V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA NO BRASIL: DA FERRAMENTA NEOLIBERAL À
NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO DOCENTE
1
Filipe Bellinaso
2
Henrique Tahan Novaes
3
Resumo
A pandemia de COVID-19 intensificou o diálogo sobre a interseção entre tecnologia e educação, mas
é crucial compreender que esse debate não é exclusivo do momento atual. Ao direcionarmos nosso
olhar para a realidade brasileira, torna-se incontestável o notável crescimento da Educação a
Distância (EaD) ao longo dos últimos 15 anos. Este ensaio propõe-se a fornecer elementos para
reflexão, destacando como a modalidade de ensino a distância não apenas reflete o avanço
neoliberal na educação, mas também se configura como um componente essencial na reestruturação
produtiva do trabalho docente.
Palavras-chave: Educação a Distância; Neoliberalismo; Trabalho Docente.
EDUCACIÓN A DISTANCIA EN BRASIL: DE LA HERRAMIENTA NEOLIBERAL A LA NUEVA
MORFOLOGÍA DEL TRABAJO DOCENTE
Resumen
La pandemia de COVID-19 ha intensificado el diálogo sobre la intersección entre tecnología y
educación, pero es crucial comprender que este debate no es exclusivo del momento actual. Ao
direcionarmos nosso olhar para a realidade brasileira, torna-se incontestável o notável crescimento da
Educação a Distância (EaD) ao longo dos últimos 15 años. Este ensayo se propone formar elementos
para la reflexión, destacando como una modalidad de enseñanza a distancia que no refleja el avance
neoliberal de la educación, pero también se configura como un componente esencial de la reestrutura
productiva del trabajo docente.
Palabras clave: Educación a distancia; Neoliberalismo; Trabajo Docente.
DISTANCE EDUCATION IN BRAZIL: FROM THE NEOLIBERAL TOOL TO THE NEW
MORPHOLOGY OF TEACHING WORK
Abstract
The COVID-19 pandemic has intensified the dialogue on the intersection between technology and
education, but it is crucial to understand that this debate is not exclusive to the current moment. Now
we are looking forward to the Brazilian reality, becoming incontestable or notable growth of Distance
Education (EaD) over the last two 15 years. This assay aims to provide elements for reflection,
highlighting how the distance learning modality does not barely reflect the neoliberal advance in
education, but is also configured as an essential component in the productive restructure of teaching
work.
Keyword: Distance Education; Neoliberalism; Teaching Work.
3
Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), São Paulo -
Brasil. Professor Livre Docente da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp.
Email: hetanov@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5282506732444510.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5247-3684.
2
Mestre e doutorando no Programa de Pós-graduação em Educação na Universidade Estadual Paulista
(UNESP), São Paulo - Brasil. Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista
(UNESP), São Paulo - Brasil. Email: filipebellinaso@yahoo.com.br.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8753129617940989. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0129-893X.
1
Artigo recebido em 09/03/2024. Primeira Avaliação em 31/03/2024. Segunda Avaliação em 05/05/2024.
Aprovado em 19/06/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62235.
1
Introdução
Dentre os diversos impactos decorrentes da pandemia de Covid-19, poucas
delas despertaram a consciência para transformações que estavam em curso,
mas que, por força das circunstâncias, foram aceleradas e se tornaram mais visíveis
naquele contexto. É inegável que a Educação a Distância (EaD), desde o início da
década de 1990 até os dias que antecederam a pandemia, vinha gradualmente se
tornando uma presença constante no cotidiano das pessoas (Bellinaso, 2020; Brasil,
2022). Isso se manifestava por meio de propagandas de cursos técnicos
formalizados via telecomunicação/impresso, até os incessantes anúncios que
bombardeavam as plataformas de publicidade online.
No entanto, a crise desencadeada pela pandemia de Covid-19 levou a EaD a
adentrar virtualmente os lares de praticamente todos os brasileiros, tornando-se uma
necessidade premente para superar os desafios do momento. Ao longo de cerca de
dois anos em que a educação como um todo foi compelida a adotar esta
modalidade, uma série de novas pesquisas emergiram, buscando analisar os
diversos elementos que caracterizavam esse "novo normal".
Contudo, o senso comum, até mesmo dentro do meio acadêmico, negligencia
ou simplesmente ignora o fato de que a educação a distância era uma modalidade
consolidada e em expansão no Brasil. Além disso, abordam a questão como uma
eventualidade, sustentando o discurso da "democratização do acesso", quando, na
realidade, trata-se de uma modalidade de ensino cujo crescimento e avanço
dialogam diretamente com o neoliberalismo.
Assim sendo, o objetivo deste trabalho é estimular o debate em torno da
necessidade de compreender a modalidade de ensino a distância como um dos
meios pelos quais, no contexto da reestruturação produtiva do capital, o capitalismo
encontrou para aprofundar o processo de “neoliberalização” da educação e para
introduzir uma nova morfologia do trabalho no âmbito do profissional docente.
De acordo com Reis (2012), a pesquisa bibliográfica oferece ao pesquisador a
possibilidade de se aprofundar em um conjunto de conhecimentos, uma vez que a
ciência é uma construção histórica. Nesse sentido este trabalho parte de uma
análise bibliográfica dividida em quatro pilares principais: a) a análise do capitalismo
financeiro; b) a análise do neoliberalismo; c) a análise da nova morfologia do
2
trabalho e; d) entender como EaD se desenvolve entrelaçado aos três pilares
anteriores.
Capitalismo Financeiro
Quando se olha para o cenário educacional privado brasileiro contemporâneo,
é inevitável observar empresas como Kroton / Cogna que tem cada vez mais
concentrado em suas mãos o acesso ao ensino superior no Brasil. De acordo com o
Inep (BRASIL, 2022), hoje no Brasil, o número de ingressantes no ensino superior é
maior via modalidade à distância do que no modelo tradicional. Esta empresa pode
ser vista como exemplo claro do avanço do capitalismo financeiro na educação,
refletindo a lógica neoliberal de mercantilização do ensino. Sua trajetória evidencia
uma busca incessante pela maximização dos lucros, exemplificada pela
padronização dos currículos e pela dependência significativa de programas
governamentais como o FIES e o Prouni. A empresa também se destacou por
adotar práticas típicas do capitalismo financeiro, como a recompra de ações e a
manipulação de resultados financeiros para favorecer executivos e investidores
(Costa, 2018). Nesse sentido, entender as características do capitalismo financeiro,
auxilia numa compreensão maior sobre a expansão da oferta da EaD.
Para a grande maioria do senso comum, o capital é frequentemente percebido
como um bem material dotado de "poderes naturais", uma vez que o lucro é
interpretado como um simples excedente produtivo, como os fisiocratas o atribuíam,
considerando o excedente econômico como uma dádiva da terra, um presente da
natureza. Essa visão prevalece em grande parte devido à negação do fato de que o
capital é uma consequência de relações sociais historicamente constituídas. É
exatamente por essa razão que ele se mostra mutável ao longo do tempo. O capital
deve ser compreendido como o conjunto de recursos, sejam materiais ou imateriais,
que proporcionam aos indivíduos um determinado grau de produtividade, incluindo
máquinas, ferramentas, matérias-primas e o que no mundo contemporâneo é
denominado de capital humano (Schultz, 1973).
Outra questão relevante a ser destacada é a frequentemente confusa relação
entre o capital e o capitalismo, sendo crucial compreender que o capital antecede
essa forma de organização econômica. Desde a antiguidade, o capital comercial
exercia sua influência e importância, como argumentado por Singer (1984). O
3
mercador, segundo o autor, surgiu como resultado da divisão do trabalho em seu
período histórico, atuando como intermediário entre produtor e consumidor. Embora
o comerciante não contribua diretamente para a produção material, ele possibilita
aos produtores dedicarem mais tempo à produção direta.
No entanto, uma diferença crucial emerge ao transitarmos da simples troca de
mercadorias para a utilização ampliada do equivalente geral, o dinheiro. É a partir da
mercadoria dinheiro que se originam o capital monetário (ou capital usurário), o
capital industrial e o capital financeiro. Importante salientar que as diferentes formas
predominantes de capital estão intrinsecamente relacionadas com as formas
predominantes de trabalho. O capitalismo contemporâneo, frequentemente
denominado de capitalismo financeiro, tem sido objeto de debates por diversos
pensadores. Nesse contexto, para uma compreensão mais aprofundada desse
processo, é essencial recorrer à categoria marxista de capital fictício.
Ao longo do desenvolvimento do capitalismo comercial e industrial, Marx
(2017) descreve o processo de geração de capital como uma sequência na qual
uma quantidade específica de dinheiro se transforma em uma mercadoria
determinada e, posteriormente, converte-se em uma quantia maior do que a inicial,
sintetizado pela expressão D - M - D’. No contexto capitalista em que Marx viveu,
surge o capital monetário, representando dinheiro emprestado a um capitalista para
reinvestir em sua produção, sendo posteriormente devolvido com juros após a
obtenção de lucro.
Essa evolução resulta em uma nova expressão, D - D - M - D’- D’, dividida em
três etapas. A primeira delas representa o investimento inicial, D - D, somando o
dinheiro investido pelo capitalista ao montante emprestado, resultando em um
capital inicial ampliado. A segunda etapa reflete o movimento do capitalismo
industrial para gerar valor, D - M - D’, transformando o capital inicial em mercadoria
que, por sua vez, gera um capital maior. A última etapa, D’- D’, representa o capital
final, no qual uma parcela é devolvida ao credor com juros (D’), e outra permanece
com o capitalista.
Dentro dessa lógica, Marx observa que o dinheiro age como capital, pois,
além de seu valor como moeda, ele se apropria de uma parte do valor gerado pelo
trabalho não remunerado. Nesse cenário, ocorrem dois tipos de lucro: o do
empresário capitalista, extraído da produção, e o lucro daquele que emprestou o
dinheiro, proveniente dos juros. Assim, o detentor do dinheiro passa a receber uma
4
parcela do lucro simplesmente por possuir e utilizar o dinheiro como capital (Marx,
s/d).
Na aparência, a relação entre prestamista e capitalista advinha de
mero acordo jurídico, de contrato estabelecido. Assim, Marx (s/d, p.
403) afirmara que “[...] o retorno do capital nessa transação não
parece mais resultar do processo de produção e tudo se passa como
se o capital emprestado nunca tivesse perdido a forma dinheiro”. Se,
no movimento de troca de mercadorias, as relações sociais são
encobertas e assumem “a forma fantasmagórica de uma relação
entre coisas” (MARX, 2013, p.147), na relação do dinheiro como
capital, essa reificação se renova intensificada. Tem-se a ilusão de
que dinheiro produz dinheiro (D D’). É o ápice do fetichismo
(MARX, S/D APUD. GALZERANO, 2022, P. 25).
Dessa maneira, conforme a perspectiva de Marx, o capital portador de juros
(também designado, em algumas traduções, como capital produtor de juros) adquire
uma característica peculiar enquanto mercadoria. Seu valor de uso reside na
capacidade intrínseca de criar condições favoráveis para a geração de valor, tanto
para o detentor original quanto para aquele que o toma por empréstimo. A partir da
expansão desse capital portador de juros, emerge o desenvolvimento do sistema
financeiro, no qual as transações do capital monetário se ampliam a ponto de
perderem sua conexão com uma base material tangível, resultando em uma
existência essencialmente fictícia.
Com o desenvolvimento do capital produtor de juros e do sistema de
crédito, todo capital parece duplicar-se e às vezes triplicar-se em
virtude das diferentes formas em que o mesmo capital ou o mesmo
título de crédito se apresenta em diferentes mãos. A maior parte
deste “capital-dinheiro” é puramente fictícia. Excetuando o fundo de
reserva, todos os depósitos, embora sejam créditos contra o
banqueiro, não têm existência efetiva. (MARX, s/d, p. 541).
Os títulos de propriedade transformam-se em mercadorias que circulam entre
diferentes proprietários, muitas vezes em movimentos desconectados do mundo
real. Nesse cenário, o valor desses títulos torna-se sujeito a flutuações que não
necessariamente refletem o valor real dos ativos subjacentes. Em vez disso, esses
títulos passam a ser orientados predominantemente pelo domínio da especulação
em detrimento do domínio material.
É relevante destacar que o capital portador de juros difere do capital fictício,
embora, em algumas ocasiões, ambos possam ser confundidos. O segundo surge
como uma consequência da ilusão social criada pelo primeiro. Essa ilusão baseia-se
5
na crença de que a mera posse de dinheiro resulta, quase que automaticamente, em
rendimentos, alimentando a ideia de que " a ilusão que toda remuneração regular se
origina da existência de um capital" (Galzerano, 2022, p. 26). Inicialmente
denominado ilusório, esse capital carece de significado no contexto econômico.
Contudo, ao se transformar em um título passível de negociação, ele assume a
forma de um capital fictício.
[...] o capital fictício nasce como consequência da existência
generalizada do capital a juros, porém é o resultado de uma ilusão
social. E por que devemos chamá-lo de capital fictício? A razão está
no fato de que por detrás dele não existe nenhuma substância real e
porque não contribui em nada para a produção ou para a circulação
da riqueza, pelo menos no sentido de que não financia nem o capital
produtivo, nem o comercial. (CARCANHOLO; SABADINI, 2009,
p.43).
Desta forma, complementa os autores:
[...] o capital fictício tem como origem três fontes: a) a transformação
em títulos negociáveis do capital ilusório, b) a duplicação aparente do
valor do capital a juros (no caso das ações e dos títulos públicos) e c)
a valorização especulativa dos diferentes ativos. Esse capital fictício
de três diferentes origens tem em comum o fato de que, ao mesmo
tempo em que é fictício, é real. É real do ponto de vista do ato
individual e isolado, no dia-a-dia do mercado, quer dizer, do ponto de
vista da aparência; é a dialética fictício/real. (CARCANHOLO;
SABADINI, 2009, p.45).
O desenvolvimento do capital fictício marca a disseminação e consolidação do
capitalismo especulativo, em que a especulação gradualmente adquire uma
importância equivalente, senão superior, à realidade concreta material. Conforme
argumentado por Carcanholo e Sabadini (2009), nesse contexto emergem os
chamados lucros fictícios, cujo caráter é paradoxal. Por um lado, esses lucros são
considerados reais, pois permitem a aquisição de outras mercadorias; por outro
lado, não têm sua origem no excedente do trabalho. Esse capital revela-se
extremamente volátil, sujeito a valorizações e depreciações frequentes, uma vez que
se baseia fortemente em especulações.
Neoliberalismo
Quando se observa, de um lado, o processo de expansão do neoliberalismo
no Brasil, e do outro, o processo de expansão da educação a distância no país, em
6
ambos os casos o pesquisador é levado à década de 1990. Como demonstrado por
Bellinaso (2020), o fato de ambos os movimentos estarem situados dentro de um
mesmo período histórico não é uma mera obra do destino, mas se pelo fato desta
modalidade de ensino servir como ferramenta extremamente funcional para o
processo de neoliberalização no Brasil. Com isso, se faz importante realizar algumas
anotações sobre o neoliberalismo, para assim, entender melhor sua articulação com
a Ead.
Definir o neoliberalismo é uma tarefa complexa. Explorar as características
fundamentais do liberalismo, compreender como o neoliberalismo se reflete em
políticas públicas e analisar seu impacto nas formas de trabalho auxiliam na
compreensão desse fenômeno. Porém, é necessário esclarecer alguns aspectos.
Um ponto de debate relevante surge quanto à legitimidade do conceito de
neoliberalismo, especialmente no campo teórico das ciências sociais. Alguns
pesquisadores, como Draibe (1993), questionam se o neoliberalismo representa
verdadeiramente uma inovação ou se é apenas um resgate do pensamento liberal,
reduzindo-se à afirmação genérica da liberdade e da primazia do mercado sobre o
Estado. Nessa perspectiva, o neoliberalismo é visto mais como um conjunto de
regras e práticas do que como uma teoria estruturada, assemelhando-se a um "livro
de regras" em vez de uma tese argumentativa.
Contudo, mesmo com essas dúvidas sobre sua validade conceitual, o
neoliberalismo persiste como um termo associado a um zeitgeist político-econômico,
conforme destacado por John Clarke (2008). Venugopal (2015) argumenta que a
construção do conceito é mais obra de seus críticos do que de seus proponentes,
ressaltando sua associação com uma moral-crítica. Apesar das controvérsias,
Andrade (2019) enfatiza que esse caráter moral-crítico confere ao conceito uma
potencialidade significativa, mobilizando tanto pesquisadores quanto atores políticos.
Se o conceito por vezes designa alvos contraditórios e margem a
acusações recíprocas entre teorias, este fato se deve à própria
potência do termo. Assim como ocorre com outros conceitos
(democracia, populismo, poder etc.), que são dotados de caráter
fortemente normativo, de natureza multidimensional e de abertura
para modificações ao longo do tempo, o neoliberalismo torna-se alvo
de disputas e, portanto, de dispersão conceitual, de inconsistência
terminológica e de definições fracas. Seus próprios críticos
reconhecem ocorrências similares endêmicas nas ciências sociais
(Boas & Gans-Morse, 2009; Venugopal, 2015). Essa deriva, no
entanto, não é por si capaz de criar confusão entre os atores
7
políticos. Na medida em que os movimentos sociais têm suas
próprias perspectivas de luta, eles não necessariamente ficam
perdidos pelas variações conceituais, pois são capazes de perceber
quais definições são mais interessantes estrategicamente, ao mesmo
tempo em que podem refinar os seus alvos e refletir sobre os
pressupostos teóricos de sua crítica. (ANDRADE, 2019, p. 216).
Quando realizamos o “teste do olho”, por mais reflexivos que possam ser os
argumentos contra a validade do conceito de neoliberalismo, a observação revela
uma série de metamorfoses polícia-econômico-sociais. Por mais que Hilgers (2011)
faça tal afirmação relacionada a sua área de conhecimento, pode-se expandi-la,
sendo assim:
quando o neoliberalismo é implementado e suas práticas e
linguagem associadas afetam nossa compreensão dos seres
humanos, modificando relações sociais, instituições e seus
funcionamentos, que ele se torna um objeto apropriado para a
antropologia. Uma vez que ele se torne envolvido na estruturação
concreta do mundo da interação social e da experiência e exerça
uma influência real sobre a maneira pela qual os agentes pensam e
problematizam suas vidas, pesquisas podem ser levadas a cabo no
campo e teorias emergem buscando analisá-lo e estabelecer seus
efeitos, ao mesmo tempo evitando sua retificação (HILGERS, 2011).
No âmbito desse debate, conceitos como o neoliberalismo se destacam como
objetos e instrumentos cruciais em disputas teóricas e políticas. Considerando todos
os elementos discutidos, este trabalho argumenta que não apenas é pertinente, mas
também é imperativo abordar o conceito de neoliberalismo. A complexidade em
torno dessa discussão é evidenciada por três fatores: a) a falta de convergência e
unanimidade sobre o conceito, mesmo entre aqueles que se autodenominam
neoliberais; b) a natureza dinâmica do neoliberalismo, sujeito a constantes
mudanças em suas pautas; e c) a discrepância entre a prática neoliberal e a teoria
neoliberal, contribuindo para uma abordagem nebulosa desse fenômeno.
Apesar dessas dificuldades, Moraes (2001) nos fornece uma forma
interessante de observar o neoliberalismo, do qual é compreendido como uma
trindade estabelecida pelos seguintes aspectos:
1. uma corrente de pensamento e uma ideologia, isto é, uma
forma de ver e julgar o mundo social;
2. um movimento intelectual organizado, que realiza reuniões,
conferências e congressos, edita publicações, cria think tanks, isto é,
centro de gerações de idéias e programas, de difusão e promoção de
eventos;
3. um conjunto de políticas adotadas pelos governos
8
neoconservadores, sobretudo a partir da segunda metade dos anos
70, propagadas pelo mundo a partir das organizações multilaterais
criadas pelo acordo de Bretton Woods (1945), isto é, o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI). (MORAES, 2001,
p. 3)
Os três significados abordados pelo autor formam a compreensão mais
abrangente do neoliberalismo, e, nesse contexto, um ponto de convergência
entre eles, pois todos apontam para a sugestão de um retorno a um modelo ideal
(Moraes, 2001, p. 3). Assim, é essencial compreender o liberalismo como base para
a compreensão do neoliberalismo, visto que este último representa um resgate e
aprimoramento de uma nova realidade do primeiro.
Ao analisar o neoliberalismo sob a perspectiva ideológica, é crucial
compreender os princípios defendidos por seus teóricos, conforme delineado por
Martins (2009). Esses fundamentos incluem: a) a concepção do mercado como o
principal organizador social; b) o individualismo destacado como o valor moral
primordial; c) a supervalorização da ideia de "liberdade"; e d) a intensificação da
proposta de um estado mínimo.
No que diz respeito ao "mercadocentrismo", ou a crença de que o mercado
desempenha um papel central na organização social (Bianchetti, 2005), a
perspectiva de Hayek enfatiza o mercado como um mecanismo autorregulador não
apenas da economia, mas também das relações sociais. Esse fenômeno garante a
realização das individualidades, sendo a autorregulação do mercado, conhecida
como "mão invisível", resultante da soma das múltiplas individualidades. Sob essa
ótica, o mercado é considerado sinônimo de eficiência e agilidade na abrangência de
diversas atividades relacionadas à produção de bens e à prestação de serviços
públicos (Santos; Paixão, 2014, p. 73).
Prosseguindo, o individualismo é destacado como um valor moral
fundamental, com Hayek sendo um fervoroso defensor do princípio da liberdade
individual. O pensador sustentava a importância do "poder de decisão" como um
direito universal que todos os indivíduos deveriam possuir.
O indivíduo para o neoliberalismo é, portanto, o resultado da "sorte",
que determina as suas aptidões e capacidades naturais. É o fruto de
uma medida arbitrária que estabelece o tipo de família, o meio
cultural e as oportunidades que aparecem ao longo da vida sem a
intervenção do outro (BIANCHETTI, 2005). É um sujeito “a-histórico”
que se move por meio de seu interesse e dispensa a noção de
totalidade, diferentemente do pensamento marxista, que procura não
9
separar a constituição do ser social das condições em que está
inserido na sociedade, considerando que o homem não se
desenvolve sozinho, mas na coletividade, construindo a sua história
sob determinadas circunstâncias. (SANTOS; PAIXÃO, 2014, p. 74).
O terceiro ponto a ser enfatizado é a sobrevalorização da ideia de "liberdade".
Essa concepção é apresentada como o "poder supremo" de origem natural, neutro e
responsável por orientar os indivíduos em suas vontades, estabelecendo, assim,
uma conexão direta com o mercado. Segundo Martins (2009, p. 40), "A liberdade é
uma atividade histórica condicionada pela forma de produção coletiva da existência
(...) a liberdade significa o direito a ser explorado, para os que vendem a força de
trabalho, e para ser explorador, para os que detêm os meios de produção".
Por fim, o discurso da minimização da intervenção estatal.
Sua gênese estaria ligada à ideia de um “acordo” entre indivíduos no
sentido de preservação desses direitos. Sua estrutura corresponderia
mais especificamente à ideia de governo. Sua função seria a de
preservar um ambiente de liberdade de escolhas e, quando
necessário, empregar o uso legítimo da força para defesa do
indivíduo autônomo e do mercado (MARTINS, 2009, p. 40).
Segundo a perspectiva neoliberal, a estrutura estatal se transforma em um
mero instrumento para assegurar as exigências do mercado. Nesse contexto, sua
intervenção na sociedade não deve ser direta; ao contrário, deve focar na promoção
da máxima liberdade entre os indivíduos.
Dessa forma, a política neoliberal propõe integralmente o corte dos
gastos com políticas sociais e com o funcionamento do Estado para
tal fim, ao passo que o investimento no campo econômico se torna
essencial para o fortalecimento do capital financeiro. Ou seja, os
direitos sociais, como saúde, educação, segurança, alimentação,
dentre outros, são transferidos para o âmbito do mercado. É uma
nova configuração societária, mas que continua privilegiando os
interesses das frações burguesas em detrimento das necessidades
da classe trabalhadora (SANTOS; PAIXÃO, 2014, p. 76).
Ao observar esses elementos que compõem o neoliberalismo, é notável que
muitos deles se relacionam diretamente com as possibilidades permitidas pela EaD.
Esta modalidade de ensino se manifesta como um importante mecanismo de
mercantilização da educação, sobretudo da ampliação da mais-valia, uma vez que
permite a elaboração de cursos com investimentos mais baratos e lucros mais altos,
ao ampliar a oferta de forma praticamente industrial/fabril. Um argumento
frequentemente utilizado pelos defensores desta modalidade é o da valorização dela
10
por oferecer um ensino mais “livre” e “individual”, uma vez que ele desenvolve
melhor a autonomia do aluno, que dialoga diretamente com o discurso ideológico
neoliberal de valorização das individualidades e liberdades.
A Nova Morfologia do Trabalho
A obra "Os Tempos Modernos" de Charles Chaplin é frequentemente utilizada
como recurso didático para ilustrar a morfologia do trabalho no século XX,
especialmente nas universidades e no ensino médio. A fábrica automotiva,
destacada na obra, simboliza o ponto de partida das transformações no mundo do
trabalho ao longo do século passado, enfatizando o predomínio do proletariado
industrial e rural. No século XXI, emerge um novo proletariado ligado aos serviços,
como call-centers, telemarketing, indústria hoteleira, fast-foods e entregadores de
aplicativos, resultado de uma nova morfologia do trabalho associada ao
neoliberalismo. Autores como Gorz (1985) e Habermas (1987) debateram a possível
extinção da classe trabalhadora, prevendo uma transição para uma sociedade de
classe média. No entanto, a realidade nas periferias do capitalismo revela bilhões de
pessoas ocupando trabalhos cada vez mais precários, desafiando as previsões de
extinção da classe trabalhadora.
Ao contrário do que ditava a equivocada “previsão” do fim do
trabalho, da classe trabalhadora e da vigência da teoria do valor, o
que temos, de fato, é uma ampliação do trabalho precário, que atinge
(ainda que de modo diferenciado) desde os trabalhadores e
trabalhadoras da indústria de software até os de call-center e
telemarketing o infoproletariado ou cibertariado -, alcançando de
modo progressivo os setores industriais, da agroindústria, dos
bancos, do comércio, do fast-food, do turismo e hotelaria etc./ e
incorporando até mesmo os trabalhadores imigrantes, cujos números
se expandem em todas as partes do mundo. É quase impossível,
hoje, encontrar qualquer trabalho que não tenha alguma forma de
dependência do aparelho celular. (ANTUNES, 2020a, p. 13).
Ricardo Antunes (2020b) destaca que, a partir da segunda metade do século
XX, o capitalismo passa por uma constante reestruturação produtiva, com
maquinários e tecnologias tornando-se obsoletos em intervalos cada vez mais
curtos. Essas inovações, centradas na revolução informacional, continuamente
transformam a natureza do trabalho, impactando diversos setores, desde jornaleiros
até funcionários públicos e professores. Paralelamente, as empresas passam por
11
uma significativa transformação, tornando-se mais flexíveis, abandonando a
remuneração fixa, jornadas pré-determinadas, e desconsiderando a organização
sindical e os espaços laborais fixos. Um reflexo marcante dessa flexibilidade é
observado nos trabalhos intermitentes, caracterizados pela disponibilidade constante
do trabalhador para atender à demanda, sem definição prévia de dias ou horários de
trabalho, gerando uma grande contingência de trabalhadores em espera para
possíveis chamadas de trabalho.
É por isso que, nesse mundo do trabalho digital e flexível, o
dicionário empresarial não para de “inovar”, em especial no setor de
serviços. “Pejotização” em todas as profissões, com médicos,
advogados, professores, bancários, eletricistas, trabalhadoras e
trabalhadores do care (cuidado) e “frilas fixos”, freelancers que se
tornam permanentes, mas que têm seus direitos burlados e se
escondem em redações dos jornais quando as empresas sofrem as
auditorias do trabalho. Ou ainda o chamado teletrabalho e/ou home
office, que se utiliza de espaços fora da empresa, como o ambiente
doméstico, para realizar atividades laborativas. Isso pode trazer
vantagens, como economia de tempo em deslocamentos, permitindo
uma melhor divisão entre trabalho produtivo e reprodutivo, dentre
outros pontos positivos. Mas com frequência é, também, uma porta
de entrada para a eliminação dos direitos do trabalho e da
seguridade social paga pelas empresas, além de permitir a
intensificação da dupla jornada de trabalho, tanto o produtivo quanto
o reprodutivo (sobretudo no caso das mulheres). Outra consequência
negativa é a de incentivar o trabalho isolado, sem sociabilidade,
desprovido do convívio social e coletivo sem repressão sindical
(ANTUNES, 2020b, p. 39).
No contexto do capitalismo contemporâneo, as empresas se afastam dos
modelos produtivos taylorista e fordista do século passado, adotando abordagens
flexíveis e informacionais. Essas organizações buscam estabelecer um novo modelo
empresarial global, utilizando ferramentas como flexibilidade, informalidade e
intermitência. Esse movimento resulta no desmantelamento das antigas legislações
protetoras e na implementação de novas leis que facilitam práticas antigas de
exploração. Em um cenário de avanço tecnológico, uma parte dos trabalhadores
enfrenta a flexibilização e a intensificação de suas atividades, tornando-se apêndices
dos aparelhos tecnológicos que impõem um ritmo acelerado, demandando
profissionais polivalentes e sujeitos a uma gestão que pressiona psicologicamente
por maior produção. Ao mesmo tempo, a maioria da classe trabalhadora lida com
novas modalidades de vínculos e condições de trabalho marcadas pela insegurança
e vulnerabilidade.
12
O trabalho intermitente destaca-se como um resumo desse processo de
transformação da morfologia do trabalho no capitalismo contemporâneo.
Exemplificado por contratos como o zero hour contract, originário do Reino Unido,
onde os trabalhadores ficam disponíveis em uma plataforma aguardando chamados,
sendo remunerados apenas pelo tempo efetivamente trabalhado,
independentemente do tempo de espera. Outro exemplo é encontrado em empresas
como a Uber, onde os trabalhadores são proprietários das ferramentas de produção,
arcam com despesas, mas a empresa se apropria da mais-valia produzida. Apesar
do discurso ideológico que promove a flexibilidade e a liberdade, a observação mais
próxima revela que esses discursos servem como mecanismos de transferência de
riscos e aumento do controle das empresas sobre os trabalhadores, especialmente
através do uso de plataformas e aplicativos.
A negação do assalariamento é elemento central da estratégia
empresarial, pois sob a aparência de maior autonomia (eufemismo
para burlar o assalariamento e efetivar a transferência dos riscos), o
capital busca, de fato, ampliar o controle sobre o trabalho para
recrudescer a exploração e a sujeição. (FILGUEIRAS; ANTUNES,
2020, p. 60).
Assim, a flexibilização se configura como uma síntese representativa da nova
morfologia do trabalho, segundo Antunes (2020b), atuando como uma organizadora
que fundamenta as alterações na sociabilidade do capitalismo contemporâneo. Esse
fenômeno, de acordo com o pesquisador, resulta na redução da separação entre
atividade laboral e espaço da vida privada, no desmonte da legislação trabalhista e
no surgimento do desemprego estrutural. Além disso, a consolidação do trabalho
virtual nos setores de serviços traz uma nova dinâmica em relação à geografia,
tornando-se menos vinculada a um local específico, o que é enfatizado por Graham
e Anwar (2020) ao destacar a modularização, mercadorização e padronização das
tarefas de trabalho. Esse novo cenário não se limita aos arredores da empresa,
abrangendo uma amplitude geográfica significativa. Contudo, associado ao discurso
ideológico de meritocracia e competição, incentiva uma disputa entre os
trabalhadores. A nova morfologia do trabalho, caracterizada por formas flexíveis e
virtuais, reflete a estratégia capitalista de minar as condições laborais e, mais crucial
ainda, inibir as organizações e resistências dos trabalhadores, tornando desafiadora
a mobilização entre diferentes localidades e, muitas vezes, impedindo a interação
entre os próprios trabalhadores, como observado no caso do trabalho intermitente.
13
Vivemos um momento de contradição quase irônica do capitalismo
contemporâneo. Do ponto de vista técnico, a utilização das TIC na
gestão do trabalho torna a identificação e a efetivação de direitos
aos/às trabalhadores/as mais fácil do que em qualquer outro período
da história. Contudo, o discurso de que estamos diante de novas
formas de trabalho, não sujeitas à regulamentação protetiva (ou o de
que não seria possível existir tal regulação), tem desempenhado
papel fundamental para legitimar, incentivar, cristalizar e acentuar a
falta de limites à exploração do trabalho e à precarização de suas
condições. A mesma tecnologia que torna a regulamentação
tecnicamente mais fácil é apresentada como fator que inviabilizaria a
proteção dos trabalhadores. E esse contraditório e complexo
movimento, típico da razão instrumental e de suas engrenagens de
cominação, tem impactado fortemente as legislações e as
instituições públicas, além de constituir um elemento a mais para
dificultar e obliterar a criação de laços de solidariedade e de
organização da classe trabalhadora. (FILGUEIRAS, ANTUNES,
2020, p. 60-61).
Antunes (2020b) destaca a relevância de compreender a atual transformação
do mundo do trabalho no contexto da hegemonia da indústria 4.0. Esse fenômeno,
caracterizado pela presença da "internet das coisas" e impulsionado pela proposta
empresarial e pela dominação informacional-digital, não se limita à indústria,
estendendo seus impactos a diversos setores de emprego. A ampliação do trabalho
morto, marcada pela substituição crescente do trabalho humano por ferramentas
como inteligência artificial, big data e outras tecnologias, é uma das principais
consequências dessa revolução industrial. No entanto, Antunes ressalta a
interdependência entre o trabalho humano e a tecnologia, enfatizando que, para que
ocorra esse avanço tecnodigital, é necessário um expressivo conjunto de trabalhos
manuais que se expandem globalmente.
Os pensadores marxistas muito alertam para o fato de que o
desenvolvimento tecnológico ocorre em consonância com os interesses do capital,
priorizando a competitividade e a geração de lucro em detrimento das necessidades
sociais e dos trabalhadores. As transformações tecnológicas, segundo Antunes
(2020a), são orientadas para criar mecanismos que favoreçam as indústrias e
empresas em suas disputas comerciais. Assim, a privatização dos serviços e a
introdução das novas tecnologias digitais ampliam a teoria do valor, evidenciando
que, apesar de algumas propostas de superação, persiste uma relação desfavorável
aos trabalhadores no contexto contemporâneo.
14
Com salários menores, jornadas de trabalho prolongadas,
vicissitudes cotidianas que decorrem da burla de legislação social
protetora de trabalho, a terceirização assume cada vez mais relevo,
tanto no processo de corrosão do trabalho e de seus direitos como
no incremento e na expansão de novas formas de trabalho produtivo
geradoras de valor. Essas novas modalidades de trabalho veem
assumindo um destaque crescente não no mundo da produção
material mas na circulação de capital e agilização das informações,
esferas que são com frequência realizadas por atividades também
imateriais, que ganham cada vez mais importância na reprodução
ampliada do capital financeirizado, informacional e digital.
(ANTUNES, 2020b, p. 34).
EaD como ferramenta neoliberal e a nova morfologia do trabalho docente:
precarização real do trabalho virtual
O neoliberalismo consolidou sua presença no Brasil a partir do governo de
Fernando Collor, intensificando-se durante os mandatos de Fernando Henrique
Cardoso, marcados por privatizações e um discurso favorável ao “Estado Mínimo”.
Essa influência neoliberal se estendeu ao setor educacional, sendo caracterizada
por três pilares essenciais: a mercantilização da educação, as parcerias
público-privadas e o aligeiramento das formações. Estes elementos formam um
triângulo interconectado, cada um possuindo características próprias que se
complementam (NOVAES; OKUMURA, 2021).
A mercantilização da educação, conforme apontado por Galzerano (2022),
não se deu formalmente através da adesão às concepções do Acordo Geral do
Comércio de Serviços (GATS), mas, na prática, o Brasil não desenvolveu
mecanismos eficazes para impedir a expansão desse processo. O ensino privado
experimentou um notável crescimento em várias dimensões, abrangendo desde os
níveis infantil até o superior, incluindo diversas modalidades como técnicas,
tecnólogas, reforço, entre outras. Paralelamente, a mercantilização foi mascarada
pelo Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado de Bresser Pereira (2000),
que permitiu a gestão privada de setores educacionais públicos, ampliando ainda
mais a presença do setor privado na oferta de serviços educacionais.
O segundo pilar refere-se às parcerias público-privadas. Na década de 1990,
a orientação da educação brasileira seguia as diretrizes de organismos multilaterais,
como o Banco Mundial e a ONU. Nesse contexto, foram criadas e estruturadas
condições que permitiram às instituições privadas não apenas comercializar a
educação, mas também influenciar suas decisões. Entidades como o Instituto Ayrton
15
Senna, Fundação Itaú, Fundação Bradesco, Instituto Lemann, entre outros,
passaram a ser cada vez mais consultadas sobre questões relacionadas à educação
nacional.
Diversas manifestações práticas dessa parceria entre o setor público e
privado podem ser destacadas, sendo a produção de livros didáticos uma das mais
significativas, conforme evidenciado por Galzerano (2022). Com a legitimação do
Programa Nacional do Livro Didático durante o governo de Fernando Henrique, o
Estado passou a investir vultuosas quantias na iniciativa privada por meio da
aquisição desses materiais. Em 2012, por exemplo, cerca de 1,5 milhões de reais
foram destinados ao Programa Nacional do Livro Didático. Somente nesse mesmo
ano, a empresa Somos Educação recebeu 380 milhões de reais em recursos
provenientes desse programa.
O último pilar, denominado "aligeiramento das formações", refere-se a
práticas educacionais que surgem durante o avanço neoliberal, resultando em uma
formação profissional mais rápida, menos aprofundada, mais técnica e voltada
principalmente para atender às demandas do mercado de trabalho. Nesse contexto,
a educação a distância (EaD) ganha destaque, permitindo flexibilidade no espaço e
tempo de aprendizado. Em 2017, uma propaganda com Luciano Huck causou
indignação ao promover um curso de pedagogia via EAD, com duração de 6 meses
a 1 ano, com o objetivo de "complementar a renda". O ensino a distância, ao
transcender limitações de espaço e tempo, oferece benefícios educacionais, embora
sua eficácia varie entre aqueles que buscam uma expansão democrática da
educação e os que veem oportunidades lucrativas.
Quando olhamos para a realidade concreta da Educação a Distância no
Brasil, de acordo com o último Censo EaD da ABED (Associação Brasileira de
Educação a Distância) referente ao ano de 2021, foram ofertados 76.376.850 cursos
de graduação via EaD, gerando 2.477.374 ingressantes (sendo apenas 42.422 em
cursos públicos), enquanto 6% das matrículas das instituições públicas foram para
cursos via EaD, na rede privada, 51% das matrículas são para cursos desta
modalidade (ABED, 2022). Apesar de a oferta de cursos de graduação a distância
terem duplicado durante a pandemia, em todos os censos realizados pela ABED,
sempre apresentou um contínuo crescimento desta oferta, onde dos anos 2010 até
hoje, ano após ano está quebrando recordes.
16
Os números expressivos na Educação a Distância não são coincidência; são
reflexo da sua extrema atratividade para o capitalismo contemporâneo e o
neoliberalismo. A ênfase comercial no surgimento do ensino a distância, destacada
por Peters (2006), revela que o objetivo não era proporcionar educação para as
pessoas, mas sim garantir lucro para as instituições educacionais. No atual estágio
tecnológico, a EAD se torna um parceiro vital para a busca de lucro no setor
educacional, possibilitando alcance massivo de alunos com uma única aula,
contratação flexível de professores sem vínculos empregatícios, reutilização ilimitada
de conteúdos gravados e uma intensa divisão do trabalho, resultando em uma maior
racionalização e, consequentemente, em uma maior taxa de lucro.
Ao observar as principais empresas de educação no Brasil, destaca-se a
Kroton e a Estácio, líderes em cursos de graduação, número de alunos e valor de
mercado (COSTA, 2018) . Em 2017, o CADE interveio em sua fusão para evitar um
monopólio de 70% da oferta de cursos de graduação no país. Essas gigantes do
mercado educacional cresceram globalmente através de fusões, aquisições de
universidades locais e abertura de capital para investidores internacionais. A
modalidade de ensino a distância (EAD) foi crucial para sua expansão e, entre 2014
e 2016, o financiamento estudantil (FIES) impulsionou suas maiores taxas de lucro.
(Machado, 2017)
Além da mercantilização via EaD, essas empresas lucraram
significativamente com parcerias público-privado, notadamente através do FIES. Em
2016, a Kroton registrou uma receita líquida de 5,24 bilhões de reais, principalmente
proveniente do FIES. Entre 2010 e 2015, a Estácio cresceu economicamente em
565%, mas a Kroton superou com um incrível crescimento de 22.130% no mesmo
período. Importante ressaltar que, em 2015, o governo de Dilma Rousseff cortou o
FIES, resultando em uma perda de 6 bilhões em valor de mercado para a Kroton em
apenas sete dias. (MAZOLI JR., 2015)
Esses dados, anteriores à pandemia, evidenciam a EaD como uma "galinha
de ovos de ouro", não apenas na mercantilização, mas também na exploração de
parcerias público-privado. No contexto neoliberal, a EaD desempenha um papel
crucial na precarização do trabalho docente, contribuindo para a proletarização,
desqualificação e divisão do trabalho na educação: “nós que trabalhamos com a
educação, conhecemos bem a consequência disto: proletarização, desqualificação,
17
e divisão do trabalho são aspectos que implicam igualmente professores,
orientadores e alunos” (PRETI, 2009, p. 60).
Um aspecto importante a ser mencionado a respeito da EaD, é que esta se
trata de uma forma de realização da oferta de um serviço, no caso, a educação. De
acordo com Marx (2017), as diferentes formas de trabalho podem ser divididas em
trabalho produtivo e trabalho improdutivo, onde no primeiro caso, o resultado do
trabalho é um bem material, e no segundo por sua vez, um bem imaterial. Quando
se observar os serviços, em sua grande maioria consistem em trabalho imateriais,
afinal de contas, o ato de aprender, ou a orientação média, ou a distância percorrida,
não geram um produto material. A escola tradicional presencial, é um claro exemplo
de trabalho imaterial, onde, dentro da lógica do mercado, ela troca uma determinada
quantidade de dinheiro pela possibilidade da transmissão de um conjunto de
conhecimentos.
Porém quando se coloca a EaD nesse prisma, se tem uma realidade da qual
se faz presente em alguns modelos de ensino presencial, mas que ganha
proporções maiores agora. Tal realidade consiste no fato que ao mesmo tempo em
que o produto imaterial continua sendo sua principal mercadoria (o conjunto de
conhecimentos), se tem a geração de produtos materiais (a videoaula, por exemplo).
Nesse sentido, a modalidade de ensino a distância oferece um produto imaterial,
mas possibilita ao mesmo tempo uma produção material.
Outra diferenciação realiza por Marx (2017) acerca do trabalho, é o trabalho
produtivo do improdutivo. O primeiro se sustenta sobre as respectivas
características: a) cria mais-valor; b) é pago por capital dinheiro e não por renda; c) é
resultado de um trabalho coletivo, social e complexo; d) valoriza o capital e; e) tende
a ser assalariado. Por sua vez,
Na contrapartida, o trabalho é improdutivo quando cria bens úteis,
valores de uso, e não está voltado diretamente para a produção de
valores de troca, ainda que seja necessário para que esta se realize.
São aqueles trabalhos consumidos como valor de uso, e não como
valor de troca. (ANTUNES, 2020b, p. 48).
Muitas vezes ocorre o equívoco de se reduzir o trabalho improdutivo como
trabalho imaterial, e o trabalho produtivo como trabalho material. Muito antes da
expansão da oferta privada dos serviços, Marx utilizava do exemplo dos docentes
para explicar tal complexidade:
18
A produção capitalista não é apenas produção de mercadorias, mas
essencialmente produção de mais-valor [...]. é produtivo o
trabalhador que produz mais-valia para o capitalista ou serve a
autovalorização do capital. Se nos for permitido escolher um exemplo
fora da esfera da produção material, diremos que um mestre-escola
é um trabalhador produtivo se não se limita a trabalhar com a cabeça
das crianças, mas exige de si mesmo até o esgotamento, a fim de
enriquecer o patrão. Que este último tenha investido seu capital
numa fábrica de ensino, em vez de uma fábrica de salsichas, é algo
que não altera em nada a relação. Assim, o conceito de trabalhador
produtivo não implica de modo nenhum apenas uma relação entre
atividade e efeito útil, entre trabalhador e produto do trabalho, mas
também uma relação de produção especificamente social. Surgida
historicamente e que cola no trabalhador o rótulo de meio direto de
valorização do capital. Ser trabalhador produtivo não é, portanto,
uma sorte, mas um azar. (MARX, 2017, P. 706-707).
Infelizmente Marx não poderia prever o que iria acontecer no futuro, mas a
EaD, sobretudo da forma que vem sendo utilizada em larga escala pelo setor
privado, escancara a existência de professores quanto trabalhadores produtivos,
uma vez que o resultado de seu trabalho se torna um complexo mecanismo de
extração e ampliação de mais-valia. Como dito anteriormente, esta modalidade faz
com que exista concomitantemente a existência de um produto material e imaterial,
onde ambos criam as condições necessárias para uma maior ampliação da extração
de mais-valia.
Como visto anteriormente, essa nova morfologia do trabalho, neoliberal,
financeira, flexível, enxerga as leis trabalhistas como um oposto a ser derrotado,
uma vez que estas, dificultam o processo de ampliação da acumulação do capital.
Porém, não é uma tarefa teoricamente simples, afinal de contas, estes direitos são
resultados históricos de anos de lutas dos trabalhadores. Nesse sentido, não
demorou muito para que o capital notasse que não basta combater os direitos
trabalhistas, mas se faz necessário também, combater a organização e articulação
dos trabalhadores.
As novas tecnologias, atreladas aos interesses do capital, geraram uma nova
morfologia do trabalho no mundo contemporâneo que gera uma nova realidade onde
precariza a própria organização das classes e dos sindicatos. Essa é uma realidade
triste e marcante da EaD, os docentes individualizados cada um em suas
residências, se locomovendo para instituição apenas para gravar suas aulas,
acabam não estabelecendo contato com os demais colegas de trabalho, em muitos
19
casos, os professores não realizam o menor contato com os demais docentes do
curso, muitas vezes nem sabe quem são.
Nesse sentido, quais são as condições que os docentes virtuais têm para se
organizar enquanto classe se em muitos casos eles nem se quer se conhecem, nem
se quer existe uma possibilidade de comunicação entre eles. Vale mencionar
também que dentro da EaD, em alguns casos, absorvendo elementos do mundo
empresarial, cria mecanismo para incentivar a própria competição entre os docentes.
Outra característica marcante da nova morfologia do trabalho presente no
trabalho docente virtual pela EaD, é a ampliação do chamado trabalho morto. Cada
vez mais se tornam comum o desenvolvimento de plataformas de auto
aprendizagem, jogos didáticos, que substituem em certa medida o docente, ou até
mesmo, é importante lembrar, que por mais que o docente grave uma videoaula ou
um podcast, esse em suas inúmeras reproduções, tende-se a tornar um trabalho
morto, pois não existe mais a necessidade do docente naquele processo.
Como dito, é um equívoco acreditar no fim da classe operária, porém, esta
se torna cada vez mais precarizada, e para que o “privilégio da servidão” se realize é
necessário que haja desemprego. O trabalho virtual e cada vez mais morto contribui
intensamente para esse propósito.
Uma análise do capitalismo atual nos obriga a compreender que as
formas vigentes de valorização do valor trazem embutidos novos
mecanismos geradores de trabalho excedente, e ao mesmo tempo
que expulsam da produção uma infinidade de trabalhadores, que se
tornam sobrantes, descartáveis e desempregados. Esse processo
tem clara funcionalidade para o capital, ao permitir a intensificação,
em larga escala, do bolsão de desempregados, o que reduz ainda
mais a remuneração da força de trabalho em amplitude global, por
meio da retração salarial daqueles assalariados que se encontram
empregados (ANTUNES, 2020b, p. 70).
Conclusão
Em síntese, a Educação a Distância (EaD) revela-se como uma ferramenta
intrinsecamente neoliberal, contribuindo significativamente para a transformação da
morfologia do trabalho docente. Desde o avanço neoliberal da educação na década
de 1990 no Brasil, a mercantilização da educação, as parcerias público-privado e o
aligeiramento das formações se fizeram presentes na realidade educacional
brasileira, onde a EaD se apresentou como importante ferramenta para auxiliar
nesse processo.
20
Conforme evidencia Peters (2006), desde a sua origem a EaD teve como
objetivo central não é necessariamente proporcionar educação às pessoas, mas,
primordialmente, garantir lucro para as instituições educacionais. Esse modelo, ao
transcender as limitações de espaço e tempo, possibilita uma expansão massiva do
alcance de alunos com uma única aula, proporcionando uma maior divisão do
trabalho, racionalização e, consequentemente, uma taxa de lucro mais elevada,
contribuindo assim, para o processo de mercantilização do ensino. Além disso, a
necessidade do desenvolvimento softwares e plataformas para realização desta
modalidade de ensino abriu portas para uma nova expansão, das parcerias
público-privadas.
Além disso, a EaD contribui para a precarização do trabalho docente,
promovendo a individualização dos professores, a ausência de interação entre eles
e incentivando a competição, corroborando com os preceitos ideológicos neoliberais.
A ampliação do trabalho morto, por meio de plataformas de autoaprendizagem e
jogos didáticos, também emerge como uma característica marcante dessa nova
morfologia do trabalho, intensificando a precarização e contribuindo para aumentar o
desemprego e reduzir a remuneração global da força de trabalho. Portanto, a EaD
se configura como uma peça-chave na engrenagem neoliberal que molda a
educação e o trabalho docente no Brasil contemporâneo.
Referências
ANDRADE, D. P. O que é neoliberalismo? A renovação do debate nas ciências
sociais. Revista Sociedade e Estado, v. 34, n. 1, p. 211-239, jan./abr. 2019
ANTUNES, R. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da indústria
4.0. In: ANTUNES, Rocardo (Org.). Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0.
São Paulo: Boitempo, 2020a, p. 11-22.
ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era
digital. São Paulo: Boitempo, 2020b.
BIANCHETTI, R. G. Modelo neoliberal e políticas educacionais. São Paulo:
Cortez, 2005.
BELLINASO, F. Educação a distância (Ead) e o trabalho docente: o aumento da
precarização. 2020. 116f. Dissertação (Mestre em Educação) - UNESP, Marília.
BRASIL. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Inep). Censo da Educação Básica 2022: notas estatísticas. Brasília: Inep, 2022.
21
BRESSER-PEREIRA, L. C. A reforma gerencial do Estado de 1995. Revista de
Administração Pública, v. 34, n. 4, p. 7-26, 2000.
CARCANHOLO, R. A; SABADINI, M. S. Capital fictício e lucros fictícios. Revista
Soc. Bras. Economia Política, Rio de Janeiro, n. 24, p. 41-65, jun. 2009.
CLARKE, J. Living with/in and without neoliberalism. Focaal, v. 51, n. 1, p. 135-147,
2008.
COSTA, F. L. O. Políticas públicas, expansão do ensino superior privado lucrativo e
financeirização do capital no Brasil: o caso da Kroton Educacional S.A. Cadernos
De Pesquisa. n. 25, v. 4, p. 33-51, 2018.
DRAIBE, S. M. As políticas sociais e o neoliberalismo: reflexões suscitadas pelas
experiências latino-americanas. Revista USP, vol. 17, p. 86-101, 1993.
GALZERANO, L. S. Educação à venda: ação empresarial e financeirização no
Brasil. Marília: Lutas Anticapital, 2022.
GRAHAM, M; ANWAR, M. A. Trabalho digital. In: ANTUNES, Ricardo. (Org.)
Uberização, Trabalho Digital e Indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020b. p.
47-58.
GORZ, A. Adieux au Prolétariat. Au de-lá du socialisme. Paris: Editions
Galilée.1985
HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa I - Racionalidad de la acción y
racionalización social. Madri: Taurus, 1987.
HILGERS, M. The historicity of the neoliberal state. Social Anthropology, v. 20, n.
1, 2012.
MACHADO, J. Fies puxa lucro da Kroton, que triplica no quarto trimestre. Valor
Econômico, São Paulo, 22 de março de 2017. Empresas. Disponível
em:
<https://valor.globo.com/empresas/noticia/2017/03/22/fies-puxa-lucro-da-kroton-que-
triplica-no-quarto-trimestre-1.ghtml>. Acesso em 18 de abril de 2023
MANZOLI JR; Ricardo. A. Kroton depois do furacão Fies. Isto É, São Paulo, 15 de
jun. de 2015. Dinheiro. Disponível em:
<https://www.istoedinheiro.com.br/a-kroton-depois-do- furacao-fies/>. Acesso em 18
de abril de 2023.
MARTINS, A. S. Burguesia e a nova sociabilidade: estratégias para educar o
consenso no Brasil contemporâneo. 2007. 312f. Tese (Doutorado em Educação)
-UFF, Niterói.
MARX, K.. O Capital: crítica da economia política. Livro I. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2017.
22
MARX, K. O Capital: crítica da economia política. Livro 3: o processo global de
produção capitalista. v.5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, s/d.
MORAES, R. C. Neoliberalismo De onde vem, de onde vai? São Paulo: Senac,
2001.
NOVAES, H. T; OKUMURA, J. H. Introdução à política educacional em tempos
de barbárie. Marília: Oficina Universitária - Unesp, 2021.
PETERS, O. Didática do ensino a distância: experiências e estágio da discussão
numa visão internacional. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2006.
SANTOS, T. da C. C; PAIXÃO, T. S. A mundialização do capital e seus impactos
sobre o processo de trabalho e a educação. Revista HISTEDBR. Campinas, n. 59,
p. 68-84, out., 2014.
SCHULTZ, T. W. O capital humano: investimento em educação e pesquisa. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1973.
SINGER, P. Curso de introdução à economia política. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1984.
VENUGOPAL, R. Neoliberalism as concept. Economy and Society, v. 44, n. 2, p.
165- 187, 2015.
23