V.22, nº 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X
Matheus de Carvalho Barros2
O objetivo deste artigo é apresentar os principais postulados teóricos do capítulo sete da obra A Revolução Burguesa no Brasil, publicada por Florestan Fernandes em 1975. Em primeiro lugar, iremos analisar as formulações do sociólogo sobre o modo autocrático de realização do capitalismo na periferia e a característica intrinsecamente reacionária das classes dominantes brasileiras. Em seguida, empreendemos uma breve reflexão de como os diagnósticos apontados por Florestan nos ajudam a compreender o recrudescimento do caráter autocrático da nossa formação social sob o Governo Bolsonaro.
1 Artigo recebido em 22/01/2024. Aprovado em 30/01/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61530
2 Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ), Rio de Janeiro - Brasil.
E-mail: carvalho_barros@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1827391223830793. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3895-3961.
El objetivo de este artículo es presentar los principales postulados teóricos del capítulo siete de la obra A Revolução Burguesa no Brasil, publicada por Florestan Fernandes en 1975. En primer lugar, analizaremos las formulaciones del sociólogo sobre la forma autocrática de realizar el capitalismo en la periferia y la característica intrínsecamente reaccionaria de las clases dominantes brasileñas. A continuación, emprenderemos una breve reflexión sobre cómo los diagnósticos destacados por Florestan nos ayudan a comprender el resurgimiento del carácter autocrático de nuestra formación social bajo el Gobierno de Bolsonaro.
The objective of this article is to present the main theoretical postulates of chapter seven of the work A Revolução Burguesa no Brasil, published by Florestan Fernandes in 1975. Firstly, we will analyze the sociologist's formulations on the autocratic way of realizing capitalism in the periphery and the intrinsically reactionary characteristic of the Brazilian ruling classes. Next, we will undertake a brief reflection on how the diagnoses developed by Florestan help us understand the resurgence of the autocratic character of our social formation under the Bolsonaro Government.
Analisando as particularidades da transformação capitalista na periferia, em 1975, Florestan Fernandes publica umas de suas obras mais importantes que, segundo Coutinho (2000), é o primeiro texto onde o marxismo é assumido
explicitamente como ponto de vista metodológico pelo sociólogo paulistano. Refiro-me aqui à Revolução Burguesa no Brasil.
O livro é composto de três partes distintas, escritas em momentos diferentes por Fernandes. As duas primeiras são fruto das notas de aula de um curso, de 1966, voltado para o estudo da formação e do desenvolvimento da sociedade brasileira. Essas notas permaneceram arquivadas por muitos anos, até que sua filha, Heloisa Fernandes, o incentivou a retomá-las (PORTELA JR, 2021).
Assim Heloisa Fernandes relembra o contexto do surgimento da obra:
[...] para A Revolução Burguesa no Brasil, Florestan escreveu uma Nota Explicativa agradecendo o estímulo dos professores Luiz Pereira e Fernando Henrique Cardoso e o “incentivo entusiástico de minha filha, a professora Heloísa Rodrigues Fernandes”. Pode ser esta uma boa ocasião para esclarecer o que se passou. Professora de Sociologia da USP, eu estava preparando a redação da minha dissertação de mestrado. Num domingo, conversando com meu pai, falei da minha dificuldade para encontrar uma perspectiva de análise sociologicamente relevante da sociedade brasileira a partir de onde poderia ganhar sentido a criação da antiga e já saudosa Força Pública do Estado de São Paulo. Meu pai respondeu como sempre fazia: “pois leia isto, aquilo e aquilo outro. Depois, se quiser, consulte meu arquivo. Dei um curso sobre a formação e desenvolvimento da sociedade brasileira, na graduação, em 1966. Leia as fichas do curso porque você pode encontrar algumas sugestões”. Evidentemente, comecei a leitura das fichas e fiquei encantada! Nunca tinha lido nada com igual estatuto sociológico sobre a sociedade brasileira. Entusiasmada, disse-lhe que aquele material não podia ficar mofando no arquivo, que ele precisava ser publicado. Podem acreditar, meu pai resistiu o que pôde, “que de modo nenhum, que era apenas material de aula, etc. e tal”. Insisti e persisti inúmeras e repetidas vezes com essa garra que, afinal, herdei do meu próprio pai até que consegui abrir brechas na sua férrea determinação. Lembro que, certo dia, parou de argumentar, olhou bem pra mim, com aqueles seus lindos olhos já brilhando na alegria antecipada do trabalho que teria pela frente, e disse algo mais ou menos assim: “Você acha mesmo? Tem certeza? Então, vou reler essas fichas...” E foi assim que um curso sobre a formação e desenvolvimento da sociedade brasileira começou a ser transformado, inicialmente, no A Revolução Burguesa em Processo, que é como eu o cito, ainda como texto datilografado, na minha dissertação de mestrado, publicada em 1974, para se tornar, finalmente, A Revolução Burguesa no Brasil o qual, publicado pela primeira vez em 1975, é constituído pela revisão das anotações das aulas, de 1966, e por uma longa Terceira Parte, Revolução Burguesa e Capitalismo Dependente, que Florestan escreveu especialmente para o livro, em 1973 (FERNANDES, 2000, s/p).
O retorno a esse material anos depois é significativo, pois, neste período, nosso autor passou por transformações profundas que já não o permitiam enxergar
o processo de revolução burguesa do mesmo modo no Brasil. Se em 1966 o “socialista militante” já estava presente, mas nem sempre transparecendo no “acadêmico”, em 1973, quando retoma a escrita, ele passa para o primeiro plano sem deixar de lado o sociólogo rigoroso capaz de produzir uma análise refinada da realidade brasileira (PORTELA JR, 2021).
Para José de Souza Martins (2006), o livro em formato de ensaio ganha sentido no ambiente intelectual do debate brasileiro sobre o tipo de sociedade capitalista que estava se desenvolvendo no Brasil. Desta forma, A Revolução Burguesa poderia ser vista como o último grande estudo do ciclo de reflexões históricas e sociológicas abrangentes sobre o destino histórico do Brasil.
Acreditamos ser possível afirmar que A Revolução Burguesa no Brasil equivale, em certo sentido, ao O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia (1899) de Lenin, um marco nos estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo em sociedades diferentes da Europa Ocidental. A interpretação de Florestan sobre o processo da lenta e complicada revolução burguesa no Brasil tem como um dos seus aspectos mais positivos o distanciamento de um marxismo determinista e engessado. Em outras palavras, o marxismo de Florestan Fernandes se contrapôs a todo tipo de vulgarização da tradição oriunda de Marx que propõe uma concepção de história regida por etapas pré-determinadas, segundo um modelo abstrato de processo histórico. Modelo esse que corresponderia a um etapismo mecanicista e a uma visão antidialética da realidade.
Entretanto, no meado dos anos de 1960, ou seja, antes mesmo da publicação de A Revolução Burguesa, já era possível visualizar algumas alterações fundamentais na forma com que Florestan concebia o desenvolvimento sócio-histórico brasileiro. Uma dessas mudanças pode ser visualizada na maneira como Fernandes passa a relacionar os termos “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento”, a partir da construção do conceito de “Capitalismo Dependente”.
Segundo Antônio Brasil Jr. (2013), ao passar a conceber uma conjunção crônica entre “sociedade de classes” e “subdesenvolvimento”, Florestan Fernandes realiza uma verdadeira guinada em sua análise sociológica em pelo menos três aspectos. O primeiro aspecto seria a necessidade de articular elementos “internos” e “externos” às sociedades, com ênfase nos dinamismos socioeconômicos. Essa articulação específica também levaria a uma imbricação entre elementos ditos
“arcaicos” com elementos “modernos”. Em um segundo plano estaria a requalificação da atuação limitada da burguesia brasileira diante das condições do “capitalismo dependente”. Por fim, estaria a caracterização da natureza autocrática da transformação capitalista engendrada pelas condições de dependência.
A despeito de já utilizar a noção de “dependência” em seus textos desde a década de 1950, ela só assume real importância na obra de Florestan a partir do artigo Sociedade de Classes e subdesenvolvimento, escrito no final de 1967. Chamando a atenção para a importância deste artigo, Felipe Demier (2008) destaca que Fernandes foi o intelectual acadêmico que inaugurou as pesquisas científicas referentes à realidade brasileira nitidamente estruturadas pela “lei do desenvolvimento desigual e combinado”. Para o historiador, Florestan teria sido o principal combatente do dogmatismo stalinista nas ciências sociais do país.
No ensaio de 1967 Fernandes afirma que:
A natureza e os ritmos da transformação capitalista sob as grandes corporações “multinacionais” criaram a realidade histórica de nossa época. Os países retardatários são comensais desprezíveis ou simples repasto para os demais. Não há como fazer coincidir os tempos da história: as estruturas sócio-econômicas, culturais e políticas dos países capitalistas hegemônicos absorvem estruturas dos países subcapitalistas, semicapitalistas ou de capitalismo dependente, submetendo-as a seus próprios ritmos e subordinando-as aos interesses que lhe são próprios (...) O capitalismo selvagem ( a forma assumida pelo capitalismo nos países dependentes) não reproduz o passado; e se nele há lugar para a “revolução burguesa”, esta se apresenta de outra forma e com outros objetivos fundamentais. Sem dúvida, o desenvolvimento capitalista pressupõe muitos mecanismos econômicos, sócio-culturais e políticos que se repetem. Mas eles se repetem em tais condições e sob tais fundamentos, que apontam para uma realidade econômica, sócio-cultural e política específica, típica de uma situação histórica e de uma condição inexorável de dependência tecnoeconômica (FERNANDES, 1968, p. 64-65).
A partir deste trecho, é possível observar como a noção de “desenvolvimento combinado” orientou a interpretação de Florestan Fernandes acerca da estrutura socioeconômica brasileira. Nessa perspectiva, o “arcaico” não aparece como resquício de outra temporalidade que entrava o desenvolvimento do capital. Pelo contrário, para o sociólogo paulistano, seria justamente a presença de elementos “anticapitalistas” e “semicapitalistas” que produziria funcionalidade ao capitalismo na periferia. Portanto, “o arcaico não seria antípoda do moderno, e sim seu complemento histórico e necessário” (DEMIER, 2008, p. 74).
Nesse contexto, doravante este ensaio (1967), há uma maior sistematização entre os elementos “internos” e “externos” nas análises de Florestan. Desta forma, passa a se impor uma necessidade de articular num mesmo andamento explicativo as condições locais e globais, com o objetivo de avaliar o peso dessa articulação para o dinamismo do sistema social.
Uma das contribuições mais significativas de Fernandes em sua obra é justamente concepção da “autocracia burguesa” como um modo específico de realização do capitalismo em um país dependente como o Brasil. Como nos apontam Botelho e Brasil Jr. (2020) no prefácio à nova edição do livro, Florestan desenvolve a ideia de “autocracia” para interpretar a persistência de um princípio ordenador intrinsecamente antidemocrático presente no Estado, na sociedade e no mercado, até mesmo em contextos de regimes formalmente democráticos. Pois, a relação entre autocracia e a democracia não é necessariamente de oposição, mas “sua sombra sempre presente em segundo plano, para emergir, com maior ou menor virulência, em situações de crise do poder burguês” (COHN apud FERNANDES, 2020, p. 11).
Florestan começa o sétimo capítulo de A revolução burguesa no Brasil ressaltando que a relação entre a modernização capitalista e dominação burguesa é altamente variável. Nesse sentido, o sociólogo paulistano está se contrapondo a uma visão eurocêntrica que supõe a existência de um único modelo básico de transformação capitalista. Fernandes (2020) argumenta que as maiorias das interpretações teóricas só aceitam como revolução burguesa as manifestações que se aproximavam dos “casos clássicos”, caracterizadas por uma associação entre desenvolvimento capitalista e conquistas democráticas. Entretanto, essas análises partiam de uma
posição unilateral, que perdia de vista o significado empírico, teórico e históricos dos “casos comuns”, nos quais a revolução burguesa aparece vinculada a alterações estruturais e dinâmicas condicionadas pela irradiação externa do capitalismo maduro, ou dos “casos atípicos”, nos quais a revolução burguesa apresenta um encadeamento bem diverso daquele que se pode inferir através do estudo de sua eclosão na Inglaterra, França e nos EUA (FERNANDES, 2020, p. 288).
Sendo assim, o objetivo central de Florestan no capítulo sete de sua obra é investigar, do ponto de vista teórico, a relação entre transformação capitalista e dominação burguesa nos países de economia dependente. Segundo Fernandes (2020), na periferia do capitalismo a revolução burguesa constitui uma realidade histórica peculiar. Aqui não há possibilidade da “repetição da história” ou do desencadeamento automático dos pré-requisitos do modelo democrático-burguês dos países hegemônicos. Muito pelo contrário. Para Florestan (2020), o que se visualiza na periferia é, na verdade, uma forte dissociação entre desenvolvimento capitalista e democracia; “ou, usando-se uma notação sociológica positiva: uma forte associação racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia” (FERNANDES, 2020, p. 290).
Nesse contexto, Florestan Fernandes argumenta que a extração dual do mais-valor – de um lado pela burguesia nacional e de outro pelas burguesias estrangeiras – acaba provocando uma “hipertrofia” dos fatores políticos da dominação burguesa. A condição de dependência faz com que o capitalismo na periferia seja “selvagem e difícil, cuja viabilidade se decide, com frequência, por meios políticos e no terreno político” (FERNANDES, 2020, p. 291).
Fernandes está apontando para uma aparente contradição. A falta de autonomia da burguesia nacional em relação ao capital estrangeiro, não implica necessariamente em uma “fraqueza” dessa classe no plano interno. Ao contrário, Florestan (2020) argumenta que quanto mais se aprofunda o desenvolvimento capitalista, mais as nações hegemônicas precisam de “aliados sólidos” na periferia dependente. Ou seja, é necessário que as burguesias nacionais sejam fortes e capazes de saturar as funções repressivas da dominação burguesa, reprimindo brutalmente até as mais leves manifestações de insatisfação dos trabalhadores.
Florestan está chamando a atenção para a característica profundamente reacionária da dominação burguesa no Brasil e sua propensão “a salvar-se mediante a aceitação de formas abertas e sistemáticas de ditadura de classe” (FERNANDES, 2020, p. 292). Ou seja, na periferia do capitalismo todo ideal burguês de caráter emancipatório foi posto de lado. O que nos coloca diante do poder burguês mais extremo e brutal, onde o Estado é convertido em um “instrumento puro e simples de uma ditadura de classe preventiva” (FERNANDES, 2020, p. 294).
Na parte final de A Revolução Burguesa no Brasil o sociólogo paulistano aponta para as possibilidades que poderiam derivar de um “distensionamento” da contrarrevolução preventiva, argumentando que a autocracia burguesa poderia levar “a uma democracia restrita típica, que se poderia designar como uma democracia de cooptação” (FERNANDES, 2020, p. 351). Esse processo de cooptação tem por finalidade estender as fronteiras da consciência burguesa para dentro das classes subalternas, apresentando os interesses das classes dominantes como se fossem interesses universais (PEREZ, 2019). Pois, como nos aponta Florestan, o sentido profundamente reacionário presente no clímax de crise do poder burguês que deu sentido ao golpe de 1964, já não se ajustava tanto naquele momento à racionalidade da transformação capitalista, “acelerada a partir de fora e de dentro pela iniciativa privada e pela intervenção estatal” (FERNANDES, 2020, p. 354).
Contudo, mesmo que fosse possível observar um “distensionamento” do regime ditatorial no meado dos anos 1970, as classes dominantes não poderiam abrir mão
das próprias vantagens e privilégios; dos controles de que dispõem sobre si mesmas, como e enquanto classes; e dos controles de que dispõem sobre as classes operárias, as massas populares e as bases nacionais das estruturas de poder. As vantagens e privilégios estão na raiz de tudo, pois se as classes burguesas realmente “abrissem” a ordem econômica, social e política, perderiam, de uma vez, qualquer possibilidade de manter o capitalismo e preservar a íntima associação existente entre dominação burguesa e monopolização do poder estatal pelos estratos hegemônicos da burguesia (FERNANDES, 2020, p. 356).
Portanto, para Florestan (2020), a democracia de cooptação possui pouca eficiência e pouca flexibilidade em nações capitalistas de extrema concentração de riqueza e de poder. Segundo Davi Perez (2019), esse diagnóstico de Florestan nos traz importantes aportes para analisar o que foi a transição que colocou fim à ditadura aberta de classes. O que está em jogo para o sociólogo paulistano é que a problemática da hegemonia burguesa – no momento em que ele escreve a última parte do seu ensaio – era posta em um novo contexto histórico, “sob a impetuosa necessidade de criar vínculos orgânicos que deverão entrelaçar os mecanismos da democracia de cooptação com a organização e o funcionamento do Estado autocrático” (FERNANDES, 2020, p. 355).
Sendo assim, esse processo não leva à democracia burguesa, mas à consolidação da própria autocracia. Para Florestan não se trata de abrir caminho para uma autêntica experiência democrática. O que as classes dominantes pretendem é
criar condições normais para o funcionamento e o crescimento pacíficos da ordem social competitiva, que se achava estabelecida antes de 1964 e foi convulsionada em seus fundamentos ideais, e revitalizada, em seus fundamentos econômicos, sociais e políticos, pelo desenvolvimento econômico acelerado e pela contrarrevolução preventiva (FERNANDES, 2020, p. 356).
Acreditamos que o Golpe de 2016 confirma o diagnóstico de Florestan Fernandes sobre a pouca flexibilidade da democracia de cooptação e a manutenção de um domínio autocrático no Estado pela burguesia brasileira. “Trata-se de mais uma demonstração do poder e da atuação extra institucional das classes dominantes brasileiras” (PEREZ, 2019, p. 20). Na conjuntura de crise, a burguesia pró-imperialista depõe governos que, embora já tenham servido aos interesses do grande capital, já não servem mais ou se tornaram obstáculos em alguma medida.
Neste contexto, a extrema-direita veio à “luz do dia”. O resultado deste processo acabou por desembocar na eleição de Jair Bolsonaro em 2018. A radicalização da polarização política, que vinha desde a eleição anterior de 2014, se aprofundou e engoliu a direita tradicional que conspirou e participou ativamente do golpe, abrindo espaço para a extrema-direita reacionária, mobilizadas por discursos misóginos, racistas, elitistas, e com claras inspirações fascistas.
Segundo David Maciel (2020), no cenário de instauração do Governo Bolsonaro, vigorou no Brasil o que poderíamos chamar de “democracia restrita”, substituta da “democracia de cooptação” oriunda da transição pós-ditadura e legitimada pela constituição de 1988. O cientista político aponta que, no sincretismo que conformou a autocracia burguesa neste período, o que restou do regime democrático representativo foi restringido gradativamente pelo avanço dos elementos autoritários e fascistas no interior da autocracia burguesa.
O recrudescimento da autocracia burguesa sob o governo Bolsonaro pode ser observado não apenas nos discursos do presidente, mas essencialmente na sua
própria forma de governar. A militarização do governo, por exemplo, representou uma das faces dessa radicalização. Segundo Mattos (2020), nenhum governo desde a ditadura empresarial-militar teve tantos militares em cargos de primeiro, segundo e terceiro escalão quanto o de Bolsonaro. O professor da UFF cita um levantamento realizado em março de 2019, mostrando que além do presidente e do vice, oito ministros eram egressos das forças armadas e que 130 cargos nos três primeiros escalões do governo federal eram ocupados por militares.3 Segundo os dados do próprio Ministério da Defesa, em agosto do mesmo ano era possível contabilizar um total de 1.271 militares da ativa cedidos ao Executivo federal, representando um aumento de 13% em relação ao governo anterior.4
Além da composição militar do governo, podemos apontar também o frequente recurso aos decretos presenciais com objetivo de rever leis aprovadas pelo próprio Congresso. Um dos exemplos dessa prática foram as inúmeras tentativas de ampliar a posse e o porte de armas de fogo, contrariando alguns dispositivos legais como o Estatuto do desarmamento (MATTOS, 2020).
Outro claro elemento que demonstra a tendência ao aprofundamento da “via autocrática”, foram as frequentes demissões de ministros e assessores, quase sempre com a chancela dos militares. Com a demissão do ministro da Educação Milton Ribeiro no dia 28 de março de 2022, o governo Bolsonaro acumulou quase trinta trocas de ministros desde 2019.
Existe uma clara coerência entre a ideologia neofascista que orienta Bolsonaro e as políticas autocráticas implementadas pelo seu governo5. Dentre elas podemos citar:
Apoio a ditaduras, ataque ao Estado de Direito; defesa da tortura e de torturadores; ataque a Instituições cientifica (IBGE, INPE, CNPq); violência armada contra indígenas e movimentos sociais; defesa e estímulo ao desmatamento da Amazônia; ataque à cultura (ANCINE) e estrangulamento financeiro das Universidades Públicas (FILGUEIRAS; DRUCK, 2019).
3 Adriana Ferraz (e outros), “Mapa dos militares: onde estão os representantes das forças armadas no governo Bolsonaro”. Estadão, 2 mar, 2019, disponível em: https://www.estadao.com.br/infograficos/politica,mapa-dos-militares-onde-estao-os-representantes-da s-forcas-armadas-no-governo-bolsonaro,975096
4Gabriel Shinohara, “Número de militares da ativa no governo federal cresce 13% com Bolsonaro”, O Globo, 5 ago. 2019, disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/numero-de-militares-da-ativa-no-governo-federal-cresce-13-com-bols onaro-23854701
5 Para uma análise mais sistemática da relação entre Bolsonarismo e a ideologia fascista ver: BARROS, Matheus C. Neofascismo e neoliberalismo: o fenômeno Bolsonaro. Revista Ensaios, v.17,
p. 136-158, 2020; MELO, Demian. O bolsonarismo como fascismo do século XXI. In: REBUÁ, E.; COSTA, R.; GOMES, R.; CHABALGOITY, D. (Org.). (Neo)fascismo e educação: reflexões críticas sobre o avanço conservador no Brasil. 1ed.Rio de Janeiro: Mórula, 2020, v. 1, p. 12-46.
É neste cenário político e institucional que o governo Bolsonaro alimentou uma perspectiva ainda mais autocrática, aprofundando a escalada autoritária visualizada após o golpe de 2016. Segundo David Maciel (2020), o conjunto de medidas do ex-capitão do exército visou anular o espaço político dos trabalhadores, criminalizando os movimentos sociais e suas lutas, enfraquecendo o movimento sindical e atacando os partidos de esquerda.
Em suma, restringe o poder de pressão, a capacidade de influenciar políticas públicas e de acessar o Estado por parte do mundo do trabalho, ao mesmo tempo em que fortalece e amplia as instâncias que fazem interlocução com o capital. Está é uma perspectiva apoiada por todas as forças que compõem ou apoiam o governo, o que significa limitar ainda mais a democracia restrita vigente desde 2016 em favor dos elementos autoritários e fascistas da autocracia burguesa (MACIEL, 2020, p. 4).
Ainda sobre a relação entre teoria e prática, ou entre ideologia e ação, se pegarmos o exemplo da violência policial, será possível argumentar que o primeiro ano do governo Bolsonaro “demonstrou como os discursos do bolsonarismo refletem-se em práticas concretas” (MATTOS, 2020, p. 225). A cidade do Rio de Janeiro, reduto eleitoral de origem do ex-presidente, atingiu a assombrosa marca de 1.810 pessoas – cinco por dia - mortas por ação das forças policiais em 2019. Segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP), esse número representa um aumento de 18% em relação ao ano anterior, e o maior número registrado desde 1998.6
No dia 06 de março de 2021, uma operação da Polícia Civil na favela do Jacarezinho – zona norte do Rio de Janeiro – resultou em uma chacina com 28 mortos. Um ano após a operação mais letal da história da cidade, dez das treze investigações do Ministério Público foram arquivadas e apenas uma segue em andamento.7
No dia 24 de maio de 2022, uma operação conjunta entre Polícia Federal Rodoviária e o Batalhão de Operações Especiais (Bope) realizou mais uma chacina
6 “Rio registra recorde de mortes pela polícia em 2019”, Estado de Minas, 22 jan. 2020, disponível em:https://www.em.com.br/app/noticia/internacional/2020/01/22/interna_internacional,1116213/rio-regi stra-recorde-de-mortes-pela-policia-em-2019.shtml
7 “Jacarezinho: 1 ano após mortes, 10 de 13 investigações do MP foram arquivadas”. G1, 5 maio 2022, disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2022/05/05/jacarezinho-1-ano-apos-28-mortes-10-de-13-i nvestigacoes-do-mp-foram-arquivadas.ghtml
no Rio de Janeiro, desta vez na favela da Vila Cruzeiro – zona norte da cidade – deixando 25 pessoas mortas. Um dia depois (25 de maio), em Sergipe, Genivaldo de Jesus Santos, de 38 anos, foi morto dentro do porta-malas de um carro da Polícia Rodoviária Federal. Um laudo do Instituto Médico Legal confirmou que a morte de Genivaldo, um homem negro com transtornos psiquiátricos, morreu de asfixia mecânica e insuficiência respiratória aguda8. Uma cena bárbara na qual é impossível não fazer uma analogia às práticas de execução nazista.
Em entrevista ao portal “Yahoo Notícias”, Michel Gherman, coordenador do Núcleo interdisciplinar de estudos judaicos da UFRJ, afirma que há uma relação indireta entre o Governo de Jair Bolsonaro com a violência policial ocorrida em Sergipe. Segundo o pesquisador,
Não foi Bolsonaro que decidiu colocar Genivaldo na câmara de Gás, mas é um erro acreditar que Hitler estava envolvido em todas as decisões do holocausto. Em algum sentido, tal qual os comandantes de Hitler, alguns policiais querem ser mais bolsonaristas que Bolsonaro. Não é que Bolsonaro está envolvido diretamente, mas ele está produzindo uma cultura brutal, que leva a uma câmara de gás em meio a uma grande cidade brasileira (GHERMAN apud Yahoo Notícias, 2022).
Mas não é apenas na violência institucional que podemos enxergar os efeitos práticos dos discursos neofascistas. O bolsonarismo enquanto ideologia é intrinsecamente misógino. Os dados sobre violência contra as mulheres indicam que, ao contrário de outros crimes violentos, os feminicídios cresceram em 2019. Um levantamento do G1 – com base nos dados oficiais dos 26 estados e do distrito federal – aponta para um aumento de 7,3% em 2019 em comparação com 2018. Ao todo foram 1.314 mulheres mortas pelo simples fato de serem mulheres, indicando a média de uma morte a cada sete horas.9
Por fim, como bem denota Marcelo Badaró (2020), a combinação da ideologia neofascista com as políticas autocráticas de ataques a direitos e instituições democráticas se articulou com a política ultraneoliberal comanda pelo ministro Paulo Guedes. Apesar da retórica nacionalista de Bolsonaro, é preciso estar atento às
8 “Não parece com nazismo, é nazismo, diz professor sobre “câmara de gás” da PRF”. Yahoo! Notícias, 26 de maio de 2022, disponível em: https://br.noticias.yahoo.com/nao-parece-com-nazismo-e-nazismo-diz-professor-sobre-camara-de-gas
9 Clara Velasco, Gabriela Caesar e Thiago Reis, “Mesmo com queda recorde de mortes de mulheres, Brasil tem alta no número de feminicídios em 2019”, G1, 5 mar. 2020, disponível em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/03/05/mesmo-com-queda-recorde-de-mortes-d e-mulheres-brasil-tem-alta-no-numero-de-feminicidios-em-2019.ghtml
suas especificidades, que se explicam pela própria posição subalterna que o Brasil ocupa no sistema capitalista. Segundo Michael Löwy (2019), enquanto boa parte da extrema direita mundial denuncia a globalização neoliberal, em nome de um protecionismo do nacionalismo econômico, Bolsonaro propõe um programa econômico ultraliberal, com mais globalização e privatizações. Nesse sentido, Löwy (2020) destaca que o neofascismo de Bolsonaro é totalmente identificado com o neoliberalismo.
Em síntese, o Governo Bolsonaro foi um modo de conjunção - especificamente brasileiro - do neoliberalismo com o neofascismo. As políticas neoliberais iniciadas com Michael Temer e aprofundadas com Jair Bolsonaro trazem os traços marcantes dos interesses da burguesia associada ao capital internacional. Em uma perspectiva de longo prazo, do ponto de vista estrutural, as aplicações dessas políticas se manifestarão no aprofundamento da dependência, no aumento da desindustrialização, na redução do mercado interno, e no consequente aumento da desigualdade social e da pobreza (FILGUEIRAS; DRUCK, 2019).
Na esteira desses argumentos, Costa e Mendes (2021) salientam que a conjuntura de aumento da pobreza, do desemprego e do contingente da classe trabalhadora empurrada ao mercado informal sem o colchão protetivo dos direitos trabalhistas, configura também uma forma de controle e coerção das classes subalternas, aprofundando, consequentemente, o caráter autocrático da nossa formação social.
Em suma, a precarização da vida pela defensiva do capital no presente estágio neoliberal, como violência per se, econômica e extraeconômica; um autoritarismo que submete ainda mais a vida ao lucro; a continuidade e acentuação da ditadura do grande capital (ANTUNES DA COSTA; MENDES, 2021, p. 87).
Portanto, o programa neoliberal é fundamentalmente autocrático e sua aplicação implica necessariamente no fortalecimento dos elementos autoritários e fascistas da institucionalidade política em detrimento dos elementos democráticos.
No cenário de corrosão da nossa débil democracia e o aumento da violência e das desigualdades sociais observadas nos últimos anos, as lições teóricas e políticas legadas por Florestan Fernandes persistem como ferramentas
fundamentais para a compreensão e o enfrentamento dos dilemas contemporâneos. Em toda a sua “obra madura” Florestan chama atenção para o fato de que, na periferia do capitalismo, a democracia nunca foi o “modo ideal” do Estado burguês (MATTOS, 2020). Aqui nos “tristes trópicos” nos coube uma forma brutal e autocrática de dominação burguesa.
Nesse sentido, após está breve análise, argumentamos que, seguindo as orientações do sociólogo paulistano, o governo Bolsonaro representa um momento em que a autocracia burguesa - em meio a uma crise hegemonia - recorreu a um movimento neofascista para garantir a contrarrevolução preventiva, representando desta forma, o recrudescimento do caráter autocrático da nossa formação social.
BOTELHO, A; BRASIL JR, Antonio. Prefácio. In: FERNANDES, Florestan. A Revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.
BRASIL JR, A. Passagens para a teoria sociológica: Florestan Fernandes e Gino Germani. 1° ed. São Paulo; Buenos Aires: Hucitec; Clacso, 2013.
COUTINHO, C. N. Marxismo e “imagem do Brasil” em Florestan Fernandes. In: COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil. Ensaios sobre ideias e formas. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
COSTA, P.H.A; MENDES, K T. Autocracia burguesa e bolsonarismo: um ensaio. Marx e o marxismo, v.9, 73-95, 2021.
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