V.21, nº 44, 2023 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799 X


Editorial


A ESPERANÇA NOS VIVIFICA PARA A LUTA: APÓS A VITÓRIA DE LULA NAS URNAS, DERROTAR O PROJETO NEFASTO DA EXTREMA DIREITA1


Conforme ensina o melhor da tradição marxiana, o desenrolar da história nunca nos é dado previamente, mesmo que esse desenrolar seja limitado pelas determinações que atravessam o campo das possibilidades de ação política. Ou seja, a luta de classes “a quente” pode nos reservar eventos que, para muitos doutos da análise política mainstream, são classificados como improváveis.

Após 4 anos de real ameaça neofascista – e, no mínimo, 6 de instabilidade político-institucional – a importante vitória da ampla frente democrática nas eleições presidenciais de 2022 não deve ser subestimada. Na perspectiva da classe trabalhadora, a vitória de Lula aponta para uma efetiva oportunidade de suspensão da política de morte e de fome que foi fomentada de 2019 a 2022. Todavia, nunca é demais ressaltar que se trata de apenas um capítulo da luta contra as forças de extrema-direita, pois o bolsonarismo não foi definitivamente vencido com a derrota eleitoral do ano passado.

A equipe da Revista Trabalho Necessário, ciente da relevância da derrota eleitoral do candidato neofascista, saúda com júbilo todos os seus colaboradores e leitores que, com certeza, se mantiveram firmes no combate à barbárie reacionária e conservadora dos últimos tempos. Temos ciência de que a luta não se encerra nos processos eleitorais da democracia burguesa, mas o fato é que sobrevivemos à fase mais grave da pandemia de Covid-19 e a um governo abertamente genocida. Isso não deve ser esquecido.

É imperioso, contudo, olhar para os enormes desafios que teremos de enfrentar após o último período catastrófico. Como sempre, o campo da educação carrega


1Editorial recebido em 10/04/2023. Aprovado pelos editores em 11/04/2023. Publicado em 13/04/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i44.58039.

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consigo um conjunto de questões urgentes, fruto do avanço da política neofascista, da crise econômica, dos estragos causados pela pandemia e da consolidação de uma nova fase da agenda empresarial para o setor.

Para citar apenas algumas das lutas que mobilizam movimentos e intelectuais progressistas que militam na educação, destacamos a questão das escolas militarizadas em todos os níveis e modalidades, que são uma afronta aos princípios democráticos e inclusivos que devem nortear a organização da educação brasileira; a redução das receitas de estados e municípios por conta da demagógica alteração no recolhimento do ICMS, que compõe boa parte do orçamento público da educação (PINTO, 2019); o fracasso do “ensino remoto” no período pandêmico, que abriu uma “janela de oportunidades” para a inclusão massiva e acrítica das novas tecnologias digitais de informação e comunicação, cujos interesses são monopolizados pelas “big techs” e cujo uso indiscriminado ameaça a profissão docente (SOUZA e EVANGELISTA, 2020). E por último, as contrarreformas educacionais ditadas pelo empresariado nacional e transnacional, que normalizam a precarização da educação pública e conformam suas práticas cotidianas à ideologia de mercado e à cultura de performance (LAVAL, 2019).

Considerando especialmente as contrarreformas aprovadas nos últimos 6 anos – ainda que diversas já foram apontadas no Plano Nacional de Educação vigente -, salta aos olhos o problema do Novo Ensino Médio (NEM, Lei nº 13.415/17), aprovado em 2016, no governo Temer, via Medida Provisória. A urgência de sua aprovação e implementação já vem causando reações contrárias dos diversos segmentos que integram a escola de ensino médio, expressas na manifestação pela revogação da referida lei, ocorrida no dia 22 de abril último. Desta feita, a luta contra o NEM se torna, na atualidade, um polo aglutinador para aqueles que defendem a educação pública popular e radicalmente democrática.

É bem verdade que o NEM tem sido duramente criticado pelo movimento combativo docente e discente, por associações científicas e por diversos intelectuais, desde seu nascedouro. Uma das críticas mais candentes se refere à ideia vaga de “protagonismo estudantil”. O que os defensores do “protagonismo” não discutem é a padronização rebaixada deste nível de ensino, o empobrecimento do currículo e a cristalização da homogeneização cultural pela escola, cuja marca é a produção de um trabalhador conformado à nova morfologia do trabalho. Ou seja, trata-se de uma


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normalização da ocupação de cargos de trabalho precarizados pelos mais pobres, via oferta de uma formação rebaixada para os filhos da classe trabalhadora. Sob a ideologia relativista e empreendedora, o NEM transita no terreno do esvaziamento da produção científica, caríssima aos educadores que pautaram historicamente o currículo de formação politécnica no ensino médio. Na negação desse esforço histórico, alicerçado pelas lutas sociais, o NEM oferece um currículo que força uma percepção de que os indivíduos são os produtores da própria sorte via escolhas “corretas” de “projetos de vida”.

A ampliação das horas obrigatórias para a formação em nível médio abre caminho, sob o signo da “educação integral”, para a introdução de disciplinas funcionais na manutenção das relações de poder hegemônicas através dos “projetos de vida” dos discentes, como “empreendedorismo” e “educação financeira”, que reduzem o potencial crítico da escola, colonizada pelo empresariado e suas fundações e institutos. Além disso, a “base diversificada” do currículo abre caminho para o uso indiscriminado de EaD e de parcerias com o setor privado em sua integralização, aprofundando processos que se desenvolvem há mais de 30 anos na educação brasileira, especialmente na formação profissional de nível médio.

Ao fim e ao cabo, os maiores prejudicados pela imposição do NEM são os docentes e discentes. Os primeiros vêm sendo impedidos de oferecer as disciplinas para os quais foram concursados, tendo que complementar carga horária com componentes do “projeto de vida”, dos quais quase nenhum tem formação ou informação suficiente para lecionar ou, ainda, são obrigados a dividir suas cargas horárias em diversas escolas diferentes. Já os discentes também padecem da desinformação sobre as mudanças, são submetidos aos conteúdos desarticulados dos itinerários flexíveis, muitas vezes sendo obrigados a escolher um determinado percurso formativo, pois trata-se de o único disponibilizado pela escola.

No momento que escrevemos essas linhas existe um movimento em prol da revogação do Novo Ensino Médio, organizado por movimentos sociais e intelectuais. No entanto, apesar de estratégias consultivas do governo que buscam dar o tom mais democrático ao debate sobre o NEM junto à sociedade, o projeto empresarial presente no Ministério da Educação ainda se coloca claramente resistente à revogação e reativo às mobilizações populares do Revoga NEM. A mobilização deve continuar nas ruas e no parlamento, pois o fim mais consequente desta movimentação é a


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revogação dos termos atuais da reforma, seguida de uma ampla discussão de base sobre o tema, envolvendo alunos, professores, entidades científicas, sindicatos e movimentos sociais. Só a unidade destas forças será capaz de sustar o lobby empresarial que segue atuando com muita tranquilidade e respaldo no MEC e no Consed.

Com isto, é importante destacar que as lutas atuais pela revogação do NEM são parte do processo de resistência para fazer avançar o projeto que, nas eleições de 2022, se propôs a recuperar os direitos sociais vilipendiados especialmente no longo período de ataques à democracia que assombrou o país desde 2016, culminando nos 4 anos do governo Bolsonaro, que representou a ascensão da extrema-direita brasileira e a disseminação da política de ódio e violência desmedidos, cujas consequências ainda acompanhamos.

O desprestígio da profissão docente, o incentivo ao desrespeito aos professores e ao pensamento crítico no ambiente escolar têm resultado em ações violentas nas escolas. No último dia 27 de março uma professora foi assassinada por um aluno na capital paulista, após se posicionar contra ofensas racistas disparadas contra outro estudante. Em menos de 10 dias depois, cinco crianças foram brutalmente assassinadas em Blumenau (Santa Catarina) por um homem que invadiu uma creche. Identificamos tais episódios como fruto da barbárie e da política de ódio e incentivo à violência do bolsonarismo. Para além de estratégias de segurança nas escolas e de garantias de acolhimento nesses espaços, é preciso enfrentar a grave crise ética herdada dos últimos 4 anos, e que atualmente ainda insiste em impor, além da desumanização como projeto, o modelo de americanização da vida.

Somente com a organização popular nas escolas, universidades e nos territórios onde vive a classe trabalhadora (favelas, quilombos, periferias das cidades e do campo) será possível recuperar o potencial de mobilização por educação pública e colocar na ordem do dia um projeto societário de respeito à vida e à diversidade do gênero humano, em detrimento da onda de violência material e simbólica da extrema direita.

Na atual conjuntura/estrutura das lutas históricas entre trabalho e capital, é com imenso prazer que apresentamos o número 44 da Revista Trabalho Necessário, cujo tema versa sobre Crise do capital, luta de classes e educação hoje: utopia ou barbárie, e no qual recuperamos os debates travados durante V INTERCRÍTICA –


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Intercâmbio Nacional dos Núcleos de Pesquisa em Trabalho e Educação, realizado na cidade do Rio de Janeiro, em outubro de 2022. Importante destacar que, como demanda espontânea, recebemos contribuições de autores e autoras que adensam a discussão nas diversas seções da Revista. A TN 44 foi organizada pelo GT 09 – Trabalho e Educação da Anped e pelo Grupo These – Projetos Integrados de Pesquisa em Trabalho, História, Educação e Saúde (UFF/UERJ/Fiocruz), tendo à frente Lucas Pelissari (GT 09 e Unicamp) e Marise Ramos (UERJ/ Fiocruz).

Por último, por que acreditamos no trabalho coletivo, queremos declarar nossa gratidão aos organizadores e, também aos autores, leitores e, em particular, aos colaboradores da Revista Trabalho Necessário. O trabalho será sempre necessário!


Lia Tiriba, Jacqueline Botelho e Regis Arguelles (Editores)2


Niterói-RJ, 09 de abril de 2023.


Referências

LAVAL, C. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo, Boitempo, 2019.

PINTO, J. M. de R. A política de fundos no Brasil para o financiamento da educação e os desafios da equidade e qualidade. Propuesta Educativa, Año 28, núm. 52, 2019. SOUZA, A. G. e EVANGELISTA, O. Pandemia! Janela de oportunidade para o capital educador. Contraponto [blog], 15 abr. 2020. Disponível em: https://contrapoder.net/colunas/pandemia-janela-de-oportunidade-para-o-capital- educador/. Acesso em 03 de abril de 2023.


2Doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid (UCM), Espanha. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: liatiriba@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2006259738336754.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0117-4160.

Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora Adjunta da Escola de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói – Rio de Janeiro. Pesquisadora do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (Neddate/UFF). Líder no CNPQ do grupo de pesquisa NEPEQ - Núcleo de Pesquisa e Extensão sobre Projetos Societários, Educação e Questão Agrária na Formação Social Brasileira (ESS/UFF). Membro da coordenação do Grupo THESE (Projetos Integrados de Pesquisas sobre Trabalho, História, Educação e Saúde-UERJ-UFF-EPSJV/Fiocruz). E-mail: jbotelho@id.uff.br

Lattes: http://lattes.cnpq.br/7423332568707388. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1989-5089. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (Neddate/UFF), do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas sobre Marx e Marxismo (Niep- Marx/UFF) e do Laboratório de Investigação em Estado, Poder e Educação da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (LIEPE/UFRRJ). E-mail: regisarguelles@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0075852341880711. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6103-4659.


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