V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X
Luís Eduardo da Conceição Chagas2
Lia Tiriba3
Refletimos sobre a hipótese cultural “estruturas de sentimentos” de Raymond Williams, tendo em conta a relevância da arte e da literatura como fontes de pesquisa para apreensão de formas de fazer, sentir e pensar de determinados grupos sociais, entendidas como elementos constitutivos do processo histórico. Indicamos que essa categoria também contribui para acessar modos de vida que se manifestam nas relações dos seres humanos com a natureza, no trabalho e na convivência em uma comunidade. Analisamos o romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, articulando “estruturas de sentimentos” aos conceitos de modos de vida, natureza e cultura.
TORCIDO ARADO
Reflexionamos sobre la hipótesis cultural “estructuras de sentimientos” de Raymond Williams, considerando la relevancia del arte y la literatura como fuentes de investigación para comprender las formas de hacer/sentir/pensar de ciertos grupos sociales, entendidos como elementos constitutivos del proceso histórico. Indicamos que esta categoría también contribuye al acceso a modos de vida, que se manifiestan en las relaciones con la naturaleza, el trabajo y la convivencia en el territorio de una determinada comunidad. Analizamos la novela brasileña Torcido Arado, de Itamar Vieira Junior, articulando “estructuras de sentimientos” con los conceptos de modos de vida, naturaleza y cultura.
We reflect on Raymond Williams' cultural hypothesis “structures of feelings”, considering the relevance of art and literature as research sources for understanding ways of doing/feeling/thinking of certain social groups, understood as constitutive elements of the historical process. We indicate that this category also contributes to accessing ways of life, which are manifested in relationships with nature, work and coexistence in the territory of a given community. We analyzed the brazilian novel Crooked Plow, by Itamar Vieira Junior, articulating “structures of feelings” with the concepts of ways of life, nature and culture.
1 Artigo recebido em 29/09/2023. Primeira Avaliação em 06/11/2023. Segunda Avaliação em 16/10/2023. Aprovado em 31/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.60059.
2 Graduando em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói - Brasil; bolsista de Iniciação Científica (Pibic/UFF) na pesquisa “Trabalho-educação, modos de vida e estruturas de sentimentos em comunidades tradicionais”, coordenada pela Profa. Dra. Lia Tiriba (UFF). E-mail: luischagas@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5951266593108817. ORCID: https://orcid.org/0009-0008-4860-1530.
3 Doutora em Ciências Políticas e Sociologia pela Universidade Complutense de Madrid (UCM), Espanha. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói - Brasil. E-mail: liatiriba@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/2006259738336754.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0117-4160.
O modo de produção capitalista tem hegemonia sobre outros modos de produção da existência humana. Ao longo da história do capitalismo, embora resistam, os grupos e as classes sociais que existem “fora” do sistema dominante têm sido submetidos às mediações do capital, o que interfere sobremaneira em seus modos de viver, sentir e pensar o mundo. Desde a chegada dos europeus à América, a intensidade das políticas liberais, neoliberais e, agora, em particular, de cunho neofascista, tem afetado ou destruído o sociometabolismo dos seres humanos com a natureza. Foi o que aconteceu, por exemplo, com o rompimento da Barragem do Fundão em Mariana (MG), no final de 2015, que culminou na morte de 19 pessoas, contaminou a bacia do Rio Doce com rejeitos de mineração, deixando milhares de pessoas desabrigadas. Como expressou um trabalhador da pesca, “não existe pescador sem pesca”; por isso, em pesquisa junto a comunidades pesqueiras no estado do Espírito Santo (onde deságua o Rio Doce), Mahalia Aquino (2023) perguntou: se o trabalho é a forma como os seres humanos estabelecem relações com a natureza, como pode um ribeirinho viver sem rio?
Considerando a unidade dialética e, portanto, contraditória entre ação/pensamento/ação, entre modo de fazer, sentir e pensar – o que caracteriza a práxis – teríamos que nos perguntar até quando os seres humanos e outros seres da natureza vão suportar os processos de reprodução ampliada do capital. No contexto em que a produção destrutiva do capital leva às últimas consequências as contradições entre trabalho, capital e vida, torna-se importante o conhecimento de modos de vida calcados em relações sociais mais igualitárias entre os seres humanos e de respeito com a natureza, da qual somos parte integrante.
Neste texto, refletimos sobre a hipótese cultural “estruturas de sentimentos” de Raymond Williams, tendo em conta a relevância da arte e da literatura como fontes de pesquisa para a apreensão de formas de fazer, sentir e pensar de determinados grupos sociais, entendidas como elementos constitutivos de processos históricos estruturados. Indicamos que essa categoria também contribui para acessar modos de vida que se manifestam nas relações dos seres humanos com a natureza, no trabalho e na convivência no território de uma determinada
comunidade. Analisamos o romance brasileiro Torto Arado, de Itamar Vieira Junior4, articulando “estruturas de sentimentos” aos conceitos de modos de vida, natureza e cultura.5
Como construto, “estruturas de sentimentos” foi utilizado por Williams em estudos que envolvem literatura de época, como romances ingleses dos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, nos quais analisa, nas relações cidade/campo, os aspectos do cotidiano de vida e trabalho das pessoas, neles incluídos seus sentimentos quanto às mudanças que vão ocorrendo ao longo da formação social, econômica e cultural do capitalismo na Inglaterra. Como Williams, compreendemos que a categoria “estruturas de sentimentos” constitui-se como uma “hipótese cultural”, no sentido de que pode contribuir para a apreensão dos processos históricos. E seguindo E.P. Thompson (1981) quanto a procedimentos teórico-metodológicos que pressupõem a formulação de “hipóteses sucessivas”, aventamos uma segunda hipótese: a de que a categoria “estruturas de sentimentos” também pode contribuir para acessar elementos constituintes de modos de vida que, ao longo da história, vão se tornando hegemônicos nos territórios onde se tecem as chamadas comunidades tradicionais.
Seguindo a trilha de Raymond Williams – galês, sociólogo, escritor, crítico literário que, juntamente com E.P. Thompson foi membro do grupo de historiadores marxistas do Partido Comunista da Grã-Bretanha – trazemos à discussão o romance Torto Arado, de Itamar Vieira Junior (1° edição, 2019). Entendemos que essa obra apresenta em sua narrativa um enredo propício para a apreensão da categoria “estrutura de sentimentos” e sua articulação com a categoria “modos de vida”, uma vez que Vieira nos revela relações com a natureza, relação de trabalho e de convivência que se circunscrevem no contexto de luta pela reprodução ampliada da vida, fundada no valor de uso e no valor-comunidade. Como hipótese cultural (WILLIAMS, 1979), o romance Torto Arado revela-nos necessidades e expectativas
4 Itamar é graduado e mestre em geografia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Seu doutorado ocorreu na mesma instituição, porém na área de Estudos Étnicos e Africanos (2017). Sua estreia na literatura se deu com o livro de contos Dias (Caramurê produções, 2012), que venceu o XI Prêmio Projeto de Arte e Cultura. Foi seguido por A oração do carrasco (Mondrongo, 2017), vencedor do prêmio Humberto de Campos da União Brasileira de Escritores; pelo romance Torto Arado (Todavia, 2018), vencedor do prestigiado prêmio português Leya e por ainda mais um livro de contos chamado Doramar ou a odisseia: histórias (Todavia, 2021) e por seu mais recente romance Salvar o fogo (Todavia, 2023).
5 Esse texto é resultado parcial da pesquisa “Trabalho-educação, modos de vida e estruturas de sentimentos em comunidades tradicionais”, coordenada pela Profa. Dra. Lia Tiriba (UFF), com participação de Luís Eduardo da Conceição Chagas, como bolsista de iniciação científica (PIBIC/UFF).
(THOMPSON, 1981), ou seja, condições objetivas e subjetivas que em determinado território dão origem a experiências de classe e à formação de consciência de classe, redimensionando os poderes no território.
O enredo de Torto Arado é dividido em três partes, intituladas “Fio de Corte”, “Torto Arado” e “Rios de Sangue”, respectivamente. Itamar Vieira Junior inicia sua narrativa por volta de meados do século XX. Localizada no interior da Bahia, a fazenda Água Negra é o palco dos acontecimentos da história, uma propriedade da família Peixoto e morada de uma comunidade de ex-escravizados e seus descendentes que encontraram naquele território um local onde poderiam se estabelecer. Acontece que, após a abolição da escravidão no Brasil em 1888, essas pessoas se viram em situação de desalojamento e, assim, acabam por aceitar as condições deprimentes impostas pelos proprietários da fazenda apenas para que pudessem sobreviver ali, através do trabalho de suas próprias mãos.6 Acompanhamos o desenrolar da narrativa através dos olhos e dos pensamentos das irmãs gêmeas Bibiana e Belonísia, moradoras da fazenda, e dos chamados “encantados”7.
Ainda que uma obra fictícia, o romance apresenta uma contextualização histórica verídica que envolve um dos principais momentos da história do Brasil e, em particular, de um grupo social que experimentou (e ainda experimenta) uma época conturbada de incertezas e sofrimento. Assim, a modo de Raymond Williams, nossa intenção é recorrer à categoria “estruturas de sentimentos” para identificar pensamentos e sentimentos que permeiam o cotidiano de vida e de trabalho, as relações dos seres humanos com a natureza, enfim, o modo de vida de homens, mulheres e crianças trabalhadoras de Água Negra; como eles sobreviveram, como
6 Itamar Vieira Junior revelou em entrevistas que seus escritos em Torto Arado foram baseados em sua própria experiência. Baiano de 44 anos e filho de mãe analfabeta e de pai que terminou o ensino médio depois de muitas dificuldades, Itamar vivenciou os dilemas no acesso à educação escolar em sua infância. Em entrevista à rádio Brasil de Fato, o autor disse: “Estou pensando na minha perspectiva familiar mesmo, nos meus laços de parentesco, nas minhas origens [...]. Então eu não diria que eu dou voz aos silenciados. Talvez eu estivesse mesmo entre eles, afinal, essa é minha origem também”. Ver
<https://www.brasildefato.com.br/2023/06/20/itamar-vieira-junior-autor-de-torto-arado-fala-sobre-preco nceito-e-racismo-da-critica>. Acesso em 10 de setembro de 2023.
7 Os “encantados” são figuras importantes na narrativa. Podem ser entendidos como espíritos antigos cultuados no “Jarê”, religião de matriz africana que também se relaciona com cultos indígenas e com o cristianismo. A última parte do romance é narrada por uma encantada chamada “Santa Rita Pescadeira” e por meio dela descobrimos que esses espíritos são originários do continente africano e, aparentemente, acompanharam os escravizados enviados ao Brasil com o tráfico atlântico.
influenciaram e foram influenciados pelos acontecimentos que se deram na fazenda, no seu entorno e nas relações sociais mais amplas.
Para dialogar com o romance Torto Arado, percorremos um longo caminho, organizando o texto em quatro partes. Na primeira, na perspectiva da concepção materialista da história e da cultura, abordamos o conceito de “modos de vida” e suas possíveis articulações com a categoria “estruturas de sentimentos”. Em seguida, procedemos ao estudo de Torto Arado e, por meio de sua narrativa, buscamos localizar as condições de existência dos trabalhadores e das trabalhadoras da fazenda Água Negra, os traços econômicos e culturais e os sentimentos que circundam o enredo e seus personagens naquele contexto histórico de medo, indignação e conflito. Na terceira parte, para enriquecer a discussão sobre Torto Arado, abordamos os conceitos de “natureza” e “cultura” em Raymond Williams. Na quarta e última parte, recuperamos suas reflexões acerca de culturas “emergentes, residuais e dominantes”, conceitos abordados em diferentes obras do autor e relacionados, de alguma forma, com as “estruturas de sentimentos” – categoria que pode nos ajudar a acessar modos de vida em comunidade tradicionais, ainda que em formação.
Em Modo(s) de vida e modos de produção da existência humana: ensaio teórico-metodológico (TIRIBA, 2021), problematizamos a categoria “modos de vida”, a qual ganhou um significado comum no linguajar popular e passou a ser utilizada de forma vaga e imprecisa, remetendo-nos à ideia de mudanças culturais decorrentes de processos de urbanização e industrialização que incidem na vida cotidiana. Ressaltamos que o termo em questão pode ser confundido como sinônimo de “estilo de vida”8 e pode se aproximar do conceito de “meios de vida”9, entre outros.
8 Conceito estudado por Pierre Bourdieu. Segundo Julian Durval (2017), Bourdieu entende esse termo como “práticas dos grupos sociais e das frações de classe em relação ao gosto musical, a preferências de esporte e lazer e a outras formas de consumo de bens materiais e simbólicos, dependendo das condições econômicas e sociais dos sujeitos".
9 Conceito utilizado por Antônio Candido (2010), em Os parceiros do Rio Bonito, para indicar a vida familiar, as formas de subsistência, as representações mentais, as relações de trabalho, a solidariedade e outras formas de sociabilidade que, ao longo do processo de expansão capitalista, vão conformando e transformando a vida do caipira paulista.
Sob (e com) as lentes do materialismo histórico-dialético, seus significados se ampliam se apreendidos como concreto pensado: os modos de vida têm como base material e simbólica o modo de produção que, em uma determinada época, é hegemônico a outros modos de produção da existência humana (TIRIBA, 2021, p. 412). Assim como toda categoria, deve ser entendida na sua materialidade e historicidade, requerendo sua articulação como “conceito de junção” (THOMPSON, 1981), entre eles “estruturas de sentimentos”. Na concepção materialista da história e da cultura, os modos de vida revelam como as pessoas vivem, pensam e sentem o conjunto das relações econômicas, culturais, sociais, ambientais e entre outras, as relações de saber. A análise dos modos de vida requer considerar a centralidade do trabalho na formação humana, tendo em conta a universalidade, a particularidade e a singularidade das experiências históricas individuais e coletivas, todas elas carregadas de tradições, normas, valores e costumes em comum. Requer revelar as relações que os seres humanos, mediadas pelo trabalho, estabelecem entre si, com os seres não humanos e com outros elementos da natureza. Sem dúvida, a questão da forma de propriedade, individual/privada ou coletiva/social, dos meios de produção da vida é um elemento fundamental, estruturante de sentimentos sobre o modo de viver a vida em comunidade, em sociedade.
Carlos Rodrigues Brandão e Maristela Borges (2014, p. 1) explicam o conceito de comunidade a partir de enfoques diversos: comunidade primitiva (autóctone); comunidade tradicional (lugar dos pobres, dos expropriáveis, dos resistentes, em uma situação de fronteira); comunidade de exclusão (formada por desalojados e migrantes pobres, habitantes coletivos de grandes cidades e, de modo geral, escanteada para alguma de terra urbana de sobra); comunidade de adesão (agrupamento ou rede de pessoas que se reúne por escolha mútua para criarem uma unidade de ação social). Comunidade: “[...] o lugar humano da vida”. Vale destacar que a comunidade é um lugar de integração, sociabilidade, tradição e afeto; entretanto, é importante considerar que também é um lugar de hierarquias, conflitos e resistências. Pode ser considerada como uma unidade de produção da vida, como espaço/tempo de relações sociais, cuja materialidade se configura como um território de luta por hegemonia10.
10 Sobre as particularidades de comunidades rurais, por nós entendidas como comunidades tradicionais, ver Alves (2016).
Aspectos dos modos de viver, sentir e pensar de comunidades podem ser conhecidos em Trabalho-educação e (re)estruturação de modos de vida: experiências, lutas e resistências na(s) Amazônia(s) brasileira(s) (SOUZA; MIRANDA, 2022, p. 81). Os autores evidenciam as experiências de luta e resistência de grupos sociais11 que vivem na Amazônia brasileira e que enfrentam, cotidianamente, o desmatamento contínuo da maior floresta tropical do mundo devido aos interesses do agronegócio e à mineração dos territórios, que causam danos inimagináveis ao solo e às águas, além da violência a qual os habitantes dessa região são submetidos, vinda daqueles que desejam intimidá-los. Por meio de entrevistas e rodas de conversa com homens e mulheres de comunidades tradicionais, ressaltam os sentimentos que envolvem os membros dessas comunidades e os elementos da natureza que os cercam. Para eles:
Os modos de vida definem a relação das pessoas com o território em que vivem. Logo, território e modos de vida são categorias que se integram. Nessa relação, o bem-estar comum é um ideal a ser alcançado. A comunidade tem que estar bem, mas a natureza também precisa estar (SOUZA; MIRANDA, 2020, p. 81).
Percebe-se a importância dada pelos membros dessas comunidades à sustentabilidade do ambiente onde habitam e onde seu sustento é produzido e cultivado, visando a reprodução humana e de seus modos de vida. A partir de estudos teóricos e empíricos acerca das formas de estar, pensar e sentir o mundo,
[...] definimos como modo de vida um conjunto de práticas sociais, econômicas e culturais cotidianas compartilhadas por um determinado grupo social no processo de produção da vida material e simbólica. Como expressão da cultura, diz respeito aos costumes, às tradições, aos valores, às crenças e aos saberes que orientam as normas de convivência na vida familiar, no trabalho e em âmbito comunitário (TIRIBA, 2021, p. 414).
Uma série de questões deve ser considerada para uma melhor análise de modos de vida, entre elas: “Mediados pelo trabalho, que relações homens e mulheres estabelecem com a natureza? Qual o objetivo do trabalho? O que produzem e como produzem? Para quê e para quem trabalham? Existe exploração do trabalho?” (TIRIBA, 2021, p. 415). Outras perguntas são fundamentais para a
11 A pesquisa em questão gira em torno de comunidades quilombolas do Forte Príncipe da Beira e de Santa Fé, além de comunidades que se situam na Reserva Extrativista do Rio Cautário. Também foram objetos de pesquisa os assentamentos Morrinhos e Santa Rita, a comunidade tradicional de São Carlos do Jamari e as comunidades que ficam na Reserva Extrativista do Lago Cuniã.
apreensão dos modos de vida, em particular em comunidades tradicionais que perduram no atual contexto histórico, apesar dos limites que lhes impõe o capital:
Como são as relações de convivência no trabalho e em âmbito comunitário? Quais os critérios para distribuir os frutos do trabalho? Que sentidos são atribuídos ao trabalho de produção da vida? Quais são as tradições, os costumes, as crenças e os valores que orientam a vida comunitária? Como a religiosidade se manifesta? Que relações estabelecem com o tempo de trabalho e com o tempo de ócio? Que relações estabelecem com a natureza e com o território onde produzem sua existência? Tendo como referência as unidades domésticas, quais são os parâmetros de qualidade de vida? O que dizem as crianças, os jovens e os adultos sobre a vida em comunidade? O que desejam para si, seus familiares e demais moradores? Quais são os saberes do trabalho? O que a vida ensina? O que a escola ensina? Quais as mediações do capital na conformação das maneiras de fazer, sentir e pensar a vida em comunidade? E em relação ao Estado? Quais são os conflitos, as dificuldades, os desafios e as formas de luta para preservação da vida em comunidade? (TIRIBA, 2021, p. 415).
Nessa perspectiva, entre os elementos objetivos e subjetivos, materiais e simbólicos que constituem os modos de vida, podemos acrescentar a categoria “estruturas de sentimentos”, a qual, para Raymond Williams, constitui-se como fonte de pesquisa histórica.
Rayner Gonçalves Souza, no artigo Estrutura de sentimentos e a compreensão do cenário artístico brasileiro: uma leitura a partir da obra de Marcelo Ridenti, indica que “estruturas de sentimentos”, segundo Raymond Williams,
alude à capacidade de empreender uma leitura sobre os tempos históricos em que se pode perceber uma determinada proximidade entre manifestações artísticas, culturais e científicas capazes de revelar um determinado contexto de produção de ideias (SOUZA, 2017, p. 2).
Para Luciano de Oliveira (2016), Williams trabalhou com as “estruturas de sentimentos” em um grande número de suas obras, mas nunca buscou afirmar uma definição mais concreta, talvez por conta da dificuldade que a ação oferecia em decorrência da complexidade e da generalidade de ocorrências nas quais esse conceito pode ser apontado. Atribui à Drama From Ibsen to Eliot, publicado em 1952, as origens do conceito; posteriormente, ele aparece nos escritos do autor sobre teatro, cinema e literatura. Oliveira atenta para o fato de que Williams analisa diversas obras literárias para identificar as “estruturas de sentimentos” vigentes em determinados povos em certos períodos de tempo, mais especificamente, na
população operária inglesa durante o processo da Revolução Industrial. Da mesma maneira, viaja até a Era Medieval e encontra na roda da fortuna uma “estrutura de sentimentos”. Esses são apenas exemplos que demonstram como o autor galês trabalhou seu conceito, aplicando-o a diferentes épocas e buscando identificar por meio da arte e da cultura elementos morais, filosóficos e éticos que marcaram diversos momentos históricos.
Em meio a seus comentários sobre Reading and Criticism, livro publicado em 1950 e que nunca foi traduzido para o português, Oliveira define o capítulo dedicado às relações entre literatura e sociedade como o mais complexo da obra. Nele, Williams fala sobre seu procedimento ao utilizar a literatura como uma evidência em si, sendo ela a “base sobre a qual se revela elementos da experiência individual no interior de determinada cultura da qual temos apenas registros numéricos, dados frios que tornam a análise apenas abstrata” (OLIVEIRA, 2016, p. 39). Nesse sentido, Williams defende que a literatura deve ser lida levando em consideração seu valor interno.
Escritor, pesquisador e crítico literário, Williams nasceu em Llanfihangel Crucorney, uma aldeia remota no País de Gales, próximo da fronteira com a Inglaterra, em 1921. O galês viu o desenrolar da 2° Guerra Mundial durante sua adolescência, chegando a ir para os campos de batalha nos últimos anos do conflito12. Considera que crescer em um ambiente rural e observar o contraste entre a vida campesina e os grandes centros urbanos enquanto ambos seguiam se modernizando foi uma grande influência que contribuiu com o foco especial que os estudos culturais vieram a ter em suas obras. Isso é revelado em O campo e a cidade (2011), lançado originalmente em 1973, obra em que analisa o desenvolvimento da sociedade inglesa e como isso foi representado na literatura a partir do século XVI. Williams busca localizar a relação entre a perspectiva literária e as mudanças que, efetivamente, ocorreram na sociedade concluindo que as transformações que se deram na sociedade inglesa foram explicitadas na literatura e, como diria Marc Bloch (2001), por vezes de maneira voluntária e por vezes, involuntária. As “estruturas de sentimentos” são citadas no livro já em suas primeiras
12 Após retornar da Segunda Guerra Mundial, ele se formou na Trinity College, em Cambridge. Posteriormente, foi professor na própria Cambridge e em Oxford. Williams também ingressou nas fileiras do Partido Comunista Britânico e se tornaria um dos principais nomes da Nova Esquerda Inglesa, juntamente com Maurice Dobb, Edward Thompson, Dorothy Thompson, Eric Hobsbawm, entre outros.
páginas, porém ficam apenas como uma categoria de análise não definida teoricamente.
Williams (1979, p. 134) considera que as “estruturas de sentimentos” carregam “elementos especificamente afetivos da consciência e das relações”, mas não se trata de “sentimento em contraposição ao pensamento, mas de pensamento tal como sentido e de sentimento tal como pensado”. Nesse sentido, essas estruturas podem ser entendidas como o pensamento influenciado pelos sentimentos e vice-versa, os quais movem e são movidos pelas práticas sociais, em um determinado espaço/tempo histórico, também estruturado. Por sua vez, indo ao encontro da categoria “estruturas de sentimentos” em Raymond Williams, Tiriba (2021, p. 8) afirma que “os modos de vida manifestam as relações que homens e mulheres trabalhadoras mediadas pela memória coletiva e por experiências vividas e herdadas estabelecem com o território em que produzem sua existência”. Assim, considerando a relevância da literatura como fonte histórica, percorremos a obra de Itamar Vieira Junior para localizar, em sua narrativa, os traços históricos, sociais e culturais que nos remetem tanto a “estruturas de sentimentos” como a modos de vida, entendidas como “conceitos de junção” (THOMPSON, 1981).
Torto Arado e a experiência do trabalho de produção da vida
Em Marxismo e Literatura (1979), ao argumentar sobres os diferentes tipos de hegemonia que uma época pode ter, Raymond Williams escreve:
[...] O que temos realmente de dizer, como uma maneira de definir os elementos importantes tanto do residual como do emergente, e como um meio de compreender o caráter do dominante, é que nenhum modo de produção e, portanto, nenhuma ordem social dominante, nunca na realidade, inclui ou esgota toda a prática humana, toda a energia humana e toda a intenção humana (WILLIAMS, 1979, p. 128).
Ambientado no interior da Bahia em meados do século XX, Torto Arado carrega em sua narrativa diversos elementos que justificam essa afirmação de Raymond Williams. A sociedade capitalista, com suas práticas e seus valores, apossa-se de muitos elementos da fazenda Água Negra – o local onde se passa a narrativa – mas nunca consegue destruir a conexão das pessoas com o campo e
com suas atribuições, o amor delas pela terra e pela natureza, nem o trabalho como mediação nos processos de reprodução da vida. Tratemos disso em partes.
O enredo se passa na Chapada Diamantina, na fictícia fazenda Água Negra que se localiza em algum lugar entre os rios Utinga e Santo Antônio. É dito que o personagem Zeca Chapéu Grande viveu em uma fazenda chamada Caxangá junto com seus irmãos e sua mãe, Donana. Eles viviam na condição de moradores que pagavam sua estadia com o trabalho que realizavam, ficando com muito pouco do que produziam para eles mesmos. A situação se complica em um momento de forte estiagem e Zeca parte em busca de uma terra que, segundo tinha ouvido falar, possuía água em abundância. Já trabalhando e vivendo em Água Negra, Zeca traz para a fazenda sua mãe e seus irmãos e depois forma uma nova família ali.
Podemos identificar diferentes “estruturas de sentimentos” relacionadas com as experiências que os trabalhadores da fazenda vivenciam durante a narrativa do livro. Nota-se uma explícita diferença entre a estrutura de sentimentos dos primeiros homens que chegaram a Água Negra para trabalhar e a das gerações seguintes – da qual Bibiana e Belonísia, as protagonistas da narrativa, fazem parte. Elas nasceram quando as regras e os acordos entre os proprietários e os trabalhadores já estavam estabelecidos.
Zeca Chapéu Grande é o pai das duas protagonistas e foi também um dos primeiros moradores da fazenda. Como curandeiro, ele carregou o papel de líder da comunidade e manteve a estabilidade das relações entre os moradores e os proprietários da fazenda durante toda a sua vida. Ao mesmo tempo, ele buscava, de todas as formas possíveis, conceder um futuro melhor a seus filhos e a todos os outros, o que vemos claramente pela maneira como ele buscou a introdução da educação escolar naquelas terras. Ele desejava, acima de tudo, que seus filhos tivessem uma vida melhor do que a que ele teve.
Quem acompanhasse sua vida de lida na terra ou a seriedade com que guardava as crenças do jarê acharia que eram os bens maiores de sua existência. Mas pessoas como nós, quando viam o orgulho que sentia dos filhos aprendendo a ler e do valor que davam ao ensino, saberiam que esse era o bem que mais queria poder nos legar (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 66).
A construção da escola foi um dos momentos mais importantes de Água Negra, realizada pelos próprios moradores da fazenda, os responsáveis pelo crescimento de absolutamente tudo que havia ali. Foi graças à busca com afinco de
Zeca Chapéu Grande pela educação escolar que ela pode, finalmente, ser introduzida naquele local, o que nos faz perceber que, mesmo o homem que muito prezava pela manutenção das relações ali existentes, teve um papel essencial no desenvolvimento da mentalidade dos mais jovens e da população local. Ele teve um papel no desenvolvimento das novas “estruturas de sentimento”, indicando que as práticas sociais têm um papel importante na estruturação dos sentimentos.
Os primeiros sentimentos estruturados se baseiam, sobretudo, em uma conformação com qualquer tipo de imposição dos patrões, pois existia o medo, entre os trabalhadores, de perder a moradia naquele local que concedia a eles uma casa fixa e terra para plantar suas próprias hortas. O medo aparece então como um elemento real da “estrutura de sentimentos”, sendo justificado dentro do próprio livro, como será abordado posteriormente.
Nesse contexto, os pensamentos dos moradores de Água Negra – influenciados por seus sentimentos e vice-versa – em relação às suas situações são ilustrados no seguinte trecho:
[...] Poderia ficar naquelas paragens, sossegado, sem ser importunado, bastava obedecer às ordens que lhes eram dadas. Vi meu pai dizer para meu tio que no tempo de seus avôs era pior, não podia ter roça, não havia casa, todos se amontoavam no mesmo espaço, no mesmo barracão (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 41).
Assim, apesar de a população trabalhadora de Água Negra ser a responsável por todo o cuidado e trabalho daquela terra, seus integrantes ainda carregavam, em suas mentes, a percepção de que eles eram apenas hóspedes, empregados naquele local e que poderiam ser castigados sendo mandados embora por qualquer deslize. Observamos um sentimento geral de subordinação aceita. Isso pode ser visto, por exemplo, no trecho a seguir:
Em troca, poderia se construir uma tapera de barro e taboa, que se desfizesse com o tempo, com a chuva e com o sol forte. Que essa morada nunca fosse um bem durável que atraísse a cobiça dos herdeiros. Que essa casa fosse desfeita de forma fácil se necessário. Podem trabalhar – contavam nas suas romarias pelo chão de Caxangá –, podem trabalhar, mas a terra é dessa família por direito. Os donos da terra eram conhecidos desde a lei de terras do Império, não havia o que contestar (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 183).
Entendemos que os sentimentos vão se estruturando e se reestruturando em um determinado espaço/tempo histórico. Os primeiros trabalhadores que chegaram
à fazenda passaram pelo processo de estruturação dos sentimentos em relação à vida em Água Negra até considerarem o que tinham como “suficiente”.
No prefácio do volume 1 de A formação da classe operária inglesa, Thompson (2021) apresenta sua concepção de “classe” como um fenômeno histórico, baseado nos acontecimentos que envolvem a experiência e a consciência dentro das relações sociais. A classe é entendida como uma formação social e cultural, resultante de processos que ocorrem em cada período histórico. Além disso, a identificação de um grupo social como uma classe se relaciona com a defesa de interesses comuns entre os membros desse grupo, em oposição aos interesses de outro grupo que se difere ou até se opõe, inserido dentro de um mesmo contexto social. O autor define que:
[...] a experiência de classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente. A consciência de classe é a forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais (THOMPSON, 2021, p. 10).
Também podemos nos voltar para o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira. Em A Geografia agrária e as transformações territoriais no campo brasileiro, o autor discorda de muitos teóricos, ao considerar que o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro acontece de modo contraditório e combinado13. Nesse sentido, o autor defende que, na realidade, “os camponeses continuam lutando para conquistar o acesso às terras em muitas partes do Brasil”. Eles passaram a lutar para “continuarem sendo camponeses”.
Ao mesmo tempo que esse desenvolvimento avança reproduzindo relações especificamente capitalistas (implantando o trabalho assalariado pela presença no campo do bóia-fria), ele (o capitalismo) produz também, igual e contraditoriamente, relações camponesas de
13 A discordância entre Oliveira e outros geógrafos se dá pelo fato de que alguns acreditam que no Brasil houve feudalismo e defendem que seria necessário acabar com essas relações feudais e estabelecer o trabalho assalariado em maior escala. De acordo com Oliveira, esses geógrafos entendem que “a luta pela reforma agrária seria um instrumento que faria avançar o capitalismo no campo”. Outra vertente considera que o campo brasileiro já está se desenvolvendo segundo lógicas capitalistas e que, em breve, os camponeses irão desaparecer, pois eles seriam um “resíduo social” que o capitalismo superaria. Essa teoria afirma a inevitável conversão dos camponeses em proletários. Segundo Oliveira, o que acontece é que esses teóricos possuem uma “concepção teórica que deriva de uma concepção política de transformação da sociedade capitalista”. Ou seja, eles assumem que a chegada do socialismo só seria possível se a sociedade capitalista fosse formada por apenas duas classes sociais rivais: a burguesia e o proletariado. Logo, acabam confundindo suas teorias acadêmicas com seus ideais políticos (OLIVEIRA, 1998, p. 70-72).
produção (pela presença e aumento do trabalho familiar no campo) (OLIVEIRA, 1998, p. 73).
O autor ainda resgata uma bela citação de Marx:
[...] o modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, política e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a sua consciência (MARX, 1974 apud OLIVEIRA, 1998, p. 69).
Com isso, fica claro que as experiências das gerações de moradores de Água Negra não são as mesmas, o que, inevitavelmente, repercute na formação da consciência de classe. Na narrativa construída por Vieira Junior, o processo de reestruturação de sentimentos que se deu junto às novas gerações – indo desde os nascidos na fazenda até aqueles que chegaram lá jovens – é marcado pela não aceitação das explorações vividas na fazenda. São sentimentos de indignação que existiam há muito tempo, mas que encontram certa organicidade e materialidade quando Severo, primo e esposo de Bibiana, volta para a fazenda trazendo consigo suas experiências e seus ideais e, ao compartilhá-los com todos, interfere no ambiente. Interessante notar que Severo não nasceu em Água Negra. Severo foi com sua família para lá no início de sua adolescência, ou seja, ele era como um “estrangeiro” introduzido naquele ambiente estranho. Ambiente ao qual ele se adaptou, porém nunca deixou de questionar. Sempre foi ambicioso e não conformado, como é possível observar em uma de suas conversas com Bibiana, uma das narradoras de Torto Arado:
Ele se sentia à vontade para falar sobre seus sonhos, tinha planos de estudar mais e não queria ser empregado para sempre da Fazenda Água Negra. Queria trabalhar nas próprias terras. Queria ter ele mesmo sua fazenda, que, diferente dos donos dali que não conheciam muita coisa do que tinham, que talvez não soubessem nem cavoucar a terra, muito menos a hora de plantar de acordo com as fases da lua, nem o que poderia nascer em sequeiro e várzea, ele sabia de muito mais (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 72).
Neste ponto do livro, vemos Bibiana sendo provocada a pensar um pouco além. Severo a influencia a considerar novas possibilidades. Bibiana é apenas a primeira de muitos outros que seriam inspirados por Severo. Ele teve um papel que quase podemos definir como o de um “influenciador revolucionário”, principalmente após a morte de Zeca Chapéu Grande e a venda da fazenda, e acabou tendo uma
importância imensurável para aquela população. Vemos isso em Zezé, irmão mais novo de nossas protagonistas, que, em certo momento, faz questionamentos a Zeca Chapéu Grande:
Um dia, meu irmão Zezé perguntou ao nosso pai o que era viver de morada. Porque não éramos também donos daquela terra, se lá havíamos nascido e trabalhado desde sempre. Por que a família Peixoto, que não morava na fazenda, era dona? Por que não fazíamos daquela terra nossa, já que dela vivíamos, plantamos as sementes, colhíamos o pão? Se daí tiramos nosso sustento (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 85).
Eram dúvidas sinceras de alguém que nasceu naquele ambiente e sempre viveu naquela situação, mas que enfim vocalizava seus questionamentos porque já entendia que as coisas não precisavam ser daquela forma. Na sequência, o jovem é então repreendido por seus questionamentos por Zeca Chapéu Grande, que volta a relembrar o quão difíceis eram as coisas antes da fazenda e que o importante era aceitar as condições atuais para que eles não voltassem àquela situação terrível de falta de moradia do pós-abolição. A diferença nos sentimentos entre os mais velhos e os mais jovens se revela na página seguinte:
Ele [Zezé] não comentava, mas continuou a indagar sobre as mesmas questões, continuava a expor suas ideias. Dos mais velhos ouviu os mesmos argumentos defendidos por Zeca. Dos mais novos ouviu que seus questionamentos faziam sentido, que seus pais, avós, morreram sem possuir nada (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 186).
É dito popularmente que um “desejo de liberdade” cresce entre as novas gerações, o que até mesmo pode colocar em oposição pais e filhos de uma mesma moradia. Esse é um explícito caso de “estruturas de sentimentos” em conflito, a tradicional e a emergente. Nesse mesmo capítulo do livro, temos a primeira menção à palavra “quilombolas” e, mais pelo fim do livro, Bibiana explica o motivo pelo qual aquelas pessoas passaram a se classificar dessa forma.
Disse que era professora, casada por muitos anos com um militante. Disse que era quilombola. Escutou que ninguém nunca havia falado sobre quilombo naquela região. ‘Mas a nossa história de sofrimento e luta diz que nós somos quilombolas’, respondeu, tranquila, diante do escrivão e do delegado (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 256).
Nesse ponto do enredo, já avançado, temos um grande número de moradores de Água Negra ativamente lutando por seus direitos. Com o dinheiro da
aposentadoria dos mais velhos e com as mãos fortes dos mais jovens, começam a substituir as casas de barro por casas de tijolos. Fortalecem suas bases em uma demonstração de que sua permanência ali não seria passageira. O medo do desalojamento que sobreveio após a venda da fazenda foi um dos principais motivos que levou essa população a mudar de postura, reestruturando seus sentimentos. E tudo isso aconteceu em um terreno repleto de indignação.
Reunidos com Bibiana, decidiram que se tivesse a ordem de um juiz – eles acreditavam que era possível pela influência que Salomão tinha entre os ilustres cidadãos da região –, deitariam no chão diante de suas casas para impedir os tratores de demolir. Que nenhuma família desampararia a mais próxima, independente das diferenças que guardavam no dia a dia. Juntos resistiriam até o fim (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 256).
Outro importante aspecto do romance é expresso em Belonísia. Ela era voltada aos saberes do campo, que era com o que mais se identificava. Sabia ler e escrever principalmente graças a sua mãe, já que frequentou a escola criada na fazenda por pouco tempo e logo a deixou de lado para trabalhar com seu pai nas matas, aprendendo sobre as ervas, as raízes, os animais, as chuvas e as estações. Essa irmã trabalhava principalmente com suas mãos nos campos. Interessante notar essas diferenças nos sentimentos entre as duas irmãs, que nasceram e cresceram juntas.
Diferente de Bibiana, que falava em ser professora, eu gostava mesmo era da roça, da cozinha, de fazer azeite, e de despolpar buriti. Não me atraia a matemática, muito menos as letras de dona Lourdes. Não me interessava por suas aulas em que contava a história do Brasil, em que falava a mistura entre índios, negros e brancos, de como éramos felizes, de como nosso país era abençoado. Não aprendi uma linha do Hino Nacional, não me serviria, porque eu mesma não posso cantar (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 97).
Através dos olhos e dos pensamentos de Belonísia vemos a história se desenrolar na parte 2 do livro, intitulada “Torto Arado”, na qual é recuperado o acidente que sofre essa personagem. Quando criança, ela tem sua língua cortada acidentalmente por uma faca afiada, o que culmina na impossibilidade da personagem de se comunicar oralmente. Todos os sons de sua boca saíam distorcidos, mal formulados. Como é ilustrado quando ela tentava dizer sua palavra favorita, “arado”, resultando sempre em um “arado torto”. Esse acidente foi um dos
eventos que mais afetou seu desenvolvimento, levando-a a se tornar uma personagem mais introspectiva e com uma ligação muito forte com a terra. Assim como Bibiana, a irmã Belonísia é uma personagem que se destaca em uma comunidade na qual se pressupunha que uma mulher viúva e sem filhos continuaria vivendo sozinha, tendo a companhia apenas de suas plantações. Sua valentia se destacava: “Que se atrevesse a vir me agredir que faria o mesmo com sua carne: a faria se soltar da face com um golpe apenas. Antes que qualquer homem resolvesse me bater, lhe arrancaria as mãos ou a cabeça, que não duvidassem de minha zanga” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 121).
Os pensamentos de Belonísia evidenciam as relações entre seres humanos/natureza mediadas pelo trabalho e a íntima conexão que aquelas pessoas tinham com a terra. Uma das passagens que nos chama a atenção é quando o autor diz que as farturas das plantações provenientes das boas épocas de colheita coincidiam com uma época em que muitas crianças nasciam: uma interessante maneira de articular a vida que sai da terra com a produção da vida humana. “Depois do fim da estiagem, nasceram crianças como orelha-de-pau em troncos apodrecidos nos charcos que se tornaram a vazante. Passei a acompanhar Salú quase toda semana para ajudar as mulheres no parto” (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 105).
Ao realizar a reconstrução histórica do conceito de “cultura”, Williams (1979) apresenta uma definição contrária à ideia de “civilização” formulada após a Revolução Francesa e que faz referência apenas ao continente europeu. Atravessando desde Rousseau até o movimento romântico, “cultura” adquire o sentido de um “processo de desenvolvimento íntimo”, sendo relacionados a ela então elementos como família, arte, vida pessoal e religião. Acrescenta-se ainda, concepções mais antigas ligadas à cultura, como “modos de vidas totais” ou sistemas de valores de diferentes grupos.
Nesse sentido, é possível identificar diversos elementos da cultura da comunidade de trabalhadores de Água Negra. As famílias são sempre numerosas. O homem sai para trabalhar na roça e a mulher realiza as tarefas de casa e cuida dos filhos. Vemos que a violência doméstica poderia ocorrer, o que a população local via
com maus olhos, porém se conformava com a ocorrência. É comum a ideia de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Assim, nota-se claramente a influência do patriarcado.
A religiosidade se expressa, principalmente, no culto aos “encantados”. Esses aparecem, por vezes, como personagens da história e acompanhamos até mesmo os seus pensamentos em momentos nos quais relembram os ciclos da vida que observaram ao longo dos séculos, assim como a tragédias e sofrimentos diversos que viram os escravizados serem submetidos. Os encantados se mostram como espíritos eternos que possuem a capacidade de tomar corpos humanos, porém, na história, estão gradualmente sendo esquecidos. Outra característica relevante é a sua aparente conexão com a natureza. Os encantados parecem, muitas vezes, algum tipo de manifestação mística da natureza.
Nesse sentido, podemos recorrer novamente a Williams para dissecar as ideias de natureza presentes em Torto Arado. Assim como o autor faz com “cultura”, o conceito de “natureza” também recebe uma reconstrução histórica e sua utilização inicial, segundo o autor, parte da ideia de natureza como a constituição essencial do mundo. Com o passar dos séculos, o significado de natureza, enquanto conceito foi repaginado e assumiu novos aspectos conforme novas sociedades surgiam e as mais antigas se desenvolviam.
Com esses poucos exemplos, temos toda uma gama de significados: desde a natureza como uma condição primitiva anterior à sociedade humana; passando pelo sentido de uma inocência original na qual houve uma queda e uma maldição que exige redenção; passando pelo sentido particular de uma qualidade de nascimento, como na raiz latina; passando também pelo sentido das formas e moldes da natureza que podem paradoxalmente ser destruídos pela força natural do trovão; até a forma simples e persistente da deusa personificada, a própria Natureza (WILLIAMS, 2011b, p. 96).
A discussão acerca do conceito de natureza se acentua a partir do século
XVIII com a participação de diversos intelectuais, como Hobbes e Locke e, em suma, a natureza passa a ser vista como separada do ser humano. Graças a certos marcos da humanidade, como o desenvolvimento de técnicas agrícolas e a Revolução Industrial, as pessoas passam a ser vistas, por muitos autores, como tendo o poder de operar esse conjunto de objetos que seria a natureza. Os críticos a esse tipo de concepção formulam então um novo sentido de natureza, que seria
“tudo o que não era humano, tudo o que não fora tocado ou estragado pelo homem: a natureza como os locais solitários, como o selvagem” (WILLIAMS, 2011b, p. 103).
Enfim, cabe-nos apenas ressaltar que Williams considera que “a ideia de natureza contém, embora muitas vezes de modo despercebido, uma quantidade extraordinária da história humana” (WILLIAMS, 2011b, p. 89), o que o levou a concluir que a ideia de natureza é a ideia do ser humano, ou seja, a concepção humana do que é a natureza reflete os valores – ou os sentimentos estruturados – dos diferentes grupos e sociedades. A natureza é a projeção das ideias dos seres humanos sobre ela.
Em Torto Arado, “natureza” não aparece como conceito, não é teorizada. Entendemos sua concepção através dos pensamentos e, mais ainda, dos sentimentos dos personagens, principalmente, de Belonísia. Natureza é vista com alegria e gratidão, como fonte de alimento, como observamos nos momentos de pesca e nas passagens em que os personagens colhem os frutos daquilo que plantaram no solo. Natureza também é sentida como tristeza e sofrimento. É entendida como indomável e cruel muitas vezes, com os vendavais e as cheias dos rios, que destruíam plantações inteiras; ou nos momentos de seca em que nada crescia do chão, e o que estava vivo em cima, descia sem vida. A natureza pode ser vista como fonte de justiça e socorro, era a ela que as pessoas recorriam quando precisavam de ajuda, clamando pela intervenção dos encantados para que concedessem alívio e correção da exploração praticada contra os trabalhadores da fazenda. Enfim, a natureza era vista, acima de tudo, com respeito. Uma “estrutura de sentimentos” se manifesta na concepção, nem sempre oralizada, que aquela comunidade de trabalhadores tinha da natureza. Isso é expresso em diversas passagens do livro, entre elas, nesta sobre a relação entre Bibiana e Severo:
Tudo foi crescendo de forma tão pujante que era como se meu corpo se guiasse sozinho, e Severo agia da mesma forma na trama em que estávamos enredados. Naquela terra mesmo, entranhada da secura da falta de chuva, deixamos nossos suores para que lhe servisse de alívio. O silêncio da ausência dos pássaros, dos animais que migravam para onde havia água, foi rompido por nossos sussurros. Depois de tanto ouvirmos falar sobre as crianças mortas, a natureza, misteriosa e violenta, nos impelia para conceber a vida (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 56).
Outra passagem que podemos citar sobre natureza é quando Belonísia está relembrando os ensinamentos que seu pai, Zeca Chapéu Grande, lhe passou:
Com Zeca Chapéu Grande me embrenhava pela mata nos caminhos de ida e de volta, e aprendia sobre as ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam. Aprendia que tudo estava em movimento – bem diferente das coisas sem vida que a professora mostrava em suas aulas. Meu pai olhava para mim e dizia: ‘O vento não sopra, ele é a própria viração’, e tudo aquilo fazia sentido. ‘Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente não se movimenta, não tem vida’, ele tentava me ensinar. Atento ao movimento dos animais, dos insetos, das plantas, alumbrava meu horizonte quando me fazia sentir no corpo as lições que a natureza havia lhe dado (VIEIRA JUNIOR, 2019, p. 72).
O historiador Walter Fraga Filho (2004) defende que, após a promulgação da Lei Áurea, os então ex-escravizados tomaram diferentes decisões. Obviamente, muitos abandonaram os engenhos de açúcar para buscar melhores condições de vida em outros locais, ou para voltar para perto de seus familiares. Ocorreu assim um grande número de viagens para o continente africano, enquanto outros buscaram se estabelecer em comunidades urbanas, o que gerou uma série de conflitos. Entretanto, muitos continuaram a residir nos locais onde nasceram e trabalharam até aquele momento, porém demarcando limites às ações dos senhores e estabelecendo requisitos mínimos, que seriam o fim dos castigos físicos e do trabalho sem remuneração.
De forma contraditória, diversas motivações podem ter sido decisivas. Segundo Filho, uma delas teria sido o apego emocional das pessoas a esses lugares, principalmente em relação às memórias positivas construídas no mundo dos engenhos, pois ele “não guardava apenas a memória dos dias duros da escravidão, era também testemunho do esforço incessante para conquistar espaços e para cultura de deuses e santos” (FILHO, 2004, p. 239). Ao longo dos anos de escravidão, segundo o autor, muitos escravos conquistavam direitos resultantes de acordos feitos com os senhores, como o acesso a sua própria moradia e a possibilidade de constituir família. Ir embora dali também poderia significar deixar tudo para trás. Além disso, o trabalho nas lavouras de cana já era conhecido por todos eles, o que lhes concedia, ao menos, uma garantia de trabalho. Filho (2004) argumenta que a permanência nas antigas propriedades escravistas também foi
uma escolha estratégica para que essas pessoas pudessem sobreviver no pós-abolição.
Nos anos que se seguiram à abolição, as condições climáticas e a conjuntura econômica e social não foram favoráveis a quem pretendia migrar para outras localidades. Possivelmente a seca que assolou a Bahia entre a segunda metade de 1888 e 1890, o desemprego, a carestia de gêneros e a fome não motivaram grande fluxo migratório do Recôncavo para outras regiões da província. Além disso, depois do fim do cativeiro, intensificaram-se a repressão policial e o preconceito em relação aos indivíduos egressos da escravidão (FILHO, 2004, p. 238).
Para se definirem como homens e mulheres livres no mundo dos engenhos, eles passaram a se identificar como “moradores”, “roceiros” ou “lavradores”, numa tentativa de se distanciar do antigo termo atribuído a eles, o de “escravos”.
Um dado também interessante de se destacar é que os registros de nascimento feitos por volta do fim do século XIX e início do século XX revelam um grande número de mulheres que deram à luz ainda vivendo na casa de seus pais. Filho considera que isso pode indicar que as gerações mais novas não possuíam a mesma garantia de acesso a terras, ou à moradia como a que havia nos engenhos, o que dificultava ainda mais a situação dos ex-escravizados e de seus descendentes no pós-abolição (Filho, 2004, p. 295-296).
Lúcio Kowarick, em Trabalho e Vadiagem (1987), aborda a questão do grande fluxo migratório de trabalhadores do exterior para o Brasil, durante os séculos XIX e
XX. Argumenta que a crescente reserva de mão de obra que se formou no país acabou prejudicando os atores nacionais na hora de conseguir se firmar em algum trabalho. Kowarick chega a considerar que muitos imigrantes se apressaram em direção às plantações, quando viram os então ex-escravizados abandonando-os após a abolição em 1888. E ainda, por não encontrarem opções de sobrevivência, muitos escravizados acabavam retornando aos cafezais:
É preciso, nesse sentido, frisar que o assim chamado elemento nacional, após a Abolição, tendeu a ser absorvido pelo processo produtivo só em áreas de economia estagnada, onde a imigração internacional foi pouco numerosa ou, até mesmo, nula. [...] O imigrante deixou poucas oportunidades para os nacionais que passaram a realizar tarefas mais árduas e de menor remuneração, como o desbravamento e preparo da terra, e, praticamente, extinguiu as possibilidades de emprego para os ex-escravos (KOWARICK, 1987, p. 95).
Raymond Williams acredita que o termo “estruturas de sentimentos” pode ser definido como “experiências sociais em solução”. Indica que esses sentimentos foram estruturados a partir das experiências dos grupos sociais e aqui, em particular, a partir das experiências de trabalho e de classe vividas por homens e mulheres trabalhadoras. O autor afirma a existência de grande complexidade na relação de “estruturas diferenciadas de sentimento em classes diferenciadas”. Assim, o aparecimento de novas “estruturas de sentimentos” se conecta com as transformações que ocorrem nas classes sociais, seja na forma de ascensão de uma classe, seja nos processos de rompimento, contradição e mutação que podem ocorrer dentro de uma mesma classe (WILLIAMS, 1979, p. 136-137). Nesse sentido, os conceitos de culturas dominantes, residuais e emergentes, trabalhados por Raymond Williams em Marxismo e Literatura, também podem ser incluídos nessa análise. Em suma, cada um desses “tipos de cultura” diz respeito à posição que uma cultura possui na sociedade em relação às outras, tendo em conta a base material.
Entendemos que as condições nas quais a população de Água Negra trabalhava e vivia podem ser consideradas como uma cultura residual, ou seja, uma cultura efetivamente formada no passado, durante o período da escravidão, mas que é ainda efetiva dentro de uma nova cultura, a capitalista, a dominante. A exploração do trabalho é claríssima e as pessoas se sentem sem alternativas, a não ser continuar ali para que possam sobreviver. Esses são aspectos de uma cultura residual escravista que foram incorporados pela cultura dominante atual, capitalista.
Da mesma forma, o meio de vida dos trabalhadores da fazenda, baseado no trabalho braçal nas roças, produzindo diretamente seu próprio alimento também faz parte de uma cultura residual incorporada pela cultura dominante, já que, em meados do século XX, o capitalismo já era a cultura hegemônica. Nesse caso, a incorporação se deu também por meio da exploração do trabalho dessa população como uma forma dos proprietários da fazenda obterem lucro. Em Cultura e Materialismo (2011), no capítulo no qual fala sobre base e superestrutura, Raymond Williams tece considerações sobre as maneiras, as condições e os motivos pelos quais a cultura dominante pode anexar uma cultura residual.
Uma cultura residual está geralmente a certa distância da cultura dominante efetiva, mas é preciso reconhecer que, em atividades culturais reais, a cultura residual pode ser incorporada à dominante. Isto porque alguma parte dela, alguma versão dela – sobretudo se o resíduo é proveniente de alguma área importante do passado – terá
de ser, em muitos casos, incorporada se a cultura dominante quiser fazer sentido nessas áreas. Também porque, em certos aspectos, uma cultura dominante não pode permitir que muitas dessas práticas e experiências fiquem de fora de seu domínio sem correr certo risco (WILLIAMS, 2011a, p. 56-57).
Uma questão a se levantar é se uma cultura residual incorporada pela dominante não se tornaria então apenas um elemento da cultura dominante. Sobre culturas emergentes, Raymond Williams escreve:
O que importa, finalmente, no entendimento da cultura emergente, em distinção da cultura dominante e residual, é que ela não é nunca apenas uma questão de prática imediata. Na verdade, depende crucialmente de descobrir novas formas ou adaptações da forma. Repetidamente, o que temos de observar é, com efeito, uma emergência preliminar, atuante e pressionante, mas ainda não perfeitamente articulada, e não o aparecimento evidente que pode ser identificado com maior confiança (WILLIAMS, 1979, p. 129).
Já a emergência de uma “consciência de classe” – seguindo o conceito desenvolvido por Edward Thompson – dentro da comunidade de Água Negra nos revela uma cultura emergente. Raymond Williams escreve que o aparecimento de uma nova “estrutura de sentimentos” pode se relacionar com a ascensão de uma classe, assim como pode acontecer através do rompimento, ou da mutação dentro de uma classe. Nesse sentido, entendemos que o desenvolver de uma consciência comum entre pessoas de uma mesma comunidade também pode desenvolver novas “estruturas de sentimentos” sobre o “modo de vida” que pretendem que se torne hegemônico. Esse é o caso da população trabalhadora da fazenda Água Negra.
Como analisado neste estudo, o conceito de Raymond Williams possui uma grande importância na análise de obras literárias como fonte histórica. O autor considera que a literatura – antes de outros tipos de criação artística, como o teatro e o cinema – é extremamente propensa para a busca de “estruturas de sentimentos”, como uma forma de estudar grupos e sociedades diversas ao longo do tempo. Em Torto Arado, na obra de Itamar Vieira Junior que apresenta uma narrativa com rico conteúdo histórico e social, é possível perceber essa categoria, a qual nos permite compreender aspectos relacionados aos modos de vida de uma comunidade quilombola, em formação, no interior da fazenda Água Negra. Ao longo
da narrativa, são explicitadas as condições objetivas e subjetivas de reprodução da vida que vão conformando os sentimentos de homens, mulheres e crianças em relação à necessidade de ruptura com relações sociais impostas por seus ex-senhores que, mesmo com a “libertação da escravatura”, os mantêm aprisionados.
Percebemos que os sentimentos da população trabalhadora da fazenda, inicialmente, eram de conformação em relação às difíceis condições de vida que enfrentavam nas primeiras décadas do século XX, o que culminou na aceitação das imposições extremamente abusivas feitas pelos proprietários da fazenda. Com o surgimento de novas gerações, traços econômicos e culturais característicos da geração anterior são transmitidos e se desenvolvem, assim como novos traços são criados, dando origem aos sentimentos estruturados da nova geração. São as “estruturas de sentimentos emergentes”, o que leva aquela comunidade de trabalhadores até mesmo a se identificar como Quilombolas.
Os jovens de Água Negra, pessoas que nasceram e cresceram em situações diferentes das que seus ancestrais experienciaram em suas juventudes, questionam as condições em que se encontram e, mais do que isso, buscam a mudança. No final da narrativa, vemos a comunidade unida, compartilhando sentimentos que se expressam por meio de uma consciência de classe que leva aquelas pessoas a se reconhecerem como um grupo quilombola que luta por seus direitos, como trabalhadores daquele local e contra a vontade dos novos proprietários da fazenda, que desejam expulsá-los dali. O enredo criado por Itamar Vieira Junior expressa, propositalmente, ou não, fortes traços marxistas que envolvem a luta de pessoas contra os abusos do capitalismo – entendida como luta de classes – e que se relacionam com as experiências vividas por muitos negros, negras e afrodescendentes no século XXI. Remete-nos à necessidade de reafirmação de modos de vida em comunidades tradicionais como forma de resistir ao modo capitalista de produção da existência humana. Afinal, “toda luta de classes é luta por valores”, como nos ensina E.P. Thompson, companheiro de Raymond Williams nos estudos sobre cultura na perspectiva do materialismo histórico-dialético.
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