V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X


CONTABILIDADE POPULAR: DIÁLOGOS INSURGENTES DE UMA

CONSTRUÇÃO EM REDE [Anna Carla Ferreira Silva; Bárbara Luandy Freitas de Souza; Flávia Almeida Pita; Maria Luiza D. A. Barbosa

Matheus Sehn Korting, orgs.]1


Ana Paula dos Santos de Oliveira2 Sidélia Luíza de Paula Silva3



1 Resenha recebida em 17/01/2024. Aprovada pelos editores em 22/01/2024. Publicada em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61459

2 Mestra em Direitos Humanos e Democracia pelo Programa de Pós-graduação em Direitos da Universidade Federal do Paraná (PPGD-UFPR), Paraná - Brasil. Advogada atuante junto à Rede Nacional de Advogados Populares (RENAP). Email: anasoliveira.juridico@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/4618674194809933. ORCID: https://orcid.org/0009-0005-0525-0193.

3 Mestra em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), São Paulo - Brasil, na área de Política Pública e Desenvolvimento. Email: sidelialuiza@gmail.com.

Lattes: http://lattes.cnpq.br/2637191918328163. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5354-2511.

Com o presente texto apresenta-se a resenha do livro Contabilidade Popular: Diálogos Insurgentes de uma Construção em Rede, publicado em 2023, pela Editora Capina, e organizado Anna Carla Ferreira Silva, Bárbara Luandy Freitas de Souza, Flávia Almeida Pita, Maria Luiza D. A. Barbosa, Matheus Sehn Korting, consistindo em um conjunto de seis artigos que contrastam práticas e técnicas populares e acadêmicas relacionadas à sistematização do curso "Contabilidade Popular: Desmistificando o Universo do 'Contabiliquês'”, realizado em 2021 pela Capina - Cooperação e Apoio a Projetos de Inspiração Alternativa.

Os textos buscam sistematizar o processo do curso e refletir sobre seu conteúdo, com destaque para o resultado que culminou na consolidação da Rede Contar, articulação multiprofissional e interdisciplinar que reúne profissionais envolvidos com assessoria para iniciativas populares em todo o Brasil.

A coletânea de textos busca enriquecer o diálogo sobre questões técnicas e populares, visando contribuir para aprimorar a atuação das assessorias profissionais (contábil, jurídica, de gestão, educação popular etc.) ao mesmo tempo em que instrumentaliza as iniciativas com informações relevantes, com a finalidade de promover um diálogo mais efetivo entre todos os envolvidos.

O prefácio da obra, assinado pelo Professor José Raimundo Oliveira Lima (Incubadora de Iniciativas de Economia Popular e Solidária da Universidade Estadual de Feira de Santana, Bahia), enfatiza a importância da publicação para as Ciências Contábeis e assessorias que lidam com iniciativas populares. Destaca-se a relevância desse conteúdo para os processos normativos e legislativos do Estado. Ressalta também os desafios em abordar questões estruturais e na relação entre profissionais e iniciativas populares, reconhecendo a complexidade nas interações entre profissionais e usuários.

No primeiro artigo, O que é contabilidade popular e de que contabilidade e para quem estamos falando? os(as) autores(as) Anna Carla Ferreira, Bárbara Luandy Freitas de Souza, Maria Luiza D. A. Barbosa e Matheus Sehn Korting conceituam a contabilidade popular e destacam a necessidade de diálogo entre iniciativas populares e assessorias. A educação popular é identificada como a espinha dorsal para se pensar uma contabilidade popular, intrinsecamente ligada aos processos formativos, educativos e ao diálogo entre iniciativas populares e

assessorias dessa área, por vezes, contratados ocasionalmente como consultores pontuais.

Embora a sustentação da educação popular e estrutura pedagógica seja utilizada para viabilizar os processos formativos nessa área, é nítido que uma pedagogia que atenda os processos de aprendizagem da gestão democrática, ainda está em construção, sem uma “receita de bolo”, mas com experiências e intercâmbios importantes.

Nesse sentido, a metodologia campesino-a-campesino, assim como a pedagogia da alternância são processos pedagógicos dos campos populares e igualmente importantes, tanto para as iniciativas populares quanto para profissionais em seus processos de aprendizagem. É fundamental considerar esses aspectos e como podem potencializar uma contabilidade que atenda às iniciativas populares vinculadas à economia solidária e autogestão de iniciativas populares.

Além da formação, nessa interação entre assessores e iniciativas, percebe-se que a contabilidade, mesmo com a finalidade de atender às empresas, têm se adaptado a partir da reflexão sobre formalização pelas iniciativas populares, que perpassa pelo apoio de uma assessoria engajada que apresente as vantagens, desvantagens e a sustentabilidade dessa formalização de acordo com a dinâmica do grupo e suas sazonalidades, de maneira que seja garantida a sustentabilidade mínima em relação à gestão da iniciativa.

Outro desafio é estabelecer um marco de regime contábil e jurídico que seja abrangente e consiga atender à maioria das iniciativas, levando em conta as especificidades em diferentes contextos (espaço urbano, rural, quantidade de pessoas, natureza do serviço). Pontua-se as dificuldades para o avanço na tramitação de projetos de lei sobre os Empreendimentos Econômicos Solidários, que não avançou, assim como a importância desta regulamentação, que poderia facilitar a gestão administrativa, jurídica e contábil das iniciativas, aproximando a norma de sua efetiva realidade. O destaque desse texto de abertura é trazer os principais desafios de ambos os lados, tanto dos profissionais envolvidos quanto das iniciativas populares, mostrando como a contabilidade popular não apenas opera, mas também reflete sobre sua atuação.

O segundo artigo, Conversações sobre gestão democrática e educação popular, de Katia Faria de Aguiar e Matheus Sehn Korting, revela a organização do

curso realizado pela Capina, de forma virtual, entre março e julho de 2021, e os esforços pedagógicos para integrar saberes de iniciativas populares, assessorias e profissionais das Ciências Sociais aplicadas. Destaca-se a integração de conhecimentos como catalisador para a economia solidária e popular.

A interação entre análise teórico crítica, com a experiência prática do curso, possibilitou no decorrer do texto, um olhar atento e direcionado para questões cotidianas muito práticas de quem atua diretamente com vivências e processos organizativos da economia popular, na direção de tecer um possível caminho para a seguinte indagação: “como seria uma contabilidade popular [...] com menor distância entre aqueles que calculam, que detêm os saberes validados nos campos científicos universitários, e aqueles que produzem, as/os trabalhadoras/es e suas outras formas de conhecimento” (AGUIAR; KORTING, 2023, p. 18).

Os três artigos seguintes oferecem uma análise crítica das normativas e legislações, servindo como guia para empreendimentos populares e profissionais. Abordam questões estruturais do capitalismo, destacando a formalização e reprodução desigual da força de trabalho, ressaltando a necessidade de compreender as nuances do trabalho informal.

O texto Formatos institucionais das iniciativas de economia popular no Brasil, de Flávia Almeida Pita, traça seu fio condutor a partir de uma análise que ao mesmo tempo se propõe crítica e também informativa. Crítica porque considera que os formatos jurídicos disponíveis para a formalização de coletivos de trabalho popular resultam de uma deliberada estratégia de imposição, de cima para baixo, de modelos que interessam ao capital e são marcados pela colonialidade do poder (QUIJANO, 1992), desconsiderando a realidade majoritária de trabalhadores e trabalhadoras que jamais foram, como intuiu Francisco de Oliveira já nos anos 1970, “apenas depósito do ‘exército industrial de reserva’”, mas parte importante do “processo da acumulação global e da expansão capitalista e, por seu lado, reforçam a tendência à concentração de renda” (2013, p. 58). Nesse contexto, a reflexão crítica busca olhar para o sentido e a lógica da institucionalização das iniciativas de economia popular. Informativa, porque possibilita olhar para as opções existentes para essa formalização (sobretudo associações e cooperativas), trazendo elementos que podem auxiliar na definição, sempre artesanal, dos caminhos a serem escolhidos pelas iniciativas.

O quarto artigo, Incidência tributária: informações básicas voltadas às iniciativas da economia popular e solidária, de Caio Toledo, Luis Roberto Carrazza e Maria Luíza D. A. Barbosa, detalha as formas mais comuns de incidência tributária, fornecendo informações básicas e orientações para iniciativas de economia popular. Em linhas gerais, o texto busca apresentar, ainda que introdutoriamente, o conjunto de tributos municipais, estaduais e federais que incidem nas operações de comercialização, os regimes de tributação, bem como, a sua incidência em casos específicos de associações e cooperativas, e microempreendedor individual.

No quinto trabalho da obra, intitulado Demonstrações contábeis: registros contábeis para entidades sem finalidade de lucro, as autoras Ana Cândida da Silva Gomes e Bárbara Luandy Freitas de Souza trazem uma revisão da temática, levando em conta a sua importância na tomada de decisão e operacionalidade das organizações cotidianamente, destacando os desafios decorrentes da ausência de norma própria que aborde os procedimentos contábeis aplicáveis às entidade sem fins lucrativos, e as dificuldades na relação entre iniciativas populares e solidárias e assessorias, ressaltando a importância da gestão participativa.

O último texto, Rede Contar – por uma contabilidade popular, de autoria do coletivo da Rede Contar, encerra a obra com uma apresentação da Rede, esclarecendo sobre a história de sua criação, seus objetivos, ações que já vem sendo realizadas (a exemplo das “Conversa-ações”, encontros virtuais para troca de experiências e discussões em torno de temas centrais para as iniciativas econômicas populares). Ressalta-se, ainda, o desafio futuro de influenciar normativas e políticas públicas para beneficiar efetivamente as iniciativas populares.

Em síntese, Contabilidade Popular: diálogos insurgentes de uma construção em rede oferece uma visão abrangente e reflexiva sobre a contabilidade aplicada a iniciativas populares, destacando a importância da educação popular, gestão democrática e apontando desafios presentes e futuros para profissionais e empreendimentos envolvidos nesse contexto. O universo das iniciativas populares e solidárias, é amplo, rico e complexo, e não poderia ser diferente, pois é fruto de contextos e organizações coletivas diversas.

O trabalho dá conta de nos mostrar, com muita sensibilidade, que pensar e traçar elaborações a respeito de uma outra contabilidade, requer um posicionamento crítico, comprometido e atencioso à realidade e à prática de quem já faz ser possível

essa construção. No campo da tributação, o trabalho levanta questões muito centrais, especialmente, sobre a necessidade de se pensar um novo modelo, mais adequado às especificidades dos grupos e da economia popular e solidária. Ainda, no contexto da institucionalização das iniciativas, a importância da formação e emancipação política e crítica dos sujeitos envolvidos, para decidirem sobre a formalização dos vínculos, não apenas embasados na imposição externa, mas como resultado da construção conjunta dos envolvidos.

A obra se destaca como um guia fundamental para estudiosos, profissionais que atuam ou têm interesse na área, e sobretudo para as trabalhadoras e trabalhadores que buscam compreender e contribuir para o desenvolvimento da contabilidade popular no cenário brasileiro.


Referências


OLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista. O Ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013.

QUIJANO, A. Colonialidad y Modernidad-Racionalidad. In: BONILLA, Heraclio (org.). Los conquistados: 1492 y la población indígena da las Américas. Santafé de Bogotá, Colombia: Tercer Mundo; Ecuador: FLACSO: Libri Mundi, 1992, p. 437-447.