V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
COLONIALISMO DIGITAL: POR UMA CRÍTICA HACKER-FANONIANA
[DEIVISON FAUSTINO E WALTER LIPPOLD]
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Valdir Damázio Júnior
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O presente texto consiste em uma resenha do livro Colonialismo digital: por
uma crítica hacker-fanoniana, publicado no ano de 2023 pela editora Boitempo e
escrito em parceria por Deivison Faustino (UNIFESP) e Walter Lippold (UFF).
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Doutorando em Educação pela Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), Brasil. Mestre em Educação
Científica e Tecnológica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Professor do
Departamento de Matemática da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Brasil.
Email: valdir.damazio@udesc.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9013039169376531.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0741-003X.
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Resenha recebida em 19/02/2024. Primeira Avaliação em 02/04/2024. Segunda Avaliação em
07/05/2024. Aprovado em 12/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62026.
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Ao apresentarem suas reflexões sobre as transformações sociais
proporcionadas pelas novas tecnologias, Deivison e Lippold defendem que a análise
crítica da formação social não pode perder de vista algumas características
indissociáveis do desenvolvimento e manutenção do sistema capitalista, como o
colonialismo e o imperialismo. Diante disso, defendem a tese de que vivemos uma
etapa do desenvolvimento do capitalismo que pode ser denominada de colonialismo
digital.
Segundo os autores, “o colonialismo digital não é mera metáfora ou discurso
de poder, mas um dos traços objetivos do atual estágio de desenvolvimento do
modo de produção capitalista" (Deivison e Lippold, 2023. p. 84). As características
desse colonialismo digital podem ser expressas como: 1) uma nova partilha territorial
do globo, desta vez entre os monopólios da indústria da informação; 2) controle cada
vez mais eficiente da vida humana por processos extrativistas automatizados com o
objetivo de captar o maior número de dados e convertê-los em valor.
Na primeira parte do trabalho, intitulada O dilema das redes e a atualidade do
colonialismo, os autores procuram problematizar a existência de um suposto dilema
em torno da tecnologia no qual os avanços tecnológicos propiciam perigos à
humanidade, seja pelas transformações sociais que acarretam ou mesmo pela
possibilidade da tecnologia fugir ao controle humano. Apontam também que tratar a
relação entre sociedade e tecnologia sob esta perspectiva é possível se
assumirmos como verdadeiro o mito da neutralidade, que não considera a tecnologia
como “[...] fruto de relações sociais historicamente determinadas que a projetam de
acordo com certas finalidades políticas, culturais e econômicas” (Deivison e Lippold,
2023, p. 53).
Após apresentarem seus argumentos de que a tecnologia deve ser analisada
como um elemento do modo de produção capitalista, Deivison e Lippold ampliam
esta discussão alertando para a necessidade de aprofundar as relações atuais da
tecnologia com outras dimensões históricas indissociáveis do sistema capitalista,
como o colonialismo, o imperialismo e o racismo. Isto porque “[...] não capitalismo
sem colonialismo e, por sua vez, não colonialismo sem racismo, e ambos estão
interligados dialeticamente por uma relação de determinações reflexivas” (Deivison e
Lippold, 2023, p. 45). Se a tecnologia ocupa hoje um lugar de destaque na
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reprodução do sistema capitalista, então ela inevitavelmente reproduz também
elementos do colonialismo e, consequentemente, do racismo.
Uma vez que as transformações técnicas possibilitadas pelas tecnologias
digitais no século XXI são indissociáveis do sistema de produção capitalista,
sustentado pela divisão de classes e expropriação de valor, os autores defendem
que o método dialético e a teoria marxista do valor ainda se constituem como um
fértil instrumento teórico-metodológico de análise. Esta tese é trabalhada na
segunda parte da obra, intitulada Colonialismo digital, acumulação primitiva de
dados e a psicopolítica, onde os autores se contrapõem a perspectivas teóricas que
defendem que a teoria do valor desenvolvida por Marx não daria mais conta de
explicar o atual estágio da sociedade profundamente transformada pelo
desenvolvimento técnico.
Muitas das tendências que advogam a desatualização da teoria marxista do
valor e da luta de classes, atribuem ao desenvolvimento informacional uma
possibilidade de valorização do tipo D-D’ (valorização do valor) que prescinda da
mediação produtiva. Isso porque os produtos informacionais, ou virtuais, poderiam
ser replicados e “produzidos” indefinidamente sem efetivamente passarem
repetidamente pelas relações de produção.
Segundo os autores, tais argumentos se sustentam pela crença na
imaterialidade das novas tecnologias digitais. Neste sentido, buscam destacar
justamente o aspecto material de qualquer tecnologia, mesmo dos mais sofisticados
algoritmos ou softwares, uma vez que todos são dependentes de tempo e espaço e,
portanto, frutos de trabalho e produção humanas que podem ser expropriadas pelo
capitalismo. Não é possível existir softwares sem hardwares, ou tecnologias como
internet, armazenamento nas nuvens etc, sem uma extensa rede de cabos de fibra
óptica e servidores. Da mesma forma, não é possível existir hardwares e a estrutura
material em que pretensamente o valor possa ser produzido fora da exploração do
trabalho, sem “[...] ouro, lítio, columbita, tantalita, coltan, cobalto, entre outras
matérias-primas frequentemente extraídas de forma violenta de terras indígenas ou
africanas pelo garimpo predatório (Deivison e Lippold, 2023, p. 100)”.
Os autores apontam ainda que vivemos um processo em que se opera uma
ofensiva (sem nenhum tipo de regulamentação) sobre espaços que antes não eram
expropriados, tais como os momentos de ócio, de lazer, a criatividade, a cognição, a
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subjetividade etc. Todas essas esferas da vida humana passam a ser consideradas
possuidoras de dados valiosos a serem extraídos e convertidos em valor sob a
lógica exploratória capitalista. Estes dados servem inclusive para permitir tornar mais
produtivo o tempo de trabalho, preenchendo espaços até então vazios por serem
considerados momentos improdutivos.
Segundo as análises apresentadas na obra, estamos vivendo um processo de
acumulação primitiva de dados operado pelas grandes corporações de tecnologia
que, sob diversos aspectos, se assemelha à acumulação primitiva nas fases iniciais
do capitalismo. Essa acumulação primitiva de dados seria uma das faces do
colonialismo digital que se manifesta por um processo de apropriação de dados que
pode ser entendido como um conjunto de práticas estabelecidas pelas plataformas
com objetivo de extrair lucro da vivência digitalizada dos sujeitos. Essa prática é
possível “[...] a partir de uma lógica violenta e despótica que lembra a velha
acumulação primitiva (Deivison e Lippold, 2023, p. 110).
Independentemente da qualidade das transformações técnicas pelas quais
estamos passando, "[...] é na catastrófica direção da expropriação e da valorização
do valor que os algoritmos e as redes neurais têm se direcionado, ou melhor, têm
sido direcionados” (Deivison e Lippold, 2023, p. 129).
Na terceira parte do livro, intitulada A descolonização dos horizontes
tecnológicos, são apresentadas algumas conclusões e perspectivas de ação frente
ao cenário atual. Para isso discute-se as promessas da “ideologia californiana”, que
se manifesta pela crença de que as soluções tecnológicas desenvolvidas pelas
empresas do vale do silício serão capazes de resolver os problemas sociais de
nossa época. Os autores se opõem a esse solucionismo capitalista denunciando a
ingenuidade e racismos presentes nessas concepções como uma nova mission
civilizatrice, reinventando a visão do fardo do homem branco em ter que propagar a
civilização, agora como o fardo do nerd branco, cuja manifestação seria a
benevolência das big techs.
A crítica que os autores fazem ao solucionismo presente na ideologia
californiana do vale do silício os leva a questionar sobre possíveis formas de
superá-lo e de organizar os trabalhadores na luta contra as novas formas de
exploração. Para responder a essa questão e apontar para possíveis perspectivas
de ação, sugerem que poderíamos aprender com Franz Fanon e suas práticas
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visando uma descolonização da tecnologia em plena revolução Argelina. Segundo
os autores, Fanon nos apresenta muitas contribuições para pensar a resistência ao
colonialismo digital, num processo em que “[...] não se trata de refutar ou adorar a
tecnologia, mas de colocar a ciência e a tecnologia a serviço da emancipação”
(Deivison e Lippold, 2023, p. 222).
Assim como Fanon propunha a apropriação anticolonial de muitas tecnologias
introduzidas pelos franceses na Argélia, é importante o engajamento de diferentes
atores e setores nos processos de descolonização dos meios de comunicação e na
criação de conteúdos que contribuam para esse processo. Em paralelo, faz-se
necessário o aprofundamento do debate “[...] sobre o papel das big techs nas formas
contemporâneas de exploração e dominação” (Deivison e Lippold, 2023, p. 232).
Como conclusão, destacam algumas iniciativas que realizam ações
contra-hegemônicas, como o movimento do software livre e o hacktivismo. Além
disso, alertam para a importância de ampliar ações que denunciem o caráter
destrutivo do modo de produção capitalista e a socialização dos saberes que
permitam uma apropriação anticolonial das tecnologias.
Deivison e Lippold apresentam em sua obra importantes contribuições para o
entendimento de como as tecnologias digitais se relacionam com o atual estágio do
modo de produção capitalista e as consequências dessa relação para a dinâmica da
luta de classes. Tais análises são tecidas sem deixar de considerar os aspectos
políticos e econômicos envolvidos na temática. É com base na análise material que
os autores desenvolvem seus argumentos e apresentam o colonialismo digital como
uma das características do atual modo de exploração capitalista.
Dada a relevância e a qualidade da discussão desenvolvida pelos autores, a
abra aqui resenhada apresenta-se como um importante material para pesquisadores
preocupados com os efeitos das tecnologias digitais na sociedade. O livro também é
altamente recomendado para todos que queiram compreender melhor o lugar
ocupado pelas tecnologias digitais no modo de produção capitalista no século XXI.
Referências
FAUSTINO, D; LIPPOLD, W. Colonialismo digital: por uma crítica
hacker-fanoniana. São Paulo, SP: Boitempo, 2023. E-book.
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