V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X
A APROPRIAÇÃO DO PENSAMENTO GRAMSCIANO NO LIVRO “LAZER E EDUCAÇÃO” DE NELSON CARVALHO MARCELLINO1
Bernardo Jordano Gomes2 Marcelo Paula de Melo3 Rebeca Signorelli Miguel4
Este artigo busca entender de que forma o livro “Lazer e Educação” (1995), de Nelson Carvalho Marcellino, se apropria do pensamento gramsciano e qual foi a profundidade e qualidade destas apropriações. Como metodologia, analisamos a obra de Antonio Gramsci, de seus estudiosos e outros marxistas, em paralelo ao texto de Marcellino. Concluímos que as menções aos conceitos de Gramsci não estavam integralmente fiéis à letra do seu texto, com apropriações pouco aprofundadas ou com significados modificados, além de ter havido um afastamento do pensamento gramsciano em seu estudo.
Este artículo busca comprender cómo el libro “Lazer e Educação” (1995), de Nelson Carvalho Marcellino, se apropia del pensamiento gramsciano y cuál fue la profundidad y calidad de esas apropiaciones. La metodología de este estudio fue el análisis de la obra de Antonio Gramsci, sus estudiosos y otros marxistas, en paralelo con el texto de Marcellino. Concluimos que las menciones a los conceptos de Gramsci no fueron del todo fieles a la letra de su texto, con escasas apropiaciones en profundidad o con significados modificados, además de tener un alejamiento del pensamiento gramsciano.
This article seeks to understand how the book “Lazer e Educação” (1995), by Nelson Carvalho Marcellino, appropriates Gramscian thought and what was the depth and quality of these appropriations. This study's methodology was the analysis of the work of Antonio Gramsci, his scholars and other Marxists, in parallel with Marcellino's text. We conclude that the mentions of Gramsci's concepts were not fully faithful to the letter of his text, with little in-depth appropriations or with modified meanings, in addition to having a departure from Gramscian thought.
1 Artigo recebido em 15/11/2023. Primeira Avaliação em 09/01/2024. Segunda Avaliação em 07/01/2024. Aprovado em 24/01/2924. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.60.571.
2 Mestrando em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais - Brasil. Email: b.jordano@hotmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9725762220405328.
ORCID: https://orcid.org/0009-0002-6093-5716.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9618187525201061. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0146-4275.
4 Doutora em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo - Brasil . Professora da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Minas Gerais - Brasil.
Email: rebecasignorelli@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5324660165932015. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8058-2527.
O presente estudo busca analisar a presença e apropriação do pensamento de Antonio Gramsci – importante marxista e militante italiano preso durante o regime fascista italiano – na obra “Lazer e Educação” (1995), de Nelson Carvalho Marcellino – um dos principais expoentes e pioneiros dos Estudos do Lazer brasileiros. Nosso texto, portanto, tem como objetivo entender: a) como se deu a apropriação do pensamento de Antonio Gramsci nessa obra e; b) qual a qualidade e profundidade de tal apropriação. Dessas questões levantamos questões sobre como Gramsci aparece no texto de Marcellino, isto é, as citações diretas, indiretas e comentários sobre Gramsci nesse texto tão relevante para a consolidação do campo dos Estudos do Lazer. A tradição marxista ronda este campo com diferentes graus de apropriação e mesmo divergências, assim como rechaços diretos ou indiretos. A discussão de lazer, tempo livre e emancipação humana permitirá aproximar da educação não apenas em sentido escolar, mas sim de apropriação da riqueza simbólica produzida pela humanidade.
Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP de 1988 a 2001 e posteriormente atuando na Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) até 2014, Marcellino teve uma produção deveras relevante no âmbito do lazer, da ludicidade e Educação, sendo referência marcante a partir de meados dos anos 1980 para o campo da Educação Física e dos Estudos do Lazer.
Tanto sua dissertação de mestrado, “Lazer e Educação: relação entre o lazer, a escola e o processo educativo” (1984), quanto sua tese de doutorado, “Lazer e Escola: fundamentos filosóficos para uma pedagogia da animação, no início do processo de escolarização” (1988), tornaram-se importantes livros para o campo posteriormente (MARCELLINO, 1987; 1990), além de outros escritos como “Lazer e Humanização” (1983a), “Estudos do Lazer: uma introdução” (1996), dentre outros. Até o momento da presente pesquisa, Marcellino contava com mais de 80 artigos publicados, 127 livros publicados/organizados em diferentes edições, diversas participações em bancas de Mestrado e de Doutorado, além de comissão julgadora de bancas para Professor Titular, de concursos públicos e de livre docência. Também orientou 39 dissertações de mestrado e 7 teses de doutorado.
Tamanho volume de publicações dedicadas ao campo do Lazer corrobora deste modo com sua relevância para o campo. Além disso, estudo produzido por Dias et al. (2017), sobre a construção do campo do lazer na década de 2000 a 2010, mostra que tais obras – “Lazer e Educação”; “Lazer e Humanização”; e “Estudos do Lazer: uma introdução” – estiveram entre as quatro obras mais citadas do campo, além de ser o autor mais citado para cinco dos dez autores que mais publicaram na revista Licere no período e de ser também o autor que mais publicou.
Tendo em vista isso, podemos considerar o ineditismo e a relevância de sua obra para a construção do campo do lazer e, em especial, do livro “Lazer e Educação”, que além de ter sua notoriedade evidenciada pelas suas contribuições para a relação entre os dois campos (o lazer e a educação), é também onde se encontram algumas das aproximações iniciais ao pensamento de Antonio Gramsci no campo do lazer, o que justifica a escolha pelo livro para o desenvolvimento do presente estudo.
Contudo, a presença da obra de Antonio Gramsci na produção inicial de Nelson Carvalho Marcellino – que depois passa a ser menos marcante – demanda situar minimamente a relevância do fundador do Partido Comunista Italiano.
Preso pela primeira vez por alguns dias em 1921, Gramsci (G.), junto a outros delegados da fração comunista cria o Partido Comunista da Itália (PCI), seção da Internacional Comunista. Sendo eleito deputado em 1924, é preso dois anos depois, em novembro de 1926, posteriormente condenado a 20 anos de reclusão. Em 1929, permitida a sua escrita na cela, inicia seus escritos do cárcere, os Cadernos do Cárcere (Q.). Gramsci é solto no ano de 1937, mas sofre um derrame cerebral, morrendo dois dias depois. Tanto sua produção pré-carcerária (intervenções jornalísticas e textos para a militância partidária) como sua produção carcerária (Cadernos e Cartas do Cárcere) são importantes documentos do pensamento social e político do século XX.
Em 1821, inicia-se uma discussão com uma proposta trazida não por um socialista ou representante do nascente movimento operário cartista na Inglaterra, mas sim pelo Lorde John Russell (naquele momento membro do partido Liberal Inglês), acerca da jornada de trabalho de 6 horas, em que marcaria uma sociedade verdadeiramente rica. Mészáros (2015) retoma essa defesa por Russel – anterior a Marx, que nesse momento tinha apenas 3 anos de idade na Alemanha – para
advertir que sem criticar radical e estruturalmente as relações sociais capitalistas, essa proposição entraria na fila das boas intenções, das quais a sabedoria popular ensina que o inferno está cheio. Como afirma Mészáros, “a ideia de fazer do tempo disponível o princípio orientador para a regulação da reprodução social implica a criação de uma ordem social radicalmente diferente” (MÉSZÁROS, 2015, p. 97). Essa tarefa histórica segue sendo o grande desafio de qualquer perspectiva emancipatória de nosso tempo, “[...] sem o qual o modo socialista de reprodução sociometabólica não poderia ser considerada historicamente sustentável” (MÉSZÁROS, 2015, p. 97). Até porque:
O aumento potencial da riqueza real por meio da adoção consciente do tempo disponível como regulador geral da produção – em contraste com o imperativo desumanizante da interminável acumulação do capital – e a imensa quantidade de tempo livre gerado pela utilização do tempo disponível quando o dia de trabalho é reduzido para seis horas, ou até mesmo consideravelmente menos do que isso, poderiam apenas funcionar como dinamite social, explodindo pelos ares o sistema do capital na ausência de atividade criativa humanamente significativa à disposição dos indivíduos (MÉSZÁROS, 2015, p. 98, grifo do autor).
O autor indica que a forma de organizar o trabalho social é integralmente incompatível com o sistema do capital. As razões da incompatibilidade ocorrem, de forma que: “a adoção do tempo disponível clama por uma determinação qualitativa do metabolismo social, no lugar da dominação fetichista da quantidade sob as condições de domínio do capital sobre a sociedade” (MÉSZÁROS, 2015, p. 98).
A organização coletiva daquilo que Mészáros chamou tanto de “objetivos produtivos genuinamente planejados da sociedade em geral” quanto das “metas autodeterminadas de realização da vida dos indivíduos particulares” (MÉSZÁROS, 2015, p. 98) só faz sentido se organizados sobre o princípio de igualdade substantiva, algo que a ordem burguesa não pode nem ouvir uma palavra. Tanto que Mészáros (2015) indica que mesmo nas fases e/ou conjunturas particulares nas quais alguma formação social em que tenha sido possível impor algumas funções corretivas necessárias da formação do Estado no capital, tal quadro – além da história revelar com milhares exemplos tanto sua duração episódica quanto sua expressa ligação umbilical com o avanço da exploração do trabalho e sócio ambiental in loco e/ou outra formação social – não consegue estar desvinculado das nuances estruturais que marcam e fundam as relações sociais burguesas.
Partindo dessa premissa, é necessária uma discussão a partir da delimitação de construção do campo em questão, como sugere a análise de Peixoto (2008). A autora analisou a apropriação e menções diretas à Marx e Engels em obras de Lazer brasileiras. Avaliou 65 autores, dentre os quais, 15 não apresentaram referência às fontes enquanto 50 apresentaram, sugerindo que “os autores que não fazem referência às obras lidas pronunciam-se negando a contribuição de Marx para a compreensão da problemática do lazer, com raríssimas referências a Engels.” (PEIXOTO, 2008, p. 90). A autora sugere ainda que:
[...] estudiosos do lazer que fazem referência a Marx e Engels sem referir-se a obras diretas por eles lidas escondem o profundo desconhecimento quanto: (1) à obra original de Marx e Engels; (2) às matrizes históricas e filosóficas que sustentam essa obra; (3) ao contexto histórico, econômico e político em que ela é elaborada; e (4) aos seus desdobramentos [...] (PEIXOTO, 2008, p. 97).
Em seu estudo, Peixoto (2008), ao analisar as características da apropriação sem referências às obras lidas, cita Marcellino por três vezes. Inicialmente destaca ser comum a contraposição entre Marx e seu genro Paul Lafargue – autor de O Direito à Preguiça. Decidimos trazer a passagem do texto de Marcellino (1995) indicada por Peixoto (2008) para dar materialidade à crítica da autora. Portanto, afirma Marcellino:
Embora o que se verifique atualmente seja a impossibilidade de referência ao marxismo como um pensamento unitário, pelas várias correntes que a denominação abriga, é certo que, em quase todas elas, ocorre a exaltação do trabalho. Seja como for, ironicamente, é o genro de Marx, Paul Lafargue, quem corajosamente elabora uma das primeiras sistematizações defendendo o lazer dos operários, em fins do século XIX, opondo-se não somente à mitificação do trabalho, como cerceamento da vida do trabalhador, mas também ao usufruto dos efeitos da exploração, pelos dominantes, também cerceados na sua vida em virtude das obrigações impostas pelo consumo. [...] As críticas ao lazer são dirigidas também pelos marxistas. Muito embora os pensadores dessa linha estejam divididos em duas correntes, uma privilegiando o trabalho e outra, o tempo fora do trabalho para a realização humana, uma vez que em Marx se encontram textos dos dois gêneros, predomina com muito peso a primeira corrente (MARCELLINO, 1995, p. 23, grifo nosso).
Posteriormente, Peixoto indica ser constante a menção por Marcellino de que Marx e os marxistas seriam críticos ao lazer e que privilegiassem o trabalho e suas péssimas condições. A passagem acima trazida de Marcellino (1995) nos obriga a
concordar com Peixoto (2008) sobre a pouca aproximação à textualidade marxiana e de seus comentadores. Por fim, é indicado que a “alusão a Marx e aos marxistas como difusores da exaltação e da mitificação do trabalho” (PEIXOTO, 2008, p. 96) está integralmente distante do manancial categorial dos fundadores da tradição marxista e marxiana.
Anterior à publicação de “Lazer e Educação”, Gramsci já figurava como uma referência importante para o conjunto de reflexões de Nelson Marcellino. Em 1983, o autor publica um texto intitulado Gramsci e a Revolução Cultural, em que defende ter “como pressuposições alguns conceitos fundamentais do pensamento gramsciano, como ‘hegemonía’, ‘bloco histórico’ e ‘intelectuais’ [...]” (MARCELLINO, 1983b, p. 33). Continua o autor indicando que:
[...] o pensamento de Gramsci não se mostra ultrapassado, mas atual e de grande contribuição para a análise dos componentes da chamada “indústria cultural”, da extinção de práticas culturais tradicionais, da invasão no campo dos costumes, ou, em síntese, para a reflexão sobre os efeitos da dominação cultural interna e externa de um povo. (MARCELLINO, 1983b, pp. 43-44).
A presença de Gramsci em sua caminhada nos anos 1980 não foi episódica. O texto que nos debruçamos, “Lazer e Educação” (1995), fruto de sua dissertação de mestrado defendida em 1984, tem como objetivo verificar as relações existentes entre o lazer, a escola e o processo educativo a fim de formular a pedagogia da animação como uma alternativa pedagógica, refletindo sobre o papel da escola, seja como instrumento, seja como objeto de educação no que toca ao lazer (MARCELLINO, 1995). O livro está dividido em: Prefácio; Introdução; quatro capítulos; Conclusão; e Bibliografia. Quanto às temáticas da Educação e do Lazer, o autor afirma o “valor da atuação no plano cultural, numa perspectiva ‘gramsciana’, como instrumento de mudança social [...]”. (MARCELLINO, 1995, p.16).
O primeiro capítulo é intitulado Dois temas polêmicos: duas fontes de mal-entendidos. Tem como objetivo “verificar as várias formas de entendimento do lazer e da educação; o enfoque dado a cada um dos temas pelos autores das áreas específicas [...].” (MARCELLINO, 1995, p. 17). Já o segundo, que tem como objetivo
“analisar o duplo aspecto educativo do lazer” (MARCELLINO, 1995, p. 17), com título similar a seu objetivo, conta com os tópicos: 1) O lazer como veículo de educação; e 2) O lazer como objeto de educação. Este conta com mais ênfase “na relação lazer e escola, em termos de conteúdo e de forma [...]” (MARCELLINO, 1995, p. 17). O quarto e último capítulo busca formular sugestões alternativas, estabelecendo elementos para a pedagogia da animação, como sugere Marcellino (1995). É intitulado Elementos para uma pedagogia da animação. É possível notar a primeira menção a Gramsci já na Introdução, quando traça as bases para o estudo, que são:
Na consideração do lazer como cultura vivenciada no “tempo disponível”, não em contraposição, mas em estreita ligação com o trabalho [...] combinando os aspectos tempo e atitude; no valor da atuação no plano cultural, numa perspectiva “gramsciana”, como instrumento de mudança social; e na crítica àvisão “funcionalista” do lazer, à concepção “utilitarista” da educação, à “desescolarização” e à visão “apocalíptica” da ação cultural. (MARCELLINO, 1995, p. 16, grifo nosso).
Marcellino opta, no início do texto, por adotar autores e textos para o seu estudo “sem preconceitos ideológicos” (MARCELLINO, 1995, p. 15) a fim de que tivesse a “necessidade de conhecer [...] as várias concepções, os diferentes valores atribuídos.” (MARCELLINO, 1995, p. 16).
É necessário, portanto, abordar a percepção do autor acerca da (suposta) existência de um plano cultural em Gramsci. Tal apropriação pode causar possíveis reflexões que culminem no tratamento de Gramsci como um marxista culturalista, isto é, alheio às relações sociais de produção da existência, em uma percepção desligada da totalidade ponderada por essa tradição.
Neste sentido, Wood (2003) ao abordar tal separação no marxismo, sugere que “depois de Marx, muitas vezes o marxismo perdeu de vista esse projeto teórico e seu caráter essencialmente político. Houve, em particular, uma tendência a perpetuar a rígida separação conceitual entre o ‘econômico’ e o ‘político’” (WOOD, 2003, p. 27). Essa iniciativa nos parece notória também em relação à obra gramsciana e, por tal motivo, vamos recorrer ao conceito de “Bloco Histórico” presente no Dicionário Gramsciano, organizado por Liguori e Voza (2017), em que, segundo Voza, “a noção de ‘bloco histórico’ [...] uma vez desenvolvida e repensada
por G., torna-se uma categoria fundamental do ‘pensamento em processo’ dos Q.” (VOZA, 2017, s.p.) e, sugerindo ainda que:
G. se vale também de seu conceito de bloco histórico na firme e recorrente crítica dos conceitos, considerados dogmáticos, de “homem em geral” e de “natureza humana”: “O homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa e objetivos ou materiais, com os quais o indivíduo está em relação ativa” (VOZA, 2017, s.p.).
Já o termo plano cultural não está em consonância com a obra de Gramsci. Cultura em Gramsci “seria inseparável da concepção de língua e de linguagem” (BARATTA, 2017, s.p.) nos Cadernos do Cárcere, de forma a ser apontado que:
“Cultura” nos Q é não apenas um tema muitíssimo amplo, com ramificações, adjetivações, especificações bastante variadas, mas também um conceito extremamente móvel e, por assim dizer, irrequieto, no sentido de que tende a transbordar para âmbitos categoriais diversos que, por outro lado, ao contato com ele, adquirem novo valor [...]. “Cultura” é concebida em primeiro lugar “como expressão da sociedade” [...], o que atualmente é uma noção de senso comum. Não o era no tempo de G., que nos Q. chega a tal ponto de vista tecendo uma rede categorial que confere nova roupagem à tradição marxista. (BARATTA, 2017, s.p.).
Assim, não há em Gramsci nem uma cultura abstraída das determinações que fundam as relações sociais capitalistas, bem como qualquer relação de sobredeterminação da dimensão político-cultural em relação a essas determinações. O marxismo de Gramsci permite situar a cultura, a economia e o político como componentes centrais que possam criar embates acerca das classes sociais fundamentais da ordem burguesa. Assim, o lazer como elemento do chamado campo cultural é entrecortado por determinações de diversas ordens e expressando os momentos das lutas entre as classes e as correlações de forças dos conflitos de cada tempo histórico. Isso não significa que esse chamado plano cultural seja a priori liberto dessas contradições fundantes. A menção ao embate das visões de mundo, a atuação política dos intelectuais orgânicos das classes sociais com vistas a difundir seus valores e projetos históricos, a atuação de uma ampla gama de aparelhos privados de hegemonia dessas classes sociais fundamentais, a necessidade de atuação pedagógica das classes subalternas para combater as visões de mundo burguesas em diversos âmbitos da vida social, seja no campo das
artes, da educação escolar e não-escolar, nas construções de hábitos populares não pode ser tomada como sendo parte de um “plano cultural”.
O conceito de bloco histórico acima indicado intenta justamente apontar para que não tomemos as separações entre economia, política e cultura como algo orgânico, mas sim apenas didáticas, como constantemente Gramsci alerta nos Cadernos. A dita determinação econômica há no sentido de representar um dos elementos centrais no tocante à implantação do projeto histórico da classe burguesa, realizado com base na exploração do trabalho, da separação do ser humano dos meios de produção e dos aparelhos de exercício do poder coletivo. Nesse caso, em que realmente existe uma determinação não do econômico, mas do projeto histórico burguês, que tem dimensões econômicas, culturais e políticas imbricadas. Somente considerando a imbricação e a articulação entre as dimensões políticas, econômicas e culturais das políticas sociais será possível uma visão das políticas sociais fiéis ao método marxiano, enriquecido pelas determinações gramscianas acerca do Estado e das lutas de classes em sociedade capitalistas ocidentais.
A elevação ou redução da metáfora base/superestrutura, em base explicativa da abordagem marxiana, causou um estrago tremendo no seio dessa tradição. Também desarmou das (assim justas) críticas de determinismo ou monocausalidades na explicação do real, ao afirmar a suposta “supremacia de uma esfera econômica independente de outras esferas passivamente subordinadas e reflexivas” (WOOD, 2003, p. 51).
Voltando ao texto, além da menção na Introdução, somente no sexto tópico do primeiro capítulo que Marcellino faz a sua primeira menção a Gramsci, ao tratar do tema Educação e Escola, sobretudo na educação assistemática que englobaria toda a relação pedagógica. Neste sentido, o autor entende
[...] a relação pedagógica de maneira ampla, tal como foi definida por Gramsci, que não a limita “às relações especificamente escolásticas”, mas a distingue “... em toda a sociedade no seu conjunto e em todo o indivíduo com relação aos outros indivíduos, bem como entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguardas e corpos do exército. Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica. (MARCELLINO, 1995, p. 43).
Cabe voltar a essa passagem de Gramsci nos Cadernos para podermos aprofundar e cotejar com a interpretação de Marcellino. Gramsci (2001) lembra que toda relação de hegemonia é uma relação pedagógica, a partir do consenso ativo obtido do conjunto da população, ou pelo menos de uma maioria significativa, sendo este consenso sempre provisório, demandando estratégias permanentes de conquista e/ou manutenção. O marxista italiano defende ser preciso não limitar o termo pedagógico às relações escolares, mas o amplia a todas as relações entre e intraclasses sociais, uma vez que
[...] esta relação existe em toda a sociedade no seu conjunto e em todo indivíduo com relação aos outros indivíduos, entre camadas intelectuais e não intelectuais, entre governantes e governados, entre elites e seguidores, entre dirigentes e dirigidos, entre vanguarda e corpos de exército (GRAMSCI, 2001, p. 399).
Assim, todo Estado procura criar, difundir e manter formas específicas de sociabilidade conforme o projeto societário do bloco no poder, assumindo uma função claramente educativa. Esse projeto educativo tem por objetivo, então, “[...] adequar a ‘civilização’ e a moralidade das mais amplas massas populares às necessidades do aparelho econômico de produção e, portanto, de elaborar também fisicamente tipos novos de humanidade” (GRAMSCI, 2000, p. 23). Com isso, “[...] o Estado deve ser concebido como ‘educador’ na medida em que tende precisamente a criar um novo tipo ou nível de civilização” (GRAMSCI, 2000, p. 28). A ação estatal na dominação burguesa vai muito além de qualquer entendimento unicamente repressivo-encobridor dos fundamentos que regem essa sociedade.
Nessa direção, o marxismo de Gramsci nos remete ao entendimento de que o próprio lazer é parte desse embate de visões de mundo com vistas a obtenção do consenso ativo das massas aos projetos históricos das classes sociais fundamentais em luta. Não por acaso, o marxista sardo propunha uma ação política dos de baixo em educarem-se política e culturalmente com vistas ao que chamava de elevação cultural das massas. Seus estudos do teatro, literatura e outras formas de diversão popular eram parte da tarefa ético-política de embate às concepções de mundo burguesas no conjunto da vida social, aí incluso o tempo livre. A ampliação da escolarização também deveria ter um papel central nesse processo de elevação cultural das massas. A escola unitária, de acesso livre, gratuito e universal, era vista
por Gramsci como um dos elementos centrais na emancipação das classes populares.
Lembremos, todavia, que a Itália de Gramsci nos anos 1920 ainda era um país com escolaridade restrita e com industrialização e urbanização menos avançada em relação a outros países europeus. Deste modo, quando Marcellino (1995), em seu texto de 1987 (1ª edição do livro “Lazer e Educação”) traz as menções ao lazer no embate da batalha de visões de mundo e na ampliação da educação à escolarização, cumpre relevante papel de difusor dessa tradição no âmbito dos estudos do lazer.
Em nota de rodapé, contudo, Marcellino aponta para uma abordagem mais detida em seu artigo “Gramsci e a revolução cultural” (1983b). Nesse importante texto, que curiosamente não aparece muito na bibliografia do autor em outros momentos, existe um mergulho na obra gramsciana com vistas a abordar as contribuições do pensador sardo ao que chama de Revolução Cultural. Para tanto, o autor chama “a atenção para as dificuldades de síntese de um tema tão amplo e difuso na produção de Gramsci” (MARCELLINO, 1983b, p. 33) o que, de certa forma, poderá contribuir para que atinjamos algumas das prerrogativas básicas para o nosso estudo. Inicialmente, no estudo, Marcellino aponta para duas questões: “Gramsci [...] como o grande responsável pelo resgate do valor do plano cultural” (MARCELLINO, 1983b, p. 34), além da importância de “uma reforma intelectual e moral, ou, em outras palavras, uma Revolução Cultural” (MARCELLINO, 1983b, p. 34). A adoção da expressão “plano cultural” na análise gramsciana não é isenta de contradições, tendo o próprio Marcellino alertado às possibilidades de incutir numa abordagem que dissocie o valor cultural/político e o econômico nas abordagens marxiana e marxistas. Mais expressamente afirma:
Entretanto, o resgate do plano cultural, não significa o abandono dos planos econômico e político, como frentes merecedoras de análise de ação. Ao questionar as possibilidades da elevação civil das camadas mais baixas da sociedade, através de uma reforma cultural, sem que seja precedida por uma reforma econômica Gramsci não desvincula uma esfera da outra. (MARCELLINO, 1983b, p. 35).
Voltando-se a alguns dos conceitos gramscianos importantes trazidos por Marcellino, nos é apresentada uma “reforma intelectual e moral necessária para o estabelecimento de sua hegemonia enquanto classe” (MARCELLINO, 1983b, p. 34)
de forma que para ele, “entre os intelectuais e os ‘simples’ deve haver a mesma unidade que entre teoria e prática, ou seja, o contato entre ambos é fundamental, pois nessa interação encontra-se a base para a nova cultura” (MARCELLINO, 1983b, pp. 34-35). Entendemos que essa menção de Marcellino acerca da relação entre lazer e hegemonia, como expressão de uma reforma intelectual e moral para elevação dos níveis de entendimento da realidade por parte dos mais simples e amalgamento e quebra de cisão entre intelectuais e massa, deve ser tomado como ponto importante quanto à apropriação gramsciana pelo autor.
Posteriormente, Marcellino (1995) cita o conceito de hegemonia através de Saviani, já na obra que nos propusemos a conferir mais centralidade. Desta forma, identifica-se que “se a Escola é um instrumento de hegemonia, nós não podemos descurar [...] deste instrumento, uma vez que descurar dele seria deixá-lo ao uso exclusivo da classe dominante” (SAVIANI citado por MARCELLINO, 1995, p. 47). Já no final do último tópico, Marcellino (1995) retorna a essa citação para tratar também do lazer como instrumento de hegemonia, refletindo quanto ao processo de descurar do lazer como campo de intervenção pedagógica. Marcellino (1995) termina o tópico, dessa forma, com uma pequena reflexão acerca de um possível olhar enviesado do processo educativo, que de certa forma não estivesse levando em consideração as relações pedagógicas estabelecidas na escola enquanto hegemônicas, em uma evidente preocupação “com a difusão dos meios de comunicação de massa e sua utilização, como elemento de controle das amplas camadas populares” (MARCELLINO, 1995, p. 48). Visto isso, já ao final do capítulo, Marcellino retorna à citação de Saviani para uma reflexão:
Se o Lazer como a escola é um instrumento de hegemonia, e se como já foi colocado anteriormente – recorrendo-se a Saviani – não se pode descurar da escola se se pretende mudanças radicais no “status quo”, pode-se então descurar do lazer como campo de intervenção pedagógica? (MARCELLINO, 1995, p. 55).
Os processos de educação política para o consenso em torno de uma visão de mundo não problematizadora da realidade social e reificadora de aspectos de baixo ou nenhum impacto nas condições concretas de vida de imensa parcela população é obra de diversas instituições nas sociedades capitalistas ocidentais. Nessas, em que a sociedade civil se torna uma instância determinante da luta política entre as classes sociais, por meio da atuação dos aparelhos privados de
hegemonia das diversas classes e frações de classe, ocorrem embates constantes de forma a atingir um maior contingente populacional para defender visões de mundo. A luta política, tanto para dominação como para contestação, articula formas coercitivas com a busca pelo consenso (GRAMSCI, 2001).
Tal como o conceito de intelectuais, o conceito de hegemonia passou por alguns equívocos e más interpretações nas tentativas de reduzi-lo. Dessa forma, é apontado que:
No que diz respeito ao significado que deve ser atribuído a “hegemonia”, desde o início [...], G. oscila entre um sentido mais restrito de “direção” em oposição a “domínio”, e um mais amplo e compreensivo de ambos (direção mais domínio). (COSPITO, 2017, s.p.).
O autor aponta também para uma perspectiva que já vem sendo debatida neste texto, quanto a questão da totalidade dos conceitos gramscianos e, por isso, afirma:
Hegemonia cultural [...] não se deve contrapor à política, como testemunha o uso de expressões como “hegemonia político-cultural”, “político-intelectual”, “intelectual, moral e política” e similares, além da tese pela qual “a filosofia da práxis concebe a realidade das relações humanas de conhecimento como elemento de ‘hegemonia’ política” [...] (COSPITO, 2017, s.p.).
Voltando ao potencial educativo do lazer, neste mesmo capítulo, Marcellino aponta que:
[...] só tem sentido se falar em aspectos educativos do lazer, se esse for considerado [...] como um dos possíveis canais de atuação no plano cultural, tendo em vista contribuir para uma nova ordem moral e intelectual, favorecedora de mudanças no plano social. Em outras palavras: só tem sentido se falar em aspectos educativos do lazer, ao considerá-lo como um dos campos possíveis de contra-hegemonia. (MARCELLINO, 1995, p. 64).
A busca por transformações, ponderada por Marcellino, parece conversar com a Revolução Cultural atribuída à Antonio Gramsci pelo mesmo autor. Isso pode ser notado por conta da seguinte reflexão de Marcellino (1995), em que opta por citar o marxista italiano:
Como nos lembra Gramsci “[...] o campo da luta pela criação de uma nova civilização é absolutamente misterioso, totalmente
caracterizado pelo imprevisível e pelo imprevisto [...]. Nesse campo só é possível prever uma hipótese geral: haverá uma cultura (uma civilização) proletária, totalmente diferente de uma cultura burguesa. Haverá uma poesia, um romance, um teatro, costumes, uma língua, uma pintura, uma música – características da civilização proletária, floração e ornamento dessa nova organização social. Que nos resta fazer? Nada, além de destruir a forma presente de civilização. (MARCELLINO, 1995, p. 144).
O autor parece querer concretizar a sua ideia de Revolução Cultural, portanto, como meio para chegar à “pedagogia da animação” – seu objeto de estudo – através de perspectivas da cultura popular e folclore, a serem discutidas posteriormente, tendo os intelectuais orgânicos como executores desse processo. Para ele, portanto:
[...] a “pedagogia da animação” é uma pedagogia do movimento; do movimento desencadeado junto aos “simples”, com eles, a partir de sua vivência; e os intelectuais, organicamente ligados ao processo, para desempenharem seu papel pedagógico, precisam mergulhar – na feliz expressão de Gramsci – no “humus” da cultura popular, expressão essa que caracteriza a grande contradição: é o próprio produto decomposto das bases populares – o folclore –, amalgamado com detritos da ideologia dominante e com os restos da cultura erudita, que constitui a fonte geradora, de onde deverá germinar a “Revolução Cultural”. (MARCELLINO, 1995, pp. 146-147).
As três citações acima de Marcellino (1995) indicavam uma preocupação expressa com a tarefa de elevação cultural das massas e/ou ampliação da visão de mundo e combate de uma concepção folclórica. A menção à Gramsci foi um caminho que permitiu associar lazer ao projeto educativo de emancipação e educação política da classe trabalhadora.
A unidade de distinção entre força e consenso compõe elementos determinantes das lutas entre as classes sociais fundamentais tanto na aparelhagem estatal como mediante organismos na sociedade civil (os aparelhos privados de hegemonia). Tanto que Gramsci (2000) fala explicitamente de ambos – sociedade política e sociedade civil – como dois grandes planos superestruturais. Uma leitura apressada poderia inferir daí que o pensador sardo os concebe como autônomo e sem determinação da produção social da vida. Novamente essa posição é fartamente contradita ao longo dos Cadernos do Cárcere, tendo Gramsci um papel de continuador da trilha aberta por Marx, Engels e Lenin. O Estado ampliado para Gramsci não possui uma autonomia das relações sociais de produção da existência, mas parte central do conjunto de determinação do sistema social globalizante e totalizante que é o capitalismo. Como afirma o autor dos Cadernos do Cárcere:
“certamente o Estado não produziu ut sic a situação econômica, mas é a expressão da situação econômica; todavia, pode-se falar do Estado como agente econômico precisamente enquanto o Estado é sinônimo de tal situação” (GRAMSCI, 2001, p. 379).
Visto isso, Marcellino, já pensando no processo de “reconstrução” – alusão ao sub-título: “Destruição” e “reconstrução” – aponta para a necessidade da aprendizagem – tal como da recuperação de sentido –da cultura popular, que para o autor deve se basear na perspectiva gramsciana:
O conceito de cultura popular de Gramsci não é populista, pois não se verifica uma imposição de modelos, nem conformista, pois supõe a crítica da base popular – o folclore. Este deve ser visto “... como ‘concepção do mundo e da vida’, em grande medida implícita, de determinados estratos (determinados no tempo e no espaço) da sociedade, em contraposição (também no mais das vezes implícita, mecânica, objetiva) com as concepções do mundo ‘oficiais’ (ou, em sentido mais amplo, das partes cultas das sociedades historicamente determinadas), que se sucederam no desenvolvimento histórico”. Essa “concepção do mundo e da vida” é dinâmica, recebendo continuamente novos elementos, no mais das vezes desfigurados, de noções científicas e opiniões externas ao seu contexto. Assim, “o folclore não deve ser concebido como algo bizarro, mas como algo muito sério e que deve ser levado a sério”. O papel do intelectual com relação ao folclore, é manter uma postura crítica. (MARCELLINO, 1995, p. 146).
O conceito de Revolução Cultural para Marcellino, embora seja dotado de sentido e significações em sua militância pela consolidação do campo do lazer, parece utilizar, portanto, de uma revolução não discutida por Gramsci.
O marxista, que utiliza do conceito de revolução em diferentes formas, dentre elas a passiva e a permanente, além do par revolução-restauração, traz consigo algumas mudanças de percepções, sobretudo com a derrota do movimento operário em 1920, além da sua consciência quanto a diferenças importantes entre o Ocidente e o Oriente e sua condição carcerária – onde não podia usar o termo revolução e passa a utilizar conceitos como “guerra de posição” ou “trincheiras, fortalezas e casamatas”, por exemplo (LA PORTA, 2017). Portanto, é compreensível que:
O conceito de revolução em G. se desenvolve, por um lado, com base na consciência da importância da produção capitalista e da grande indústria para a sociedade moderna, da qual deriva a centralidade do papel da classe operária na revolução e, por outro lado, com base no destaque da subjetividade operária como mola da
revolução, que tem como objetivo a transformação do assalariado em produtor. (LA PORTA, 2017, s.p.).
Nota-se, portanto, que a “Revolução Cultural” de Marcellino, passa pela apropriação de alguns dos conceitos já debatidos, mas se dá, sobretudo, por uma ampla utilização da cultura popular e do folclore na escola para a sua pedagogia da animação e é por isso que Marcellino (1995) passa a entender a escola como um “centro de cultura popular”, tendo suas tarefas educativas baseadas em termos de conteúdo, forma, abrangência, espaço, elementos humanos e materiais, e atuando nos planos cultural e social, buscando, sobretudo, a valorização da cultura popular.
A educação, em sentido amplo, como educação política e, em sentido estrito, como educação escolar, tem como finalidade majoritária reproduzir os fundamentos e as práticas culturais inerentes às relações de dominação. Entretanto, dependendo da correlação das forças sociais, poderá se constituir também em estratégia de construção da emancipação humana das relações de exploração e de dominação historicamente construídas, oferecendo elementos para a construção de uma cultura emancipadora na qual, pela consciência da dominação, possa construir um novo modo de existência.
A difusão de visões de mundo e a batalha no campo das ideias são partes essenciais dos processos educativos. Considerando que esses elementos ocorrem em todas as instâncias da vida social, não é de estranhar que o lazer (e todo seu entorno) ocupe papel de relevo na luta política contemporânea. A batalha por difundir visões de mundo em que não haja espaços para problematização da realidade social não renuncia às vivências de lazer.
Neste estudo, ao analisar o livro “Lazer e Educação” (1995), de Nelson Carvalho Marcellino (1995), foi possível encontrar diversas menções ao marxista italiano Antonio Gramsci – tal como a alguns conceitos discutidos pelo autor – tendo em vista a base de estudos definida por Marcellino, ainda na introdução de seu escrito. Entretanto, algumas de suas apropriações parecem não ser necessariamente fiéis à letra do texto gramsciano e menos ainda ao seu projeto político, tendo aparecido através de conceitos pouco aprofundados ou com
significados modificados, como é o caso de revolução cultural, cultura, intelectuais, hegemonia etc.
Foi notado também, apesar de reflexões que poderiam vir a contribuir para a consolidação da presença mais sistemática de Gramsci nos Estudos do Lazer, um afastamento que teria no pensamento gramsciano um instrumento de transformação social. Nesse sentido, é extremamente importante a percepção de que a utilização de pensamentos e conceitos marxistas – que, nesse caso tratamos como gramscianos – não torna quaisquer das análises que sejam feitas em verdades incontestáveis.
Precisamos levar em consideração o ainda estado embrionário dos Estudos do Lazer naquele momento, juntamente a um então ineditismo e relevância do autor que escreveu esta e outras obras essenciais – e clássicas – que contribuíram para a solidificação do campo que temos em vista atualmente. Assim, menos que julgamento atemporal e intelectualmente desonesto, da apropriação de Gramsci por Marcellino em um texto fruto de dissertação de mestrado do autor, importa-nos apreender como o Gramsci de Marcellino cumpriu um papel muito relevante na popularização do marxista italiano no campo da Educação Física/Estudos do Lazer, ainda que essa contribuição não seja isenta de contradições e limitações da leitura gramsciana pelo relevante autor do campo do lazer.
A despeito da presença de Gramsci no texto “Lazer e Educação”, deverá ser necessária uma análise mais aprofundada acerca do desenvolvimento da obra de Marcellino, de forma a notar uma presença que vai ficando rarefeita e até mesmo antagônica ao projeto gramsciano. Tendo tido o autor uma relevante produção teórica, além de diversas orientações de trabalhos, atuação em consultorias a governos e organismos privados, outros estudos parecem ser indispensáveis, tendo em vista a já consolidada construção dos Estudos do Lazer no Brasil que, como já discutido, não pode negar a contribuição do autor e de suas primeiras aproximações ao marxismo.
Referências
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