V.22, no 47, 2024 (janeiro-abril) ISSN: 1808-799X
QUATRO DÉCADAS DO MST: REFORMA AGRÁRIA E EDUCAÇÃO1
Gaudêncio Frigotto2
Este pequeno texto que registra os quarenta anos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) tem um duplo objetivo. Primeiro de mostrar de que ao longo destas quatro décadas a luta pela reforma agrária expressa uma continuidade da luta dos escravos pelo direito à terra, mas negada pela classe dominante da época. Em segundo lugar, junto à luta pela reforma agrária caminha a luta pela educação sendo os sujeitos do campo, com a sua cultura as experiências e as suas lutas o ponto de partida. O ponto de chegada uma formação humana por inteiro para uma sociedade sem dominação de classe.
Este pequeño texto que registra los cuarenta años del Movimiento de los Trabajadores Sin Tierra
(MST) tiene un doble objetivo. En primer lugar, muestra que a lo largo de estas cuatro décadas la lucha por la reforma agraria expresa una continuidad de la lucha de los esclavos por el derecho a la tierra, pero negada por la clase dominante de la época. En segundo lugar, junto a la lucha por la reforma agraria va la lucha por la educación, siendo el punto de partida los sujetos del campo, con su cultura, sus experiencias y sus luchas. El punto de llegada es una formación humana completa para una sociedad sin dominación de clases.
This short text that records the forty years of the Landless Workers Movement (MST) has a double objective. Firstly, it shows that throughout these four decades the struggle for agrarian reform expresses a continuity of the slaves' struggle for the right to land, but denied by the ruling class of the time. Secondly, alongside the fight for agrarian reform goes the fight for education, with the subjects of the countryside, with their culture, experiences and their struggles being the starting point. The arrival point is a complete human formation for a society without class domination.
1 Artigo recebido em 26/01/2024. Aprovado pelos editores em 01/02/2024. Publicado em 22/02/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i47.61701.
2 Licenciado em Filosofia. Doutor em Ciências Humanas - Educação na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), São Paulo - Brasil. Professor Titular de Economia Política da Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói - Brasil. Ex-Coordenador do Programa de Pós-graduação em Educação da UFF. Professor no Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro - Brasil. Pesquisador do CNPq. Coordenador do Grupo These.
E-mail: gaudenciofrigotto02@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4535332644982596. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2023-5654.
Qualquer brasileiro que tenha um mínimo de responsabilidade, que tenha consciência da situação social real do nosso país, tem o dever de acompanhar e apoiar o trabalho e a luta do MST. (Sebastião Salgado).
Acompanho ativamente desde seu nascimento o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Um movimento que surge não somente pela negação histórica da Reforma Agrária, mas, além disto, como expressão da forma que o capitalismo canibal, como o define a filósofa americana Nancy Fraser3, avançou no campo a partir, sobretudo, da década de 1970. Um processo escandaloso de concentração de propriedade privada sob o manto da ditadura empresarial militar, deflagrada em 1964 e que se prolongou por 21 anos.
O MST, ao lutar pela Reforma Agrária Popular, reitera a luta dos escravos e de suas lideranças no processo da abolição da escravidão. Como observa Luiz Felipe Alencastro4, a oligarquia agrária somente concordou com a abolição formal da escravidão, mediante a negação da luta dos abolicionistas que queriam que os escravos não apenas fossem libertos, mas tivessem como indenização uma quantidade de terra para produzir sua sobrevivência. O fracasso da reforma agrária, observa Alencastro, teve seu início nesta negação.
O que é cínico é que, 136 anos depois, vindos não mais dos barões da escravidão, mas de seus sucedâneos, da expansão agrícola e concentração de propriedade das terras pelo agronegócio, os argumentos dos grandes proprietários de terras, do capital financeiro e industrial sejam os mesmos do escritor e político cearense Jose de Alencar. Percebendo as tendências abolicionistas nos quadros da Monarquia em 1871, advertia o que poderia ocorrer com a abolição:
Tolerado semelhante fanatismo do progresso, nenhum princípio social fica isente de ser ele atacado mortalmente ferido. A mesma monarquia, senhor, pode ser varrida para o canto entre o cisco das ideias estritas e obsoletas. A liberdade e a propriedade, essas duas fibras sociais, caíram desde já em desprezo ante os sonhos do comunismo. (ALENCAR apud DA SILVA, 2018, p. 75).
3Ver entrevista de Nancy Fraser para Martin Mosquera, na Jacobin Latinoamericana (https://www.jacobinlat.com). Disponível em: https://outraspalavras.net/feminismos/nancy-fraser-encara-o-capitalismo-canibal/; tradução de Vitor Costa, publicada em 25/02/2022. Acesso em: 22 de janeiro de 2024.
4 Ver entrevista do historiador Luiz Felipe Alencastro – Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-44091474. Acesso em: 22 de janeiro de 2024.
O que se tem de Reforma Agrária nestes 40 anos é o rompimento das cercas do latifúndio improdutivo ou de terras públicas apropriadas indevidamente, forçando assentamentos. Isto à custa de muito sofrimento e de muitas perdas de seus lutadores. Quando os grandes proprietários e a mídia que os representa propalam que o agronegócio dá segurança alimentar, escondem duas realidades perversas em nossa sociedade: a fome endêmica de mais de trinta milhões de brasileiros e de outros 170 milhões com insuficiência alimentar; e, que uma reforma agrária como a maioria das nações civilizadas já fez, com pequenas e médias propriedades com assistência técnica com base na ciência da agroecologia, produziria a mesma quantidade ou mais, dando-nos soberania alimentar.
Mas, certamente, é no enfrentamento da cerca da ignorância que o MST é amplamente vitorioso e exemplar para o conjunto da sociedade. Nestas quatro décadas, o MST afirmou a tese da educação "do campo" e não para ou no campo. "Do campo" para superar uma dupla deformação: a de um ensino e processos formativos colonizadores e de uma educação que ignorava que os campesinos são sujeitos de cultura, de conhecimento e, portanto, o ponto de partida do processo pedagógico para uma formação por inteiro. Um processo, como afirma Roseli Caldart, educadora do MST em seu clássico livro Pedagogia do Movimento Sem Terra, que não começa na escola, mas na sociedade e retorna para a sociedade.
Esta é a perspectiva de educação, realçando os valores do coletivo, da solidariedade, do princípio do trabalho socialmente útil como tarefa de todos que se pautam nas escolas dos assentamentos. A construção da Escola Nacional Florestan Fernandes, referência mundial de formação de novas lideranças, tem este DNA. Desde o processo de construção, deu-se pelo trabalho coletivo e solidário de brigadas de jovens e adultos campesinos e se repete em todas as atividades formativas que lá se realizam.
Com a criação do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em 1998, e especialmente ao longo dos governos liderados pelo Partido dos Trabalhares (PT), deu novas perspectivas para os jovens do campo. A perspectiva da educação "do campo" penetrou os umbrais das universidades, especialmente as públicas, criando centenas de cursos de licenciatura do campo, alguns programas de pós-graduação com esta modalidade, formação de pesquisadores, etc. Um passo ainda mais importante foi a criação da Universidade Fronteira Sul, fruto da luta coletiva do MST e de outros movimentos sociais do campo. Em nenhum desses espaços o "céu é de brigadeiro". Pelo contrário, move-se no duro e cotidiano embate da luta de classe.
O fechamento do Pronera pelo governo de extrema direita de Jair Bolsonaro (PL) e a patética e desmoralizada CPI contra o MST são o reconhecimento de que o que se plantou e ampliou nestes 40 anos não vai ser interrompido. Mais que isto, o horizonte da Reforma Agrária Popular para o conjunto da sociedade brasileira tem como interpelação e exigência um projeto de educação sob a direção dos trabalhadores do campo e da cidade. Esta é a diretriz que nos lega o patrono do MST Florestan Fernandes.
O que a Constituição negou, o povo realizará. Mas ele não poderá fazê-lo sem uma consciência crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica e afirmadora do futuro. E essa consciência, nascida do trabalho produtivo e da luta política dos trabalhadores e dos excluídos, não depende da educação que obedeça apenas à fórmula abstrata da 'educação para um mundo em mudança', mas sim da educação como meio de autoemancipação coletiva dos oprimidos e de conquista do poder pelos trabalhadores" (FERNANDES, 2020, p.29).
Um viva aos 40 anos do MST e às bravas e bravos lutadores que dia a dia o sustentam e o ampliam.
CALDART, R. Pedagogia do Movimento Sem Terra: escola é mais do que escola. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
DA SILVA, J. M. Raízes do conservadorismo brasileiro. A abolição na imprensa e no imaginário social. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
FERNANDES, F. O desafio educacional. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2020