V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


PODER COMUNAL E EDUCAÇÃO POPULAR NA AMÉRICA LATINA: ENTREVISTA COM CLAUDIO NASCIMENTO1


Maria Clara Bueno Fischer2



Claudio Nascimento é educador popular e profundo estudioso das experiências e teorizações sobre autogestão em nível internacional. Nesta entrevista ele nos traz uma arguta e rica contribuição para pensarmos o poder comunal e suas imbricações com os movimentos sociais e os processos de educação popular em Nuestra América. À contribuição de Paul Singer o entrevistado dá especial destaque.

1 Entrevista recebida em 08/01/2024. Aprovada pelos editores em 10/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61372

2 Doutora em Educação pela Universidade de University of Nottingham, Inglaterra. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Pesquisadora CNPq. E-mail: clara.fischer@ufrgs.br.

Lattes: https://lattes.cnpq.br/3835786000876089. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2289-5282.

Seus argumentos são entremeados de um diálogo denso com diversos outros estudiosos que têm se dedicado a analisar as lutas dos povos latino-americanos. Além de realizar suas profícuas análises, oferece, generosamente, ao leitor e à leitora uma lista de referências bibliográficas acerca dos conteúdos abordados na entrevista. Convidamos a leitora e o leitor a “entrar” no diálogo proposto nesta entrevista, deixando-se informar e problematizar tema tão instigante como o da construção do poder comunal na América Latina.


Maria Clara: Como você analisa os movimentos populares em “Nuestra América”? Como os inserir em ciclos históricos? Quais seus momentos fundantes?


Cláudio: Em primeiro lugar, em se tratando da complexidade que é Nuestra América, vamos tentar “um tour de force” para apresentar uma síntese; em segundo, os temas abordados podem ser aprofundados em obras que estão nas referências bibliográficas.

Emir Sader (2009), em livro instigante em que analisa os ciclos das esquerdas na América Latina, afirma que “Novamente um começo de século surpreendente na América Latina (...). O continente onde o neoliberalismo nasceu - no Chile e na Bolívia – ainda mais se estendeu e encontrou um território privilegiado, tornou-se, em pouco tempo, o espaço de maior resistência e construção de alternativas a esse mesmo neoliberalismo: justamente por ter sido laboratório das experiências neoliberais, a América Latina viveu a ressaca dessas experiências, tornando-se o elo mais fraco da cadeia neoliberal. A que corresponde essa mudança tão radical, que o continente jamais viveu em prazo tão curto, em toda a sua história.

Vamos tentar responder à questão posta por Emir Sader, mas com uma outra visão dos ciclos históricos.

Nuestra América se tornou palco principal das lutas sociais e políticas com sentido ‘além do capital’ a partir da mutação territorial que ocorreu no início dos anos 90 em escala mundial.

A nova etapa do capital-imperialismo com base na ‘acumulação por despossesão” (HARVEY, 2003) é a base fundamental da ideologia neoliberal que se instalou em nosso continente e no mundo a partir da experiencia chilena iniciada com o golpe fascista no Chile ocorrido em 1973.

Esse novo ciclo de lutas traz características fundamentais: os instrumentos de participação popular (democracia direta), a refundação do Estado (comunal), a pluralidade das formas de propriedade (destacando o trabalho associado-autogestionário) e, também, uma ressignificação dos modos de vida (subjetividades, cultura), que Mariátegui chamava de ‘reencantamento da vida’. Neste último ponto destacam-se as novas subjetividades e sujeitos: raça, gênero, juventude, cultura e ecologia. Uma nova conjuntura, portanto, para o ecosocialismo, o feminismo comunal e mesmo para as ideias libertárias.

Essas lutas com conteúdo autogestionário-comunal são parte das lutas dos povos em nível mundial e tem uma longa história. Podemos dizer que o último ciclo dessas lutas se deu na Polônia em 1980-81 com a fundação do sindicato livre Solidarnosc, mas sobretudo com a criação da “Rede Autogestionária” abarcando as 3000 maiores empresas do país. Foi a última luta em que a classe operária industrial teve a centralidade no processo de transformação social.

O congresso de Solidarnosc, com milhares de pessoas, construiu a ideia de uma “República Autogestionária” para a Polônia. De certo modo um tipo de “Estado Comunal” com base em diversos conselhos (sobretudo de trabalhadores) e na democracia direta. Essa reivindicação vinha das lutas dos trabalhadores e populares desde as rebeliões no Leste europeu em 1953, 1956 e 1968. A Polônia tornou-se o ‘elo fraco’ do sistema de socialismo burocrático no Leste, com greves e rebeliões desde 1956,1968,1970 e 1977. Atingiu seu ápice em 1980 (Solidarnosc), atingindo todo o sistema sob hegemonia da Rússia.

Do olhar de uma ‘onda de longa duração’ (Braudel, 2019) é um fenômeno sociopolítico e cultural que tem suas origens na Comuna de Paris (1871) e nas ondas que seguiram com a revolução soviética (1917), com a fundação dos Soviets (Conselhos diversos). Entre a Comuna de Paris e os Soviets na Rússia já ocorreu uma mutação territorial: da Europa para o Oriente. Podemos mesmo falar de um ciclo da Comuna de Paris (1871) à Comuna de Gdansk (1980).

Nesses ciclos destacamos a existência da experiência de “sociedade autorregulada” (GRAMSCI, 2002), do socialismo autogestionário que existiu na Iugoslávia de 1950 até os anos 70. Vários ciclos ocorreram desse tipo de lutas pela autogestão desde a revolução libertária na Espanha (1936-39) e, no pós-guerra na Europa nos países do ‘capitalismo desenvolvido’, na Itália e na França em 1968-1976-77 e, em Portugal, a “revolução dos cravos” de 1974.

Na África destaca-se a “revolução Argelina” (1965). Na Ásia a “revolução chinesa” (1949) e, na América Latina, a “revolução cubana” (1959) e a ‘revolução sandinista’ (1979).

Em Nuestra América houve muitas lutas com características similares: a revolução mexicana (a Comuna zapatista de Morelos de 2011), a revolução de 1952 na Bolívia, a experiencia no Peru de Alvarado (1968), tendo seu ápice na experiência chilena da “Frente popular” do governo Salvador Allende (1970-1973).

Numa escala mais ampla (secular e ou milenar), temos a existência das lutas indígenas contra a Conquista espanhola (Tupac Amaru, 1781) e a existência de diversas Comunas (como a mexicana de 1521). Bruno Bosteels (2021) escreveu uma obra no sentido de um processo “da Comuna Mexicana (1781) à Comuna de Paris (1871)”.

Esse é um quadro geral!


Maria Clara: Quais as características do novo ciclo de lutas?


Cláudio: O novo ciclo iniciado na América Latina parte da rebelião neozapatista ocorrida em Chiapas em janeiro de 1994, tendo como centro a luta contra o neoliberalismo, mas portando um objetivo maior: um novo processo civilizatório. As lutas na Bolívia - a Guerra da Água em Cochabamba em 2001, a Guerra do Gás em 2003 e a Comuna de Oaxaca no México - deram seguimento a esse processo.

Uma de suas características é associar as lutas populares (de uma pluralidade de sujeitos) com eleições que levaram a governos ‘progressistas’. Um processo com avanços e recuos, mas que ainda tem seguimento com a vitória de Lula no Brasil em 2022, as vitórias no Peru e sobretudo na Colômbia, ambas em 2022, e a retomada, após o golpe de 2019, na Bolívia.

Em alguns países, a depender do caráter e do volume das lutas sociais, esses governos apresentam determinadas radicalidades ‘desde abajo’ com proposta e projetos com base em autogestão, comunas, entre outras formas e ‘desde acima’ com refundação do Estado via Constituintes como é o caso da Venezuela, da Bolívia e, no seu início, do Equador. Combinam, de forma contraditória, um “Horizonte nacional-popular” das velhas experiências nacionalistas de Nuestra América com um ‘Horizonte comunitário-popular”, característica própria a estas lutas desse ciclo.

Também podemos falar de um ciclo “Comuna Morelos-Zapatista de 1911 e da Comuna de Chiapas-Neozapatista de 1994.


Maria Clara: Como o Brasil se insere nesse ciclo?


Cláudio: A experiencia brasileira nesse ciclo insere-se no campo das ‘revoluções passivas’ (GRAMSCI, 2002) pelas próprias componentes estruturais da formação social do país (escravidão, estatismo, autoritarismo, dependência econômico-cultural). Sem dúvida, os governos do Partido dos Trabalhadores (de 2003 a 2016) desenvolveram políticas públicas de caráter ‘reformista revolucionário’ trazendo um quadro de melhores condições de vida para os mais pobres. Todavia, houve uma lacuna imensa no que diz respeito ao trabalho de educação e organização dos setores populares em torno de um projeto político de caráter popular. No que a fragmentação e debilidade dos próprios movimentos populares têm sua parcela de participação.

Olhando ‘desde abaixo’, por exemplo a questão do ‘trabalho associado-autogestão’, podemos destacar que, em relação a períodos anteriores (anos 80 e 90), é possível apontar a experiência da Economia Solidária (Ecosol) como um elemento novo que, ao menos, pautou questões fundamentais. Refiro-me à própria existência do movimento social da Ecosol com organismos desde a base até Conselho nas instâncias de Governo e Estado; propostas de legislação do trabalho associado-cooperativismo autogestionário; a existência no parlamento, via Frente Parlamentar, da Ecosol e da RILESS - Rede de Investigadores Latino-americanos de Economia Social e Solidária.

Surgiu um novo campo cultural em torno do trabalho associado-autogestão, com um amplo campo editorial e de debates; e, um novo campo da educação popular, papel da Universidade, seja com a programas e pesquisas em torno de temas como trabalho associado, autogestão, e uma nova área da educação popular nas ITCPs - Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (estas passaram a ter um papel importante, quando houve refluxo dessa área nos próprios movimentos sociais, com exceção do MST.)

As ideias de Paulo Freire foram conhecidas e aplicadas criativamente em experimentações de educação popular em uma escala quase massiva, por exemplo na própria Rede Cfes - Centros de Formação em Economia Solidária) e na rede de

educadores populares da EcoSol; na experiencia da RECID - Rede de Educação Cidadã - com debates em torno do ‘poder popular’. De certa forma Paulo Freire passou a ser conhecido nos sertões do país como nas experiências de autogestão territorial como na rede ASA - Articulação no Semiárido Brasileiro; nas experiências de Bancos Comunitários; na agroecologia, entre outras.

Acrescento a existência de uma “corrente autogestionária”, ainda dispersa e fragmentada, através de intelectuais, publicações e grupos políticos. Há um rico acúmulo de documentos políticos produzidos coletivamente na CONAES - Conferência Nacional de Economia Solidária e plenárias da Ecosol. No campo da educação popular verifica-se sistematizações e documentos didáticos produzidos na Rede dos CFES.

Enfim, do ponto de vista da História num ciclo de curta duração (2013-2016) com apoio de políticas públicas dos governos progressistas, esse acúmulo porta elementos que significam conquistas em vários campos para as lutas de resistência que se seguiram ao golpe de 2016 e frente ao regime protofascista de Bolsonaro (2019-2022) e, principalmente, para a retomada das experimentações da economia solidária, que ocorrerão no governo Lula entre 2023 e 2026.


Maria Clara: Qual a importância e vigência das ideias de José Martí e, sobretudo, de Mariátegui para a reflexão dos Movimentos Populares em Nuestra América?


Cláudio: De José Martí, sem dúvida, a luta anti-imperialista é o principal elemento de sua contribuição. Com o advento da revolução cubana, em 1959, o anti-imperialismo se articula com a proposta de socialismo. Por sua vez, de Mariátegui, penso que é a sua ideia de ‘nacionalizar o marxismo’ e, sobretudo, de um socialismo indo americano. Seu projeto nos apresenta três eixos fundamentais de grande atualidade: 1. a socialização dos recursos produtivos, ou seja, estabelecimento de relações de cooperação e solidariedade na produção; 2. a socialização do poder político, no sentido do exercício direto do poder pela sociedade em seu conjunto, através de formas de poder popular e comunal; 3. um novo sentido da vida, uma racionalidade alternativa à capitalista, com predomínio do valor de uso em relação ao valor de troca e da mercantilização da vida e um ‘reencantamento’ dos modos de vida.

Estes elementos de um ‘socialismo prático’ estão presentes nas lutas em curso em Nuestra America, sobretudo em países que buscam sair do campo das ‘revoluções passivas’.


Maria Clara: Para finalizar, quais os principais intelectuais do pensamento latino-americano para reflexão deste novo ciclo? Em particular, a partir da experiência brasileira, qual a contribuição de Paul Singer no que diz respeito à autogestão e sua pedagogia? Qual o papel da educação popular? E, na mesma perspectiva, qual a contribuição de Álvaro Garcia Linera?


Cláudio: Em nosso livro “Autogestão e Modos de Vida” apresentamos as ideias de vários teóricos/as, suas principais ideias e bibliografia. Todas /os têm pontos em comum: um ‘certo luxemburguismo’, a autogestão comunal e a pedagogia autogestionária como elemento integrante das experiências visando o socialismo. No livro defendemos este argumento nos seguintes ensaios: Anibal Quijano: Mariátegui, autogestão, Colonialidade; Rene Zavaleta Mercado: Autogestão e autodeterminação; Armando Bartra: Economia comunal e Modos de Vida; Bolívar Echeverria: A Ontologia do ethos barroco; Orlando Fals Borda: o socialismo raizal; Raquel Gutierrez Aguilar: Pachakuti e autogestão comunal; Che Guevara: Trabalho, autogestão e socialismo.

Acrescento dois complementos: primeiro, poderíamos acrescentar a esta lista quatro brasileiros: Mário Pedrosa, Rui Mauro Marini, Milton Santos e Michael Lowy. Segundo a obra do peruano Aníbal Quijano é fundamental a ideia da ‘colonialidade do poder’ e da ‘socialização do poder’ nessa fase de globalização do mundo. Com esse objetivo ampliamos nosso ensaio acima citado sobre Quijano. O novo ensaio está no meu livro “Autogestão Comunal” vol. 2 e intitula-se “Anibal Quijano: Aleph e os Caracoles (“um mundo onde cabem todos os mundos”).

E, com destaque especial, acrescento, a obra de Paul Singer. No ensaio “Paul Singer: uma tese e oito hipóteses sobre o socialismo/autogestão" (NASCIMENTO, 2018), tentei construir a trajetória de Singer com destaque para suas ideias de socialismo e pedagogia da autogestão.

Em seu livro Introdução à economia solidaria (2002), Singer faz referência à Chiapas: “[ ] o zapatismo mexicano talvez seja o paradigma e a promoção de

comunidades que renovam suas tradições culturais É nesse contexto que se verifica

a reinvenção da economia solidaria” (SINGER, 2022) (destaque do entrevistado).

Em todas essas lutas a questão gramsciana de que uma revolução cultural do cotidiano esteve presente. Em todos os campos do metabolismo social torna-se necessário um longo e profundo trabalho de educação popular e cultural. A ideia da autogestão é portadora da ideia da educação popular. Isso vale para educação popular em seu sentido libertário (Paulo Freire): sem autogestão não há educação popular e sem educação popular não há autogestão!

A ideia de socialismo em Singer sistematiza diversas experiências de um longo processo histórico que ele analisou: os Kibutzes, o Solidarnosc, a Revolução russa e a Iugoslávia). No pensamento de Singer a questão pedagógica é intrínseca e orgânica. Singer sempre teve o papel de educador popular.

Sobre a pedagogia da autogestão, gostaria de destacar a obra de Paul Singer que reflete a experiencia do movimento economia popular e solidária em conjunto com a política pública da SENAES (Secretaria Nacional da Economia Solidária), quando coordenada por Singer.

A experiencia que ele teve nos Governos Lula-Dilma, à frente da SENAES permitiu o desenvolvimento de um ‘campo público”, através da REDE CFES, em que um ‘intelectual coletivo’ (Rede de educadores populares) sistematizou o que chamamos de ‘pedagogia da autogestão’. Tinha como paradigma que “A Ecosol é um ato educativo”, ou, como diria Gramsci que todo ato de hegemonia é um ato pedagógico.

Diz Singer: “A Ecosol é um ato pedagógico em si mesmo...Contudo, a EcoSol é um passo decisivo para além desse aprendizado pela vivência, pois ela propõe a solidariedade não só como imposição da necessidade, mas como opção por outro modo de produção”. (SINGER, 2005, p.20 – destaque do entrevistado).

Na linha do processo educativo, em uma de suas obras Singer afirma: “Uma grande parte da construção do socialismo tem de ser realizada ainda sob hegemonia capitalista. O conjunto da Economia Solidária assim constituída deve ser considerado como uma vasta escola de capacitação socialista”. (SINGER, 2018, p.159, destaque do entrevistado).

Nesse sentido, as ideias de Singer de “agentes de desenvolvimento solidário” o aproximam das ideias de Orlando Fals Borda. E a ideia de “revoluções silenciosas do cotidiano”, por sua vez, o aproxima da ideia de ‘longa revolução’ de Raymond

Williams (2023). Os três têm, também, em comum a necessidade de transformações culturais e educativas em um longo processo tendo por horizonte o socialismo, a construção de uma hegemonia. O pensamento de Gramsci é um elemento comum aos três.

Trata-se de um novo campo da educação popular no Brasil. E está presente em todas as experiências da Economia Solidária na América latina. Muitas Redes se formaram: “Currículo Universal da economia solidaria”, a “Rede internacional de economia solidaria”, a “Rede das economias transformadoras”, a “Escola internacional de autogestão”, entre outras.

A ideia de Redes Solidárias se desenvolveu mais no campo teórico que nas práticas das experiências. Singer já assinalava o papel das Redes, (usando expressão gramsciana), no sentido de a Ecosol superar seu ‘momento econômico-corporativo” e dar um salto de qualidade para o’ momento superestrutural’ de criação de contra hegemonias, isso é, se tornar um ‘modo de produção hegemônico’.

Singer definiu claramente: “No caso do Brasil, isso ainda está longe de ser ocaso. Nosso meio ambiente é dominado pelo capitalismo. E, para que a Ecosol complete sua construção no Brasil, conclama pela construção de ramos que lhe são complementares, ou seja, cadeias produtivas e Redes solidárias”. (SINGER, 2005, p.19, destaque do entrevistado).

Nesse sentido, o Documento da CONAES temática “Educação e Autogestão” (2014), consolidou a proposta da educação na Ecosol na linha da autogestão e, sem dúvidas, como expressa um debate e uma construção coletiva dos agentes da Ecosol no Brasil, pode ser uma referência em termos de Nuestra América.

A experiencia da Rede CFES trouxe uma grande contribuição no campo da definição de instrumentos pedagógicos-metodológicos para a Ecosol (por exemplo, a ‘sistematização’, a ‘pedagogia da autogestão’, sobre as quais há uma extensa produção de material escrito e visual). Todavia, é a experiencia de alguns programas com base em ‘territorialidades’ e ‘agentes de desenvolvimento’, que estão na agenda do novo ciclo da EcoSol, iniciado com a vitória de Lula em outubro de 2022.

Já sobre os “Agentes de Desenvolvimento Solidário, em outra ocasião, assinalamos as ‘afinidades’ entre Singer e Orlando Falls Borda em torno do tema dos ‘agentes de desenvolvimento” (NASCIMENTO, 2018).

O principal ensaio de Singer (2022) sobre o tema dos “Agentes”, intitula-se” É possível levar o desenvolvimento solidário às comunidades pobres?”.

Retomando nosso ensaio de 2018, voltemos a Singer e sua ideia central: os agentes de desenvolvimento”. Segue afirmações de Singer que cito neste ensaio.

“O processo de desenvolvimento requer um relacionamento simbiótico entre comunidade e os profissionais que estamos denominando ‘agentes de desenvolvimento’. Estes representam bancos públicos, serviços públicos (como Sebrae ou Sescoop), agências de fomento da economia solidária, ligadas à Igreja, aos sindicatos ou às universidades ou então aos movimentos sociais.

A missão inicial dos agentes é levar à comunidade a consciência de que o desenvolvimento é possível pelo esforço conjunto da comunidade, amparado por crédito assistido e acompanhamento sistemático (incubação).

Singer define a pedagogia em questão: “Esta consciência é levada ao conjunto da comunidade, o que deve desencadear um processo educativo ou de educação política, econômica e financeira de todos os membros. Trata-se de capacitação adquirida no enfrentamento dos problemas reais, à medida que eles vão se colocando.

Sobre os coletivos populares, ele se manifesta: “No decorrer do processo, instituições vão surgindo por meio das quais a comunidade se organiza para promover o seu desenvolvimento: assembleias de cidadãos, comissões para diferentes tarefas, empresas individuais, familiares, cooperativas e associações de diferentes naturezas. O poder público local poderá se associar ao processo e se fazer representar, quando necessário, em comitês mistos públicos-privados.

Sobre a troca de saberes: “o relacionamento entre a comunidade e os agentes deve se tornar crescentemente igualitário, mediante a contínua troca de saberes. Nesta troca, os membros da comunidade recebem ensinamentos e os oferecem aos agentes, num processo de educação política mútua” (2018-186).

Estes agentes serão educados para essa tarefa. O ideal é que a preparação se faça em equipe ...também aqui a pedagogia da capacitação será possivelmente a mais adequada: treinamento teórico entremeado por idas à comunidade, onde a luta contra os problemas reais levantará novos temas a serem destrinchados depois, no estudo teórico.

Sobre as estruturas de formação: “Conviria criar um centro nacional de preparação de agente de desenvolvimento, em que os conhecimentos gerados pelas

experiências de desenvolvimento comunitário, nas diversas regiões do país, possam ser reunidos e sistematizados”.

Os métodos de promoção não podem ter a pretensão de oferecer um caminho único ou a ‘melhor prática’, pois cada comunidade é única em suas potencialidades.

Sobre a coordenação comunitária em REDES/Cadeias: “o pequeno tamanho da comunidade pobre e o seu relativo isolamento fragilizam suas possibilidades de se desenvolver por meio próprio (com apoio público).Um centro nacional de preparação de agentes de desenvolvimento poderia promover entrosamento das comunidades...uma federação de comunidades com a mesma especialização, seja ela agricultura ,artesanato, turismo ou o que for ,configura o que hoje se conhece como arranjo produtivo local(...).O centro nacional poderia colocar as comunidades com possibilidades de se federar, em contato e os agentes de desenvolvimento as assistiriam na construção de APLs (Arranjos Produtivos Locais)”.

Para Singer, a Internet facilitaria a articulação de comunidades com proximidade geográfica. “Comunidades com especializações complementarias – tecidos, confecções, produtora de rações e criadoras de animais etc.- teriam boas razões para se federar ...O centro nacional de preparação poderia criar espaço de negociação”.

Singer avança para ideia de criar uma sinergia que articule as atividades da União/Governo federal em um único centro com diversos Ministérios, garantindo a autonomia das comunidades, em nível municipal e estadual, seria iniciativa do poder local. Um grupo de trabalho interministerial seria responsável pelo apoio federal sistematizado e coordenado.

Enfim, com a vitória de Lula em 2022, a Economia Popular e Solidária (novo nome dado pela SENAES) traça uma proposta a partir de um balanço da experiencia do ciclo anterior dos governos petistas em uma nova conjuntura de governo Frente Ampla com minoria no congresso. As avaliações do período anterior mostram que a ausência de um trabalho de base, de organização popular, em torno das muitas políticas sociais (bolsa família, minha casa minha vida, luz para todos ,entre tantas outras),a partir das necessidades básicas das populações (alimentação, moradia, luz, transporte, saúde, violência, etc.), e o combate político-cultural ao novo ‘senso comum’ dito ‘bolsonarista’, de certa forma, associado às igrejas eletrônicas e as milícias ,todo esse conjunto criou uma nova conjuntura. Tudo isso, agravado no

período da PANDEMIA COVID 19, demanda uma nova estratégia no governo: a “transversalidade interministerial através da educação popular”.

Os diversos ministérios têm um comitê de educação popular, articulados com a Secretaria Geral da Presidência, com suas três (3) diretorias (orçamento participativo, educação popular e participação social). De início, destacam-se Saúde, Meio Ambiente, Trabalho-Ecosol e Cultura na construção de seus programas de “Agentes”.

No caso da SENAES, há a construção de um Programa de “Agentes Populares”, a partir de uma avaliação de projetos anteriores, como: Brasil Local, Redes Solidárias e da RECID, que existia na secretaria geral do governo Lula, (dirigida pelo atual secretário da SENAES, educador Gilberto Carvalho). É como se a experiencia, inicialmente do Talher no Fome Zero, fosse incorporada pelo Governo como estratégia de participação popular.

Sem dúvidas, a inspiração está nas ideias de Paul Singer sobre o papel dos agentes de desenvolvimento solidário, que abordamos acima.

Por fim, faço algumas reflexões sobre a contribuição do ex-vice-presidente da Bolívia, A. Garcia Linera.

Emir Sader, profundo conhecedor da América Latina, em sua obra pioneira sobre esse ciclo de experiencias, analisando “O Desafio Teórico da Esquerda- Latino-americana”, afirma que “Continente de revoluções e contrarrevoluções, a América Latina padece de pensamentos estratégicos que orientem processos políticos tão ricos e diversificados, à altura dos desafios que enfrenta (...) O continente não produziu a teoria de sua prática”. (SADER, 2009, p. 93, grifos do entrevistado)

Para Sader, “não contamos com grandes sínteses estratégicas que nos permitam usar balanços de cada uma dessas estratégias e um conjunto de reflexões que favoreçam a formulação de novas propostas” (SADER, 2009, p. 93). Assim, não ocorrem processos comuns de acumulação e, reflexão e síntese, não se passou da fase defensiva e de resistência à fase hegemônica, nem ao menos retomar os grandes temas de épocas passadas, como estratégia de poder, debate sobre o Estado. É a conclusão do sociólogo brasileiro. Sader, todavia, assinala uma exceção: As elaborações do grupo boliviano Comuna, são uma exceção: constituem o mais rico conjunto de textos que a esquerda latino-americana pode contar, um exemplo único em sua história pela capacidade de aliar trabalhos acadêmicos e

elaborações individuais de grande criatividade teórica, de autores como Álvaro Garcia Linera, Luis Tapia, Raúl Prada, entre outros (SADER, 2009, p. 100). A esse entre outras, firmamos o nome de Raquel Gutierrez Aguilar.

Devido a ampla obra de Linera, aqui, só podemos indicar nossos ensaios em “A Autogestão Comunal” (vols. 1 e 2) em que analisamos as contribuições fundamentais de A. Garcia Linera:- “A Comuna Aymara”; “A Forma Comuna na Potência Plebeia” e “Valor de uso e Valor de troca”.

Todavia, tentemos destacar o foco principal da contribuição de Linera, que em ensaio de 2016, tenta sistematizar o ciclo de lutas e governos progressistas na América Latina:

“Trata-se da emergência de inéditas formas de democratização/dissolução do Estado e da dissolução de poder econômico nos setores subalternos, que são capazes de criar modos de trabalho, de gestão e distribuição comunitários/universais da riqueza. Nesta capacidade de autodeterminação da própria sociedade, e não mais do Estado, se acha a chave que decidirá, no futuro, a possibilidade do passo dos pós neoliberalismo aos pós capitalismo”. (LINERA, 2016, p. 33).


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