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V.21, nº 45, 2023 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


20 ANOS DA REVISTA TN – Quanto trabalho foi necessário para dar-lhe vida e quanto ainda o será para mantê-la em movimento? 1


Maria Cristina Rodrigues2

Sandra Morais3 Jaqueline Ventura4


Neste ano de 2023, a revista Trabalho Necessário completa 20 Anos de existência. Criação do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho- Educação (NEDDATE) e ligada ao Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da UFF (FEUFF), a revista TN merece que a celebremos nesse momento. Primeiro, porque, ao longo desse período, tem se mostrado coerente com os princípios teóricos, políticos e éticos que justificaram a sua criação no ano de 2003.

E esse não é um esforço menor, quando consideramos as enormes dificuldades enfrentadas pelo campo acadêmico-científico no Brasil, assolado pela histórica falta de financiamento, pela adoção de um ethos cada vez mais empresarial- produtivista, e, nos últimos anos, por uma reação ultraconservadora que instaurou perseguições e ataques a qualquer iniciativa que buscasse garantir, nas universidades – mormente, as públicas –, a presença diversa e complexa dos sujeitos sociais que constituem a sociedade brasileira, junto com seus temas e demandas, que passam a exigir atenção também nos espaços acadêmicos.


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1 Artigo recebido em 31/07/2023. Aprovado pelos editores em 20/08//2023. Publicado em 23/08/2023. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v21i45.59410

2 Professora da Escola de Serviço Social da UFF, Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana, e atual coordenadora do NEDDATE. E-mail: mcristina@id.uff.br.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/0279905252377710. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0545-2260.

3 Historiadora, Doutora em Educação e Vice coordenadora do NEDDATE.

E-mail: sandramorais1409@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9809541460730084. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9778-7257.

4 Professora da Faculdade de Educação da UFF, Doutora em Educação e Vice coordenadora do

NEDDATE. E-mail: jaquelineventura@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/8217768981005318 ORCID: https://orcid.org/000-0001-9548-253X.

Os 20 Anos da TN merecem celebração, também, por outra característica tão cara a gerações de intelectuais, docentes, pesquisadores/as, que apostaram e continuam apostando no trabalho coletivo como dimensão significativa para a elaboração do conhecimento. Essa marca se desvelou para nós assim que nos debruçamos sobre o rico material que a revista acumulou nesse período, traduzido em todos os seus números publicados desde o Ano 1 da TN. É a essa trajetória – rica, complexa e desafiadora – que queremos dar destaque no presente texto de Apresentação.

Na ementa elaborada para a organização deste número comemorativo da TN, já estava assinalado que não existe neutralidade na produção e na socialização do conhecimento científico. Esse foi nosso guia principal para o cumprimento da tarefa que recebemos com muita alegria e um tanto de preocupação, em função da responsabilidade de, com o nosso trabalho, ser fiel ao caminho construído por tantos e tantas na criação e na manutenção de um periódico científico que tem se tornado uma referência para os estudos e as pesquisas sobre mundo do trabalho, trabalho- educação e formação humana.

Como coordenadoras atuais do NEDDATE, podemos afirmar, de saída, que a revisita a todos os números da TN, de 2003 a 2023, permitiu-nos verificar aspectos diversos de uma história que é a do próprio campo de conhecimento referente ao Núcleo e à revista, sustentado no materialismo histórico-dialético. Mas também abrange o debate acerca dos periódicos científicos – desde elementos formais e estéticos até as exigências de indexação, avaliação pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e as pressões para uma profissionalização que, não sem consequências, têm ocupado e preocupado todas e todos, direta e indiretamente ligados a essa temática.

A revista Trabalho Necessário foi publicada, pela primeira vez, em dezembro de 2003 e, até o ano de 2007, era uma revista anual. De 2008 até 2014, a revista passou a ser semestral e, a partir de 2015, adotou a periodicidade quadrimestral, que se mantém até o presente ano. Ainda no que se refere à sua estrutura, os anos iniciais da revista revelam uma maior liberdade (ou menor padronização), que se expressa na variedade de artigos por número; na presença de artigos maiores e menores, também por número, e numa formatação ainda sem regras fechadas.

No período entre 2003 e 2013, por exemplo, a revista possuía basicamente duas seções principais: Artigos do Nº Temático e Memória e Documentos. Esta última

seção merece destaque, inclusive, por dois pontos significativos. Primeiro, por ter se mantido em praticamente todos os números publicados. Segundo, e mais relevante que sua constância, por ter tido a contribuição permanente e sistemática de Francisco José da Silveira Lobo Neto, um dos nossos homenageados deste número especial, não apenas nesse primeiro momento da referida seção, mas ao longo de toda a história da revista Trabalho Necessário. Foram documentos variados e valiosos, de leis a manifestos, além de artigos e outros documentos que nos ajudam a conhecer a conflituosa relação trabalho-educação no Brasil.

Ainda nesses primeiros 10 anos da TN, em alguns números, são encontradas seções como Ensaio, Resenha e Debate, sem, no entanto, uma constância sistemática. O que se manteve constante ao longo de toda a trajetória do NEDDATE e da revista foi a afirmação do referencial teórico do materialismo histórico-dialético como compromisso de contribuir para o necessário desvelamento das estratégias e das ideologias de que o capitalismo faz uso para se perpetuar.

Também já estavam presentes a preocupação e o interesse em ampliar o debate nacionalmente, incorporando temas, por exemplo, distantes da questão urbana e das regiões Sudeste/Sul, trazidos por pesquisadores do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste do país. Ao lado da temática trabalho e educação, e suas várias associações – educação profissional, ensino médio, Educação de Jovens e Adultos (EJA) –, a busca pelo debate conceitual crítico se dava assentada também na práxis política, que transparece em artigos sobre movimentos sociais, sindicatos, e que, por sua vez, mantém-se na pauta da revista ainda hoje, mesmo sob novas formas.

No ano de 2013, ao final da sua primeira década, a revista passou por mais duas mudanças: a incorporação dos editoriais assinados pelas editoras e as edições com capas, montadas a partir de fotos e/ou pinturas que retratavam o trabalho, os/as trabalhadores/as brasileiros/as, a educação, as lutas por direitos, enfim, a realidade brasileira com suas riquezas e misérias. E, ao longo da sua segunda década, novas alterações foram efetivadas: uma delas, a adoção, em 2015, da periodicidade quadrimestral, que contribuiu para o recebimento, em maior número, de artigos escritos por autores de todas as regiões do país e do exterior. Também há que se destacar, a partir de 2016, a ampliação do Comitê Científico constituído por 58 professores doutores de todas as regiões do Brasil, bem como da Espanha, do México e de Portugal.

Esse novo formato pode ser creditado, principalmente, ao grande esforço coletivo empreendido pelos editores e editoras que se dedicaram à revista até então, pela contribuição do Comitê Científico e do Conselho Editorial, assim como pela parceria com o GT 09 (Trabalho-Educação) da Associação Nacional de Pesquisadores em Educação (ANPEd), através de temas e debates candentes que encontraram na TN um canal aberto para o diálogo e a crítica necessários.

Ao mesmo tempo, essas mudanças desaguaram em novas exigências que a maioria dos periódicos científicos no Brasil também enfrenta: mudanças tecnológicas constantes, quase nunca acompanhadas de financiamento e recursos técnicos adequados; sobrecarga de trabalho para editores; critérios pouco transparentes de avaliação, por parte das agências de fomento. Todas essas questões ainda nos acompanham como limites e desafios, e têm exigido dos vários fóruns dos quais a revista Trabalho Necessário participa – Fórum de Editores de Periódicos da Área da Educação (FEPAE) e Revistas Marxistas estão entre os principais – um esforço permanente para não sucumbirmos à lógica destrutiva da produção de conhecimento sob o novo estágio capitalista, neoliberal-financeiro-plataformizado.

Uma saída encontrada foi apostar, mais uma vez, na perspectiva da construção coletiva, na contramão do individualismo e da competição proposta pelo capital. Assim, a partir de 2018, a revista Trabalho Necessário passou a editar Números Temáticos em conjunto com grupos de pesquisa em trabalho-educação que se consubstanciam no materialismo histórico. Como se destaca no Editorial do nº 29 da revista, de 13/06/18, a ideia defendida pelos editores era “[...] sensibilizar os grupos de pesquisa sobre a importância de nossa revista eletrônica como meio de veiculação e mediação do pensamento crítico em relação ao mundo do trabalho, à formação humana e às relações históricas entre trabalho-educação” (p. 2).

Esta tem sido uma experiência muito rica e que, com certeza, resultou em números temáticos que ampliaram e complexificaram os conceitos de “mundos do trabalho” e de experiências de classe, educação e cultura. O materialismo histórico- dialético segue sendo o referencial teórico-metodológico que dialoga com as teorias críticas e que articula as diferentes temáticas abordadas, como ribeirinhos, quilombolas, feminismos, além dos temas frequentes, como movimentos sociais, ensino médio, educação profissional etc.

O percurso percorrido de 2003 a 2023 pela revista TN nos faz chegar ao seu nº 45 com o desafio de republicar alguns dos artigos que representam e expressam a

sua rica trajetória5. Na escolha dos textos, procuramos garantir que os conceitos e as categorias que permitem a crítica à sociedade burguesa fossem centrais e se apresentassem através da ampla e complexa rede de pesquisadores e pesquisadoras das diversas regiões do Brasil e também de outros países.

Em sua estrutura, optamos por manter as seções que têm sido frequentes nos últimos anos: Clássico, Homenagem, Artigos do Nº Temático, Ensaio, Entrevista, Memória e Documentos, Artigos de Demanda Espontânea. Nessa tarefa, recebemos a colaboração preciosa de autores e autoras que nos ajudaram não apenas a recuperar a história da TN, mas a atualizá-la e interrogá-la à luz das novas demandas e dos desafios postos no presente. Ao nos debruçarmos sobre textos e documentos de 20, 15, 10 anos atrás, procuramos cumprir o necessário trabalho de manter vivos o sentido e o propósito teórico, político e ético que, em 2003, levou os membros do NEDDATE a iniciarem a aventura de desenvolver uma revista eletrônica para a socialização e o debate acerca dos temas da área trabalho-educação.

Eis aqui o resultado desse trabalho!

Comecemos pela CAPA, que traz uma pintura de Ronaldo Rosas Reis, professor aposentado da FEUFF e um dos criadores da Revista Trabalho Necessário. Intitulada “O tempo é sempre lembrança”, a obra de 20216, é uma homenagem a Marielle Franco, vereadora carioca pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), brutalmente assassinada no dia 14 de março de 2018, em um atentado que matou também o motorista Anderson Gomes, quando treze tiros atingiram o veículo em que estavam.

Mulher negra, cria da favela da Maré e defensora dos Direitos Humanos, Marielle atuava em diversos coletivos e movimentos (feministas/LGBTQIA+, negros e de favelas), que não foram silenciados com a sua morte, como pretendiam seus algozes. Ao contrário. Sua semente tem germinado desde então e ocupado cada vez mais espaços antes limitados à presença de mulheres, jovens, negras e negros, periféricos/as. Daí a escolha dessa obra, que homenageia tanto o seu autor, quanto a luta que Marielle encarnou e que também está presente na Academia. Tê-la na capa


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5 A republicação dos artigos neste número, aconteceu transversalmente nas seções e procurou respeitar as especificidades normatizadas, a cada período da revista, para as submissões, resguardando assim a historicidade do processo editorial. Dessa maneira, a editoria manteve as características originais dos textos, sendo apenas atualizadas a sua formatação e normas técnicas, essas últimas quando possível.

6 A obra foi doada pelo artista à Associação dos Docentes da UFF (ADUFF).

da TN 45, no momento em que, finalmente, a investigação sobre seu assassinato avança, pelas ações do Ministério da Justiça do novo governo eleito, é, para nós, motivo de orgulho e esperança.

Sobre os artigos a serem republicados, é importante dizer que a seleção não foi uma tarefa fácil. Além disso, fomos surpreendidas, ao longo do processo de escolha, com situações que nos levaram a incluir, em algumas das seções, mais de um material. Esse foi o caso das duas primeiras, sobre as quais trataremos a seguir. A SEÇÃO Homenagem reúne um rico material. E, em vez de um único texto, teremos três. Falamos, aqui, de um trio de professores que, com diferentes trajetórias acadêmicas, contribuiu enormemente para o vigor da revista Trabalho Necessário e do próprio NEDDATE: Francisco José da Silveira Lobo Neto, Gaudêncio Frigotto e Maria Ciavatta. O que os reúne nesta seção é escolha, mas também felizes circunstâncias. Lobo foi o nome que surgiu imediatamente, uma vez que sua colaboração com a TN, na seção Memória e Documentos, não poderia ser mais adequada à ideia de um número comemorativo aos 20 Anos da revista. Sonia Rummert é quem assume a tarefa dessa homenagem e, em seu texto, a autora recupera, carinhosamente, a trajetória docente desse “mestre”, como a ele se refere, destacando a sua chegada à UFF, a relação democrática com seus alunos e alunas e o papel fundamental na criação da revista TN – com a qual colaborou, na Seção Memória e Documentos, em vinte e um dos seus números. E fazendo jus ao trabalho necessário desse mestre, Sonia Rummert escolheu o documento “Angicos/1963: um

marco histórico da educação no Brasil” para republicação.

As felizes circunstâncias de que falamos se apresentaram em outros dois momentos: o primeiro foi o título de Professor Emérito da UFF, recebido por Gaudêncio Frigotto, no último 29 de junho. O texto que reproduz o seu discurso na cerimônia e as homenagens a ele endereçadas, escritas por Gelta Xavier, Lia Tiriba e Jaqueline Ventura, também fazem muito sentido nesta seção e neste número especial. Por isso, nós os socializamos aqui, esperando que a mesma emoção presente na cerimônia possa ser experimentada pelos leitores e leitoras.

Por fim, um pequeno texto de Maria Ciavatta compõe a seção. Escrito em resposta à homenagem recebida no nº 44 da TN, o texto é um agradecimento e também uma delicada reflexão sobre o reconhecimento ao trabalho acadêmico – tanto o dos “outros” (sejam eles os/as colegas, os/as discentes e ex-discentes) quanto o

próprio (o autorreconhecimento), que tornam a trajetória acadêmica possível e socialmente referenciada.

Na SEÇÃO Clássico, trazemos dois textos. O primeiro deles é de Leandro Konder (in memoriam). Publicado na TN nº 1, em 2003, e intitulado “A Dialética e o Marxismo”, é apresentado e comentado por Celi Taffarel e Joelma Albuquerque. As autoras organizaram seus comentários destacando a revista; o contexto histórico; o autor e destaques da sua obra; e o texto presente, chegando à conclusão de que ele se mantém “[...] dramaticamente atual, e que o debate necessita ser aprofundado, ampliado, difundido e penetrar nas massas” (p. 6), especialmente frente ao avanço das forças destrutivas sobre a soberania, a democracia, os direitos e o meio ambiente. O segundo clássico chama-se “A Produtividade da Escola Improdutiva 30 Anos depois: regressão social e hegemonia às avessas” e é de autoria de Gaudêncio Frigotto. Publicado no nº 20, em junho de 2015, com as produções do II Intercrítica, o texto faz, nas palavras do autor, “[...] um (re)exame da relação entre educação e estrutura econômico-social capitalista” (p. 206). A partir do referencial do materialismo histórico, Frigotto destaca as mudanças no capitalismo, ocorridas desde o último quarto do século XX, o que leva à perda de direitos para a classe trabalhadora. No campo educacional, também há impactos, que radicalizam “[...] o caráter ideológico da noção de capital humano, mascarando a regressão social e a educacional subjacente” (p. 206). O autor termina fazendo um chamado aos educadores/as do campo da esquerda brasileira para a compreensão da necessária relação entre a

produção teórica e a ação política.

A SEÇÃO Artigos do Número Temático reúne um total de 15 artigos, todos eles também selecionados entre aqueles já publicados na revista TN. O primeiro deles é de Mauro Luís Iasi. Neste artigo, intitulado “O método: categorias fundantes no século XXI”, o autor discute se as categorias e os conceitos fundamentais de Marx ainda teriam validade para interpretar a história e o funcionamento da sociedade contemporânea e, especificamente, para compreender a nossa formação social e o trabalho educativo. Demonstra que sim, argumentando que a acumulação privada, a mercadoria e a extração de mais valor do trabalho pelo capital continuam atuais e hegemônicos. Sendo assim, as análises e as teorias desenvolvidas por Marx no século XIX continuam contemporâneas. Contudo, o autor alerta para o fato de que os instrumentos de análise marxianos precisam ser sempre realimentados no confronto

com o real, em um eterno processo de aproximação da realidade e do seu movimento para sua permanente atualização.

O segundo artigo, intitulado “Na Apresentação do Livro II de O Capital”, é de José Barata-Moura, filósofo marxista português, que vem nos brindar com seu trabalho publicado inicialmente em junho de 2011. O texto foi apresentado também na famosa Festa do Avante de 2009, evento anual organizado pelo Partido Comunista Português (PCP), em Lisboa. Nele, o autor fala das condições e das dificuldades experimentadas tanto por Marx quanto por Engels para a publicação dos três livros de O Capital, especialmente para os dois últimos, publicados após a morte de Marx e que, por isso mesmo, exigiu muito de Engels. O Livro II trata do processo de circulação do capital. E Barata-Moura nos auxilia, com rigor e detalhamento, a conhecer um pouco mais sobre esse movimento.

Ana Aparecida Arguello Souza, em seu artigo intitulado “A atualidade do pensamento de Marx”, publicado na revista em junho de 2008, procura responder por que as ideias do filósofo alemão se mantêm atuais, inclusive para o campo educacional – ainda que muitas vezes incorporadas de forma equivocada ou superficial. Para a autora, essa atualidade se deve “[...] ao profundo sentimento de humanismo, um comovente amor pelo homem e um desejo cerebral de transformar a vida em alguma coisa digna de ser vivida” (p. 2), presentes em toda a sua vasta obra.

O artigo “Nexos entre Economia e Cultura”, de Lia Tiriba e William Kennedy do Amaral Souza, é uma importante contribuição à reflexão alargada acerca das diferentes dimensões do real, à luz do materialismo histórico-dialético. Parte do “[...] pressuposto que, embora não hegemônico entre os antropólogos, o materialismo histórico é essencial para o entendimento das formações sociais capitalistas e não capitalistas” (p. 24). Os autores resgatam, ainda, o diálogo entre o marxismo e a antropologia evolucionista, especialmente de Lewis Henry Morgan, resgatando Marx e Engels e suas determinações sociais, materiais e simbólicas.

Maria Clara Bueno Fischer e Doriedson do Socorro Rodrigues, no artigo “Relações seres humanos-natureza: trabalho, cultura e produção de saberes”, analisam o intercâmbio entre seres humanos e natureza, mediado pelo trabalho, como crítica do modo de produção capitalista, que impõe uma ruptura dessa relação nesse intercâmbio. Os autores buscam compreender a crise ambiental e ecológica que temos vivido e identificam outros modos de produzir a vida, que se contrapõem e resistem à lógica do capital nos povos e nas comunidades tradicionais. Na conclusão,

destacam desafios que o estudo das relações entre seres humanos e natureza, mediadas pelo trabalho humano, traz ao campo trabalho-educação e à luta de classes. No artigo “Gênero, patriarcado, trabalho e classe”, Helena Hirata problematiza conceitos e categorias desenvolvidos no Brasil, na França e em outros países, destacando seus pontos de divergências e complementaridades. Define o que seria o materialismo feminista, trazendo a temática do trabalho entre as mulheres, bem como a relação entre trabalho e gênero no conceito de “capitalismo patriarcal”. Discorre também sobre o paradigma da interseccionalidade, que propõe a interdependência e

a não hierarquização das relações de poder de gênero, raça e classe social.

Alexandre Maia do Bonfim, em seu artigo intitulado “O (sub)desenvolvimento insustentável: a questão ambiental nos países periféricos latino-americanos”, apresenta como proposta principal “[...] contribuir para a construção de uma perspectiva teórica crítica à Questão Ambiental” (p. 1), considerando a realidade de capitalismo periférico da América Latina. Para tanto, Bonfim problematiza o conceito de “desenvolvimento sustentável” e aponta que os países desta região não têm conseguido enfrentar a degradação da natureza. Para isso, será preciso que se imponham mudanças ao próprio sistema societário baseado no desenvolvimentismo, no produtivismo e no consumismo que exaurem a vida humana e a natureza.

No artigo “A classe trabalhadora e suas lutas no Capitalismo Contemporâneo: sínteses do Debate Marxista”, Sandra Luciana Dalmagro e Caroline Baniuk refletem sobre a classe trabalhadora e suas lutas na atualidade, considerando as relações sociais contraditórias no capitalismo em seus aspectos econômicos, políticos e culturais, intrinsecamente articulados entre si. Destacam a articulação entre a dimensão material (lugar na produção) e a subjetiva (consciência e ação política). E ressaltam as diversas lutas e organizações que revelam as contradições do capitalismo contemporâneo e o fazer-se da classe. As autoras concluem que as categorias classe e trabalho são fundamentais para a compreensão da sociedade na composição atual da classe trabalhadora.

Luiz Eloy Terena, em seu artigo intitulado “Movimento e resistência indígena no contexto pandêmico”, destaca que a luta dos povos indígenas deve ser conectada com as questões políticas, econômicas e sociais que afetam o país. O autor analisa a conjuntura da política indigenista brasileira, marcada por um contínuo processo de violação aos direitos dos povos indígenas e sua luta pela garantia de seus direitos

constitucionais, ressaltando também que a Fundação Nacional do Índio (FUNAI7) vem atuando na contramão dos interesses dos povos indígenas, principalmente na gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro, que adotou medidas que privilegiam o mercado e o agronegócio. Destaca, ainda, o atual contexto político do país e os desafios postos com o advento da pandemia da Covid-19, que piorou a vida das comunidades indígenas.

No artigo “Características e fundamentos da concepção thompsiana de cultura e repercussões na educação”, Angela Maria Souza Martins e Lúcia Maria Wanderley Neves apresentam características e fundamentos da concepção thompsiana de cultura, “[...] de acordo com a tradição historicista e humanista do materialismo histórico” (p. 147) e suas repercussões no campo educacional. Segundo as autoras, Thompson enfatiza a dialética entre educação e experiência, criticando o projeto educacional desenvolvido na Inglaterra de meados do século XX, que reforça a conservação social a partir do projeto burguês. O objetivo desse trabalho é levantar estratégias políticas para a construção de um socialismo humanista.

Carmen Sylvia Vidigal Moraes, no artigo “Trabalho e Educação como pauta do GT Trabalho e Educação da ANPEd: algumas considerações sobre o campo de pesquisa”, faz um breve histórico da constituição do campo de pesquisa Trabalho e Educação, tecendo algumas considerações sobre a escola e sua relação com o trabalho. Faz, ainda, uma leitura crítica das Teorias da Reprodução, propiciada pelas contribuições de Henri Lefebvre, Pierre Naville e Lucie Tanguy, retomando algumas formulações sobre a escola e a educação profissional, para então discutir a proposta de educação unitária de Gramsci e suas implicações no ensino médio. A autora faz também uma crítica às abordagens funcionalistas que tratam o sistema escolar como mera estrutura, esquecendo, assim, que os sistemas educativos são, em grande parte, resultado das lutas sociais.

No artigo “O reducionismo da perspectiva de desenvolvimento humano como efeito da liquefação das necessidades humanas no mercado capitalista”, Maria de Fátima Félix Rosar apresenta um resgate histórico das relações entre capital, trabalho e desenvolvimento humano, argumentando sobre a incompatibilidade, na realidade brasileira, de construção de uma condição digna de vida para todos no


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7 A partir da Lei nº 14.600, de 19 de junho de 2023, a FUNAI passou a se chamar Fundação Nacional dos povos Indígenas. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023- 2026/2023/Lei/L14600.htm. Acesso em 28 de julho de 2023.

âmbito das relações sociais de produção capitalista. A autora assinala que é preciso combater o capitalismo em todas as suas dimensões. Contribui com a perspectiva crítica da historiografia da educação e ressalta a necessidade histórica de se realizar o enfrentamento das investidas do capital sobre o pensamento crítico, “[...] realizando a práxis revolucionária desde o nível micro de atuação na transformação da sociedade” (p. 76).

O artigo de Leonardo Dornelles Gonçalves e Conceição Paludo (in memoriam), intitulado “Do trabalho socialmente necessário ao politecnicismo a partir de Viktor Shulgin: fundamentos de uma experiência educativa revolucionária”, é fundamentado no conceito de politecnia de Viktor Shulgin, assim apresentado: “Por politecnia entende-se a práxis educativa, cuja base é o trabalho em seu sentido ontológico, que consiste na atividade humana fundante dos seres humanos e, consequentemente, da realidade social” (p. 42), visando a um projeto de emancipação humana. A partir desse conceito, os autores fazem, essencialmente, uma pesquisa historiográfica, buscando compreender a relação entre trabalho e educação na Rússia, no período de 1917 até meados de 1931, e as mudanças impostas na orientação e nas práticas políticas do governo sob o comando de Josef Stálin.

No artigo “Uma abordagem interacional dos saberes e das culturas profissionais”, Telmo H. Caria e Marise Ramos destacam a influência da fenomenologia social na elaboração teórico-metodológica dos saberes profissionais e as contribuições do interacionismo simbólico. Priorizam, ainda, o foco na intersubjetividade que se processa no mundo real. Ao abordarem o saber profissional, discutem as dualidades epistemológicas (teoria e prática) e cognitiva (mentes analítica e pragmática) a partir das quais esse saber é produzido. Segundo os autores, pode acontecer o diálogo entre o referencial materialista histórico-dialético e a fenomenologia. Essa possibilidade “[...] estaria em que o primeiro não visa transcender imediatamente o fenômeno em busca da essência, mas reconhece não se poder ir além do fenômeno sem primeiro buscar compreendê-lo exaustivamente na sua manifestação empírica” (p. 38).

Larissa Pereira e Célia Vendramini, em seu artigo “Migração, jornada de trabalho e EJA”, constatam o alto índice de migrantes na Educação de Jovens e Adultos do município de Florianópolis, Santa Catarina, e analisam como se relacionam a jornada de trabalho e a escolarização na trajetória desses migrantes, a fim de compreender suas dificuldades na conciliação entre trabalho e escola. As autoras

destacam a jornada de trabalho dos estudantes migrantes e sua vinculação com a produção de mais valor e as relações de exploração, evidenciando que a extensão e a intensificação da jornada de trabalho deixam pouco tempo para os estudos, impossibilitando a conciliação do tempo-trabalho e do tempo-escola na vida do trabalhador migrante.

A SEÇÃO Ensaio reúne dois trabalhos, ambos inéditos. Conforme o título “Trabalho, educação e política: diálogo com o número 42 da revista Trabalho Necessário” indica, o texto de Olinda Evangelista faz um balanço do dossiê organizado por Rodrigo Lamosa e Marco Lamarão – “O empresariamento da educação e o Estado-educador” – e é fruto de sua apresentação no lançamento deste número. A autora faz uma análise criteriosa de todos os trabalhos publicados, buscando assinalar as principais tendências e contribuições acerca do tema. Avalia que os artigos publicados carregam em comum a defesa da escola pública, acompanhada de esforços investigativos em direção às estratégias burguesas para a formação da juventude trabalhadora. As abordagens do problema são diversas, sendo privilegiados os aparelhos privados de hegemonia e de Estado enquanto ferramentas de análise. A autora conclui que o horizonte burguês para a juventude trabalhadora é a formação de uma mão de obra docilizada, e sublinha que o dossiê é um chamado à luta em defesa da escola pública, a despeito das contradições que ela carrega.

Inês Barbosa de Oliveira, no texto “Produção e circulação de conhecimento em tempos de mercantilização e negacionismo: desafios editoriais”, busca enfrentar algumas das principais questões que envolvem a editoração de periódicos acadêmicos na contemporaneidade. E o faz em três tópicos. No primeiro, trata das consequências da mercantilização e das desigualdades econômicas para a circulação de conhecimento, ressaltando os perigos da “internacionalização subalterna”, que sustentam a posição da língua inglesa como língua franca de divulgação científica. Desdobrando esse tema em outra seção, Barbosa argumenta sobre como a realidade excludente da mercantilização da produção científica pode estimular o negacionismo e os ataques às universidades e aos pesquisadores. Tratando especificamente das responsabilidades editorais no campo das ciências humanas e sociais, versa, em seu último tópico, sobre as determinações contemporâneas da ética na pesquisa, que é hegemonizada por perspectivas da área da saúde. Por fim, a autora sublinha o caráter público do fazer científico, firmando seu compromisso ético e político com a qualidade e com a função social da ciência.

A SEÇÃO Entrevista traz depoimentos daqueles e daquelas que, ao longo destes 20 anos, deram materialidade à revista Trabalho Necessário. Falamos, aqui, dos editores e editoras. A “conversa” girou em torno de cinco perguntas iguais para todos e todas, no sentido de recuperar desde as motivações que os/as fizeram assumir tal tarefa até as alegrias, as dificuldades e os desafios que vivenciaram no processo de colocar a TN no ar.

A SEÇÃO Memória e Documento traz um precioso texto de Maria Ciavatta, no qual a autora destaca a importância da Memória e sua existência na vida humana, e dos Documentos, que servem não só aos indivíduos, mas às instituições com seus coletivos, ideias, interesses e divergências. A autora destaca que a memória é fragmentada e que seu sentido depende da organização desses fragmentos. Nessa perspectiva, ressalta a importância da revista Trabalho Necessário, expressão da atividade científica do NEDDATE – núcleo de pesquisa formado por professores e estudantes, com colaboração ativa com a ANPEd, a Associação de Educadores da América Latina e Caribe (AELAC) e o Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) – e da seção Memória e Documentos. Para Ciavatta, não reiteramos a memória para repetir o passado, mas para mantermos as conquistas do presente, socializar a produção científica e “[...] aprofundar o sentido do trabalho como fonte de conhecimento” (p. 6). O texto de Maria Ciavatta atualiza outro que o acompanha na seção, intitulado “31 anos do Neddate – o resgate da memória ‘para não apagar o futuro’”, de sua autoria e de Gaudêncio Frigotto. Essa republicação resgata o percurso histórico do Neddate, sublinhando seus personagens, suas relações político- institucionais e sua produção acadêmico-científica no período. A revista Trabalho Necessário é aqui lembrada como “a concretização da ideia que vinha há muito tempo sendo gerada” (p. 16).

Os dois artigos da SEÇÃO Demanda Espontânea abordam o problema da ofensiva burguesa em direção à educação a partir de categorias como financeirização, empresariamento e trabalho-educação. No artigo intitulado “Financeirização da educação superior, oligopólios educacionais e produtivismo acadêmico: contexto mercantil da educação”, as autoras Luciene da Silva Nascimento, Andreia Gomes da Cruz e Aline de Carvalho Moura, partindo de uma discussão sobre o progressivo redirecionamento dos subsídios públicos para o capital privado, buscam analisar, em uma perspectiva histórico-social, o processo de financeirização e de formação de oligopólios na educação superior privada. Segundo elas, esse processo aprofunda

uma visão produtivista da ciência, consolidando-se como um estimulador da mercantilização das pesquisas no âmbito dos cursos de pós-graduação. As autoras concluem que essas novas configurações no campo da educação não devem ser estudadas isoladamente, e sim compreendidas no bojo das determinações que atravessam o Estado e a sociedade civil.

Completando a seção, Bruno Gawryzsewski, Lívia Mouriño de Mello e Natália Silva Pereira, no artigo “O caráter do Novo Ensino Médio para a qualificação da força de trabalho em tempos de crise do capital”, estimulam reflexões sobre a formação da classe trabalhadora, a partir de uma mirada crítica a respeito da contrarreforma do ensino médio (Lei nº 13.415/20178). Colocando em perspectiva o discurso empresarial que prega urgência na transformação dos sentidos da qualificação dos jovens trabalhadores, com vistas à melhoria da produtividade e da competitividade da indústria, os autores mostram que os projetos de formação defendidos pela burguesia brasileira, em especial a representada pela Confederação Nacional da Indústria, são adequações da classe dominante a uma conjuntura de crise do capital. Calcando-se na teoria do valor em Marx, concluem que o controle dos processos formativos pelos capitalistas atende às necessidades da organização da produção e que, no caso brasileiro, esse controle se relaciona com as limitações e as determinações de uma economia dependente.

É essa história que queremos dividir com vocês neste número 45 da TN, desejando que seu interesse mantenha a revista Trabalho Necessário como uma das importantes contribuições que a universidade pública tem a oferecer para a compreensão crítica da sociedade capitalista e do capitalismo periférico-dependente brasileiro, bem como para a formação de educadores e outros profissionais comprometidos com a transformação social. Nestes 20 anos, foram muitos os desafios e aprendizados acumulados. Que os próximos anos nos encontrem atentos e fortes, coletivamente, para essa tarefa que continua sendo o nosso horizonte como compromisso e utopia!


Niterói, julho de 2023. As Organizadoras


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8 Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13415.htm. Acesso em: 28 jul. 2023.