V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X


A LUTA DOS TRABALHADORES PELO DIREITO À EDUCAÇÃO E À FORMAÇÃO PROFISSIONAL, EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA: UM RELATO DE EXPERIÊNCIA1


Carmen Sylvia Vidigal Moraes2


Resumo

Considerando a temática proposta, a partir de minha inserção acadêmica no campo de pesquisa das relações entre trabalho e educação e da atuação no movimento social, o artigo propõe contextualizar o desenvolvimento dessa práxis no âmbito das lutas do movimento popular e sindical, em São Paulo, pela efetivação do direito à educação e sua incidência na construção de políticas públicas de educação e formação profissional no país, entre os anos 1980 e 2000. O texto parte do pressuposto da indissociabilidade entre produção teórica e intervenção social, de sua unidade dialética, e tem como objetivo principal indicar a presença dos sujeitos sociais coletivos e sua atuação direta na construção histórica da educação brasileira. Palavras chaves: trabalho e educação, educação profissional, política pública, movimentos sociais.


THE STRUGGLE OF THE WORKING CLASS FOR THE RIGHT TO EDUCATION AND VOCATIONAL EDUCATION, IN DEFENSE OF PUBLIC SCHOOLS: AN ACCOUNT OF EXPERIENCE.


Abstract

Given the proposed theme, based on my academic involvement in the field of research on the relationship between work and education and my participation in social movements, this article aims to contextualize the development of this praxis within the struggles of popular and labor movements in São Paulo for the realization of the right to education and its impact on the development of public policies for education and vocational training in Brazil between the years 1980 and 2000. The text starts from the assumption of the inseparability between theoretical production and social intervention, of their dialectical unity, and seeks to indicate the presence of collective social subjects and their direct role in the historical construction of Brazilian education.

Keywords: work and education, vocational education, public policy, social movements.


LA LUCHA DE LOS TRABAJADORES POR EL DERECHO A LA EDUCACIÓN Y LA FORMACIÓN PROFESIONAL, EN DEFENSA DE LA ESCUELA PÚBLICA: UN RELATO DE EXPERIENCIA.


Resumen

Considerando la temática propuesta, a partir de mi inserción académica en el campo de investigación de las relaciones entre trabajo y educación y de mi actuación en el movimiento social, el artículo propone contextualizar el desarrollo de esa praxis en el ámbito de las luchas del movimiento popular y sindical en São Paulo por la efectivación del derecho a la educación por la efectivación del derecho a la educación y su incidencia en la construcción de políticas públicas de educación y formación profesional en el país, entre los años 1980 y 2000. del presupuesto de la indisolubilidad entre producción teórica e intervención social, de su unidad dialéctica, y tiene como objetivo principal señalar la presencia de los sujetos sociales colectivos y su actuación directa en la construcción histórica de la educación brasileña.

Palabras clave: trabajo y educación, educación profesional, política pública, movimientos Sociales


1Recebido em 27/03/2023. Primeira avaliação em 29/03/2023. Segunda avaliação em 30/03/2033. Aprovado em 03/04/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.57854 Texto apresentado no V Intercrítica, Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação, GT9 – Trabalho e Educação da ANPED, Rio de Janeiro, 2023.

2Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E-mail: moraescs@usp.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/4971024492460323. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3059-2102.


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Introdução


Levando em consideração a temática proposta, a partir de minha inserção acadêmica no campo de pesquisa das relações entre trabalho e educação e da atuação no movimento social, o artigo visa contextualizar o desenvolvimento dessa práxis no âmbito das lutas empreendidas pelo movimento popular e sindical em São Paulo, entre os anos de 1980 e 2000, para a efetivação do direito à educação e sua incidência na construção de políticas públicas de educação e formação profissional no país.

A escolha do formato desta apresentação constituiu um primeiro desafio – elaborar um texto mais objetivo e analítico, ou uma escrita com ênfase em experiências pessoais, baseadas em meu percurso acadêmico e de militante em defesa do ensino público, e pela universalização do acesso ao conhecimento?

Resolvi – depois de alguma hesitação – priorizar a forma de depoimento, no qual a memória da experiência pessoal se entrelaça com o exame dos acontecimentos históricos. O que nos faz lembrar as distinções apontadas nos estudos de Jean Miraux (2005, p. 11-12) entre o gênero memorialista, aqui adotado, e a autobiografia. Segundo esse autor, o memorialista inscreve a história de sua vida na história dos acontecimentos, e essa inscrição é dominante em sua obra, enquanto o autobiógrafo, em movimento contrário, inscreve a história nas escritura de sua vida (MORAES, 2022).

Importante lembrar, também, as considerações do filósofo Walter Benjamin (1991, p. 241) sobre o passado e a memória. Para ele, o passado contém o presente, “tempo de agora” ou “tempo atual”. E, nessa direção, “a citação do passado... pode ser fonte formidável de inspiração, uma arma cultural no combate presente”. Em lugar de apontar para uma “imagem eterna” do passado ou para uma teoria do progresso, o historiador constitui uma “experiência” com o passado.

Começo afirmando meu pertencimento ao Grupo 9 da Anped desde os anos 1980, grupo que reúne pesquisadores voltados para uma área de investigação que, a partir dos anos 1970, se desenvolve em vários países, e é dirigida à análise das relações entre duas esferas de atividades sociais – a educação e o trabalho.

Tal como consideram importantes representantes desse domínio de pesquisa na França, L. Tanguy, A. Jobert e C. Marry (1995), por exemplo, entendo que um dos principais desafios no tratamento de objetos de estudo na área consiste em integrar

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conhecimentos que se desenvolvem de forma isolada nas instituições acadêmicas de ensino e pesquisa, como são os casos da economia e da sociologia do trabalho, da história e da sociologia da educação. Ao mesmo tempo, é preciso enfrentar as limitações analíticas das orientações teóricas predominantes nessas áreas.

Outro grande desafio significativo decorre do fato de o campo de investigação não ser construído prioritariamente pelas disciplinas acadêmicas, mas a partir de demandas sociais diversas, originárias tanto da administração estatal, quanto das empresas e de outros grupos sociais, organizações profissionais e sindicais. E como a experiência nos mostra, as relações entre o debate social, a “lógica administrativa” e a “lógica científica” não são diretas, lineares, mas complexas e contraditórias. Nessas condições, o campo não é definido, organizado em torno de um objeto estável com subtemas circunscritos, como é o da sociologia da educação, por exemplo. As pesquisas que informam a área de investigação, ao contrário, apresentam-se essencialmente diversificadas quanto a seus objetos, formas de abordagem ou referenciais teóricos (TANGUY, 1986).

E apesar das dificuldades desse domínio de pesquisa, o GT9 tem conseguido manter – em todos esses anos – coerência teórica e de método no âmbito da pluralidade de abordagens que constituem o campo do marxismo. E a atuação coletiva e resistente de seus pesquisadores tem marcado a história da educação do país em seus momentos políticos cruciais – como no processo de redemocratização dos anos 1980, com sua participação nas Conferências Brasileiras de Educação e em outros fóruns, no processo constituinte e construção da Constituição brasileira, em 1988, e na elaboração da LDB e dos Planos Nacionais de Educação, no desenvolvimento de experiências educacionais contrapostas às imposições governamentais neoliberais nos anos 1990. Como afirmam as profas. Eunice Trein e Maria Ciavatta (2011), as reflexões produzidas pelos pesquisadores do GT da ANPED nos embates econômicos, políticos e educacionais consolidaram o grupo “como uma trincheira de resistência aos golpes da reestruturação produtiva e suas formulações ideológicas”.

Nesse período, a proliferação de cursos de Pós-Graduação nas Universidades Públicas consolidou a institucionalização da pesquisa acadêmica e, em particular, na área da Educação. Novos estudos e análises procedentes dos trabalhos de mestrado e doutorado contribuíram para renovar as interpretações no campo da história e da sociologia da educação, fomentando os processos de intercâmbio nacional e


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internacional entre os pesquisadores e – como consequência – fertilizando a produção no domínio da investigação das relações trabalho e educação.

Com arcabouço teórico consolidado, mais consistente, ocorrem os movimentos de enfrentamento às investidas neoliberais nos governos Collor e FHC, contra do decreto 2208/1997 e outras normativas governamentais ditadas pelos organismos multilaterais – como o BID, BIRD, OCDE e OMC – tanto na órbita da educação básica quanto na da educação superior.

Em virtude do tempo restrito de que dispomos, vou delimitar meu relato aos anos entre 1980 e 2000, embora algumas vezes a temporalidade do objeto de análise nos direcione à década anterior. Os anos 1980 foram de luta incansável contra a ditadura empresarial militar e pela reconstitucionalização do país. A década de 1990 caracteriza-se pela resistência às políticas neoliberais e o fértil desenvolvimento de experiências por movimentos sociais populares, sindicais, e outras organizações da sociedade civil, salientando-se a contribuição dessa prática social tanto para a reflexão teórica e a elaboração conceitual, quanto para a construção de políticas públicas de educação. Os anos 2000, correspondentes ao período do governo Lula, são marcados pelas disputas por hegemonia no campo educacional e por algumas conquistas políticas alcançadas. E, dada a mesma exigência de tempo, introduzo outro recorte à análise – a ênfase na EJA e na educação profissional, na sua relação inseparável com a educação básica.

A apresentação tem dois objetivos principais: indicar a presença dos sujeitos sociais coletivos e sua atuação direta na construção histórica da educação brasileira e, principalmente, afirmar as nossas conquistas, o avanço das concepções e práticas pedagógicas e das políticas públicas que informaram e informam a organização do sistema educacional.

Ao analisarmos as modalidades típicas de relação entre movimento social e educacional (Beisiegel, 2009), temos como pressuposto que os trabalhadores, por meio de sua atuação, organizações, movimentos e redes sociais, contribuíram decisivamente para a construção da educação escolar no país, seja em termos da ampliação/democratização das oportunidades escolares, seja em termos da construção de concepções/orientações que ordenam os conteúdos e métodos de ensino (MORAES, 2013a).



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As primeiras iniciativas de formação3


Herdeiras do legado das iniciativas educacionais dos movimentos populares do início do século XX, a história das escolas de trabalhadores em São Paulo inicia-se na resistência à ditadura militar. As mais antigas datam do final da década de 1960 e meados dos anos 1970. Essas escolas surgiram como forma concreta de se desenvolver um trabalho político em tempos de repressão. São iniciativas de trabalhadores que tomam para si a responsabilidade pela formação dos próprios trabalhadores: uma política de ação direta em educação, num contexto de ditadura explícita do capital e de repressão aos movimentos sociais.

Nos anos que se seguiram ao AI 5, o clima de medo se espalhou pelas fábricas e as greves desapareceram quase por completo. A resistência operária deu-se basicamente por meio de pequenas organizações clandestinas nas fábricas e da imprensa operária. Formam-se, também clandestinamente, organizações por categoria, em encontros de oposições à estrutura sindical existente. Entre elas, destacou-se, pelo significado de suas propostas e pela prática desenvolvida, a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP). De acordo com Sebastião Lopes Neto, um dos antigos dirigentes, “a oposição era um caldo de cultura” que reunia a esquerda antiestalinista, marxistas - críticos ao que se fazia antes de 1964, à linha do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do Partido Comunista do Brasil (PC do B), além dos cristãos defensores da Teoria da Libertação:

... foi um movimento importante porque foi um dos vetores de criação da CUT. As oposições, junto com o sindicalismo autêntico, Lula, Jacob, Wagner Benevides, João Paulo Vasconcelos, Olívio, são os sindicalistas – nós não éramos os sindicalistas, éramos o movimento de oposição, mas oposição a uma estrutura sindical. ... Eu venho desse movimento, que tinha uma relação muito interessante porque a oposição metalúrgica faz uma opção muito radical de trabalho de base. Tanto é que quando aparecem as greves de 1978 ninguém entende de onde vieram, mas elas já vinham sendo gestadas há cinco, seis, sete, oito anos, não era coisa de três meses, cinco meses. Nós ficamos dentro das fábricas muitos anos acumulando. Era uma concepção de trabalho, porque a gente não tinha esperança nenhuma de ganhar o sindicato por cima – estávamos na ditadura, tínhamos que ganhar por baixo. E dentro desse movimento – eu já vou entrar direto


3Os tópicos iniciais foram desenvolvidos com base nos resultados obtidos na pesquisa “Educação de adultos trabalhadores: metodologias de ensino e aprendizagem". Itinerário formativo e capacitação de professores”, auxílio FAPESP (na linha Políticas Públicas), realizada por pesquisadores da FE - USP em cooperação com Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisa/IIEP e com o Centro de Educação, Estudos e Pesquisas/CEEP. O trabalho coletivo foi publicado no formato de livro: MORAES, C.S.V. (org.), 2013b.

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no assunto aqui – a gente tinha muitas relações com o que depois veio a ser o movimento popular nos bairros: cursos de Madureza, curso supletivo, curso de formação profissional. Era um período em que os trabalhadores, inclusive eu, não tinham escolaridade. Pouca gente tinha Ensino Médio, 2º grau, na época. Eu fiz supletivo de 2o grau. A maioria tem essas trajetórias (Entrevista, 14/05/1999).


A violenta estrutura repressiva criada pelo Estado brasileiro colocou para os trabalhadores a necessidade de desenvolver ações de resistência. Era preciso reagir contra a investida de componentes terríveis daquele momento histórico: a ditadura, que atingia a política, a economia, a cultura do país, e os seus desdobramentos – a perseguição política de trabalhadores e sindicalistas, o consequente desemprego, a existência das “listas negras” de sindicalizados despedidos e o despreparo técnico- profissional diante das modificações técnicas trazidas pelas novas indústrias multinacionais.

Entre as diversas iniciativas da OSM-SP, uma delas consistiu nas ações de formação política e profissional de trabalhadores. Na época da ditadura, foram organizados vários cursos dentro das fábricas ou em outros locais, como salas e porões de igrejas católicas. Os cursos, voltados ao preparo profissional, visavam o ensino de Português, Matemática, Trigonometria, Desenho Geométrico e Desenho Mecânico. Essa prática ocorria em todas as regiões em que se concentravam fábricas metalúrgicas. De acordo com Sebastião Neto, os cursos eram ministrados pelos próprios trabalhadores ou por “diversas pessoas que estavam saindo da vida clandestina, do exílio”, professores universitários, estudantes, na maioria. Faziam parte da equipe de professores Maria Nilde Mascelani, Eder Sader, Marco Aurélio Garcia, Paulo de Tarso Venceslau, entre outros:

Nos primeiros tempos, o ensino e a troca de conhecimentos desenvolviam-se ‘informalmente’, num canto da própria fábrica, ‘na hora das refeições’; depois, passaram a se realizar em outro espaço, organizado em sala de aula, no fundo de uma Igreja ou de qualquer agremiação existente nas proximidades da fábrica. Nessa época, a ‘politização’ ocorria na ‘hora do cafezinho’, mas, depois, o debate político deixou de ser ‘casual’ e passou a fazer parte do currículo dos cursos. A atuação no local de trabalho, no interior da fábrica, tornava o domínio técnico e a competência política imprescindíveis aos trabalhadores (Entrevista, 14/05/1999).


A importância desses cursos e sua influência nas “atitudes de classe” foram significativas. Como afirma Vito Giannotti, antigo militante da Oposição Sindical:



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“as greves da década de 1970 resultaram, seguramente, também dessas atividades desenvolvidas em São Paulo, no Recife e no Rio de Janeiro, contribuindo para a criação, o delineamento de um novo sindicalismo, desatrelado do Estado” (Entrevista, 12/05/2000).


Em 1978, no contexto de repressão à primeira greve geral da categoria após o golpe militar, a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo (OSM-SP) realiza o seu I Congresso, onde reafirma a luta por um sindicato independente, cujo estatuto deve ser definido pelos trabalhadores em assembleias, um sindicato organizado pela base, apoiado nas comissões de fábrica.

Nas teses aprovadas nesse I Congresso da OSM-SP, realizado de 24 a 26 de março de 1979, nas “propostas de linha de ação para as oposições sindicais”, item 2, afirma-se o compromisso de se “criar associações culturais, e outras que permitam uma aproximação constante e facilitem a formação de setores de oposição baseadas em reuniões interfábricas”4. De acordo com Sebastião Neto,


Normalmente algumas lideranças tinham qualificação maior, mas a massa de militantes, principalmente os que chamávamos de ‘piqueteiros’, que eram aqueles caras irredutíveis, tinha muita gente com baixa qualificação. Aí, como já se conhecia a professora Maria Nilde, ou da prisão ou de algumas coisas... que ela fez durante a década de 1970, resolvemos procurá-la e colocamos o problema para ela. Como ela tinha relação com entidades... com o escritório RENOV, na Praça da Sé, n.146, se não me engano, ela fez contato com uma entidade chamada Ação Ecumênica Sueca e com outra que não me lembro, mas acho que foi a ICOS, da Holanda. Eu sei que um financiamento veio e outro não, e nós procuramos, então, onde fazer os cursos. Nós encontramos onde hoje é o Centro Profissional de Adolescentes (CPA), exatamente onde é hoje, que, na época, se chamava Tabor (Entrevista, 14/05/1999).


Foi assim que, em 1979, reuniu-se um grande número de militantes demitidos pela participação nas greves5 e organizou-se a primeira experiência de curso profissional em espaço centralizado (Tabor, zona leste de São Paulo), com o objetivo de requalificar os trabalhadores para que pudessem retornar às fábricas e atuar nos locais de trabalho.


4I Congresso da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo – 24 a 26/03/1979. Teses aprovadas.

5A repressão foi grande e violenta com mais de mil prisões desde a véspera da greve. No dia 3 de outubro, Santo Dias da Silva, militante das Comunidades de Base e da Pastoral Operária, candidato a vice-presidente da chapa da Oposição Sindical no ano anterior, foi assassinado pela polícia num piquete, na porta da fábrica de lâmpadas Sylvania. Santo, junto com Waldemar Rossi, era uma das principais lideranças operárias da esquerda católica operária (GIANNOTTI, 2007, p. 224).

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Nesse mesmo ano, realizou-se o Encontro Nacional de Oposições Sindicais (ENOS) que juntou, pela primeira vez, após o golpe militar, trabalhadores do campo e da cidade com o objetivo explícito de promover a troca de experiências entre as oposições sindicais, discutir a unificação das lutas e a necessidade de uma central de trabalhadores.

Na década de 1980, por iniciativa de militantes da OSM, foram criadas as associações de trabalhadores em diversas regiões do município de São Paulo, em locais considerados estratégicos, centrais e de fácil acesso aos metalúrgicos: a Associação dos Trabalhadores da Região Sul, do Ipiranga, da Região Norte, da Leste, da Leopoldina e a do Tatuapé. Essas associações trocavam suas experiências de ensino com diversas outras iniciativas locais (associação de moradores, igrejas, pequenos grupos), o que propiciou o surgimento de um espaço de discussão sobre a necessidade de se organizar uma formação que refletisse as próprias matrizes ideológicas da OSM, e que a proposta fosse uma elaboração coletiva, fruto da democracia operária.

O primeiro curso realizado, após a greve de 1979, no bairro de São Mateus, no Jardim São Gonçalo, já “plantava” a dinâmica do Curso Profissional desejado pelos trabalhadores. Pela entrevista de José da Costa Prado, aluno daquele curso, é possível apreender a proposta pedagógica em construção:


Esse Curso de Tornearia, ele não era mais o Curso de Tornearia que eu fiz lá no Senai. Esse curso tinha o Paulo de Tarso Venceslau, o Eder Sader dando aula para a gente, a professora Maria Nilde fazendo dinâmica de grupo conosco, tinha o Sérgio Florentino ensinando tornearia, ensinando fresa, tinha o Neto ensinando metrologia, desenho técnico... Então, tinha todo um jeito de aprender uma profissão com um olhar crítico na sociedade. A gente discutia a questão da conjuntura nacional daquela época, discutia os rumos das lutas dos trabalhadores, o Socialismo era ainda a proposta que orientava esse pessoal... Então, tinha todo esse contexto que fez com que a gente crescesse. Depois desse curso, a gente não era mais aquele peão "chucro" da fábrica. A gente voltou para a fábrica na condição de operário, mas um operário que já lia livro, um operário que já tinha interesse em ler o jornal, um operário que discutia, um operário que, quando sabia que tinha um debate em algum lugar, ia participar desse debate... Então, isso, pessoalmente e profissionalmente, me fez crescer (Entrevista, 09/01/2010).


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Anos 1980: a resistência propositiva


Se os anos 1980 caracterizaram-se pela crise econômica e pela degradação de todos os indicadores sociais, com o recrudescimento dos níveis de pobreza urbana; por outro lado, foi retomado o processo de redemocratização do país, presenciando- se o ressurgimento da sociedade civil com novos sujeitos políticos. Multiplicaram-se os movimentos sociais, ampliando-se a participação na esfera pública com o movimento das “Diretas Já” e pela Constituinte de 1988.

Os empresários instituem o Sistema CNI, em 1980, modernizando sua estrutura político-técnico-administrativa, com vistas à reconquista da hegemonia política junto ao capital industrial e ao capital em seu conjunto. Consolidados em sua representatividade política elaboram, a partir de 1985, propostas para a política econômica, tendo em vista a Assembleia Nacional Constituinte.

Ao movimento sindical tradicional contrapôs-se um sindicalismo mais combativo e politizado. No período de 1983 a 1991 foram elaborados os projetos que configuraram as centrais sindicais: a Central Única dos Trabalhadores/CUT, criada em 1983; a Central Geral dos Trabalhadores, em 1986, e sua posterior subdivisão em 1989, com a criação da Confederação Geral dos Trabalhadores e as propostas do “sindicalismo de resultados”, com a reorganização política no campo da CGT, além da criação da Força Sindical, em 1991.

Os esforços da OSM-SP dirigem-se à criação da CUT. Em agosto de 1981, após a greve prolongada do ano anterior, desenvolvida pelos metalúrgicos do ABC, liderados por São Bernardo, os trabalhadores conseguem realizar a I Conferência Nacional das Classes Trabalhadoras (Conclat), reunindo cinco mil delegados de várias regiões do Brasil, comprometidos com a proposta do “sindicalismo combativo”. Nessa conferência, é eleita a Comissão Nacional pró-CUT, destinada a manter a unificação do movimento sindical e preparar a criação da Central Única dos Trabalhadores. No ano seguinte, o bloco combativo – por meio de suas lideranças mais conhecidas: Lula, Jacó Bittar, Valdemar Rossi, Olívio Dutra – torna pública sua decisão de realizar o congresso e de criar condições que permitiriam a organização da CUT. Finalmente, em agosto de 1983, o movimento sindical combativo se reúne no seu Congresso Nacional e cria a Central Única dos Trabalhadores.


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O Núcleo Escola Nova Piratininga: uma experiência nacional de formação política e profissional. Convênio com a Prefeitura de São Paulo – Governo Luiza Erundina.


O Núcleo de Ensino Profissional Livre Nova Piratininga surge juridicamente em 1981, da junção das referidas experiências educativas de resistência à ditadura (cursos de alfabetização de adultos, supletivos, formação política e profissional), desenvolvidas em bairros operários de São Paulo, como a Vila Matilde, o Tatuapé e a Mooca, como iniciativa de militantes dos movimentos populares e da Oposição Sindical Metalúrgica. A Escola Nova Piratininga funcionou no Brás até 1985, transferindo-se para a Rua Riachuelo, no centro, de onde se mudou outra vez, em 1990, para as imediações da Praça Clóvis Bevilaqua, à Rua Silveira Martins, 8, ao lado da Praça da Sé, local em que permaneceu até 1996. A Escola cedeu espaço às atividades de muitos movimentos sociais e políticos, inclusive como sede da campanha de Luiza Erundina à Prefeitura de São Paulo. De acordo com Sebastião Neto: “Esse salão foi o único lugar que a Erundina teve para montar seu comitê em São Paulo” (Entrevista, 14/05/1999). A escola também amparou a regional da CUT, de modo que por seu espaço transitaram várias lideranças nacionais da época.

O corpo de monitores era constituído, em sua maioria, por operários especializados ou técnicos de origem metalúrgica: mecânicos, torneiros, desenhistas e ferramenteiros, além de estudantes e professores universitários voluntários. As aulas de formação política e sindical eram ministradas pelos militantes da OSM-SP e do movimento sindical em geral. Foi nesse momento que me integrei nas atividades de assessoria pedagógica na Nova Piratininga.

Expressando preocupação com a profissionalização dos filhos de operários, o Núcleo Nova Piratininga passou a orientar seu trabalho na educação de adolescentes. Com esse objetivo, em convênio com a Secretaria da Família e do Bem Estar Social do Município de São Paulo, no governo democrático e popular de Luiza Erundina (PT), foram abertos cursos que realizavam “reforço escolar” (Português e Matemática), associado à iniciação profissional nas áreas da Construção Civil, Mecânica e Eletricidade. O critério de acesso a esses cursos, desenvolvidos nas regiões de Perus e Ipiranga, era a indicação pelos grupos ou “comunidade” organizadora local.

Simultaneamente, foi elaborado em conjunto com a Secretaria de Educação do Município de São Paulo, na gestão Paulo Freire, um projeto-piloto de curso de EJA,


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com duração de cinco semestres, “experiência inédita, de enfrentamento simultâneo das carências no campo do Ensino Fundamental e no desenvolvimento profissional dos trabalhadores”, como observa Cícero Umbelino da Silva, ex-aluno da escola e atual coordenador do Centro de Educação, Estudos e Pesquisas/CEEP:


Foi o projeto de nossos sonhos... que era um curso para adultos, um projeto que resgatasse o saber desses operários e construísse novo saber. E, com recurso público... Bom, esse projeto foi bom enquanto durou. Quando terminou a administração da prefeita Luiza Erundina, o nosso convênio não tinha terminado, o nosso projeto não tinha terminado. Então, o governo de direita do Maluf decidiu destruir definitivamente não só o nosso projeto, mas todas as políticas de educação que beneficiassem os trabalhadores, dentro de uma perspectiva nova de construção do conhecimento, que fosse diferente da política tradicional... (Entrevista, 24/01/2001).


Nessa mesma época, a escola organizou oficinas de capacitação na área de Matemática para monitores do Movimento de Alfabetização de Adultos (Mova), programa desenvolvido pela Secretaria de Educação do Município. Sueli Bossam, professora e, na época, membro da equipe pedagógica da Nova Piratininga, apresenta importante registro a respeito desse período:


Mova é o Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos que teve uma prática iniciada antes do governo Erundina, mas que teve um trabalho de absorção da Prefeitura para que esses trabalhos tivessem desenvolvimento em campo maior, chegou a ter mais de mil núcleos em São Paulo, núcleos de alfabetização, só no Município de São Paulo. A Matemática do Mova nasceu com o grupo da e na Nova Piratininga. Foi para outros Estados do Brasil e chegou a ir para algumas escolas de Portugal, essa proposta de trabalhar o conhecimento matemático. A gestação da oficina foi dentro da Nova Piratininga. A Carmen, inclusive, trouxe alunos da Educação para ajudar na montagem dessa oficina. A Nádia, com um trabalho que ela tinha de Matemática nos Cursos Intensivos, eu, o Sérgio, o Leonildo, com a parte da experiência também do noturno, a minha parte mais com alfabetização, porque eu tinha experiência de alfabetização. Surgiu dentro desse núcleo da “Nova Piratininga” e se espalhou por todo o Mova. Todo o final de semana a gente tinha formação dos monitores do Mova. A Nova Piratininga dava formação para os instrutores, instrutores do Mova, de como ensinar, de como trabalhar com os conhecimentos da Matemática com adultos analfabetos e semialfabetizados. Como disse, a oficina caminhou pelo Brasil e continua até hoje. Até hoje, essa oficina, ela vai para os bairros. Em São Paulo, eu conheço diversos grupos, na região Leste, onde eu estou, várias comunidades aplicam a mesma metodologia, claro que adaptada à realidade local, adaptada aos instrutores locais. Até hoje, eu e o Sérgio estamos acompanhando grupos de alfabetização na área da Matemática. Hoje é o dia que eu vou, à noite, num grupo, o “São Paulo Apóstolo”, onde a gente trabalha a formação de instrutores

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para Matemática, tanto para Elétrica, como para a Alfabetização. Podemos dizer que é uma extensão da escola. A proposta metodológica dela está se expandindo, está viva. Apesar de toda essa dificuldade que ela teve, financeira, a proposta está espalhada, se pode dizer que isso nunca vai morrer, ela está por aí (Entrevista, 30/08/1999).


No caso do Núcleo Nova Piratininga, desde o início desenvolveram-se iniciativas de autossustentação financeira, por meio da fabricação e venda de produtos, utilizando a capacidade técnica de sua equipe. No entanto, com o término do mandato do PT e a posse de Paulo Maluf na prefeitura de São Paulo, a escola passa a enfrentar dificuldades financeiras. A nova administração municipal não cumpriu os compromissos do governo anterior, desrespeitando os convênios em andamento e levando a instituição à insolvência.

A escola manteve-se ativa de 1979 a 1996, quando foi extinta, por questões econômicas. O mesmo ideário político-pedagógico acabou por reunir novamente as pessoas que buscaram responder aos novos desafios, criando o CEEP.6

A importância do Núcleo Nova Piratininga deve ser ressaltada, não só pela consistência e originalidade de sua proposta educacional, das metodologias de ensino que construiu ao longo de sua história e irão orientar as propostas de posteriores de educação do movimento, mas também pela combatividade e pioneirismo de sua atuação na defesa de uma concepção de formação profissional na perspectiva dos trabalhadores. A crítica persistente à gestão empresarial do Sistema S, mantido com recursos públicos, a proposta de gestão pública dessa instituição, assim como o projeto de Centro Público de Formação Profissional desenvolvido em conjunto com as demais ‘escolas operárias’ do Conselho (Nacional) de Escolas de Trabalhadores7,


6Nessa difícil conjuntura, o CEEP, herdeiro das experiências desenvolvidas pelo Núcleo de Ensino Nova Piratininga, inicia seus trabalhos no dia 1º de maio de 1998. Portador do mesmo ideário político- pedagógico e reunindo o mesmo núcleo de formadores da Nova Piratininga, o CEEP caracterizou-se por sua recusa ao novo modelo de organização sócio-econômica excludente então em curso, por suas críticas às políticas governamentais de educação e seus modelos pedagógicos, e, em particular, às reformas do Ensino Médio e técnico profissional do governo Fernando Henrique Cardoso.

7O Conselho de Escolas de Trabalhadores é constituído por um grupo de escolas mantidas por alguns setores das classes trabalhadoras ligadas a movimentos populares ou a sindicatos. Com o objetivo de trocar experiências e unificar propostas, discutir metodologias e objetivos, essas escolas criaram, em seu encontro de 1989, no Rio de Janeiro, um Conselho de Educação Operária, que passou a organizar os seminários subsequentes e a buscar um maior inter-relacionamento, além de trabalhar na criação de uma política de sustentação financeira global para as escolas. O Conselho vem se reunindo, em todos esses anos, e colocando em discussão questões de conteúdos, metodologias, formação política, inovações tecnológicas na indústria e suas consequências sobre os trabalhadores. O Conselho das Escolas Operárias participou, em 1994, do processo de criação do Fórum de Formação Profissional, juntamente com sindicatos de trabalhadores de diversos setores, pesquisadores ligados à área da formação profissional, administrações públicas do campo democrático e popular, entre outros

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foram as questões centrais que levaram à constituição do Fórum de Formação Profissional, em 1993. O Fórum reuniu representantes sindicais, dos movimentos populares – urbanos e rurais, como o MST – e da administração pública, bem como professores e pesquisadores universitários, em particular do Grupo Trabalho e Educação da ANPED. Suas concepções e reivindicações, posteriormente assumidas pelo movimento sindical, constam das resoluções aprovadas nos Congressos Nacionais da CUT, dos anos 1990. O depoimento de Sebastião Neto8, a respeito, é bastante esclarecedor:


Nós nos ligamos a uma ideia nacional que existe até hoje: o Conselho de Escolas de Trabalhadores – hoje chama assim, na época era Conselho de Escolas Operárias; a gente ajuda a criar isso, somos dos primeiros que participam – não éramos organizadores, éramos participantes. Os organizadores eram o pessoal aqui do Rio, do Capina - o Chico Lara, a Bia -, era com esse pessoal que a gente se liga como movimento de formação de trabalhadores. A diferença é que eu, sendo sindicalista, e quando vem o processo de criação da CUT, a gente pega essa elaboração que, na verdade, surgiu fora do movimento sindical, e leva para dentro da CUT... A CUT é fundada em 1983. Eu entro na executiva, na direção nacional, em 1988. Aí, havia uma discussão, nós vamos falar de duas coisas paralelas: a CUT caminha para um lado e paralelo a isso, ou convergente a isso, tem o Conselho de Escolas dos Trabalhadores. Claro que a CUT é enorme, tem uma importância nacional, é uma das instituições nacionais hoje; paralelo a isso, tem um pessoal que tem uma visão muito crítica, muito aguda, muito elaborada sobre educação profissional, que é o Conselho de Escolas dos Trabalhadores, pequeno, e que reúne sete escolas que existem até hoje. Num certo momento, nos anos 1980, essas ideias que foram discutidas entre trabalhadores que estavam nas oposições sindicais, alguns sindicatos e, por coincidência, quem estava nessa reunião era o Gaudêncio Frigotto. Aqui já é 1993, mas já havia uma gestação disso no final dos anos 1980. Em 1978 começam as greves, as coisas começam a abrir, começa-se a contatar gente: ‘Tem um pessoal legal na Bahia, tem um pessoal bom em Belo Horizonte...’. Quando a gente tentou criar o fórum de ensino profissional, era 1993. Fizemos uma reunião, nós juntamos as primeiras administrações de oposição, que, no caso, eram petistas,



participantes. Nesse Fórum, com base na experiência adquirida nas diversas escolas que dele fazem parte, o Conselho apresentou a proposta de se criarem Centros Públicos para Educação de Cidadãos Trabalhadores. Depois disso, outras escolas se juntaram ao Conselho e este passou a se chamar Conselho de Escolas de Trabalhadores. As escolas que participaram dos seminários de educação operária (realizados até o início dos anos 2000, são as seguintes: CADTS (Centro de Aprendizagem e Desenvolvimento Técnico-Social), localizado em São João do Meriti, R.J.; CAT (Centro de Aperfeiçoamento do Trabalhador), localizado em Betim, M.G.; AST (Ação Social Técnica - Escola de Produção Tio Beijo, localizada em Belo Horizonte, M.G.; COPRE (Centro Operário Recreativo Profissionalizante, localizado em Contagem, M.G.; APJ (Aprender Produzir Juntos), localizado em Teófilo Otoni, M.G.; e CTC (Centro de Trabalho e Cultura), localizado em Recife, PE.

8Entrevista concedida a Júlio França Lima e Ialê Falleiros Braga, na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz – Rio de Janeiro/RJ, em 24 de fevereiro de 2006.

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como Diadema, juntamos alguns jovens intelectuais, como a Carmen, o Gaudêncio, acadêmicos e sindicalistas. Foi o I Fórum. Você vai achar frases desse documento, posteriormente em resoluções da CUT. Pedaços de ideias inteiras, entre elas a ideia do Centro Público de Formação Profissional. Quando se fala em Centro Público hoje, ninguém sabe exatamente se é ornitorrinco, se é lontra, se é esquilo, se é parente do jacaré... e o controle público dos recursos voltados para a formação profissional. Isso é uma ideia que surgiu com os sindicalistas cutistas, mas não dentro da CUT, mas a CUT, a partir de 1991, abre uma discussão sobre isso - tem um documento, não sei se está aqui, que a Carmen e eu fizemos, eu era da direção nacional, que a gente propõe que a CUT assuma uma posição clara sobre isso. Paralelo a isso, havia dentro da CUT a visão, que era majoritária na época, de que não tem que ter formação profissional para adolescente, que isso prejudica a formação escolar dos adolescentes, o problema era ter boa educação. Pegaram aquela bandeira genérica: educação pública, unitária, laica, gratuita, que foi da Constituinte. É uma ideia correta, e ao passar isso para quem não vivia no meio dos trabalhadores industriais [o entendimento limitava-se a]: ‘o negócio é ter boa educação’, a gente dizia: ‘Tem que ter boa educação, isso é uma coisa. Mas não pode impedir a formação dos jovens trabalhadores. Eles têm que ser orientados para o trabalho, porque vão ser trabalhadores’. Eles diziam: ‘Não, tem que garantir a boa escola’. Ficou um diálogo difícil, porque o pessoal da educação só falava em educação (escolar). Legal, mas a vida real não é isso! Tem milhões de jovens entrando no mercado de trabalho, não é? E no final, surpreendentemente, nossa posição, que era minoritária politicamente na central, se torna a posição majoritária – fomos construindo uma posição. E, em 1994, tem aqui a resolução do Congresso – tem todos os documentos preparatórios aqui – vai sair um documento claro da CUT em defesa da educação, da formação profissional, em defesa da gestão dos recursos públicos do Sistema S e na defesa dos Centros Públicos (Entrevista, 24/02/2006).


Da vitória de Fernando Collor de Melo a Fernando Henrique Cardoso (1990 – 2002): a resistência ao neoliberalismo.


Nos anos 1990, definem-se novas esferas para a ação sindical e os novos conteúdos dessas ações passam a incorporar o debate sobre as estratégias de enfrentamento das transformações do e no sistema produtivo, e a discussão sobre propostas, projetos e políticas sociais voltados à Educação e à Formação Profissional9. Recrudescem, na década, os processos de reestruturação industrial diante do crescente envolvimento do país no mercado internacional e do aumento dos


9 A elaboração deste tópico foi realizada com base na pesquisa nacional “Diagnóstico da Formação Profissional. Ramo Metalúrgico”, desenvolvida pela Rede Unitrabalho - CNM/CUT, de 1999, parte II, “Sindicatos, Ongs e Formação Profissional”; e nos resultados da Pesquisa “Educação de Trabalhadores por Trabalhadores. Educação de Jovens e Adultos e Formação Profissional”, publicados em 2013.

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níveis de automação e das novas concepções organizacionais. Embora permanecessem elementos característicos da organização taylorista/fordista na produção industrial, a competitividade intercapitalista passou a exigir cada vez maiores níveis de racionalização dos processos de produção. As exigências de maior qualificação da força de trabalho, para integrar-se ao novo “paradigma” tecnológico, revelavam a urgência do debate sobre as relações entre tecnologia/trabalho e qualificação profissional por todos os atores sociais envolvidos no processo.

Se por um lado, nesses anos, prevalece na agenda neoliberal do Estado, por meio da atuação dos Ministérios da Educação e do Trabalho, a ênfase na política de “formação de recursos humanos” como estratégia de competitividade e produtividade industriais, por outro lado, segmentos da sociedade civil constituídos por atores sociais diferenciados apresentam seus projetos e os colocam na esfera pública. Esse é um momento privilegiado em que empresários e trabalhadores expressam, com nitidez, em seus documentos, concepções pedagógicas e pressupostos metodológicos, assim como as bases da gestão e do financiamento dos modelos de educação e formação profissional.

No campo sindical, o “sindicalismo propositivo” se aproxima da visão empresarial de adequação do estoque de capital humano às necessidades da reestruturação produtiva, de integração pura e simples da educação às exigências da ordem econômica; o sindicalismo mais crítico aponta para uma visão de educação ampliada, que inclui conhecimentos científicos e tecnológicos, assim como conhecimentos gerais sobre a sociedade e a cultura, que viabilizem o encontro sistemático entre cultura e trabalho, entre ciência e tecnologia, e possibilitem a compreensão crítica da vida social, da evolução técnico-científica, da história e da dinâmica do trabalho (DELUIZ, 1997). Nessa perspectiva, uma educação integral ou politécnica pressuporia, ao contrário dos rumos então assumidos pelas reformas governamentais, a integração do ensino geral e do ensino profissional-técnico.

De 1992 a 1994, a CUT divulgou inúmeros textos10 apresentando as bases para uma política de formação profissional que foram discutidas no 5o CONCUT, de junho



10Tendo em vista a preparação do 5º Concut, foram produzidos os seguintes documentos: “Contribuições para a definição de uma política de formação profissional da CUT” (dez.1992) (CUT 1992), elaborado por Sebastião Lopes Neto, membro da Executiva Nacional da CUT, e por Carmen Sylvia V. Moraes, profa. Faculdade de Educação da USP; “Diretrizes para uma Política de Formação Profissional da CUT” (maio 1993), elaborado por Flávio Aguiar, Inês Navarro e Fátima Félix da Comissão de Educação da Secretaria de Políticas Sociais (CUT, 1993); e uma versão final de Lopes

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de 1994 (CUT, 1994). Conforme relato de Sebastião Neto, naquele encontro, em sua resolução 14, expressando concepções formuladas no âmbito dos movimentos populares, a formação profissional passou a ser considerada pela central “como parte de um projeto educativo global e emancipador”, recusando a concepção de formação profissional “como simples adestramento ou treinamento ou como mera garantia de promoção da competitividade dos sistemas produtivos”. A formação profissional, entendida como “patrimônio social”, direito do trabalhador, deveria estar “integrada ao sistema regular de ensino”, à educação básica. Os trabalhadores deveriam intervir nesse processo, “participando, através de suas organizações, da definição, da gestão e do acompanhamento e da avaliação das políticas e dos programas de formação profissional” (Resolução da CUT, 1994, p. 52).

Esses textos, que foram também publicados na revista do ANDES em 1993, defendiam posições divergentes. Era um debate complicado: a Secretaria de Políticas Sociais reivindicava a retirada total do cap.11 da LDB que tratava da Educação Profissional, preocupada com algumas disposições que, para eles, traduziam retrocessos na organização da educação profissional – organização de duas redes paralelas, a regular e a de ensino técnico profissional, reeditando a velha dualidade do ensino e favorecendo a ampliação de seu controle pelos empresários. Posição da qual discordávamos, pois entendíamos, juntamente com vários outros sindicalistas e educadores, que essa posição ignorava as necessidades dos trabalhadores e não aprofundava a discussão necessária sobre a organização das diferentes modalidades de ensino profissional entendido como processo de educação permanente integrado ao sistema regular de ensino. E, ao fazerem isso, acabavam – aí sim – por delegar aos patrões a responsabilidade pela organização e gestão do ensino profissional dirigido aos filhos de trabalhadores.

No 5o Concut, a Central passou a reivindicar, igualmente, sua participação “nos termos da resolução da OIT, que prevê a gestão tripartite dos fundos públicos e nas agências e programas de formação profissional de alcance municipal, estadual, nacional e internacional” (op. cit, p. 53). Assinalava, ainda, a “luta pela constituição de Centros Públicos de Formação Profissional, devidamente integrados ao sistema


Neto e Moraes denominada “Contribuição para a definição de uma política de formação profissional” (set. 1993) (CUT 1993), (Relatório CNM/Uni-Trabalho, 1999).

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nacional de educação, com dotação orçamentária específica e sistema democrático e transparente de gestão e fiscalização” (idem, p. 53).

No entanto, esse é o momento em que a CUT terá de enfrentar os desafios do novo cenário internacional pós-queda do Muro de Berlim, a globalização financeira e a implantação acelerada do projeto neoliberal, iniciado, no Brasil, com Collor de Mello, e aprofundado no governo Fernando Henrique Cardoso. O que significava responder ao impasse da definição de seus caminhos políticos, do seu formato organizacional, à questão da democracia interna; do respeito ou abandono de suas bandeiras e princípios originais contra a estrutura sindical oficial, pela construção de um sindicalismo livre organizado pela base; da recusa ou acomodação dentro da ordem; do fortalecimento de posturas respaldadas na política de classe ou no referendo ao pacto social. A perspectiva desse grupo de trabalhadores da Oposição Sindical está bem marcada na fala de Sebastião Neto, um de seus dirigentes e representante da “CUT pela Base” na direção nacional da Central em algumas de suas gestões:


Até o começo da década de 1990, a CUT tem características de movimento. Aí se abre uma discussão que a CUT deve passar para políticas mais propositivas, na famosa plenária da CUT de 1990, em Belo Horizonte – esta é a história da CUT e a gente pode pegar em outros materiais – e começa um processo todo, uma discussão muito forte sobre o que a gente faz diante da institucionalidade Vou falar

de uma forma um pouco imperfeita: a CUT, o PT e o MST têm mais ou menos a mesma origem, um grande tronco. E é uma origem que tem um denominador comum, que é a recusa a uma estratégia de “pactuação” Você vai encontrar o Lula falando isso, posteriormente

um líder como o Stédile falando isso, depois a Pastoral da Terra, o Conselho Indigenista Missionário dizendo isso e vai encontrar também a CUT. Todos os documentos fundantes dizem: “Não tem acordo”... Algo muito forte desse movimento que deu origem à CUT, ao PT e ao MST – nós estamos falando dos anos 1970, porque depois, em 1980, começam a se criar as estruturas e cada um vai pegar o seu rumo. São bem diferentes enquanto instituição. Isso fica muito forte dentro da CUT, que deixa de ser uma menina rebelde para se tornar uma pessoa respeitável Há uma crise institucional muito forte, uma crise

de governo, pelo menos entre Collor até o Fernando Henrique ser presidente, são os anos em que a gente mais avançou nos espaços institucionais. Naquela confusão, o que abriu de espaço! E nisso houve, de certa forma, a sabedoria da CUT em dizer: “Vamos disputar o espaço institucional”; mas, por outro lado, também teve muita ilusão de achar que isso era para valer. E não era. Era aquilo que o Florestan Fernandes dizia: ‘quanto mais demorar a transição, pior para as classes populares, porque não vai haver ruptura!’. O Brasil é um país que não tem punição para torturador. Os grandes assassinatos, a tortura, passaram em branco... O MST, como ficou menos institucional, foi capaz de fazer, e até hoje faz com o governo Lula isso, é um movimento capaz de ir lá, participar, discutir verba pública, mas

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embaixo está: ‘Não saiu?’ E a CUT praticamente abandonou isso (Entrevista, 24/02/06).


Foi um período rico de acumulação de experiências, quando realizamos viagens de estudos a diferentes países europeus e latino-americanos a partir de projetos, a maioria financiados. A participação do metalúrgico Sebastião Neto na Executiva Nacional da CUT, como dirigente responsável pelo que se denominava “GT de Política de Emprego e Reestruturação Produtiva”, e minha posição como professora da USP possibilitaram o surgimento de oportunidades para o estabelecimento de contatos com instituições governamentais, sindicais e outras organizações autônomas de trabalhadores, além dos intercâmbios acadêmicos viabilizados por meus estágios de pós-doutorado, etc.11 Enfim, foi possível estabelecer, nos anos 1990, uma rede de contatos, tanto no plano nacional como no internacional, que foram de grande importância nas lutas empreendidas no campo educacional no contexto brasileiro.

A experiência mais importante, a meu ver, foi a realizada em 1998. Com projeto aprovado e recursos fornecidos pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (Finep), no Programa Especial de Capacitação de Recursos Humanos para o Desenvolvimento Tecnológico, organizou-se uma equipe de nove pessoas, constituída por representantes da administração pública, sindicalistas, formadores e professores universitários, interessados no estudo de questões relacionadas à gestão da formação profissional em diferentes países europeus - Espanha, França e Itália. Interessava- nos particularmente analisar a organização e gestão do sistema público de formação profissional, as políticas públicas de educação orientadas para o trabalho e aquelas que visavam a geração de emprego e renda. Com esse objetivo, visitamos, na Espanha, o FORCEM - Fundación para la Formación Continua, organismo nacional para a formação continuada; o CEPROM - Centre de Formació i Promoció Ocupacional, da CCOO - Central Sindical da Catalúnia, destinado à planificação e



11Entre 1996 e 2002, minha inserção acadêmica e minha militância junto ao IIEP e ao movimento sindical viabilizaram, além do pós doc na França, a realização de encontros e estágios de curta duração, como pesquisadora convidada, no seminário organizado pelo Centro de Información, Gestión e Promoción del Empleo Juvenil (PRO-EMPLEO), em Madri-Espanha (1995), na Association Nationalle pour la Formation Professionnelle des Adultes - AFPA, Ministère du Travail, de Emploi et de Formation Professionnelle, CPTA de Lille e Saint Dennis - Paris, França (1996 -Auxílio FAPESP); no Seminário organizado pelo CINTERFOR - Centro Interamericano de Investigatón y Documentatión sobre Formación Profesional/ OIT, a convite do IIEP, para discussão do Projeto Red de Información, Investigación y Gestión en Formatión Profesional para América Latina y el Caribe (1997). Montevidéu, Uruguai.

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gestão da formação ocupacional na região da Catalúnia; o PRO-EMPLEO - entidade assessora de planos de desenvolvimento regionais, políticas de emprego e formação profissional, Madri; o CIREM - Centro Europeu de Iniciativas e Pesquisas para o Mediterrâneo. Na França, o Émergences, organismo de formação ligado à CGT francesa, que se organiza em três centros situados em diferentes regiões daquele país: Montreuil, Lyon e Marseille, com o objetivo de desenvolver cursos de formação profissional e o ensino para adultos, as chamadas "formações inter-empresas" direcionadas a públicos provenientes de empresas e coletividades diferentes em tamanho, atividade, localização geográfica; a Association Nationale pour la Formation Professionnelle des Adultes - AFPA, organismo público vinculado ao Ministério do Trabalho, Emprego e Formação Profissional, que desenvolvia cursos de formação profissional para formadores, empregados e desempregados, e produzia dispositivos de formação para formadores, além de participar como secretaria técnica, na época, das Comissões Setoriais Consultivas - CPC (construção e trabalhos públicos, metalurgia, química e terciários), instituídas pelo Ministério do Trabalho com as atribuições de analisar necessidades de formação, concepção, atualização, validação e reconhecimento das formações, e definição dos meios humanos necessários (professores e sua remuneração); o Centre de Analyse Pluridisciplinaire de Situations de Travail/APST, da Universidade de Provence (prof. Yves Schuartz). Na Itália, foram contatadas o ISFOL - Istituto Per lo Sviluppo della Formazione Profissionale dei Lavoratori, uma instituição de direito público que operava com a colaboração do Ministério do Trabalho, da Administração do Estado e da Região para análise das mudanças na organização do trabalho, na situação do emprego e para o desenvolvimento da formação profissional; o IEES - Instituto Europeu Studi Sociali, entidade de pesquisa das três maiores Centrais italianas: CGIL, CISL e UIL; ECAP - Ente di formazione Professionale - Centro de Formação da CGIL, em Bologna, na Emilia Romagna; Universidade de Bologna (prof. Vitorio Capecchi); Confindustria, organização empresarial da região da Toscana; Legacoop - a maior estrutura cooperativa da Itália.

A riqueza de informações proporcionadas pela diversidade de instituições contatadas e pela variedade de suas atribuições sociais é incomensurável. Essas informações suscitaram, imediatamente, diferentes questões, tanto de ordem teórica como relativas à organização da educação e da formação profissional nos diferentes


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países observados e em nosso próprio país. Aquele era um momento de transição no formato das políticas públicas em países como a França e a Itália, onde a classificação das qualificações e sua normatização e definição salarial, produto da negociação social, conviviam com mudanças introduzidas pelo "modelo das competências", mudanças decorrentes das novas tecnologias e, sobretudo, das novas formas de gestão do trabalho nas empresas. Na Espanha, o esforço pela democratização do acesso à educação e dos processos educativos confrontava-se com as orientações dominantes do novo modelo difundido pela Comissão Européia. Era um momento de indefinição, de disputa e, também, de perplexidade. Ao mesmo tempo, a experiência de "economia social" na Itália, como é chamada a economia solidária na Europa, impressionava por seu êxito na relação com o grande capital.

A importância da interlocução com os diferentes países da Europa e América Latina, de sua contribuição para o debate social, e as crescentes disputas nos campos do trabalho e da educação incentivaram a criação, no ano 2000, por alguns representantes do movimento social e sindical que haviam participado do referido programa, de uma nova entidade, o Intercâmbio, Informação, Estudos e Pesquisas/IIEP. O principal objetivo dessa iniciativa, a qual protagonizei, era o de impulsionar a constituição de uma rede de associações nacionais e internacionais voltadas para as questões de educação/ formação e trabalho, de modo a agilizar o contato virtual entre elas e a promover encontros presenciais para troca de experiências e debates. Segundo Sebastião Neto, um de seus fundadores:


Inicialmente era isso, um grupo de pessoas interessadas no tema, e todos nós tínhamos nossas funções: eu estava na CUT, a Carmen estava na USP, o outro era um aposentado italiano [Guiseppe La Barbera], cada um tinha sua atividade. Não era um grupo de intervenção, mas um espaço que junta pessoas diferentes. Mas, de repente, a gente começou a ser solicitado, porque temos muita acumulação de informação. Desde 1994 a gente faz um trabalho de contato internacional, viagens, eu aproveitei essas viagens pelo Dieese, a Carmen esteve na França duas vezes, no doutorado e pós- doutorado, contatos, outras pessoas viajam, eu tive contato com sindicalistas. Num período em que o Brasil começa a discutir políticas, a gente tinha acesso a muita informação sobre o que acontecia em outros países. Isso é um patrimônio que a gente tem. Depois, eu participei de todas as comissões técnicas do Cinterfor, a partir de 1997, representando a área dos trabalhadores. E tem gente com muito trajeto no exterior, outros companheiros que estão lá no IIEP – bilíngües e tal. Falando assim, parece que é uma coisa grande, mas é um ovinho, menor que essa sala. Quando começa um avanço institucional de governos melhores, a gente é chamado para trabalhar

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lá com o governo do Olívio Dutra, no Rio Grande do Sul. Junto com a Secretaria de Educação, do Desenvolvimento e do Trabalho, a gente começa a pegar o Planfor e começa a pensar como deveria ser, como um governo decente faria um bom programa de formação profissional. Nossa ideia era: o governo Olívio vai continuar e o Lula não vai ganhar; então, nós tínhamos que ter um estado, um lugar, não um município apenas, teríamos de realizar uma política boa para poder dizer: ‘Se a gente for para o governo federal, vai fazer assim!’. O que aconteceu? Perdemos no sul e ganhamos o nacional. Antes disso, em 2000, com aquela leva de eleições que o PT ganhou, e o PC do B em alguns lugares, a gente começou a ser chamado para fazer coisas: amigos nossos, que eram secretários, outros não sei o que, foi aí que a gente legalizou o IIEP - que existia há muitos anos sem legalizar, não tínhamos nem CNPJ. Nós íamos fazer um trabalho, não tinham como pagar a gente. Aí falamos: ‘Vamos criar um estatuto’. No governo do Olívio a gente acumulou muito isso. Juntamos as pessoas que tinham avaliado o Planfor no estado – do MST ao Senac – todo mundo, criamos um fórum, fizemos um trabalho com o governo deles...” (Entrevista à Fiocruz, 24 de fevereiro de 2006).


Com essa perspectiva, em conjunto com o IIEP e o CEEP, e com recursos de algumas instituições de fomento e apoio de organismos públicos, entidades acadêmicas e do movimento popular, foram realizados Seminários com a participação de convidados nacionais e internacionais, universidades, associações e centros de pesquisa de diferentes países europeus12. Desta maneira, procurou-se manter e ampliar a interlocução com pesquisadores e representantes de administrações públicas e entidades de formação desses países. É importante ressaltar que a realização desses seminários e encontros com grande participação de trabalhadores, militantes sindicais e de movimentos sociais, eram precedidos da difusão, pelo IIEP, de textos de pesquisadores brasileiros e de outros países sobre as temáticas a serem de debatidas, o que provocava, por sua vez, a realização de reuniões preparatórias por alguns dos participantes.

Essas oficinas de trabalho possibilitaram a presença de vários intelectuais e sindicalistas do campo, como Yves Schwartz, professor da Université de Provence; de Helena Hirata, da Université Paris VIII; de Thomas Coutrot, do Ministério do


12Seminário Internacional: A Educação dos trabalhadores pelos trabalhadores, 2001 (IIEP/FEUSP- apoio Cinterfor-OIT); Seminário: Trabalho, Educação. Sindicato, formação profissional e certificação de competências. FEUSP/IIEP, Capes/Cofecub, Decisae/Unicamp, NETE/UFMG, Université Paris X, Nanterre, Laboratoire Travail et Mobilités, 2000; IIEP e GT Trabalho e Educação FEUSP, Seminário de Santo André, 2002; IIEP/ SMDE – Recife: Seminário Nacional de Políticas Públicas de Trabalho e Educação, 2003; IIEP/FEUSP: Seminário Nacional: Políticas públicas de Educação de Adultos Trabalhadores e Formação Profissional no Brasil : problemas e perspectivas. São Paulo: 17, 18 e 19 de agosto de 2006 (auxílio FAPESP); IIEP/CEEP/ FEUSP: Educação de Adultos Trabalhadores: Metodologias de Ensino-Aprendizagem, Itinerário Formativo e Capacitação de Professores, 2007; IIEP/FEUSP: Políticas Públicas de Educação e Trabalho na perspectiva dos direitos sociais (2011).

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Trabalho e Emprego da França e membro do Conselho Científico da Fundação Copernic; do prof. José Manoel Perez Dias, diretor da Cidade Industrial de Vanalon, em Asturias, Espanha, entre outros. O contato com a professora Lucie Tanguy (Paris X - Nanterre), iniciado em 1994, foi permanente por mais de uma década. Sua participação enquanto pesquisadora não se deu apenas no âmbito da academia. Além dos Seminários Internacionais, organizados pelo IIEP e GT Trabalho e Educação - FEUSP, ela participou em suas vindas, de atividades junto a representantes de administrações públicas estaduais e municipais, e de instituições de formação, particularmente, aquelas originárias do movimento popular e sindical, em São Paulo e outros estados brasileiros - Rio, Recife, Porto Alegre e Belo Horizonte13. Os trabalhos de Tanguy, formada por Viviane Isambert-Jamati na tradição de Pierre Naville, interessavam não só pela convergência temática, mas particularmente pela perspectiva teórica e de método que assumem. Suas pesquisas tornaram-se referência obrigatória tanto no terreno da análise sociológica quanto histórica, no objetivo de apreender a conformação do ensino técnico e da educação de adultos na França, e para repensar as nossas experiências no Brasil. Ao lado de Marcel David, Isambert-Jamati, Claude Dubar e Antoine Prost, Tanguy pode ser considerada como uma das principais estudiosas de questões relativas à gênese e desenvolvimento do ensino de adultos (formação continuada), naquele país. Uma das coletâneas por ela organizada, em 1999, "Les Chantiers de la formation permanente (1945, 1971)", recupera, através dos diferentes artigos, a trajetória das principais etapas de constituição deste "domínio da realidade social", na França, texto discutido pelo DIEESE no processo de elaboração do projeto de Universidade do Trabalho (TANGUY, 2006).

Pesquisas de comparações entre os países europeus apontavam, naquele momento, um certo número de questões transversais, entre as quais as diferenças homens-mulheres, os fenômenos do desemprego de longa duração (ou exclusão do mercado de trabalho), o recurso à formação profissional nas políticas de emprego (cujas modalidades se diferenciavam em cada país), assim como a avaliação de



13As duas vindas foram organizadas através de projetos, promovidos e organizados com a participação do Programa de Pós-Graduação da FEUSP. O primeiro, em 1996, financiado pelo CNPq e em parceria com a PUC-RS, e os outros dois, em 2001 (Seminário Internacional) e 2003 (Jornadas com Lucie Tanguy), a convite do IIEP. Posteriormente, Lucie Tanguy participou também de projetos com professores da Unicamp e da UFMG, entre eles Lucília Machado e Fernando Fidalgo, do GT9 (financiamento CAPES Cofecub e /ou FAPESP).

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políticas de educação, de formação e de emprego14. Essa mesma realidade podia ser observada no Brasil e em diversos países da América Latina e Caribe. É importante notar que, tanto aqui como lá, foi criado um mercado de formação que incluía não somente ações que visavam a transmissão de conhecimentos gerais ou especializados (no interior de instituições de estatutos diversos, de educação escolar ou de formação/qualificação profissional), mas o conjunto de ações de orientação (operacionalizadas por meio de dispositivos apropriados) e de integração social, destinadas ao público sem emprego (JOBERT, MARRY & TANGUY, 1995).

Penso ser necessário pontuar a importância crescente das contribuições teóricas de Gramsci, nesses anos, no domínio de pesquisa em trabalho e educação, e em particular entre nós do GT9 da ANPED. O que se deve não apenas ao vigor singular e à originalidade do seu pensamento, vitalidade que pode ser atribuída particularmente, a meu ver, à “sua recusa em separar a teoria política de uma reflexão das condições históricas da possibilidade e dos limites próprios da perspectiva revolucionária em uma conjuntura específica”, como afirmam os editores da revista Actuel Marx (2015), mas também ao novo ritmo da produção dos estudos dedicados à obra de Gramsci, tanto no exterior como em nosso país. Gramsci, de acordo com Guido Liguori (2017), é o marxista que mais reflete sobre a nova relação, desenvolvida, no século XX, entre Estado e sociedade (Estado no seu significado integral), indagando também, em sua teoria da política, sobre a nova relação entre o Estado e a economia. Outro autor estudioso de Gramsci, Álvaro Bianchi (2017), lembra-nos que o amálgama entre uma cultura local (meridional) e a cultura tendencialmente internacional consiste em uma das razões para a atualidade do pensamento de Gramsci na periferia do capitalismo, quase um século depois de sua produção. No Brasil e em alguns outros países da América Latina, como Argentina, Chile e México, as suas formulações políticas e historiográficas geraram importantes estudos sobre a formação social desses países e se tornaram “imprescindíveis para pensar a democracia na América Latina”. Para nós, do campo educacional, a contribuição de Gramsci tem sido fundamental no enfrentamento de políticas educativas – empresariais e governamentais – derivadas das abordagens marginalistas da Teoria do Capital Humano, tanto do ponto de vista teórico-analítico


14Entre os autores citados por JOBERT, MARRY e TANGUY (coords), 1995, encontram-se RAINBIRD (Grã-Bretanha), CAPECCHI (Itália), SCHÖMANN (Alemanha), entre outros.

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quanto na formulação de políticas públicas de resistência aos projetos pedagógicos privatizantes, em defesa de uma escola pública democrática, de qualidade social, comum a todos os brasileiros.


Os projetos Integrar (CNM – CUT) e Educação de Trabalhadores por Trabalhadores (Sindicatos CUT pela Base).


Cabe relembrar aqui as lutas pela educação integrada nas décadas de 1980 e 1990, travadas pelos movimentos sociais, herdeiras daquelas desenvolvidas na clandestinidade no combate à ditadura empresarial – militar, duramente disputadas no processo de formulação da Carta Constitucional e da LDBEN, e amadurecidas na resistência às políticas neoliberais.

Os ajustes da economia brasileira ao novo contexto econômico são acompanhados da presença de organismos internacionais que passaram a orientar as reformas na educação em termos organizacionais e pedagógicos. As demandas da sociedade organizada foram, como no período ditatorial, substituídas por medidas produzidas por especialistas e tecnocratas, geralmente assessores desses organismos multilaterais. Naquele contexto, como se viu, definem-se novas esferas para a ação sindical e os novos conteúdos dessas ações passam a incorporar o debate sobre as estratégias de enfrentamento das transformações do e no sistema produtivo, e a discussão sobre propostas, projetos e políticas sociais voltados à educação dos trabalhadores15.

A Central irá promover, pela primeira vez em sua história, projetos de educação associando elevação de escolaridade e qualificação profissional: os projetos “Integrar”, da Confederação Nacional dos Metalúrgicos (CNM/CUT), e “Educação de trabalhadores por trabalhadores”, realizado por sindicatos da CUT pela Base, de seis diferentes categorias em seis cidades do Estado de São Paulo. Os projetos contaram com a orientação das professoras Maria Nilde Mascellani e Cecília Guaraná, ambas participantes da organização dos Ginásios Vocacionais em São Paulo, uma das experiências mais importantes, no país, de construção e implementação de currículo integrado no ensino médio, violentamente reprimida e extinta no período ditatorial (MORAES, 2013).


15A esse respeito, ver Diagnóstico de Formação Profissional. Ramo Metalúrgico. CNM/CUT, 1999, p. 332.

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As ações educativas dirigidas a jovens e adultos não reduziam os seus objetivos unicamente à dimensão profissional, mas visavam à conquista da autonomia dos trabalhadores em relação aos poderes econômicos e políticos. Os projetos de Ensino Médio Integrado, da educação profissional integrada à educação básica – sejam voltados para a idade adequada, sejam nas modalidades EJA – foram, como vimos, construídos em lutas, encontros e fóruns do movimento popular, sindical e de entidades representativas de educadores da escola básica e da universidade. Tais propostas contrapunham-se às reformas promovidas pelo Governo F.H.C., as quais moldadas, em geral, pelas orientações do Banco Mundial (Bird), além de focar o atendimento no ensino fundamental para a idade própria em detrimento de outras etapas da educação básica e, em particular, da EJA, propunham adequar o ensino às novas demandas econômicas. Dessa maneira, reformularam o ensino técnico, criaram o Sistema de Educação Profissional, aprofundando o dualismo estrutural no ensino médio e reforçando o caráter compensatório e assistencialista atribuído à formação profissional continuada.16

Minha participação no Projeto Integrar da CUT deu-se, principalmente, na coordenação de um projeto de pesquisa nacional, ao lado do prof. Celso Ferretti, entre 1997 e 1999,17 que analisou a educação e a formação profissional destinada aos trabalhadores do ramo. A pesquisa diagnóstica da Formação Profissional – ramo Metalúrgico, desenvolvida sob responsabilidade da Rede Unitrabalho, era parte do projeto mais amplo da CNM/CUT, intitulado Projeto Integrar Nacional de Formação e Requalificação Profissional, do qual participaram, além da Unitrabalho, o Dieese e a COPPE-UFRJ. A pesquisa teve por objetivo produzir e organizar informações e análises sobre a formação profissional destinada aos trabalhadores do ramo metalúrgico e efetuada pelos sistemas públicos de ensino, por entidades sindicais, empresas e instituições empresariais, tendo em vista subsidiar a ação sindical no campo da ação e da gestão das políticas de educação e formação profissional. Para sua realização foram utilizadas informações de fontes secundárias, assim como dados primários coletados junto às diferentes instituições envolvidas, situadas nas regiões


16Sobre isso, consultar MORAES, C.S.V., 2001, texto apresentado na 23. Reunião Anual da ANPED realizada em setembro de 2000.

17Integravam o grupo, como coordenadores regionais: Brasília Carlos FERREIRA - UFRN (norte - nordeste); Carlos Roberto HORTA – UFMG (Sudeste/MG); Acácia Zeneida KUENZER - UFPR (Sul); Celso João FERRETI - PUC-SP (Sudeste/São Paulo); Neise DELUIZ - UFRJ (Sudeste - RJ), quatro de nós participantes do GT9.

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Sul, Sudeste e Norte/Nordeste. O Relatório da pesquisa foi publicado pela CNM – CUT na forma de livro, em 199918.

Neste caso, em se tratando de pesquisa de âmbito nacional, os desafios teóricos e de método de investigação foram inúmeros, mas o seu enfrentamento possibilitou a obtenção de resultados interessantes do ponto de vista do diagnóstico construído sobre o ensino técnico e profissional em curso no país (público, privado, o realizado por empresas, sindicatos e entidades comunitárias) e, principalmente, suscitou o levantamento de algumas questões teóricas pertinentes aos vínculos entre educação escolar e mercado de trabalho, entre escola e produção etc., assim como permitiu, de certa forma, visualizar tanto o "estado da arte" da pesquisa na temática como trazer dados e informações relevantes para o desenho do projeto Integrar de Formação e Requalificação Profissional da CNM-CUT e para sua posterior avaliação. O diagnóstico subsidiou, também, o debate sobre a necessidade de organização de cursos específicos para militantes sindicais, os de nível superior e os denominados de “especialização”.

O Projeto “Construindo o Saber – Educação de trabalhadores por trabalhadores” teve início no ano 2000 e foi realizado, na época, pelo IIEP, pelo CEEP, pelo Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza (CEETEPS), por sindicatos da CUT pela Base e entidades do movimento popular19.

O Programa visava participar do esforço coletivo de construir uma política pública de formação profissional capaz de responder às múltiplas necessidades da população trabalhadora. Entre os seus aspectos inovadores, na perspectiva de associar elevação de escolaridade e preparação para o trabalho, propôs desenvolver uma prática formativa diferenciada, propiciando ao aluno trabalhador acesso à escolaridade no nível de conclusão de Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries) de forma


18MORAES, C.S.V. e FERRETTI, C. (coords.). Diagnóstico da Formação Profissional. Ramo Metalúrgico. São Paulo: CNM/Rede Unitrabalho, 1999.

19O programa foi realizado com recursos do Plano Nacional de Formação Profissional/Planfor, do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), da Secretaria Estadual de Emprego e Relações de Trabalho (SERT) e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Integraram-no, em seus diferentes momentos, sindicatos de diversas categorias, de quatro municípios paulistas: Sindicato dos Motoristas e Trabalhadores em Transporte de São Paulo (até dez. 2000), Sindicato dos Oficiais Marceneiros de São Paulo, Sindicato dos Metalúrgicos de Limeira, Rio Claro e região, Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Calçados e Vestuários de Franca e região, Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência ao Menor e à Família do Estado de São Paulo (Sitraemfa) e Sindicato dos Vidreiros de São Paulo. Constavam, também, entre os participantes, a Pastoral Operária Metropolitana, o Centro Educacional Comunitário São Paulo Apóstolo e a Associação de Funcionários do Banespa (Afubesp).


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mais rápida (18 meses) e, ao mesmo tempo, situando-o frente às constantes mudanças socioeconômicas do mundo contemporâneo. Para tanto, buscou desenvolver metodologias que permitissem articular os componentes curriculares entre si (interdisciplinaridade), inclusive com a área técnica (cursos profissionalizantes). Outra característica diferenciadora do Programa consistiu na forma de organizar e gerir a experiência, baseada na cooperação entre os vários grupos oriundos das diferentes instituições - pesquisadores, professores e estudantes vinculados à Universidade, às escolas de ensino fundamental, médio e técnico, educadores populares e, sobretudo, sindicalistas - nas diversas etapas da proposta educativa: elaboração da matriz curricular, desenvolvimento dos itinerários formativos, seleção de alunos e professores, capacitação de professores, seleção e construção de material didático, acompanhamento e avaliação das atividades.

A avaliação coletiva das atividades pedagógicas desenvolvidas na primeira fase do Programa, finalizada em dezembro de 2000, com 215 concluintes do Ensino Fundamental e portadores de certificação em diferentes habilidades profissionais, e a perspectiva da ampliação da experiência em número de alunos e na extensão de sua oferta para o nível do Ensino Médio indicaram a necessidade da realização de estudos-diagnósticos que aprofundassem e qualificassem tanto as dificuldades como os êxitos obtidos no desenvolvimento da proposta, nos diferentes campos de atuação. O projeto de pesquisa “Educação de adultos trabalhadores: metodologias de ensino-aprendizagem, itinerário formativo e capacitação de professores”, financiado pela Fapesp, na linha Políticas Públicas, iniciou-se em março de 2002 e foi finalizado em dezembro de 2007, envolvendo, conforme procedimentos da linha de pesquisa em Políticas Públicas, duas fases de desenvolvimento. Na primeira, no que diz respeito às suas várias dimensões, o projeto buscou levantar as características do curso investigado, de seus alunos e professores, assim como analisar os dados obtidos em relação aos quatro eixos complementares que ordenaram a pesquisa: adultos trabalhadores como sujeitos de conhecimento e aprendizagem; construção de metodologias de ensino-aprendizagem para adultos trabalhadores e capacitação docente; desenvolvimento de metodologias para elaboração de itinerários de formação profissional; construção coletiva de alternativas econômicas de produção associadas a cooperativas, empresas de autogestão). Com esse objetivo foi constituído um núcleo de estudos e pesquisas composto por um grupo de professores


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, coordenadores (FEUSP, CEEP e IIEP) e sindicalistas que atuavam nas diferentes localidades onde se realizava o Programa de ensino. Foram realizadas oficinas mensais para levantamento e registro das práticas pedagógicas e material didático elaborado pelos professores em cada disciplina, assim como promover a realização de estudos e reflexão teórica.

Com a finalidade de fechar o ciclo de debates, organizou-se uma oficina nacional: “Políticas Públicas de Educação de Adultos Trabalhadores e de Formação Profissional no Brasil: problemas e perspectivas”, com a participação de representantes de movimentos populares, sindicatos, governo/administrações públicas, instituições de ensino básico e academia (representantes dos grupos de estudos e pesquisa em Trabalho e Educação).20

Os dois programas de educação de adultos, da CNM-CUT e do IIEP/ CEEP/ CUT pela Base, guardadas as especificidades de público e condução pedagógica, tinham em comum, em seus objetivos e propostas iniciais, a mesma concepção de educação de jovens e adultos, a de integrar formação geral e formação profissional, que irá fertilizar, mais tarde, o Programa Nacional de Integração da Educação Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA, e o Programa de Integração da Educação Profissional à Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos - PROEJA FIC. Propunham-se, também, na direção das posições então defendidas pela CUT, estabelecer, nos processos educativos, relação prioritária com o sistema público de ensino, de maneira a poder usufruir seus recursos pedagógicos e infraestrutura física, e, ao mesmo tempo, garantir a difusão de uma concepção de educação dos trabalhadores e sua intervenção na política pública de educação e formação profissional (CNM/CUT, 1999, p.358).21


20 Foi construído um banco de dados desse material: documentação escrita (textos, desenhos), oral (depoimento de alunos e professores) e iconográfica, que se encontram hoje no acervo do IIEP. Os resultados dessa experiência de educação de trabalhadores, realizada por trabalhadores, foram sistematizados por meio de exaustivo, mas fecundo exercício coletivo de elaboração escrita, na forma de relatório entregue à FAPESP, transformado posteriormente em livro, publicado em 2013 (MORAES, 2013).

21Havia, naquele momento, muitas e intensas disputas internas na Central de concepção e de condução política frente às medidas do governo FHC e, ao que nos importa aqui, ao Planfor. À decisão da CUT de montar projetos com recursos do FAT- Fundo de Amparo ao Trabalhador, nossa crítica era a de que os cursos desenvolvidos estivessem ligados à estrutura do ensino público e à capacitação dos sindicalistas, para que, entre outros objetivos, pudessem intervir na educação pública. Como bem argumentava Sebastião Neto, “a melhor experiência sindical internacional que a gente tem mais relação

- italianos, espanhóis, ... a França é um caso à parte porque lá foi tudo muito estruturado, muito organizado, muito republicano, para o bem e para o mal – nesses países que saíram de processos

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Os desafios provenientes da realização dos projetos de educação de adultos, a problematização de seus procedimentos e resultados aprofundados pelos debates promovidos com instituições públicas e sindicais e com pesquisadores no campo da educação profissional em diferentes países possibilitaram grande aprendizado e maior percepção sobre os desafios e possibilidades para o avanço das propostas na área.


As disputas no governo Lula


A proximidade das eleições em 2003 e a perspectiva da vitória de Lula para assumir o governo federal irão impulsionar a realização de um grande Seminário nacional, em 2002, organizado pelo IIEP e realizado no município de Santo André, com a participação de representantes da administração pública, de entidades sindicais e do movimento popular, e de pesquisadores da área de educação e trabalho, para debatermos coletivamente uma proposta de educação e formação profissional, uma vez que no debate em curso sobre a educação básica não se configurava, estranhamente, nenhum fórum dirigido a essa modalidade de ensino. O encontro gerou um texto chamado “Documento de Santo André”, que foi entregue em Brasília e recebido por algumas autoridades já nomeadas que haviam participado do encontro e assinado o documento. Este documento, de reconhecida relevância para o governo Lula, serviu de orientação na elaboração de políticas de jovens e adultos integrada à educação profissional, como o PROEJA e o PROEJA FIC, além de importantes iniciativas conjuntas do MEC e do MT voltadas para a certificação educacional e profissional.22

Nessa mesma direção, “conscientes da importância histórica do (...) momento político, gestores de políticas públicas municipais de desenvolvimento local, de trabalho e renda, de economia popular e solidária, de educação e formação


políticos de negociação, a grande lição era não pegar dinheiro do Estado...; o sindicato deve brigar para participar intervindo na política pública”. Outra crítica relevante estava direcionada ao fato de os cursos serem realizados “de fora”, sem o enfrentamento com a empresa. Por isso, não é possível encontrar exemplos de negociação da formação (entrevista Sebastião Neto à Fiocruz, em 24/02/2006).

22Importante assinalar a participação de pesquisadores do GT9 no encontro, os quais assinam o documento, entre eles, Marise Ramos, que foi Diretora do Ensino Médio no primeiro governo Lula; Lucília Machado, que exercerá a coordenação técnico-pedagógica do PROEP. Grande parte das propostas referentes às políticas para a educação profissional nas diferentes etapas e modalidades aparecem citadas no documento da SETEC “Proposta em Discussão. Políticas Públicas para a Educação Profissional e Tecnológica”, de abril de 2004, onde são apresentadas as balisas orientadoras das ações a serem promovidas por essa Secretaria.

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profissional, bem como pesquisadores de Universidades e representantes de entidades da sociedade civil” realizaram, em Recife, o Seminário “Qualificação Profissional: entre o direito à educação e o mercado de trabalho” para discutir políticas públicas no campo da Educação, do Trabalho e do Desenvolvimento.23

O encontro, organizado pelo IIEP e promovido pela Prefeitura do Recife, através da Secretaria de Educação – SE e da Secretaria do Desenvolvimento Econômico, elegeu como tema central a “integração das políticas municipais”, o que permitiu a construção de um diagnóstico sobre as experiências em curso nos municípios - sobre os avanços alcançados, os desafios e dificuldades a serem enfrentados no sentido da integração das políticas entre os municípios e entre eles e os demais entes federativos -, capaz de viabilizar o regime de colaboração. Os resultados desse diagnóstico, acompanhados das propostas de ação às políticas municipais, intermunicipais, e no plano federal, constam no Documento “Carta do Recife”, aprovado no Seminário Nacional de Políticas Públicas de Trabalho e Educação e encaminhado também ao governo federal.24

Em dezembro de 2010, no final do governo Lula, organizamos – o IIEP em colaboração com o GT Trabalho e Educação FEUSP – uma Oficina de Educação e Trabalho, com a participação de representantes de Grupos de Pesquisa em Trabalho e Educação de diferentes universidades e Institutos Federais/IF do país (que integram o GT9 da ANPED), além de alguns representantes de administrações públicas federal, estaduais e municipais, para realizar um balanço das políticas de EJA integrada à Educação Profissional desenvolvidas nos oito anos de governo e realizar alguns encaminhamentos visando o avanço nesse campo.25


23IIEP: Documento síntese. Carta do Recife. Qualificação Profissional: entre o direito à educação e o mercado de trabalho. Recife-OE, maio 2003.

24O evento teve a participação de 22 governos municipais de diferentes Estados, além da presença de observadores nacionais, entidades como a CNM/CUT, CUT Pernambuco, Anteag, Dieese, Inep, Unitrabalho, outras instituições do município do Recife, escolas de trabalhadores, como o Centro de Trabalho e Cultura – CTC, a Escola de Formação Quilombo dos Palmares, Escola Sindical da CUT Nordeste, entre outras, e movimentos populares. Participaram como expositores convidados representantes do Ministério do Trabalho (Secretaria de Políticas de Emprego e Departamento de Qualificação Profissional), do Ministério da Educação (Secretaria de Educação Média e Tecnológica, do Programa de Expansão da Educação Profissional, coordenado pela nossa colega do GT9, a profa. Lucília Machado, e o INEP.

25Em 2008, o MEC iniciou três projetos pilotos de Ensino Fundamental na modalidade EJA, integrada à Formação Inicial e Continuada, com o objetivo de estabelecer parâmetros e referenciais para a implantação do PROEJA-FIC nacionalmente. Os pilotos foram realizados em Santa Catarina, Mato Grosso e São Paulo. Em São Paulo, a experiência foi desenvolvida em três municípios – Diadema, Guarulhos e Osasco – em parceria com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – IFSP. Posteriormente, 35 municípios aderiram ao programa, sendo que 20 firmaram parceria com o Campus

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Muitos dos participantes do seminário haviam protagonizado lutas incansáveis na implementação das propostas e projetos construídos nos momentos de mobilização social e resistência às políticas neoliberais, exercendo inclusive funções no interior do governo Lula. O Seminário se constituiu, então, como um dos momentos privilegiados para leitura coletiva e avaliação crítica dos oito anos de governo (2003- 2010) a partir de nossa própria prática política nos diferentes espaços em que atuávamos. Nessas circunstâncias, foi elaborado e aprovado o Documento coletivo “Políticas Públicas de Educação e Trabalho na perspectiva dos Direitos Sociais”, encaminhado também ao governo Lula.26

O Documento expressa a preocupação dos seus proponentes em expor ao governo e à sociedade os impasses existentes na condução das políticas educacionais e, ao mesmo tempo, apresentar sugestões e diretrizes no sentido de fortalecer as políticas públicas de jovens e adultos que “por dificuldades estruturais no sistema educacional e no mercado de trabalho, foram postos fora dos ritmos normais da escolarização” (IIEP/GP Trabalho e Educação FEUSP, 2011).

E embora não faça parte do escopo do texto analisar a atuação política do governo Lula no campo educacional, é importante pontuar, no contexto, a contradição permanente entre propostas orientadas na continuidade das políticas neoliberais herdadas, de flexibilização e mercantilização dos direitos sociais, e aquelas que propunham a implementação de projeto voltado para a construção de um modelo alternativo de desenvolvimento econômico-social democrático. O embate era perceptível nas dificuldades de implementação de políticas universais, substituídas por uma multiplicidade de políticas de caráter provisório e assistencialista, fragmentadas em vários ministérios no âmbito do governo (MORAES, C.S.V., 2017).



São Paulo e 14 apresentaram projeto pedagógico coletivo, com base nas experiências piloto. O IIEP se envolveu amplamente no desenvolvimento do Programa, assessorando grande número de municípios, intermediando a relação com o IF e acompanhando a implementação dos projetos pedagógicos. Lutou pela viabilização do Proeja e do Proeja FIC, considerando imprescindível ao sucesso da experiência de ensino a abertura de um diálogo com a Rede Federal “de maneira a viabilizar a aproximação entre a expertise da Rede na Educação Profissional e o acúmulo dos movimentos sociais e sindicais na educação popular” (IIEP, 2009).

26Um número significativo de pesquisadores do GT9 e do GT de EJA da ANPED, de diferentes universidades do país, assinam o documento, entre eles Lucília Machado, Marise Ramos, Maria Ciavatta, Maria Clara Bueno Fischer, Maria Margarida Machado, Naira Franzoi, Almerico Lima, Diretor de Qualificação do MTE durante a gestão de Luiz Marinho, Celso Ferretti, Dante Moura, todos protagonistas importantes na luta pela implementação do PROEJA e PROEJA Fic, na elaboração do documento base das Diretrizes Nacionais Curriculares para o Ensino Médio,aprovado em 2012 pelo CNE.

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Pode-se dizer que as políticas educacionais apresentavam, assim, caráter “pendular e ambíguo” (OLIVEIRA, 2015, p. 636). No campo da educação básica, as reivindicações pela escola unitária, pelo Ensino Médio Integrado, apresentadas ao Governo Lula e discutidas no início de sua gestão em seminários nacionais organizados pelos Ministérios da Educação e do Trabalho, levaram o governo a emitir novo Decreto (5.154/04), que substitui a medida anterior e permite reintegrar a educação profissional técnica ao ensino médio. A medida impulsionou o Ministério da Educação (MEC), ainda que timidamente, a promover iniciativas que propiciassem o amadurecimento de orientações dirigidas à superação organizacional e pedagógica da separação entre formação geral e técnica, entre trabalho, cultura, ciência e tecnologia. É o caso das Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio (Parecer CNE/CEB 05/2011), de aprovação tardia pelo Conselho Nacional de Educação, que vêm complementar o decreto n. 5154; do PROEJA, posteriormente ampliado com o PROEJA FIC (Decretos n. 5.478/2005 e n. 5.840/2006, Documentos-Base – MEC/Setec, 2007), destinados ao atendimento de milhões de brasileiros que não concluíram a escolaridade na chamada idade própria. Não me deterei aqui nos avanços representados por essas medidas no sentido do resgate e revitalização da educação de jovens e adultos de modo a superar o viés assistencialista e compensatório, promovendo a inclusão social. Importa apenas afirmar a importância do PROEJA FIC, que vinha suprir a ausência histórica, em nosso país, de ensino que integrasse formação geral e formação profissional na escola básica de nível fundamental, possibilitando a construção de percursos formativos sustentados na concepção de eixos tecnológicos e a superação dos limites de uma formação restrita orientada pela Classificação Brasileira das Ocupações (CBO) baseada em competências, viabilizando assim a validação dos conhecimentos, seja para a classificação funcional da ocupação, seja para posterior aproveitamento dos estudos (MORAES, 2006).

Se no campo da Educação o debate concentrou-se na perspectiva do reconhecimento de saberes e habilidades adquiridos, pelos trabalhadores, ao longo da vida para fins de prosseguimento ou conclusão dos estudos e inserção profissional, no campo das relações de trabalho, tratava-se de criar processos certificadores que dinamizassem as novas formas de gestão e de organização dos processos produtivos (FIDALGO, 2003; MORAES, e LOPES NETO, 2005).


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No âmbito do Ministério do Trabalho, o Plano Nacional de Qualificação/PNQ veio substituir o Plano de Nacional de Formação/Planfor, introduzindo modificações na condução da política de qualificação profissional, promovendo a ressignificação de suas noções ordenadoras. Entre elas, a substituição da noção de “competência” pela de “qualificação social e profissional, o que indicava mudanças significativas na concepção de trabalho, educação, formação profissional e da relação entre elas e, em decorrência, nos processos de formação e certificação (MORAES, 2006).

Na direção dessas preocupações, para suprir a ausência de uma política pública nacional de ‘certificação profissional’ de conhecimentos, que normatizasse e regulasse experiências, propostas, programas e projetos de certificação profissional vinculados aos diversos ministérios, órgãos federais, entidades e segmentos sociais, o MTE, desde 2003, vinha desenvolvendo esforços em conjunto com diversos agentes governamentais e sociais, com vistas a organizar institucionalmente a certificação profissional, como atribuição do Sistema Público de Emprego e articulado ao Sistema Nacional de Educação. Para tanto, foi instituída em 2004 a Comissão Interministerial sobre Qualificação e Educação Profissional, composta pelos Ministérios da Educação, do Trabalho e Emprego, da Saúde, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, do Ministério do Turismo e pelos Conselhos Nacionais da Educação e do Trabalho, sob a coordenação geral, exercida alternadamente, do MEC e do TEM 27. Em consonância com as reivindicações de representantes do movimento sindical de trabalhadores e na contramão de iniciativas de ‘certificação profissional baseada em competências’ promovidas pelo mercado, o Sistema Nacional de Certificação Profissional (SNCP) concebia a ‘certificação profissional’ como “processo negociado pelas representações sociais e regulado pelo Estado”, por meio do qual “se identifica, avalia e valida conhecimentos, habilidades e aptidões profissionais do(a) trabalhador(a), adquiridos na frequência a cursos e atividades educacionais ou na experiência do trabalho”. Ao contrário do programa privado de certificação realizado pelo Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial – Inmetro, em que os certificados emitidos são exclusivamente profissionais, não existindo correspondência com escolaridade, a certificação proposta pelo MTE era considerada como parte do processo de orientação e formação profissional e não poderia “se opor,


27 A equipe do IIEP participou da Secretaria Executiva da Comissão Interministerial sobre Qualificação e Educação Profissional para a criação do Sistema Nacional de Certificação de Conhecimentos dos Trabalhadores.

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sobrepor ou substituir a formação profissional”. O SNCP representava portanto uma conquista, uma avanço das lutas pela inclusão, a inversão da tendência de aumento das desigualdades permitindo aos menos formados e aos menos qualificados o acesso à escolaridade e às qualificações superiores (MORAES & LOPES, NETO, 2005; LOPES NETO, 2003).

Da mesma maneira, o Documento reconhecia, no final dos governos Lula, que o conjunto dessas medidas associadas àquela de expansão da Rede Federal de Educação Tecnológica (Lei 11.892/2008), apesar de não constituírem políticas de Estado, tinham o mérito de propor integrar a formação escolar e a formação para o trabalho e a cidadania, incorporando o tema do trabalho como estruturante da proposta curricular (IIEP e GT Trabalho e Educação - FEUSP, 2011, p. 8). Contudo, o Documento também interpelava o governo para que convocasse a sociedade a um amplo debate sobre um projeto estratégico de enfrentamento da problemática dos jovens e adultos que não tiveram acesso à educação básica e à formação profissional, sob uma referência de política de Estado. Ao final do segundo mandato do governo Lula, ao iniciar-se a terceira gestão do Partido dos Trabalhadores, considerava-se que do ponto de vista político, econômico e social as condições estavam maduras para o seu desenvolvimento e que o governo não poderia mais adiar sua implementação (op. cit p. 21).

No entanto, não foi o que ocorreu. Infelizmente, como se sabe, o PROEJA e o PROEJA FIC permaneceram na forma de programas e não se efetivaram como políticas de Estado. Em meio aos embates, os programas tiveram difícil operacionalização e, na gestão Dilma Rousseff, decretou-se a sua extinção a partir da criação do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e ao Emprego – PRONATEC (LEI n. 11.513/2011), política privatizante que contou, na sua elaboração, com expressiva participação de entidades e fundações empresariais. Nesse processo, os objetivos disputados, e nunca concretizados, de elaboração de um guia para o EJA FIC, seguindo a metodologia adotada pelo MEC para os Catálogos Nacionais dos Cursos Técnicos e Superiores de Tecnologia, como reação à sua fragmentação e mercantilização, foram imediatamente deslocados e substituídos. Em seu lugar, é publicado o Catálogo de cursos Pronatec, com base no do Sistema S, baseado na Classificação Brasileira de Ocupações/CBO, construída segundo o modelo das competências. Da mesma maneira, as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino


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Médio - a proposta coletiva mais completa de organização do ensino médio integrado

- embora aprovadas pelo CNE foram, à revelia dos esforços de muitos de nós, praticamente engavetadas e não referenciaram a organização dessa etapa educacional em nenhum estado do país. No que se refere à Comissão Interministerial voltada à construção do Sistema Nacional de Certificação Profissional, não tornou a se reunir no novo governo e seus propósitos e atribuições de construção de uma política pública de formação e certificação profissional articulada com o Sistema Nacional de Educação permaneceram ignoradas.


Considerações finais


É possível afirmar, em síntese, que os governos Lula e Dilma (2011-2016) atuaram no sentido da expansão da educação básica e superior visando ampliar o seu acesso a maiores segmentos populacionais, em particular aos mais pobres, embora com grandes concessões aos proprietários das instituições privadas e ao ideário empresarial da educação funcional ao mercado (MORAES, 2017).

O recrudescimento da presença do setor privado nos governos ilegítimos de Michel Temer e Jair Bolsonaro, que promoveram o Golpe de Estado de 2016, foi acompanhado de enorme retrocesso nas políticas públicas de educação e pelo desmonte da escola pública, processo que culmina com a institucionalização da Base Nacional Comum Curricular/ BNCC e a aprovação da lei da (contra) reforma do Ensino Médio (LEI 13.415/2017), a qual, como bem sintetiza Frigotto (2016), “legaliza o apartheid social na educação”. O crescimento dos grupos de pressão e o intercâmbio de interesses financeiros possibilitaram novas estratégias de privatização do público, por meio da intervenção direta desses aparelhos privados de hegemonia na gestão pública sob a forma assessorias e assistências técnicas junto aos estados e municípios, o que tem dificultado enormemente nossas lutas resistentes em defesa da educação pública e pela revogação do chamado novo ensino médio.

No entanto, é preciso enfatizar que a correlação de forças desfavorável, as derrotas às quais fomos submetidos nessa conjuntura neoliberal de desmanche radical dos direitos sociais e do legado trabalhista, período de duras disputas, podem obscurecer mas não invalidam ou destroem as lutas, conquistas e avanços alcançados. A implantação e a persistente resistência pela manutenção da educação


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profissional técnica integrada ao ensino médio nos Institutos Federais é um dos exemplos mais significativos. A elaboração deste texto e sua apresentação no Intercrítica tem o propósito de resgatar a memória de uma experiência coletiva, da qual fui partícipe, de mostrar a força dos trabalhadores e seus movimentos na construção de projetos e de políticas públicas de educação, e, com esse objetivo, explicitar o que é negado pelos setores empresariais e seus prepostos defensores da atual reforma privatista: nós temos,sim, projeto para o ensino médio, e também de educação de jovens e adultos-EJA, de educação e formação profissional integrada à educação básica, para as diferentes etapas de ensino, construídos historicamente pelos sujeitos educacionais, individuais e coletivos. E vamos continuar a lutar por sua implementação!

De acordo com Dardot e Laval (2016), o princípio do comum que emana hoje dos movimentos, das lutas e das experiências remete a um sistema de práticas diretamente contrárias à racionalidade neoliberal e capazes de revolucionar o conjunto das relações sociais. Sabemos, nessa perspectiva, que a luta contra o neoliberalismo implica estrategicamente a ressignificação do público, a publicização do espaço público, a existência de transparência nas políticas públicas, a participação dos coletivos sociais na sua definição, a gestão pública dos fundos públicos, de modo a empreender uma forma de regulação democrática, negociada, pela qual “os interesses econômicos e os direitos sociais possam ser arbitrados em seu princípio público” (PAIOLI, 1999).


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