Introdução
A existência das comunidades quilombolas no Brasil evidencia um projeto
possível de partilha, de viver em comunidade, da concepção do território como
coletivo e respeitoso com a terra e a natureza, que se contrapõe ao modo de vida e
produção capitalista (Dealdina, 2020). E as mulheres, nestes contextos, exercem um
papel fundamental, pois elas transmitem oralmente, de forma predominante, os
valores culturais, sociais, educacionais e políticos para a juventude, sendo as
guardiãs da pluralidade de conhecimentos presentes nos territórios
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quilombolas
(Silva, 2020). Além disso, a organização das comunidades quilombolas em prol do
seu direito aos territórios ancestrais evidencia a luta pela demarcação de terras,
mas, sobretudo, pelo seu direito a um modo de vida (Silva, 2014), que dentre outras
coisas, envolve a forma como se relacionam com a natureza em prol das suas
necessidades, ou seja, remete a compreensão sobre o trabalho nos quilombos.
O trabalho é, assim, compreendido como a transformação sobre a natureza,
em função das necessidades humanas, em um processo em que ao transformar o
seu entorno, essa natureza, o ser humano transforma-se a si mesmo (Marx, 2017).
Marx (2017, p. 120) evidencia o caráter ontológico do trabalho ao concebê-lo como
“condição de existência do homem, independente de todas as formas sociais”. Ainda
que esta forma de conceptualização totalizadora do trabalho marxista seja
questionada por muitos autores no século XX, particularmente por parte da tradição
teórica neomarxista frankfurtiana (Adorno, 1969; Habermas, 1975; etc.), mas
também de outros autores como Althusser (1968), Sève (1975) etc., no nosso
contexto entendemos que ainda pode ter valor explicativo pelas características
intrínsecas ao modo de vida das comunidades tradicionais.
Para Habermas
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essa “conceptualização totalizadora de Marx” do trabalho
que envolve toda existência do sujeito enquanto as ações humanas, não
corresponde à realidade das ações do sujeito humano que não simplesmente se
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Habermas (APUD RADL-PHILIPP, 1991) diferencia especialmente duas esferas e formas de ações
fundamentais, a esfera do trabalho e a esfera social, e assim ações instrumentais estratégicas que
seguem uma racionalidade com respeito afins, e ações interativas-comunicativas cujo fim reside nos
mesmos sujeitos, em sua autorrealização e não em uma intervenção exterior ou da natureza.
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O território em uma acepção hegemônica se expressa como uma extensão superficial da terra, um
recurso funcional que responde às demandas emergentes do modo de produção capitalista e, dessa
forma, fortalece as desigualdades sociais e a destruição natural (Santos, Ferreira, Moreira, 2024).
Nesse sentido, concebemos o território numa perspectiva contra-hegemônica que compreende a luta
e o pertencimento dos diferentes grupos culturais com o território, assumindo seu papel central como
lugar de vivências, vínculos e afetividade (SANTOS, FERREIRA, MOREIRA, 2024).