V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


Memória e Documentos


PROF. HUGO ZEMELMAN: PARA RECUPERAR UMA VISÃO UTÓPICA1


Maria Ciavatta2


Acervo La Red CEPELA. Hugo Zemelman. Disponível em: https://www.redcepela.org/pensadores/hugo-zemelman/ - Acesso 17 de outubro de2023.


A seção Memória e Documentos reproduz, neste número de Trabalho Necessário, a entrevista “Recuperar uma visão utópica”, realizada nos anos 1990, com o Prof. Hugo Zemelman, importante intelectual latino-americano. É uma homenagem de reconhecimento à sua contribuição ao conhecimento e às ações de transformação das sociedades deste Continente.


1 Artigo recebido em 16/01/2024. Aprovado pelos editores: 29/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61456.

2 Doutora em Ciências Humanas (Educação), pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC- RJ), Rio de Janeiro - Brasil. Professora Titular de Trabalho e Educação na Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói - Brasil. E-mail: maria.ciavatta@gmail.com.

ORCID: https://orcid.org/0000.0001.5854.6063. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5368554854684382.

“Vou fazer a louvação, louvação, louvação do que deve ser louvado, ser louvado, ser louvado. Meu povo preste atenção, atenção, atenção, repare se estou errado, louvando o que bem merece, deixando o ruim de lado” (Gilberto Gil).


Assim compôs e cantou Gilberto Gil, em 1967, pouco antes do AI-5, em plenas trevas no Brasil do tempo da Ditadura (1964-1985), que iria se estender por vários países da América Latina. Em 1973, foi a vez do Chile com o Golpe Militar e a morte do líder socialista Salvador Allende. A diáspora de intelectuais e militantes políticos já tinha começado no Brasil, e o Prof. Hugo Zemelman vai estudar fora do país e se exila no México.

O Prof. Zemelman (1931-2013) merece ser louvado como uma fonte inesgotável de conhecimento, de generosidade, de agradável e culta convivência. Sociólogo e epistemólogo, dedicou-se aos estudos de direito, de sociologia rural e de educação. Radicou-se no México como professor da prestigiada Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM); no El Colegio de México, outra importante instituição de pesquisa e de pós-graduação; e na Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO).

Realizou uma vasta carreira de conferências, publicações, de apoio a movimentos sociais. Em 2023 completaram-se dez anos de seu falecimento. Ao longo da década, foi objeto de vários estudos e de homenagens. Memória e Documentos da Revista Trabalho Necessário recupera a entrevista que a professora Célia Frazão Linhares e eu realizamos em 23 de setembro de 1993, quando ele veio estar conosco na Universidade Federal Fluminense (UFF). Como Professor Visitante do Programa de Pós-graduação em Educação, ele ministrou a disciplina “Os horizontes da razão e a produção do conhecimento” para o Curso de Mestrado em Educação. Na época, tramitava na UFF e na Capes, a proposta de criação do Doutorado em Educação.

Anos antes, aproximei-me dos textos do Prof. Zemelman no decorrer de meu Doutorado em Ciências Humanas – Educação. Eu buscava um encaminhamento teórico para passar da generalidade abstrata do pensamento educacional brasileiro à questão de como a relação educação e trabalho toma forma nos processos concretos das escolas que preparam para o trabalho, das escolas profissionais e técnicas.

Em uma viagem ao México, em 1988, a Profa. Guadelupe Bertussi da Universidad Pedagógica Nacional (UPN) me recomendou a leitura de um texto do

Prof. Zemelman “Problemas de explicación del comportamiento reproductivo (sobre las mediaciones)”. Diz ele na apresentação do tema: “Estamos conscientes de la dificultad de analizar el movimiento del pensamiento analítico desde las más amplias abstraciones, que caracterizan a los esquemas interpretativos, hasta el nivel de lo empírico” (ZEMELMAN, [1988] (?), p. 1). Era a resposta teórica ao meu problema de tese, que foi se ampliando com outros conceitos básicos do materialismo histórico. A questão da totalidade social é dominante em seus escritos (v. 1987, 1987a; 1992a; 1992b). A totalidade implica o conceito de mediação (1989 a), de historicidade (1992b), de sujeitos sociais (1989a; 1989b), de tempo e espaço (1983), de dialética e de contradição (1983).

Este “abre-te sésamo” ao meu trabalho de tese foi o início de uma longa aprendizagem. Muitas de suas obras foram publicadas pela editora de El Colegio de México e da UNAM. Outras têm o selo editorial da Universidad de las Naciones Unidas, da Siglo Veintiuno, da Anthropos, da Nueva Sociedad. Três questões estão sempre presentes em seus escritos: a América Latina, as questões políticas e epistemológicas do ponto de vista da sociedade e do ser humano. Seus autores de referência são marxistas e não marxistas, filósofos, sociólogos, historiadores, antropólogos, economistas, pensadores de muitas filiações teóricas e temáticas.

Talvez, uma síntese da reflexão ampliada que ele conduziu ao longo de suas obras, sejam alguns comentários do Centro de Estudios Sociológicos de El Colegio de México, na última capa de “Uso crítico de la teoría”(1987a) : “Este libro constituye una reflexión epistemológica en torno al concepto de razón crítica; busca transformarlo en el núcleo de una metodología dinámica que sea capaz de aprehender la realidad social, heterogênea y en constante movimiento”. Zemelman faz uma apropriação crítica do marxismo a partir da Introdução de 1857 e de outros autores como Galvano Della Volpe, Karel Kosik, Ernest Bloch e outros mais com quem ele dialogou: Henri Lefebvre, Gyorgy Lukács, Pablo Gonzales Casanova, Antonio Gramsci, Hans-Georg Gadamer, Thomas Khun.

Selecionamos algumas obras que evidenciam a epistemologia marcada pelo social e pela política na América Latina. Ainda no Chile, no período Allende (1970 a 1973) publicou “El migrante rural” (1971), “El campesinato: clase y conciencia de clase. Factores determinantes en el surgimiento de la conciencia de clase (1972).

Alguns de seus livros publicados nos anos 1980 são: “Notas sobre cultura y creación política " (1981); “Historia y política en el conocimiento” (1983); “Uso crítico

da teoria. En torno a las funciones de la totalidade” (1987a); “De la historia a la política. La experiencia de América Latina” (1989 a) “Conocimiento y sujetos Sociales” (1989 b); “Crítica epistemológica dos indicadores” (1989 c).

Dos anos 1990 podemos citar: “Los horizontes de la razón. I. Dialéctica y apropiación del presente” (1992 a); “Los horizontes de la razón. II. Historia y necesidad de la utopía” (1992 b); “Determinismos y alternativas en las ciencias sociales en América Latina (1995); “El conocimiento como desafío posible” (1996).

No século XXI, “Necesidad de conciencia” (2002); e nos últimos anos de vida: “Horizontes de la Razón III: Uso crítico de la teoría. El orden del movimiento (2011); Pensar y poder. Razonar y gramática del pensar histórico “ (2012); “Lecciones teórico-políticas de la Coyuntura en Chile (1970-1973)” (2013).

A entrevista com o Prof. Zemelman foi realizada em 1993, na Faculdade de Educação, e publicada em 2001 pela Revista Educação & Sociedade. É o documento reproduzido neste exercício de memória e de reconhecimento. Teve como questão principal, “conhecer seu pensamento diante dos problemas postos pelo presente e pelo futuro em um mundo altamente tecnologizado e socialmente em desestruturação” (p. 295). Tínhamos em mente “a onda de exclusão e os limites dos sonhos de liberdade” trazidos pelo neoliberalismo na economia, no Estado e na sociedade. Era o início da reestruturação produtiva, do Estado mínimo, do corte de recursos para as políticas sociais, das tentativas de desregulamentação das relações de trabalho e da educação subsumida à ideologia das necessidades do mercado.

Estávamos na transição entre o governo Collor de Mello (1990 a 1992) e o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998-2002), que seria eleito em 1994 e implementaria a ideologia neoliberal com todos os seus percalços para a população.

Zemelman (2001) parte do presente e mira “um conhecimento que tenha o sentido de recuperação da dignidade humana” para vislumbrar um “futuro possível”, uma visão utópica em seu sentido de emancipação. Lembra a prisão das lógicas deterministas e mecânicas do conhecimento. Afirma que se há de colocar em discussão que o ser humano alcançou um “desenvolvimento civilizatório máximo” e uma “debilidade intrínseca” que, no limite, pode levá-lo à morte. Há uma “perda do instinto de conservação” que se associa “a seu próprio progresso técnico e intelectual”. O ser humano destrói a natureza e destrói a si mesmo. É necessário

abandonar antigas ilusões sobre o ser humano como construtor de si mesmo e levá-lo a pensar nas “condições de poder dignificar-se” (p. 296).

Outro argumento importante é a questão da liberdade entendida “como possibilidade de realização da pessoa”, o que é cada vez mais negado pela “sociedade moderna, burocratizada e complexa”. Nela o ser humano é submetido “à lógica inexorável que o controla, que advém dos avanços tecnológicos”, em que são mínimos os espaços para sua condição de ser pensante, em que se perde a visão de futuro (p. 297). E é preciso lembrar que esta é uma reflexão feita há trinta anos atrás, antes dos avanços atuais das plataformas das mídias sociais, das possibilidades e das ameaças da Inteligência Artificial.

Zemelman destaca duas dimensões fundamentais da tecnologia, há um discurso ideológico hegemônico de que a tecnologia vai melhorar as condições de vida dos seres humanos. Segundo, disfarça a alta concentração de riqueza. É um discurso unilateral, reducionista que apresenta o “progresso tecnológico” como algo positivo. E o que fazem os meios de comunicação buscando satisfazer os clientes, cuja expressão maior é promover o consumismo. Gera-se uma “cultura sem subjetividade, uma cultura sem conteúdo, apenas instrumental”. É um “mecanismo de alienação e também de criação de subalternidade”. Através de “certos tipos de avanço tecnológico (...) há uma crescente solidão da pessoa”. (297-298).

A utilização da tecnologia por certos grupos, faz o autor refletir sobre a ilusão fáustica do homem criador, do homem prometeico, pela quantidade de invenções, de meios para controlar. No entanto, o relega a espaços mínimos de resistência, “deixando o resto de seu espaço social nas mãos de máquinas ou de instrumentos”, em que a emancipação é de certos homens, controlados por certos grupos de homens. O sentido fáustico transforma-se em “uma maquinaria voraz, insaciável que come seus próprios procriadores” (p. 298-299).

O ser humano é o único ser da natureza que destrói seu próprio habitat, que vai além de seus condicionamentos biológicos. Com o elemento prometeico vem “o elemento do aprendiz de feiticeiro, porque vem a esperança de criar sempre um ambiente novo onde possa se reproduzir”. O que pode chegar “à ficção, se destrói a natureza, podemos reconstruir a vida no espaço”. O que não será, evidentemente, para a humanidade inteira, “será apenas para aqueles que controlarem a tecnologia suficiente para construir seu habitat no espaço” (p. 299-300).

No último tópico da entrevista, Zemelman volta à ideia de uma “visão utópica que, no fundo, são compromissos com certos valores de libertação que não sejam simplesmente a projeção do discurso tecnológico”. Neste ponto, a educação teria um papel importante que ele sintetiza na ideia de que “se a educação não ensinar as novas gerações a pensar no contexto histórico, além das teorias, não podemos esperar que a gente jovem não continue na lógica que, neste momento, aparece dominada pelo discurso tecnológico” (p. 300). Hoje, estas ideias se expressam exponencialmente em práticas econômicas, de comunicação e de educação, no exacerbado consumo de bens materiais e digitais. Resta-nos fazer a leitura do contexto histórico em que vivemos e buscar recursos das ações coletivas em defesa da natureza, incluindo os seres humanos.


Referências3


ZEMELMAN, H. Campesinado. clase y conciencia de clase: Factores determinantes en el surgimiento de la conciencia de clase: Ed. Nueva Visión, Buenos Aires, 1972.

ZEMELMAN, H. El migrante rural. Instituto de Capacitación e Investigación en Reforma Agraria, (ICIRA); Santiago de Chile, 1971. 153 p.

ZEMELMAN, H. Notas sobre cultura y creación política. HSDRSCA, 605/ UNUP, 286; Tokyo: United Nations University, Project on Socio Cultural Development Alternatives in a Changing World, 1981. 16 p.

ZEMELMAN, H. De la historia a la política. La experiencia de América Latina. México: Siglo Vinteuno Editores; Universidad de las Naciones Unidas, 1989 a.

ZEMELMAN, H. Los horizontes de la razón I – Dialética y apropriación del presente. México: El Colegio de México; Barcelona: Anthropos, 1992 a.

ZEMELMAN, H. Los horizontes de la razón II - História y necesidad de utopia. México, DF; Barcelona: Anthropos, 1992 b.

ZEMELMAN, H. Horizontes de la Razón III: Uso crítico de la teoría. El orden del movimiento. Editorial Anthropos Barcelona 2011.

ZEMELMAN, H. Historia y política en el conocimiento. México: UNAM, 1983.


ZEMELMAN, H. La totalidad como perspectiva de descubrimiento. Revista Mexicana de Sociologia, México, marzo/abril 1987. Separata.


3 Estas referências não incluem todas as obras do Prof. Hugo Zemelman.

ZEMELMAN, H. Uso crítico de la teoria. En torno a las funciones de la mediación. México, UNU/El Colegio de México, 1987a.

ZEMELMAN, H. Conocimiento y sujetos sociales. Contribuición al estudio del presente. México, DF: El Colegio de México, 1987 b.

ZEMELMAN, H. Problemas de explicación del comportamento reprodutivo.

(Sobre las mediaciones). México, DF: El Colégio de México, [1888] (?). Mimeo.

ZEMELMAN, H. Crítica epistemológica de los indicadores. México, DF: El Colegio de México, 1989 c.

ZEMELMAN, H. Determinismos y alternativas en ciencias sociales en América Latina. México, DF: UNAM; Caracas: Edit. Nueva Sociedad, 1995.

ZEMELMAN, H. Problemas antropológicos y utópicos del conocimiento. México: El Colegio de México, Centro de Estudios Sociológicos, 1996.

ZEMELMAN, H. El conocimiento como desafio posible. Coimahue: Editorial EDUCO; Universidade Nacional de Comahue, 1996.

ZEMELMAN, H. Necesidad de conciencia. Un modo de construir conocimiento. México, DF: Anthropos, 2002.

ZEMELMAN, H. Pensar y poder. Razonar y gramática del pensar histórico. Siglo XX1 e UNICACH, 2012.

ZEMELMAN, H. Lecciones teórico-políticas de la Coyuntura en Chile (1970-1973). Teuken Bidikay Vol. 4, n° 4, e-ISBN 2619-1822 Medellín, 2013.