma ameaça permanente.

Espero que o leitor perceba esta longa resposta, quase em forma de artigo, em sua dupla dimensão. De como este tecido social nos ajuda entender os embates, as lutas, os avanços e retrocessos no campo educacional e que, a particularidade do fato da extrema direita se apresentar como força política organizada nacionalmente cobra do campo das esquerdas, em sua diversidade, uma unidade substancial e profunda numa agenda que sustente o atual governo, mas que seja capaz de trazer o pêndulo da história para os interesses populares e dos direitos básicos e sociais da classe trabalhadora.


Lucas e Marise: Como o senhor localiza o debate educacional no contexto social e político do Brasil atual, em especial considerando a influência dos projetos neofascistas?


Gaudêncio Frigotto: Localizo a gênese do debate educacional atual, nos traços hoje mais perceptíveis da influência do projeto neofascista, na década de 1990, ao longo do governo Fernando Henrique Cardoso. É neste governo que se materializa a adesão e implantação efetiva do neoliberalismo no Brasil. Vale dizer, para a adoção do realismo mercantil e do conservadorismo e abandono do princípio iluminista da


8

esperança. E isto se materializa tanto pela estratégia de protelar direitos básicos, sociais e subjetivos assegurados pela Constituição de 1988, quanto, especialmente de anulá-los mediante emendas constitucionais adequando-os ao projeto neoliberal.

A rejeição do projeto de Lei de Diretrizes e Bases da Educação produzido com ampla participação das instituições científicas, culturais, sindicais e populares, exaustivamente debatido e negociado, materializa o primeiro golpe da reação neoliberal. Ele se materializa com o protelamento do Plano Nacional de Educação mediante seguidas medidas ad hoc, a exemplo do Decreto n. 2.208/1997, que afirmava em lei a dualidade estrutural da educação no ensino médio, que pela resistência ativa das organizações que defendem os interesses das filhas e filhos da classe trabalhadora, não teve os efeitos esperados e foi revogado em 2004 no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva pelo Decreto 5154/2004. Não por acaso a disputa mais crucial se dá no ensino médio, pois ali é que se define o horizonte de futuro da juventude, no sentido geracional, e juventudes no recorte de classe social, etnia, cidade e campo, etc.

É na área social, econômica, cultural e educacional que se manifesta mais nitidamente a relação entre neoliberalismo ou reação e conservadorismo que acaba por desembocar em concepções e práticas neofacistas. O ataque dos reformistas da educação no governo Fernando Henrique Cardoso contra as disciplinas que tratam, direta ou mediatamente, da compreensão da sociedade (história, sociologia, filosofia, literatura, geografia, economia etc.) se alinham às demandas do realismo mercantil que quer um trabalhador que não faça política, ou seja, que não discuta seus direitos e menos ainda que questione o sistema capitalista. O discurso que buscou afetar diretamente o ensino médio e as licenciaturas era de que os professores são formados com muita teoria desnecessária e que impunham isto a seus alunos. Daí a defesa reiterada e disseminada na grande mídia de que à escola cabe ensinar e que o educar pertence à família e à religião. Por isso, os professores necessitam apenas aprender as regras “do bem ensinar” executando o prescrito.

Este discurso, na disputa ao longo dos governos liderados pelo PT, deu-se de forma organizada por dois movimentos: Movimento Todos pela Educação, que reúne quatorze grupos econômicos que financiam duas dezenas de institutos privados que implementam parcerias público-privado produzindo materiais para serem vendidos às



9

Secretarias Municipais e Estaduais de Educação para utilizá-los como o prescrito a ser pautado pelos professores.

O Movimento “Escola sem partido”, por sua vez, pauta-se claramente pela pedagogia nazifascista ou neofascista do ódio, da denúncia e do medo. O que é espantoso é que sobre este movimento, que constitui, à luz de Antônio Gramsci um partido ideológico, o pensamento crítico das ciências sociais e humanas só se deu conta a partir dos movimentos pré-golpistas, particularmente a partir de 2014. Sublinhe-se que não é por acaso o combate, menos velado no primeiro movimento, mas de guerra aberta no segundo, aos escritos de Karl Marx, Antônio Gramsci e de Paulo Freire.

O golpe de Estado de 2016, mormente no campo educativo, se alimentou destes dois movimentos. O conjunto de contrarreformas protagonizadas após golpe completam o que foi interrompido, em grande parte, pelos quatorze anos de governo popular e materializam de forma radical a adesão ao conservadorismo com sua matriz neofacista. Desgraçadamente a inteligência golpista de direita e centro-direita por buscar impedir, a qualquer preço, a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva, abriu o vácuo para que um capitão truculento, defensor da tortura, cientificamente raso e despido de sentimento humano, fosse eleito presidente do Brasil. Aquilo que Francisco de Oliveira, anteriormente citado, antevia em 1998, caso não houvesse forças sociais capazes de reverter a regressão mercantil, realizou-se no governo Bolsonaro. “No limite a regressão ao contrato mercantil tende, por analogia, à mesma regressão nazifascista. Sendo impossível, dada a complexidade de a sociedade voltar-se ao contrato mercantil, a violência termina sendo a parteira desta regressão. Assiste-se, então, à violência explícita como moeda de troca nas relações sociais, até o cotidiano: a violência é o novo código da sociabilidade”. (OLIVEIRA, 1998, p. 230).

Os quatro anos de governo Bolsonaro perfilaram a mais regressiva política econômica, desmanche da esfera pública e uma agenda política centrada nos costumes ultraconservadores. Na educação, a orientação desta agenda foram as teses do Movimento Escola Sem Partido com várias tentativas de transformá-las em lei. Independentemente disto, o governo seguiu as suas ideias mediante a política do livro didático, militarização das escolas, ataque à autonomia das universidades, dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e perseguição exemplar de professores do pensamento crítico. A resistência dos sindicatos, movimentos


10

sociais e instituições cientificas, no interior de uma avassaladora Pandemia (Covid 19) ficaram restritos a uma importante guerra de posição, impedindo a aprovação em lei das teses do “Escola sem partido”, combate à militarização, à adoção do ensino híbrido nas escolas básicas e superiores e à política do livro didático.


Lucas e Marise: O senhor tem caracterizado a atual reforma do ensino médio como anacrônica, regressiva e uma traição à juventude trabalhadora. De que forma essa caracterização se relaciona com o contexto mais geral que apresentou anteriormente?


Gaudêncio Frigotto: Ao longo da história do sistema capitalista a faixa etária que caracteriza a juventude é alvo de disputa dos partidos políticos, das religiões, dos sindicatos e, de forma sistemática e impositiva, da escola. A escola dual é a espinha dorsal do projeto burguês de educação e a sua superação é parte do mesmo movimento da luta de classes para a superação do sistema capitalista que a demanda intrinsecamente.

As revoluções burguesas clássicas se pautaram pela dualidade estrutural na educação. A crítica mais sistemática à dualidade estrutural do sistema educativo surgiu na sociedade francesa. Esta plasmou o ideário do projeto da burguesia, inicialmente revolucionária e, em seguida, reacionária. Mas as revoluções burguesas clássicas garantiram, dentro da dualidade, a universalização da educação básica à classe trabalhadora. Esta garantia, como nos ensinam Florestan Fernandes e Francisco de Oliveira, teve um duplo ganho para estas sociedades. Um operariado em larga escala preparado ou em condições de ser preparado rapidamente para o trabalho complexo e para acompanhar as mudanças dos saltos tecnológicos incorporados ao sistema produtivo e, também, como bases para sua organização política e capacidade de pôr freios à volúpia do capital.


No Brasil, historicamente à dualidade, explícita ou velada, se acrescenta a negação pura e simples da educação básica de nível médio à maior parte da classe trabalhadora adulta e continua se negando à quase metade da geração de jovens atuais. O espantoso é que as forças sociais que produzem esta negação, de tempos em tempos reclamam, quando há pequenos surtos de crescimento econômico, do apagão educacional. E de fato falta, nestes momentos, mão de obra qualificada. A

11

solução é o atalho pela qualificação precária reiterando, em novos patamares, a modernização conservadora.


A ditadura Vargas não só freou as propostas dos Pioneiros da educação, como deu ao patronato o atual Sistema S, para gerir a formação profissional e com forte aporte do fundo público. As lutas pelas reformas de base, pela erradicação do analfabetismo e ampliação da educação básica pós-ditadura Vargas tiveram como reação a ditadura empresarial militar de 1964 que durou 21 anos. O Programa Intensivo de Preparação de Mão de Obra (PIPMO), criado no Governo João Goulart para durar 10 meses, a ditadura o prolongou por 19 anos. Na década de 1990, ao mesmo tempo em que se resistia transformar em ação política concreta o ensino médio como parte final da educação básica e, portanto, um direito universal optou-se, novamente, pelo atalho com criação do Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador (PLANFOR).


A dimensão mais profunda que ocorre como epílogo e de consequências mais graves foi a privatização do pensamento pedagógico. Isto se materializa pelo processo de internalização de transformar a ideologia privada do capital, do mercado e dos homens de negócio em política oficial do Estado. Não é inocente o ideário pedagógico dos parâmetros e diretrizes curriculares e dos processos de avaliação centrados na concepção produtivista e empresarial das competências, da competitividade e da empregabilidade.


Nos dois períodos de governo de Luís Inácio Lula da Silva, especialmente pela criação em 2008 e interiorização acelerada dos IFs, criação de novas dezoito Universidades públicas demandadas por movimentos sociais, também interiorizadas, políticas de cotas etc., em parte reverteu a tendência acima. Mas ao incorporar, no Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE) em 2007, o Movimento Todos pela Educação e, em 2011, adotar o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC) como a política prioritária, indica uma inflexão que se alinha ao que tem sido o caminho do atalho. O ensino médio integrado, facultado pelo Decreto Lei 5154/2004, um esforço para superar a dualidade estrutural, ficou secundarizado. Então, por que a contrarreforma do ensino médio é a regressão da regressão, uma traição às gerações atuais e futuras de jovens que lhes hipoteca o


12

futuro na inserção no trabalho e na cidadania ativa? A resposta, pelo que analisei na primeira e segunda questões, é que ela corresponde à adesão ao realismo mercantil e sonega as bases científicas e culturais a jovens e os condena ao trabalho simples, ao desemprego e às mais brutais formas de informalidade com a internalização de que a chance foi dada, mas não se esforçaram suficientemente para ter o mérito de serem incluídos. A pasteurização das ciências da natureza e das ciências sociais e humanas na contrarreforma e o foco em disciplinas instrumentais ou, o que é pior, para o projeto de vida centralizado em competências emocionais, empreendedorismo e educação financeira, na prática significa a negação de bases de conhecimento para ter futuro digno.


Registre-se que esta contrarreforma, com estas características, é para mais de 85% dos jovens que frequentam a escola pública nas esferas federal, estadual e municipal. Desde o Golpe de Estado de 2016 o pouco do ensino médio de qualidade desenvolvido na Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica foi sendo desmantelado pela estratégia do corte abismal dos recursos financeiros e a pressão para que a mesma se transformasse numa espécie de Sistema S estatal, mas cada vez menos público e centrado em atividades de atalho e não da formação básica.


Lucas e Marise: Quais os principais eixos de um projeto de ensino médio vinculado aos interesses populares, que seja capaz de enfrentar o caráter regressivo da política atualmente em curso?


Gaudêncio Frigotto: O primeiro pressuposto é a garantia do acesso universal ao ensino médio como direito social e subjetivo a todas as famílias que optarem pela escola pública. Neste particular, a universalização deste nível de ensino e de qualidade consubstancia em sua quantidade um elemento central de qualidade. A contraposição da quantidade à qualidade é a defesa do status quo. Garantida a universalidade do acesso, os dois eixos centrais são: a base material de funcionamento das escolas para o ensino de qualidade e a disputa de um currículo que viabilize uma formação que leve em conta todas as dimensões da vida humana da juventude em formação.

As bases materiais começam pela estrutura dos prédios escolares com espaços adequados para aulas, laboratórios, biblioteca, informática, auditório para

13

atividades artísticas e culturais, gabinetes para os docentes e demais trabalhos técnicos e de apoio, espaço para prática de esportes. Parte fundamental da base material do ensino de qualidade envolve a carreira docente, remuneração docente, formação docente e professores atuando numa só escola com o máximo de 20 horas em sala de aula e 20 horas para pesquisa, preparação de materiais, atendimento a alunos com dificuldades em determinadas matérias ou assuntos.

Não é difícil concluir que estas condições somente as encontramos, na educação pública, na Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, mesmo quando ofertada no interior, o que corresponde a 85% dos campi. Do mesmo modo, não é difícil reconhecer que este padrão de ensino implica um alto investimento. Mas se de fato for tomado como prioridade social e econômica, o problema não é de recursos financeiros, mas de decisão política. As desigualdades regionais e as diferenças de políticas nesta etapa da educação básica nos diferentes estados da Federação inviabilizam uma política para que todos os jovens possam ter acesso a esta base material. A federalização deste nível de ensino, deixando aos estados e municípios a educação Infantil e fundamental poderia ser uma medida a ser pensada. Ela poderia desenvolver as condições objetivas para um mesmo padrão de qualidade de ensino. Mas esta proposta esbarra nos interesses políticos imediatos dos governadores e, por isso, esta mudança depende de uma ampla mobilização nacional a ser construída.

No plano curricular, para que o ensino médio seja de fato básico ou o que dá a base tanto para seguir para os estudos universitários ou para o trabalho complexo, a diretriz traçada por Antônio Gramsci há quase um século mantém-se novíssima. Na defesa da escola unitária postulava um justo equilíbrio entre as ciências que permitem entender as leis da natureza (biologia, física, química etc.) e as que permitem aos jovens entenderem como funciona a sociedade (história, sociologia, filosofia, geografia, literatura e a arte). Como bases não só instrumentais, mas também culturais, as diferentes linguagens, ciência da informação etc. A educação física tem interfaces com os modos de vida e a cultura corporal, com a saúde e a formação do espírito coletivo.

O atendimento aos interesses populares ou ao conjunto da classe trabalhadora que frequenta a escola pública, dois aspectos sublinhados por Florestan Fernandes na sua incansável defesa da educação e da escola pública, são requisitos


14

fundamentais. O primeiro, relativo à função dos docentes de ensinar e educar. Ensinar, desenvolvendo o espírito científico nos jovens com o incentivo à curiosidade da descoberta, da busca de desvelar o que está oculto tanto no âmbito das ciências da natureza, quanto das ciências sociais e humanas. E educar buscando em cada campo disciplinar debater com os jovens as grandes questões que afetam seu presente e seu futuro.

O segundo aspecto está implicado no primeiro. Não é qualquer processo educativo que interessa à luta pela emancipação da classe trabalhadora destacado por Florestan. “A pedagogia volta a ser a chave para a decifração do nosso enigma histórico. O que a Constituição negou, o povo realizará. Mas ele não poderá fazê-lo sem uma consciência crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica e afirmadora do futuro. E essa consciência, nascida do trabalho produtivo e da luta política dos trabalhadores e dos excluídos, não depende da educação que obedeça apenas à fórmula abstrata da ‘educação para um mundo em mudança’, mas sim da educação como meio de autoemancipação coletiva dos oprimidos e de conquista do poder pelos trabalhadores. (FERNANDES, 2020, p.19).

De imediato, pode-se concluir que o que acabo de expor nesta questão se coloca diametralmente em direção oposta ao que, historicamente, tem sido o dominante na educação básica brasileira. E no contexto da análise da primeira questão, o caráter da crise estrutural do capital e o acirramento de suas contradições conduziram no plano mundial e, em particular, na nossa sociedade desde a década de 1990 e mais radicalmente desde 2016, a uma regressão sem procedentes no campo da educação pública. O governo Bolsonaro expressa a síntese mais regressiva das duas faces que o caracteriza como um governo de políticas nazifascistas: na economia e na educação. Nesta última, à sua crescente mercantilização somou-se a agenda cultural dos costumes e da militarização.


Lucas e Marise: Como o senhor caracteriza a conjuntura brasileira atualmente, a partir da eleição de Lula à presidência da República? É possível, nesse contexto, avançar em direção ao projeto de educação sobre o qual comentou na resposta anterior?


15

Gaudêncio Frigotto: Aprendemos que a história se define pela natureza de determinados eventos ou fatos que a conduzem para melhor ou pior. Pelo que vivemos nos quatro anos de bolsonarismo e agora tomando conhecimento dia a dia da fratura profunda produzida na sociedade como projeto de poder e pelo que significaria a continuidade, cabe sublinhar a grandeza e o sentido da vitória da chapa Luís Inácio Lula da Silva e Geraldo Alkmin. Abre-se uma janela complexa, mas real, da possibilidade de um futuro viável dentro do Estado Democrático de Direito nos limites, sabemos, das forças em jogo na sociedade brasileira.

Um olhar pelo retrovisor da história indica que nos moveremos dentro de uma conjuntura complexa onde, apesar da vitória nas urnas, o poder de fato se move no âmbito de forças conservadoras de direita e da extrema direita. A composição do governo e, sobretudo, do Congresso expressam este conservadorismo. Um cenário que indica, em certa medida, erros do passado do campo das esquerdas, em particular, ao longo dos 13 anos de governos populares. A politização das massas não se faz sob a negação da educação básica e, em especial o ensino médio nas bases e concepções acima expostas. Trata-se de uma condição necessária.

Os avanços se impõem como necessários e certamente possíveis, mas num cenário que as organizações científicas, movimentos sociais populares, sindicatos e partidos políticos que desde a ditadura empresarial militar lutaram e lutam pela escola pública, universal, gratuita, laica e unitária, não poderiam supor tão adverso. Não se faz “omelete sem quebrar ovos", diz o ditado. A composição, no passado, com as forças de mercado representadas por duas dezenas de institutos privados que compõem o movimento empresarial “Todos pela Educação” tornaram-se agora visivelmente hegemônica na composição do Ministério da Educação com uma agenda do pensamento pedagógico-empresarial. Os ovos foram quebrados e a omelete foi feita para esta agenda. Numa analogia ao documentário de Silvio Tendler, “O veneno está na mesa” pode-se dizer: os intelectuais ideólogos dos institutos privados do empresariado estão, de forma direta ou indireta, no MEC.

O fato mais que intrigante é que, do conjunto de Ministros de Estado, cota de escolha do núcleo decisório da Presidência da República, a mais conservadora e destoante das propostas de mudanças que tenham alcance de longo prazo, é da Educação. Em quarenta dias, deve-se destacar uma postura republicana e de mudanças consistentes no contraponto ao realismo mercantil. O próprio Presidente


16

tem confrontado a política absurda de juros e da apropriação lesiva da Petrobrás subordinando o interesse social ao lucro de acionistas. Não se trata aqui de ver pura negatividade ou incompetência da equipe do MEC, mas de destacar que a direção política e a concepção de educação que interessa aos jovens que frequentam a escola pública se vinculam às mudanças estruturais necessárias em nossa sociedade. Espanta que no núcleo dirigente do MEC o pensamento científico, político e cultural produzido nas Universidades Públicas e Institutos Federais de Educação Profissional, Científica e Tecnológica estejam simplesmente ausentes.

O desafio e a natureza dos avanços na agenda histórica da luta pela escola pública dependem da nossa capacidade coletiva de organização não só da área da educação, mas do conjunto de forças da sociedade que entendem que é necessária uma mudança, pela raiz, da direção assumida pelo Ministério da Educação. O recado está dado pela reação de centenas de instituições científicas, movimentos sociais e culturais da área sobre esta necessidade. Os efeitos sociais e políticos negativos da não mudança de direção da política se potenciarão e o governo, em vez de ter a energia positiva dos educadores e suas organizações científicas, culturais e dos movimentos sociais, os colocará na defensiva. A estratégia de fazer uma consulta à sociedade ou abrir algumas audiências públicas não me parece adequada. Não se faz uma consulta à sociedade em geral para definir as causas de um desabamento de um prédio e nem se um paciente deve ser ou não operado. Então porque, num tema tão fundamental, depender de opinião e não do conhecimento solidamente produzido nas universidades públicas? Não estaríamos diante da velha estratégia de protelar para não alterar o fundamental ou simplesmente validar pela opinião geral algo insustentável cientificamente?


Lucas e Marise: Que lugar ocupa a luta pela revogação da reforma do ensino médio nos desafios atuais da classe trabalhadora brasileira?


Gaudêncio Frigotto: Pelo exposto nas questões anteriores, por razões político-sociais, econômicas e humanas, a revogação da contrarreforma do ensino médio se constitui no pilar das mudanças imperativas. A juventude em sentido geracional e as juventudes pela clivagem de classe social, campo, cidade, gênero etc.,


17

é a fase da vida em que não somente as forças políticas, mas as diferentes denominações religiosas, e hoje especialmente pelas merco-igrejas de correntes evangélicas empresariais, o tráfico etc., disputam seus corações e mentes.

Daí decorre a centralidade do ensino médio nos termos dos eixos expostos na questão quatro relativos às bases materiais, concepção de educação e currículo. Como foi exposto, a contrarreforma se posiciona em sentido oposto. No âmbito da concepção, a tese de que acabe aos professores ensinar e à família e religião educar, explicitada na década de 1990 pela equipe do Ministro da Educação Paulo Renato de Souza, e ampliada nas atuais contrarreformas da educação pública e na agenda moral do bolsonarismo, constitui-se na estratégia de formar gerações de jovens dóceis, obedientes e vacinados contra a cidadania ativa para mudanças estruturais em nossa sociedade.

O encurralamento dos jovens para a escolha de um entre cinco itinerários formativos, com a desestruturação do currículo do núcleo das disciplinas básicas das ciências ligadas à natureza e das ciências sociais e humanas e a perspectiva pedagógica de formar fragmentariamente por competências têm efeitos nefastos de diferentes ordens.

Primeiro, delegar o protagonismo da escolha do ou dos itinerários a jovens numa idade em que ainda não têm bases de conhecimento e de informação para tanto, é colocá-los numa “roleta russa”. Trata-se de uma delegação daquilo que deveria ser de responsabilidade dos adultos e dos governantes mediante o debate com pesquisadores e educadores que defendem uma educação de qualidade para todos. E não mediante contrarreformas impostas por ditaduras e golpes de Estado. Perversamente, a conta cairá nas costas das atuais e futuras gerações debitando a elas o despreparo científico para construírem a sua autonomia política e econômica.

O segundo aspecto diz respeito aos efeitos econômicos e sociais. A força produtiva por excelência atualmente é a ciência e a tecnologia incorporadas ao processo de produção. O valor agregado não está na matéria prima, mas na ciência e tecnologia de transformação em produtos, bens e serviços. Para ter escala quantitativa de cientistas que produzem conhecimento e tecnologia competitivas mundialmente para sairmos da condição de sociedade de capitalismo dependente e modernização conservadora, o passo necessário é a universalização do acesso ao ensino médio na perspectiva posta na questão quatro. A quantidade, com aquela base


18

científica e política, transforma-se em potencial qualitativo. Uma formação que não separa o ensinar e educar para que ciência e tecnologia produzidas pelo esforço coletivo não sejam apropriadas, como atualmente, privadamente e se voltem contra filhas e filhos da classe trabalhadora.

Finalmente, a revogação da contrarreforma do ensino médio tem um imperativo humano ético. Sem bases de conhecimento científico, cultural e sem formação política que a mesmo enseja pelo conteúdo, método e forma de desenvolver o processo pedagógico, os jovens não construirão sua autonomia como sujeitos, individuais e coletivos, e ficarão presas fáceis das mais hediondas manipulações. O que vivemos sob o bolsonarismo e sua agenda fundamentalista política, econômica e religiosa exemplifica emblematicamente a natureza desumanizadora destas manipulações. No lugar da pedagogia do coletivo e da esperança, o incentivo ao ódio contra os oponentes; no lugar de uma economia solidária, o imperativo do lucro mercantil para poucos e, mais perversamente, a subordinação da ciência à crença ou crendices.

O fato da atual gestão do MEC ter sido fruto de negociação com a base política representante do pensamento educacional empresarial, tendo o modelo de gestão de parcerias com os institutos privados pautado no estado do Ceará e seu propalado sucesso, a revogação implica alcançar um amplo campo que tenha força política para tanto. O que foi feito até agora em termos de organização e de pressão já tem vitórias parciais, pois concordam com adaptações, mas que não alteram o fundamental de sua natureza de uma contrarreforma que oferece à juventude do país uma base de conhecimento similar a um “pastel de vento”.

Dois passos para avançar na direção da revogação poderiam ser colocados de imediato na mesa da negociação política: suspender e/ou prorrogar a sua implementação nos estados e municípios até que se faça um debate amplo com a área de educação e suas organizações num contexto diverso da lei que gerou a Contrarreforma dentro de um golpe de Estado. Outra medida é, em qualquer circunstância, ela não ser aplicada na esfera de educação federal. A criação dos IFs e da Rede de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, com a crescente adesão ao ensino médio integrado, foi e é a política criada nos governos populares sob a liderança do Partido dos Trabalhadores. Aplicar a contrarreforma a esta rede significaria negar o que de mais significativo e estruturante foi feito nos governos



19

populares entre 2003 e 2014, juntamente com a criação de mais dezoito universidades públicas com mais de 170 campi interiorizados.


Lucas e Marise: Seria possível elencar os principais desafios das forças progressistas para o próximo período de lutas?


Os desafios são muitos e de vários níveis de complexidade de enfrentamento, com desdobramentos de médio e longo prazo. Um dos primeiros desafios é que temos que nos mover analisando as condições objetivamente dadas. E estas condições se balizam, na conjuntura atual, no fato de que o foco dominante da frente ampla que constitui o governo é a defesa do mercado e não da esfera pública e, por consequência, a defesa do pensamento e política educacional a serviço do mercado. Certamente a postura política que necessitamos adotar no enfrentamento destas forças ao longo dos próximos quatro anos é caminhar no fio da navalha dando sustentação ao governo Lula, mas sem abrir mão das lutas e pressões para que o pêndulo avance, no conjunto da sociedade e na educação em particular, para o interesse público. Isto supõe, no plano político, contrapor à frente ampla, uma frente popular que no curto prazo seja capaz de fazer mudanças dentro da ordem vigente das relações sociais capitalistas no Brasil, contra esta ordem. Isto não significa renunciar à tese de que o capitalismo não é reformável e, portanto, precisa ser

superado.

Todavia, importa ter presente, e este é outro desafio, aquilo que Karl Marx ponderava ao camarada Ferdinand Domela Nieuwenhuis que lhes perguntou sobre o que deveria ser feito quando os socialistas tomassem o poder. A resposta foi: “a antecipação doutrinária e necessariamente fantástica do programa de ação de uma revolução do futuro apenas nos desvia da luta atual”. Esta compreensão tem como corolário o que Eric Hobsbawm destaca nesta direção sobre a postura de Marx na luta revolucionária. “É inútil procurar em Marx alguma coisa que antecipe controvérsias posteriores, como aquela entre ‘reformistas’ e ‘revolucionários’, ou ler os seus textos à luz dos debates subsequentes entre direita e esquerda nos movimentos marxistas. O fato de seus textos terem sido lidos dessa forma faz parte da história do marxismo, mas pertence a um estágio tardio desta história. Para Marx, o importante não era saber se os partidos da classe operária eram reformistas ou revolucionários, ou


20

mesmo o que estes termos implicavam. Ele não via nenhum conflito, em princípio, entre a luta cotidiana dos trabalhadores pela melhoria de suas condições sob o capitalismo e a formação de uma consciência política que previsse a substituição do capitalista pela sociedade socialista, ou as ações políticas que levam a esse fim” (HOBSBAWM, 2011, p.65).

Essas diretrizes sinalizam para o desafio de fundo das forças sociais que lutam em defesa da escola pública, da superação da dualidade educacional e pela construção da escola unitária. Vale dizer, um mesmo direito ao acesso ao conhecimento e à formação humana que leve em conta todas as dimensões da vida dos educandos. Trata-se do desafio de, no debate marcado pelo dissenso, ter a capacidade e generosidade política de construir consensos possíveis que transitem das formulações teóricas e políticas para o campo da práxis. É neste âmbito que as mudanças ganham materialidade histórica.

Tenho consciência de que, no conjunto das respostas às questões que me foram formuladas o dominante é o “pessimismo da razão”. Isto, talvez, advenha da compreensão do peso histórico das forças conservadoras em impedir mudanças, mesmo que alterem marginalmente os seus privilégios. Do mesmo modo, talvez seja uma espécie de antídoto ao otimismo ingênuo. Mas de forma nenhuma está ausente o otimismo da vontade calcado sobre conquistas, ainda que parciais, das lutas pelos direitos básicos, sociais e subjetivos da classe trabalhadora. É sobre esta herança de luta que nos movemos no presente. O potencial de conquistas depende de envolver os jovens nestas lutas e o seu entendimento de que se trata de construir as possibilidades do seu futuro. Nesta tarefa é fundamental o papel do conjunto de trabalhadores da educação pública – gestores, professores, corpo técnico e serviços de apoio – e das organizações científicas, políticas, sindicais e dos movimentos sociais.

A derrota do projeto bolsonarista de mais quatro anos de desmonte da nação com suas concepções e práticas políticas de natureza nazifascista torna realidade o que nos lega Florestan Fernandes para ampliar o otimismo da vontade como força dos pequenos e grandes embates que nos esperam. “A história nunca se fecha por si mesma e nunca se fecha para sempre. São os homens, em grupos e confrontando- se como classes em conflito, que ‘fecham’ ou ‘abrem’ os circuitos da história. (FERNANDES, 1977, p.5).


21

Referências


FERNANDES, F. Os circuitos da história. São Paulo: HUCITEC, 1977.


FERNANDES, F. O desafio educacional. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2020.


HOBSBAWM, E. Política extrema. Caderno Mais, Jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 18 de abril de 2010.


HOBSBAWM, E. Como mudar o mundo: Marx e o Marxismo, São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


LÖWY, M. Dos governos de direita, Bolsonaro é o que mais tem traços neofascistas.

Jornal Brasil de Fato, 19/08//2019.


MARX, K. O Capital, v. 1, tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984.


OLIVEIRA, F. Os direitos do antivalor: a economia política da hegemonia imperfeita. Petrópolis: Editora Vozes, 1998.


22