V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


TRABALHO COMO CENTRALIDADE MARXISTA

NO SÉCULO ATUAL E OS PRINCÍPIOS DE UMA EDUCAÇÃO POPULAR BRASILEIRA PARA A COLETIVIDADE1

Marcos Antonio Macedo das Chagas2

Resumo

Refletimos sobre a contribuição de Marx no século XIX, com o intuito de entender as demandas socioeducacionais do século atual. Comparamos concepções categóricas de Hegel, Gramsci e Lukács para analisar a educação pública de tempo integral em favor das classes subalternas e gêneros diversos. Para tal, tomamos como exemplo os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs/CIEPs-RJ), idealizados e materializados por Darcy Ribeiro, entre os anos 1983-1987. Indicamos a importância da educação popular de acesso gratuito às crianças e aos adolescentes, para além dos turnos escolares tradicionalmente fragmentados.

Palavras-chave: Marx; Marxismo; Darcy Ribeiro; CIEPs; Cultura.

TRABAJO COMO CENTRALIDAD MARXISTA EN EL SIGLO ACTUAL Y LOS PRINCIPIOS DE UNA EDUCACIÓN POPULAR BRASILEÑA PARA EL COLECTIVO

Resumen

Reflexionamos sobre la contribución de Marx en el siglo XIX para comprender las demandas socioeducativas del siglo actual. Comparamos concepciones categóricas del pensamiento de Hegel, Gramsci y Lukács para analizar la educación pública de tiempo integral a favor de las clases subalternas y diferentes géneros. Para ello, tomamos como ejemplo los Centros Integrados de Enseñanza Pública (CIEPs/CIEPs-RJ), idealizados y materializados por Darcy Ribeiro, entre 1983-1987. Indicamos la importancia de la educación popular de acceso gratuito para niños y adolescentes, más allá de los turnos escolares tradicionalmente fragmentados.

Palabras clave: Marx; Marxismo; Darcy Ribeiro; CIEPs; Cultura.

WORK AS A MARXIST CENTRALITY IN THE CURRENT CENTURY AND THE PRINCIPLES OF A BRAZILIAN POPULAR EDUCATION FOR THE COLLECTIVE

We reflect on Marx's contribution in the 19th century in order to understand the socio-educational demands of the current century. We compare the categorical conceptions of Hegel, Gramsci and Lukács in order to analyze full-time public education for the subaltern classes and different genders. To do this, we take as an example the Integrated Public Education Centres (CIEPs/CIEPs-RJ), idealized and materialized by Darcy Ribeiro between 1983-1987. We point out the importance of popular education with free access to children and adolescents, beyond the traditionally fragmented school shifts.

Keywords: Marx; Marxism; Darcy Ribeiro; CIEPs; Culture.


1 Artigo recebido em 01/05/2023. Primeira Avaliação em 15/08/2023. Segunda Avaliação em 11/08/2023. Terceira Avaliação: 13/10/2023. Aprovado em 21/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.58364.

2 Doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro - Brasil. Professor e pesquisador do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ), Rio de Janeiro - Brasil. Email: marcos.chagas@yahoo.com.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/5548443279059773. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7451-0527.

Introdução


A condição imprescindível para o reconhecimento do gênero humano, em sua diversidade, está na garantia da igualdade de relações, constantemente obstruída pelos interesses burgueses reproduzidos entre nós. Ao refletirmos sobre a contribuição de Marx no século XIX, tentamos aproximações e dissensões, presentes no marxismo, conforme as demandas do século atual. Daí a importância de os espaços educacionais públicos, em sua organização político pedagógica, atentarem para a pluralidade dos sujeitos que ali aprendem e ensinam, sob as contradições que ora se apresentam. Para tal, tomamos como exemplo os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs/CIEPs-RJ), idealizados e materializados por Darcy Ribeiro (1922-1997), entre os anos 1983-1987. Escolas no terreno da educação popular de acesso livre às crianças e aos adolescentes.

A escola pública é uma conquista, em meio à modernidade, contrária aos interesses privados (SAVIANI, 2005). Contudo, se realizou como estratégia para atender demandas liberais da burguesia nascente e não com o intuito de gerar emancipação e autonomia à classe trabalhadora. Os CIEPs, reinterpretando Candau (2008), buscaram o multiculturalismo que deve estar presente na relação ensino-aprendizagem: pluralidade, como função crítica, considerando o “[...] lugar social das ideias, códigos e práticas de produção e reinvenção dos vários nomes, níveis e faces que o saber possui” (BRANDÃO, s.d., p. 5). Ou seja, práxis que não se desvincule da experiência humana da qual todos, todas, todes, em sociedade, constroem.

Para que a escola pública gratuita, laica, de qualidade, receptiva às culturas populares seja possível, intentamos um diálogo não só com o pensamento do próprio Karl Marx, mas com algumas concepções categóricas formuladas por outros três pensadores – Hegel, Lukács e Gramsci – tendo por finalidade abordar questões que contribuam para o debate no campo da educação pública brasileira.

Karl Marx (1818-1883), em suas inflexões, percebeu que as massas exploradas “[...] sequer reconheciam a si mesmas como donas de uma voz política, muito menos como detentoras de poder” (GABRIEL, 2013, p. 16). Importa destacar que Marx foi um pensador atuante nas relações modernas do século XIX. Compreender o tempo histórico da ocasião tendo o cuidado de não lhe exigir o que não pôde vivenciar é de suma importância nas análises empreendidas fora de sua

época. Embora, no artigo aqui tratado, façamos aproximações marxistas no trato da educação, anotamos que Karl Marx não se dedicou com profundidade aos temas educacionais. Contudo, como menciona Netto (2020), a concepção teórico-metodológica marxiana contribua para uma crítica rigorosa do mundo atual. Afinal, Marx é “um pensador indispensável para a construção da humanidade humana” (PAULA, 2020, p.15).

Atualmente os ciclos do capital ocupam tempos mais prolongados do que Marx, em seu momento histórico, conheceu. Desta feita, se torna necessário “[...] estudar e compreender a evolução do capitalismo para além dos seus ciclos curtos de expansão e crise econômica” (DANTAS, 2003, p.5). O avanço histórico da sociedade capitalista, ainda mais agudizado no século XXI, influenciou a organização do ensino, desprezando a importância de uma escola pública de cultura socializante, sobretudo àqueles indivíduos pertencentes às camadas populares. A prática socioeducacional elevada é tarefa primordial do Estado. A escola pública em paridade com os melhores colégios particulares da elite brasileira, deve ser luta incessante da camada economicamente empobrecida.

Calcados em autores marxistas, nos remetemos à existência dos Centros Integrado de Educação Pública (CIEPs), definidos por Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro. Tais escolas, buscaram incutir novas práticas culturais em dissenso com os interesses capitalistas. Perspectivas inéditas, mas que, paralelamente, revelaram conflitos e contradições. O personalismo do mestre parece ter dificultado um diálogo aglutinador com os profissionais da educação e docentes da rede estadual, ficando estes à margem da proposta dos CIEPs. Apesar dos encontros proporcionados pelo Programa Especial de Educação (PEE) buscar convergências, não houve consenso entre a categoria.

Fato positivo, é que o olhar interdisciplinar de Darcy permitiu interações de outras materialidades no ambiente educativo estabelecendo, por exemplo, a função do Animador Cultural nas escolas dos CIEPs. O programa de animação cultural reunia Animadores Culturais, selecionados nas comunidades onde se localizavam as escolas dos CIEPs, visando aproximar a organização dos saberes curriculares com a cultura popular – uma atitude em favor do alunado diferenciada da concepção tradicional de ensino.

Com o fito de articular questões que justifiquem a compreensão de uma educação para além do que propõe a sociedade burguesa, dividimos o artigo, além

desta Introdução, em: A contribuição hegeliana no materialismo dialético de Marx; “Igualdade” e “equidade” como categorias conflitivas em Marx; Marxismo redivivo: a importância do pensamento crítico de Lukács; Antonio Gramsci: escola unitária como proposta “desinteressada” no espaço de cultura; Darcy Ribeiro: a experiência brasileira dos CIEPs fluminenses como perspectiva gramsciana; Considerações temporais.


A contribuição hegeliana no materialismo dialético de Marx


Observando o ponto central dos estudos de Marx, destacamos Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) como crítico da filosofia da história de Immanuel Kant (1724-1804). Segundo Bottomore (1998), Hegel (1816) ao analisar a filosofia kantiana entendeu que o conhecimento da história continha uma ação conjugada das ideias do sujeito com os elementos externos vividos por este mesmo sujeito. Apenas seria permitido ao indivíduo conhecer a aparência da coisa em si.

Contrário à separação entre sujeito e história, entre aparência e essência, Hegel afirmava que o todo reuniria espírito e indivíduo. Concluindo que a consciência desse indivíduo seria a religião. No discurso inaugural, proferido na universidade de Heidelberg, em 28 de outubro de 1816, Hegel afirmaria: “[...] a fé no poder do espírito é a condição primordial da filosofia. O homem, por ser espírito, pode e deve julgar-se digno de tudo quanto há de mais sublime” (p. 324). Aparência e essência criariam uma unicidade ideal. “Hegel sustentara que Deus, uma força racional, dirigia a dialética da história” (GABRIEL, 2013, p. 44).

Diferente da concepção hegeliana, Karl Marx (2011), afirmaria que as relações não podem “[...] ser compreendidas a partir de si mesmas ou do assim chamado desenvolvimento geral do espírito humano, tendo antes a sua origem nas condições materiais de vida” (p. 139). Ampliando seu ponto de vista, Marx (2016) infere que as relações conflitivas da sociedade burguesa têm seus princípios na economia política e não nas reações atemporais do espírito. Importa entender, em Marx, a economia não como metafísica burguesa reduzida a economicismo, mas como atividade humana na construção histórica do ser social. Nesta, o sujeito em relações sociais constrói a economia negando-a como “deificação” do real, reinando absoluta de modo “celestial” sobre todas as coisas.

Ao considerar o Estado burguês como evolução humana, o método dialético de Hegel se afirmaria como negação da negação: condição ideal para a continuidade da vida na natureza. Momento em que o “novo” consumiria o “velho” e aquele, consumido pelo tempo, voltaria a ser destruído, refazendo-se em inovadoras condições. Ou seja, “[...] Duas ideias se chocam e o resultado é uma terceira ideia, que por sua vez entra em conflito com uma outra e dá origem a algo novo” (GABRIEL, 2013, p. 40).

Apesar da crítica tecida sobre o idealismo, a dialética hegeliana foi imprescindível para Marx e Engels situarem a teoria do conflito e da totalidade; esta última seria o gume que rasga o real, indo à essencialidade material do Homem em relação direta com a sociedade. Isto é, o sujeito humano como artífice da história: aquele “[...] que não enxerga nada que dependa da sua ação tende facilmente a instalar-se na passividade (tende a contemplar a história, em vez de fazê-la.)” (KONDER, 2017, p.43, grifos do autor). Observa-se a dialética hegeliana contida na afirmação: “[O passado, vivo,] não é estátua de pedra [...] e continuamente se vai enriquecendo com novas contribuições, à maneira de rio que engrossa o caudal à medida que se afasta da nascente” (HEGEL, s.d, p. 324, inserções entre colchetes de nossa autoria).

Marx (2023; 2010; 2011) e Engels (2020) construíram a concepção materialista da história reelaborando a dialética hegeliana como realidade, fora de seu caráter “espiritual”: onde o “novo” desgrenha-se do “velho” ao mesmo tempo que lhe ultrapassa, conserva e eleva a nível superior “algo de essencial que existe nessa realidade negada” (KONDER, 2017, p. 18). Hegel foi pioneiro nas formas gerais da dialética, ocorre que esta encontrava-se “[...] de cabeça para baixo. [sendo] preciso desvirá-la, a fim de descobrir o cerne racional dentro do invólucro místico” (MARX, 2023, p. 108, inserções entre colchetes de nossa autoria).

“Desvirá-la” para compreender, a partir do movimento concreto da história, os dilemas do modelo capitalista. As condicionantes do historicismo burguês, abordadas por Marx, nos levam a refletir sobre a contradição entre igualdade e equidade nas relações capitalistas da atualidade.

“Igualdade” e “equidade” como categorias conflitivas em Marx


O conflito engendrado entre as categorias igualdade e equidade pode ser enfrentado observando as contradições entre público e privado na atualidade, a partir de uma leitura apoiada em Marx.

Como afirmado anteriormente, Karl Marx foi um pensador de sua época; o esforço em elaborar questões comparativas às ideias presentes no século XXI inspira cuidados. “Difundiu-se [...] entre os socialistas a ideia – falsa – de que, segundo Marx, os "fatores econômicos" provocavam [...] a evolução da sociedade sem que os homens [fossem os sujeitos reais da história]” (KONDER, 2017, p. 43, inserções entre colchetes de nossa autoria). Leandro Konder (2017) registra que muitos socialistas – à luz do século atual – seguiram pelo prisma do economicismo. O equívoco talvez ocorra porque Marx, nos estudos da economia britânica, deu especial atenção aos apontamentos de Adam Smith (1723-1790).

Contudo, ao estudar Smith, Marx verificou inconsistências nas relações entre público e privado nas análises tecidas pelo pensador escocês. “Adam Smith oferecia um quadro de harmonia, de benefícios e de prosperidade, destacando precisamente a ausência do Estado na esfera do interesse privado” (BOTTOMORE, 1998, p. 356, grifo itálico do autor). As teorias smithianas se punham contra os interesses coletivos da sociedade civil em favor do livre mercado. A elaboração econômica de Adam Smith, embora referência para Karl Marx, não se alinhava à teoria crítica e revolucionária do socialismo científico como fundamento do materialismo histórico. Ao se inventariar o capitalismo na modernidade, sob o enfoque marxiano, importa observar questões do pensamento hegeliano envolvendo Estado e Sociedade.

Hegel, também tocado pela concepção de Smith, elaboraria a ideia de sociedade civil separando-a da sociedade política, numa limitada compreensão de Estado. Mesmo reconhecendo o valor de Hegel, Marx registraria que “[...] a tentativa meramente política de conciliar os interesses públicos com os particulares levaria o Estado à condição de representante dos proprietários privados mais poderosos” (apud GRESPAN, 2021, p. 16-17). Proposição incapaz de eliminar o motivo da desigualdade social. Entendemos o termo “conciliação” como forma disfarçada de “equidade”, modo de a classe sociopoliticamente dominante mascarar desigualdades históricas.

Comparativamente, vemos no Brasil de momento uma clara contradição entre público e privado: o Estado, sobretudo a partir das forças congressistas, dando absurda guinada à direita (FOCUS BRASIL, 2023) de forma estrita e particular. Esse “transformismo de grupos”, como categoria gramsciana (NOSELLA, 2017), amplia a hegemonia do bloco histórico burguês. Situação reforçadora da pauta ideológica contra o processo coletivo de cunho socializante.

Efeito que atua sobre o (des)trabalho humano em favor das práticas financeiramente lucrativas, conduzidas por sinais magnéticos como “semiocapitalismo” (GHIRALDELLI, 2021). Fato que, concomitantemente, piora o já injusto domínio de outrora sobre ocupação e renda: “Nos países centrais concentram-se as atividades mais criativas e bem remuneradas, transferindo-se para a periferia as atividades mais rotineiras, repetitivas e mal remuneradas” (DANTAS, 2003, p. 5-6), precarizando de modo profundo a sobrevivência da população economicamente mais pobre.

Em meio às diferenças peculiares e interesses diversos o sentido de “equitativo”, na linguagem dos economistas burgueses, se torna difuso, impondo um caráter aglutinador dos interesses neoliberais como sinal trocado, ao substituir ideologicamente “igualdade” por “equidade”. A diferença é que a igualdade marxiana buscava acertar contas com a divisão entre classes. Separação que tem se perpetrado no capitalismo metabolizado em todos os tempos e sentidos a favor da classe dominante dos meios e modos de produzir sua própria riqueza.

O equitativo, em dissonância com a igualdade, parece selecionar seus apaniguados pelo aspecto privado e particular, embaçando o que de fato é público e de direito de todos os cidadãos. Daí o caráter revolucionário em Marx, na superação do Estado capitalista, inspirando as lutas socialistas. Ação histórica da sociedade civil, também como sociedade política, para além do poder estatal. Para Marx sociedade civil e sociedade política estavam imbricadas. Ainda que a burguesia venha assegurando o privilégio de classe. Todavia, cabe mencionar que o “socialismo real”, ocorrido no século XX, com destaques para Rússia, China e Cuba, entre outras nações, se diferiu categoricamente das propostas do “socialismo científico” elaboradas por Marx e Engels.

O discurso de equidade nos tempos atuais, negando a convicção coletiva de igualdade, torna-se hegemônico em favor de uma fantasmagórica “competência” a ser apresentada por pessoas e países, ocultando interesses do capital fictício. O que

abstrai o trabalho e aniquila as potencialidades humanas dos pauperizados por estarem fora do jogo da financeirização proxeneta. Essas ações, que vão enfeixando o atual anarcocapitalismo antiprodutivo – para não revelarem o “rei nu” –, são camufladas em narrativas “pós-modernas” como ideologias burguesas requentadas e amargas. Tais questões, demandam que as correntes marxistas não se desviem do pensamento original de Marx, mas que o reavaliem partindo das relações materialmente concretas que dão sentido histórico ao século XXI.


Marxismo redivivo: a importância do pensamento crítico de Lukács


O húngaro Georg Lukács (1885-1971) – um dos principais filósofos marxistas contemporâneos – produziu um denso pensamento. Vários são os conceitos, à luz do século passado, revisitados por Lukács no interior do pensamento de Marx. Chamando a atenção do campo socialista, Lessa (2022) comenta que Lukács em sua luta de guerrilha “criticou, incansável, o mecanicismo e o economicismo” (n.p).

Na presente questão, importa refletir sobre algumas das categorias lukácsianas, destacando que para Lukács o trabalho é a categoria fundante do ser social (LESSA,1992, p. 39-51). “O nódulo essencial do trabalho é, segundo Lukács, uma peculiar e exclusiva articulação entre teleologia e causalidade” (LESSA, 1992, p.44, grifos nossos).

Observado pela perspectiva do trabalho, considerando o investimento aprofundado de Engels (2019), após o falecimento de Marx, vemos muitos outros conceitos lukacsianos se imbricarem ontologicamente. Entre estes, se expressa a totalidade como amálgama de toda elaboração filosófica do pensador húngaro: o subjetivismo da consciência se transformando objetivamente em autoconsciência na formação do ser social materialidade catártica, que tanto a grande arte como a educação crítica, entendidas em seu modo histórico, podem proporcionar. O humano em sua existência universal reúne especificidades “inorgânicas e orgânicas”. Complexos constituídos da materialidade da essência que é sempre humana. Condição da totalidade de cada indivíduo na construção coletiva da história como generidade (LESSA, 1992).

Em seu marxismo crítico, Lukács (2003) buscando dialogar com as correntes socialistas tradicionais ressaltaria o rigor metodológico de Marx, investindo nestas ideias com argumentos categóricos variados. Ou seja, não basta aos trabalhadores

apenas a consciência psicológica de classe socialmente histórica: “A essência do marxismo crítico consiste, portanto, em reconhecer a independência das forças motrizes reais da história em relação à consciência (psicológica) que os homens têm dela” (LUKÁCS, 2003, p. 134-135).

Ao olharmos para atualidade em meio à fragilidade do comunismo no mundo, corroborado pelo avanço neoconservador, podemos verificar que Lukács de certa forma estava convicto de sua observação. Diante dos conflitos evidenciados à época do socialismo real, se intensificava a preocupação de Lukács na reorganização das categorias marxianas como exigência rigorosa do ser social. Distinguindo a factualidade de Marx, restrita ao XIX, de seu método que ainda se impõe nos tempos atuais como perspectiva revolucionária dos valores liberais burgueses.

Tal conjectura reforça a ideia de dialética que Marx buscou para construir a noção de práxis, cuja finalidade consistiria na totalidade entre o pensamento e a prática de cunho permanentemente revolucionário. Movimento alimentado nas contradições burguesas com vistas à superação temporal do capital sobre o trabalho. Daí o cuidado de os “fatores econômicos” – como quer o pensamento liberal, muitas vezes confundindo correntes socialistas, conforme abordagem de Konder (2017) – não ocuparem o lugar causal e teleológico do materialismo histórico marxiano.

Para Lukács não bastaria ao trabalhador apenas a luta pela melhoria do salário, mas reconhecer a condição de “mercadoria em si”, que no processo capitalista é frequente. Ainda que, como entendemos, “modernizada” pela dissimulação do movimento econômico alterando legislações diversas. Momento, intensificado pelo neoliberalismo, em que o trabalho precarizado se manifesta na exploração dos indivíduos egressos dos grupos sociais empobrecidos.

Nessa perspectiva, tomam impulso, especialmente, duas realidades: o trabalho flexível como expropriação ilegítima do tempo de descanso do trabalhador e o trabalho gratuito, subsumido a voluntarismo, como apropriação da “boa vontade” das pessoas. Entre outras situações de mais-valia, na sociedade do dinheiro – “O capitalismo é um sistema em que os bens e serviços, inclusive as necessidades mais básicas da vida, são produzidos para fins de trocas lucrativas; em que até a capacidade humana de trabalho é uma mercadoria à venda no mercado” (WOOD, 2001, p.12).

Comprometido com essa crítica, Lukács entenderia a consciência psicológica de classe como importante, desde que mantido o seu pôr-teleológico. A política, segundo Fortes (2016), em Lukács só é um pôr-teleológico se se construir movida pela consciência dos seus atores, sendo prenhe de transformação social. Do contrário se torna politicismo. Isto é, apenas voluntarismo. Frente à constatação, se torna necessário que o trabalhador seja formado por um pensamento ético e estético presente em sua real historicidade de classe e gênero. Assim, construindo sua práxis revolucionária.

Lukács, diferentemente da originalidade marxiana, até compreende a separação entre pensar e fazer como fato, devido ao predomínio dos valores burgueses. Mas, para a organização da consciência crítica, aqui pode estar o aspecto inicial da ideação social. Pois, “Todo ato de trabalho, segundo o filósofo húngaro, tem no momento ideal, na prévia-ideação, seu ponto de partida. É impensável qualquer ato humano que não se apresente desta forma” (LESSA, 1992, p. 44). A conformidade com o pensar sem a teleologia histórica imobiliza o ser social transformador. Importa, como critério insubstituível, passar da ideação (ideologia) à objetivação (materialidade histórica).

Diante da perspectiva marxista, percebemos que a forma de pensar ajustada apenas pelo discurso, embora consciente de mudança, nada oferece à efetiva materialidade. Nesse instante, Lukács, apoiado no rigor do pensamento marxiano, identifica a “terceira” categoria do sentido de ideologia do velho Marx de 1889 (NETTO, 2016) – tanto as ideias burguesas como as proletárias não são únicas e gerais, mas condicionadas pelas particularidades no interior de cada classe. Esta observação não condiz com o significado inicial de ideologia em Marx, ao recuperar o sentido negativo de Napoleão Bonaparte na acusação a Destutt de Tracy como ideólogo: a ideologia na condição de visão falseadora do real (NETTO, 2016).

No conceito inicial acima, há em Lukács uma contraditoriedade (tensão permanente de determinações reflexivas) como escopo mais amplo, assente no seu comprometimento teleológico (LESSA, 1992). Para Lukács: “[...] a política é uma forma de ideologia que deve conter em seu ideal o conhecimento da sociedade e suas relações mais intrínsecas com a finalidade de agir na sua transformação” (FORTES, 2016).

Em Lukács o pensamento de Marx, visando à transformação social, é também uma ideologia. Porém a ontologia socialmente construída em sua estrutura

gnosiológica, a partir da elaboração marxiana, possibilita criticamente, pelas questões históricas, o agir com eficácia. Todavia, quando a ação politicamente conservadora suplanta a ação transformadora, isto ocorre porque fatores sociais diversos, promovidos pela intervenção humana, são propícios ao seu avanço. Do mesmo modo ocorre quando ações progressistas prevalecem sobre as forças conservadoras, superando a pura contraditoriedade (LESSA, 1992).

A disputa política, além de seus pólos contraditórios e das expectativas evidenciadas nas contradições (a)estáticas, não pode ser explicada por fenômenos meramente superficiais e estratificados. Lukács, segundo Fortes (2016), procura romper com esse voluntarismo político, esse politicismo. Assim, acreditamos caminhar a dialética lukácsiana: da causalidade histórica, movida como vontade humana, em ações de achegamento aos fins transformadores – “Do pôr teleológico surge uma objetividade inteiramente diferente dos elementos [anteriormente abarcados]” (LUKÁCS, 2013, p. 53, inserção entre colchetes de nossa autoria). Teleologia inseparável de sua causalidade como movimento da classe trabalhadora, atualmente ainda mais desprestigiada e subalternizada pela financeirização do capital, como périplo revolucionário.

Essas relações ontologicamente presentes na historicidade humana, podem se recompor na tarefa educacional da formação de sujeitos conscientes de sua totalidade e autonomia. Ainda que Sérgio Lessa (1983, acessado em 2020), entre outros, não acredite na relação transformadora que se intenta em sala de aula, devido ao predomínio social dos valores burgueses. Diferentemente, entendemos que novas utopias se oferecem à formação crítica, no espaço educacional, de sujeitos inconformados pelas desigualdades provindas da divisão de classes imposta pela sociedade liberal-burguesa. Não se constrói a autoconsciência do ser social sem a educação e este constructo passa invariavelmente pela escola. Se de outro modo fosse, deveríamos negá-la definitivamente em favor dos de cima – tal feito jamais acontecerá.

Neste quadro a escola unitária, “desinteressada” de Gramsci, pode contribuir para perspectivas libertárias assentes na cultura.

Gramsci: escola unitária e “desinteressada” como espaço de cultura


Assim como Georg Lukács, Antonio Gramsci (1891-1937) anteriormente buscou superar a visão “marxista-leninista” restrita aos conceitos comunistas da Revolução Bolchevique de 1917. Gramsci, fundador do partido comunista italiano, elaboraria uma visão à frente de vertentes tradicionais do marxismo de seu tempo, procurando entender o pensamento de Marx sob uma realidade ocidental de relativo equilíbrio entre sociedade civil e Estado, como era o caso da Itália de seu tempo. Diferindo das ações do tipo oriental, nos dizeres gramscianos, ocorrida em uma sociedade ainda “primitiva e gelatinosa”.

Gramsci analisou as necessárias transformações que precisavam acontecer, não como mera transposição das ideias “marxista-leninistas” contidas nos ideais comunistas de boa parte do marxismo habitual, mas por novas e reais questões evidenciadas no século XX. Em suma, algumas dessas realidades, face ao metabolismo do capital, devem ocupar o pensamento histórico-crítico do século XXI.

Antonio Gramsci observou que o sistema capitalista italiano, com sua burguesia à frente do processo, já havia conquistado certa hegemonia, imposta como “[...] (influência cultural geral da IDEOLOGIA) na manutenção e reprodução da dominação de classe” (BOTTOMORE, 1998, p. 197, destaques do autor). Evidenciava-se que o empenho teórico de Gramsci se dava na forma de revolucionar esta hegemonia em favor dos de baixo contra o monopólio intelectual da classe dirigente de momento.

Verificava que no território italiano ocorria um fato distinto das condições que propiciaram a revolução soviética. A Itália, em plena modernidade, já possuía uma classe operária de alguma forma usufruindo das relações capitalistas burguesas, apesar de seu campesinato viver à parte das “benesses” prometidas pelo sistema. Uma ruptura com o pensamento burguês – como formulava Gramsci – deveria se colocar em diferentes perspectivas das diretrizes marxistas usuais.

No cenário italiano era preciso compreender o antagonismo de momento no contexto social dessas classes – diferenças postas taticamente em conflito pela economia política. “Com seus novos conceitos, Gramsci habilitou-se a entender o tipo de Estado que é próprio dos regimes liberal-democráticos” (COUTINHO, 2000, s/p). Situação que Marx não pôde conhecer “[...] e que nada tinha a ver com a autocracia czarista com a qual Lenin se confrontou” (COUTINHO, 2000, s/p). Todas

essas divergências, envolvendo a unificação da luta de classes entre campesinos italianos e trabalhadores operários, contra o pensamento burguês, passaria por um processo educacional unitário que expusesse a hegemonia fabricada pela “estatolatria” de Mussolini.

A nova mentalidade revolucionária envolveria os intelectuais e a educação. A partir de então, a mudança de concepção ideológica deveria ser tarefa política dos intelectuais comprometidos com os ideais populares, assim como uma organização educacional “desinteressada”: porque do interesse de todos os trabalhadores e filhos destes. A superação do governo dos funcionários em busca do autogoverno era questão primordial. Todos imbuídos de uma cultura originária das massas, como resistência ao regime de exceção. Ou seja, não caberia: “[...] identificar o Estado apenas com a "sociedade política", com os aparatos coercitivos, com o "governo dos funcionários", omitindo ou minimizando o elemento consensual-hegemônico próprio da "sociedade civil", do "autogoverno" (COUTINHO, 1998, p. 24).

Mesmo aprisionado autoritariamente pelo regime mussolinista, onde faleceria, Gramsci privilegiou em grande parte a educação como fundamental na autonomia de consciências críticas contra o poder de Estado e, igualmente, a sociedade política que o abrigava. Todavia, desenvolveu o conceito de escola unitária como proposta “desinteressada”. Processo escolar que mediado pela educação dos de baixo seria formacional a todos os alunos e alunas do seu universo. Para a palavra desinteressada não ser confundida como mero abandono, mas de interesse coletivo, fora dos padrões educacionais autoritários e/ou burgueses, Gramsci sempre a colocava, quando escrevia, entre aspas. Em sua proposta a escola “desinteressada” teria os saberes enraizados nas tradições populares. Uma escola unitária sob a perspectiva orgânica da classe trabalhadora.

Gramsci (1985), em função do que ocorria na Itália no primeiro quartel do século XX, entendia que a crise escolar se agravava pelo fato de que toda atividade prática, pensada pelo Estado, caminhava na direção de “criar uma escola para os próprios dirigentes e especialistas” e, assim, organizar um quadro (orgânico) de intelectuais, preparados para o desenvolvimento dessas especialidades. Estratégia que abandonava “a cultura geral, ainda indiferenciada, para se ocupar da formação de profissões, mediante uma precisa individualização” (CHAGAS, 2012, p. 95) – explicada da seguinte forma: “[...] a crise do programa e da organização escolar, isto é, da orientação geral de uma política de formação dos modernos quadros

intelectuais, é em grande parte um aspecto e um agravamento da crise orgânica mais ampla e geral” (GRAMSCI, 1985, p. 109).

Em função de tais contradições, entendemos que no Brasil nossa pugna deve seguir na direção de construir a escola do interesse de todos, levando em consideração os escanteados anseios populares. O que de certa forma foi sinalizado pelos CIEPs em sua breve existência.


Darcy Ribeiro: a experiência dos CIEPs como perspectiva gramsciana


Na educação pensada por Gramsci destacamos a “escola desinteressada”, aquela de educação “unitária”, como forma de envolver a cultura popular no projeto de escola pública, laica, gratuita e de qualidade para todas as categorias sociais em nosso território. A educação com características similares, embora não haja indícios de vínculos teóricos entre Darcy Ribeiro e Antonio Gramsci, vigorou nos CIEPs-RJ entre os anos 1980/1990. De fato, seu melhor momento ocorreu no período 1983-1987, inclusive chegando a outras cidades do Brasil, exemplo de São Paulo, como registra Stock (2004).

Os Centros Integrados de Educação Pública surgiram da proposta articulada por Darcy Ribeiro – marco referencial da escola popular em educação de tempo integral. Projetado arquitetonicamente por Oscar Niemeyer: “O Ciep [se apresentou como] uma escola que funcionava das 8 horas da manhã às 5 horas da tarde, com capacidade para abrigar 1.000 alunos” (RIBEIRO, 1986, p.42, inserção entre colchetes de nossa autoria).

Porém, várias foram as críticas: os professores e professoras da rede estadual, em função da proposta alternativa dos CIEPs, seriam vistos como profissionalmente incompatíveis com o recente arcabouço educacional. Muitas dessas críticas foram encampadas pelo sindicato dos professores, na época Centro Estadual dos Profissionais de Educação (CEPE), mais tarde denominado Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE).

Assim, “[...] Darcy Ribeiro [enfrentaria] disputas com o sindicato dos professores ao declarar sua preferência por professores recém-formados, pois estes, segundo sua concepção, ainda não tinham adquirido os vícios da cultura escolar enraizada em nosso sistema educacional (MOREIRA; JÚNIOR; SOARES, 2019, p.16, inserções entre colchetes de nossa autoria). Afirmar “vícios” para

desconsiderar a importância de boa parte do professorado da rede destoava da trajetória desse emérito progressista.

No interior dos CIEPs, em meio a esses conflitos, alunos e alunas tinham a possibilidade de fazer três refeições por dia, com atendimento médico e social, área desportiva, incluindo piscina e outros dispositivos para práticas de educação física (Ribeiro, 1986). Tudo com a finalidade de que as crianças e os jovens pudessem desenvolver seus estudos a contento e com qualidade. A arquitetura dos CIEPs também esteve submetida a críticas, já que seu ambiente amplo e devassado não favorecia o uso do aparelho fônico dos professores e professoras. Nesse aspecto, cabe ressaltar que os espaços educacionais, da escola infante ao ensino universitário, frequentemente, passam por dificuldades semelhantes.

Contudo, os CIEPs foram pensados para acolhimento de todos os gêneros sociais. Ao lado das questões relevantes, reivindicadas pelos profissionais da educação, destaca-se como negativo o oportunismo interesseiro do pensamento burguês, estigmatizando os Centros Integrados de Educação Pública no sentido de escolas destinadas aos pobres, reforçando a ideia de pobreza econômica e enfermidade social. Essa disseminação ideológica foi vital para o enfraquecimento dos CIEPs. Mantendo, assim, o perverso antagonismo entre as classes sociais como fruto da segregação educacional. Darcy Ribeiro foi o educador que mais avançou no Brasil ao pensar e colocar em prática a escola em seu verdadeiro sentido universal, alinhando os conhecimentos científicos aos saberes populares. Como recorte exemplar, ao instituir o programa de “Animação Cultural”, foi capaz de quebrar a métrica da escola tradicional estritamente voltada para a erudição – propondo intervenção didática ousada e original (CHAGAS, 2012).

Nessa complexa mediação cultural a instituição, como coletivo social, se tornaria realidade. Pontuando que as manifestações são grupais e se expressam a partir de uma série de ritos herdados pelo povo como ressonância brasílica – oriundos da mescla indígena e africana como resistência ao europeu colonizador. Danças, cânticos, hábitos de comer, vestir, falar etc., até então tidos como meramente folclóricos, assumiam destaque no programa dos CIEPs. Multidimensionalidade historicamente desprezada pela cultura dominante estabelecida entre nós.

Esta dolorosa marca de domínio brotou do vínculo dos indivíduos identificados com os valores burgueses. A estética cultural dos grupos, construída fora desse

processo tende a ser classificada como modo comportamental estranho e exótico, a ser “corrigido” pela cultura dos de cima em concomitância com o modelo educacional definido pelos paradigmas da classe mandatária.

Quando Darcy Ribeiro pensou o processo de Animação Cultural, para ser efetivado dentro dos CIEPs em sua ação ativa e criativa, ante o caráter passivo da cultura predominante, teve também como meta destituir a escola da influência ideológica que a sociedade burguesa imprimiu à educação escolar. Bosi (1992) entende que a escola deve representar uma via de acesso sempre renovada à “Natureza” – trabalho permanente do historicismo à compreensão do Homem e da Sociedade. Momento ímpar de desenvolvimento da própria linguagem, em sentido lato, como expressão intercultural ao que de mais belo e humano pode ser produzido. A formação do ser convencido de sua secundarização sociopolítica, reduz o sujeito a esquemas estanques de conformações a-históricas. O Estado efetivamente coletivo – mediado por movimentos sociais organizados, em consonância com quadros progressistas – têm o dever de construir a escola única para a todas as crianças e adolescentes brasileiros.

No horizonte de Gramsci (1985), o terreno da cultura é principalmente o do trabalho como arte de se constituir humanamente o sujeito em sintonia com os valores da classe proletária. Por isso, a cultura deve avançar por dentro da escola, mas não qualquer escola, e sim a que se propõe desinteressada. Para Bosi (1992) as culturas são transversais e em seu entrelaçamento servem para ser superadas pela cultura criativa individualizada. Enquanto em Gramsci, a ideia é a de resgate histórico dos valores da classe trabalhadora contra uma pseudocultura “[..] abstrata, enciclopédica burguesa, que efetivamente confunde as mentes trabalhadoras e dispersa sua ação” (NOSELLA, 1992, p. 14-15).

Ao interpretar o pensamento gramsciano percebemos seu compromisso com a totalidade do sujeito humano, eliminando, assim, a distinção segregacionista de gênero social. Contrariamente, se torna mais vantajoso ao controle burguês, em sintonia com seus ideólogos, fragmentar cultura, trabalho e educação. Somente em articulação com esse tripé se pode intuir, de fato, a presença de homens e mulheres (todos, todas, todes) em pé de igualdade no mundo. Para tanto, há que se formar socioculturalmente quadros engajados na superação do Estado neoliberal burguês.

Darcy Ribeiro ao projetar os CIEPs como expectativa multicultural, aproximou-se do pensamento gramsciano em prol de um ensino que priorizasse os

profundos saberes coletivos da gente do mundo real, a contrapelo dos interesses que fizeram dos espaços escolares tradicionais uma arena à margem das necessidades populares. Ainda que o projeto darciniano por uma escola transformadora tenha sido temporariamente derrotado nos anos 1990 – os CIEPS, face à sua proposta de educação integral, precisam ser reestudados à luz do século XXI.


Considerações temporais


No artigo em tela, buscamos pensar o socialismo tradicional abordando pontos de contradição, que determinadas correntes marxistas construíram, inobservando as situações materiais restritas ao tempo em que foram originariamente produzidas por Karl Marx. Ao tentar superar tais entraves, restringimo-nos ao que não pôde ser pensado por Marx no século XIX, revisitando alguns de seus conceitos, com a finalidade de entender as novas demandas humanas exigidas pelas classes populares no século XXI.

O presente século, entre outras situações, exibe tecnologias de nova ordem, trazendo avanços e retrocessos. A era da “pós-verdade” cria um ambiente de comunicação múltiplo de incertezas reforçando a divisão de classes. Ao mesmo tempo em que o Estado e os representantes políticos, alinhados aos interesses particulares, impõem perdas sociais acentuadas aos indivíduos. Todas estas questões, diletas ao economicismo burguês, têm favorecido elevada financeirização da moeda, como ação especulativa de rentismo em prol do grande capital, aprofundando a miséria e a pobreza.

O próprio trabalho de base operária, ao qual Marx se debruçou para construir sua crítica à economia política, aniquilado pela desindustrialização, atualmente – após ações liberais de nova ordem eliminarem direitos conquistados pelos movimentos trabalhistas, traz profunda pauperização econômica sobre os desprotegidos socialmente.

Nesta (i)lógica, o trabalhador como mercadoria temporária, sem vínculos e direitos, está disponível para ser explorado no instante em que o capital necessita de sua mão de obra. Esses modelos, convêm destacar, não estavam presentes no tempo de Marx, proporcionando nos dias atuais alijamento de imensos contingentes de pessoas – com impressionante repercussão nas classes socialmente oprimidas.

As materialidades históricas de hoje exigem que o pensamento crítico, oriundo de grupos marxistas, se desamarre de formulações ideológicas do passado, realinhando questões identificadas por Marx. Almejando este fim, propusemos – a partir de Hegel – um diálogo com Lukács e Gramsci, buscando entender a contribuição marxiana para os conflitos sociais deste século.

A questão da cultura em Gramsci, como elemento fundamental para a educação coletiva dos indivíduos, na defesa de uma escola desinteressada porquê do interesse de todos os trabalhadores e seus filhos, teve destaque – a educação pública necessita se construir como ciência educacional em favor das classes populares em desvantagem social. Observamos o termo gramsciano, entendido como “história provisória”, ao falar do cientista revolucionário (NOSELLA, 1992), entendendo que na caminhada pela vida a história se revela como materialmente provisória. Ou seja, transformações revolucionárias ocorrem operadas por mãos humanas, como demostrou a Revolução burguesa de 1789 na França, abrindo – desde então – caminhos à sua superação.

Concomitantemente, procuramos – ao relembrar a existência dos CIEPs, como obra de Darcy Ribeiro – sublinhar, ainda que resumidamente, a importância de uma educação pública, laica, gratuita, de excelência para todas as classes, a ser enfrentada como política educacional, ante as incertezas presentes no atual cenário brasileiro.

Todavia, na proposta dos CIEPs, ocorreram adversidades: entre as quais a insatisfação de professores da rede pública regular por se sentirem preteridos, fato que para os críticos do programa intuía certo teor de dualidade e populismo. O excesso de centralização de alguns quadros da alta administração dos Centros Integrados de Educação Pública, talvez influenciados pelo personalismo de Darcy Ribeiro e por questões políticas que advinham da recente ditadura brasileira, podem ter contribuído para não se compreender antigas reivindicações represadas no âmbito estadual de governo, no sentido de valorização e melhoria do trabalho escolar geral em sintonia com os CIEPs que nasciam.

O projeto, na íntegra, se dividiria entre afirmativas e negativas, enriquecendo o debate: por um lado entre os que, como Faria (1991), defendiam o caráter socioeducacional do programa e por outros aqueles, como Mignot (2009), entendendo que a proposta mais separava que unificava os desejos por uma educação pública de qualidade ampliada.

Contudo, acreditamos que os entraves políticos e administrativos, ocorridos no delineamento dos CIEPs, deveriam servir de impulso no sentido de ampliarmos as pesquisas, no século XXI, sobre as escolas de tempo integral no Brasil a partir da experiência darciniana. “É mais importante que uma ideia já conhecida seja socializada do que inventar uma ideia nova que fique restrita a um pequeno grupo intelectual” (GRAMSCI apud COUTINHO, 2018).


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