V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E EDUCAÇÃO TECNOBANCÁRIA: IMPACTOS NO
PROCESSO ENSINO-APRENDIZAGEM
1
Tiago Fávero de Oliveira
2
Breno Apolinário da Silva
3
Resumo
O objetivo deste estudo é analisar como a mudança tecnológica altera processos produtivos e
educativos. O texto aponta que, apesar do apelo de modernização e inovação, a difusão de
tecnologias de inteligência artificial altera a relação entre linguagem e pensamento, produzindo uma
educação tecnobancária cujos efeitos geram submissão, dominação, exploração e universalização de
um pensamento único. O artigo parte das análises de Marx sobre a maquinaria e se desenvolve
apontando alterações, contradições e desafios sobre o tema. Ao final, são apresentados caminhos
para o enfrentamento da questão no sentido de gerar uma educação comprometida com os
interesses de emancipação da classe dominada.
Palavras-chave: Educação tecnobancária; Inteligência Artificial; Educação.
INTELIGENCIA ARTIFICIAL Y EDUCACIÓN TECNOBANCARIA: IMPACTOS EN EL PROCESO DE
ENSEÑANZA-APRENDIZAJE
Resumen
El objetivo de este estudio es analizar cómo el cambio tecnológico cambia los procesos productivos y educativos.
El texto señala que, a pesar del atractivo de la modernización y la innovación, la difusión de tecnologías de
inteligencia artificial cambia la relación entre lenguaje y pensamiento, produciendo una educación tecnobancaria
cuyos efectos generan sumisión, dominación, exploración y universalización de un solo pensamiento. El artículo
parte del análisis de Marx sobre la maquinaria y se desarrolla señalando cambios, contradicciones y desafíos en
el tema. Al final, se presentan formas de afrontar el tema para generar una educación comprometida con los
intereses de emancipación de la clase dominada.
Palabras clave: Educación tecnobancaria; Inteligencia artificial; Educación.
ARTIFICIAL INTELLIGENCE AND TECHNOBANKING EDUCATION: IMPACTS ON THE
TEACHING-LEARNING PROCESS
Abstract
The objective of this study is to analyze how the technological change changes production and educational
processes. The text points out that, despite the appeal of modernization and innovation, the diffusion of artificial
intelligence technologies changes the relationship between language and thought, producing a techno-banking
education whose effects generate submission, domination, exploration and universalization of a single thought.
The article starts from Marx's analysis of machinery and develops by pointing out changes, contradictions and
challenges on the topic. In the end, ways are presented to face the issue in order to generate an education
committed to the interests of emancipation of the dominated class.
Keyword: Techno-banking education; Artificial intelligence; Education.
3
Bacharel em Engenharia Civil pela Faculdade Metodista Granbery, Minas Gerais e Licenciado em Física pela
Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor da Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais.
Email: brenoapolinariosilva@gmail.com. Lattes: https://lattes.cnpq.br/8925671529021287.
ORCID: https://orcid.org/0009-0009-0172-9836.
2
Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(PPFH/UERJ). Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais
Campus Santos Dumont. Email: tiago.oliveira@ifsudestemg.edu.br.
Lattes: http://lattes.cnpq/3796451743136890. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5117-6274.
1
Artigo recebido em 09/03/2024. Primeira avaliação em 14/03/2024. Segunda avaliação em 25/04/2024.
Aprovado em 28/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62242.
1
Introdução
O avanço do capital, sobretudo no período neoliberal de uma crise estrutural,
faz com que novos meios e estratégias de adaptação sejam impostos. Nesse
contexto, diversos movimentos são identificados como estratégias para ampliar a
exploração do trabalho e do conhecimento humano. No caso da educação,
percebe-se que novos modelos são apresentados e implementados como
exigências de uma modernização de processos, métodos e recursos que são
necessários e urgentes. Contudo, o que se observa é que tais estratégias, na
realidade, se revelam como uma postura reacionária e conservadora, que retrocede
e ataca direitos, confisca conhecimentos e atua na desumanização de homens e
mulheres.
O trabalho se divide em três grandes partes: na primeira serão apresentadas
discussões sobre o avanço da maquinaria, apontando para as consequências na
esfera produtiva no sentido de alterar o trabalho, aumentando sua intensidade,
precarização e controle. Na segunda parte, intenta-se relacionar a transformação
tecnológica e a inovação para o contexto educacional, identificando movimentos e
efeitos deste movimento de forma mais ampla. Na terceira e última seção, é
desenvolvida uma reflexão acerca dos recursos digitais, da inteligência artificial e
das novas tecnologias no processo de ensino aprendizagem. A conclusão do estudo
permitirá reconhecer alterações na relação entre linguagem e pensamento no
sentido de difundir um modelo tecnobancário de educação, tendo em vista a
implementação de uma formação humana centrada num pensamento único.
O materialismo histórico e dialético serve como aporte teórico e metodológico
deste trabalho. A pesquisa se constitui numa análise dialética da realidade, cujos
resultados tendem a se materializar em teorias e categorias que voltarão à realidade
no intuito de gerar conhecimento e resistência face aos ataques. Toda análise é feita
na perspectiva de apontar contradições e limites do uso das tecnologias tal como é
feito atualmente, cujos efeitos são mascarados a fim de que o avanço do movimento
em questão seja ainda mais radical. Refletir sobre isso é necessário para que se
tome consciência da situação real, identificando estratégias de atuação do capital
objetivando a construção de caminhos de resistência.
2
O objetivo do texto é entender como o desenvolvimento da tecnologia altera
não processos produtivos como também processos educativos dentro dos quais
as estratégias de apropriação do conhecimento, da ciência e da tecnologia visam
maior dominação e exploração dos indivíduos, tendo como alvo a ampliação da
acumulação capitalista. Nesse sentido, identifica-se como este movimento, à serviço
do capital, se aproxima da educação e como a tecnologia, entendida como um
fetiche, assume o lugar humano, que se aliena e se reifica cada vez mais. Superar a
educação tecnobancária através de um projeto de formação humana que seja
emancipador e libertador é o caminho desafiador, complexo, necessário e urgente
para a transposição e a reversão desse quadro.
Análise da tecnologia a partir das reflexões de Marx acerca da maquinaria
Em sua densa e cuidadosa análise sobre o processo de produção capitalista,
Karl Marx (2017), no primeiro livro de O Capital, parte da análise da mercadoria,
sinaliza para a produção de valor a partir do trabalho e realça uma série de
conceitos e categorias que marcam o processo de desenvolvimento do modo de
produção capitalista. Como consequência deste estudo, o autor aprofunda sua tese
acerca da produção do mais-valor relativo, a partir da qual avança para a
compreensão de outros conceitos, quais sejam: a cooperação, a divisão do trabalho,
a manufatura e a produção industrial. Neste ponto é possível analisar uma
importante reflexão acerca do fenômeno chamado por ele de maquinaria.
No modo de produção capitalista, a maquinaria é responsável por “baratear
mercadorias" e encurtar a parte da jornada de trabalho que o trabalhador necessita
para si mesmo, a fim de prolongar a outra parte de sua jornada, que ele
gratuitamente para o capitalista. A maquinaria é meio para a produção de
mais-valor” (Marx, 2017, p. 445). No entanto, ao comparar o desenvolvimento do
trabalho humano com e sem o suporte de tecnologia e ferramentas, o autor afirma
que: “na ferramenta, o homem seria a força motriz, ao passo que a máquina seria
movida por uma força natural diferente da humana, como aquela derivada do animal,
da água, do vento etc.” (Marx, 2017, p. 446). Observa-se, assim, que o uso de uma
outra força que não a humana indica uma potência para a produção dentro do
3
modo capitalista, a saber: sua compatibilidade com a proposta de crescimento
exponencial e sem limites buscada pelo capital.
É por conta disso que se investe muito nos processos de contínua mudança
tecnológica, uma vez que a força motriz da máquina pode ser vista como menos
imperfeita, mais forte e menos limitada do que aquela fornecida pelo ser humano.
Isso indica que, com o passar do tempo, busca-se, cada vez mais o
desenvolvimento de tecnologias emancipadas do trabalho humano, que possam
funcionar de modo independente, incessante e intermitente, não regulada por limites
naturais e éticos, tendo como fundamento a busca pela ampliação das taxas de
acumulação.
A tecnologia vai se transformando e se adaptando às novas exigências do
processo de exploração de mais valia e expropriação do trabalho humano de modo
que o trabalhador seja cada vez menos necessário e mais oculto dentro do
processo. O próprio Marx destaca o argumento que sustenta essa visão quando
afirma que “uma única máquina, assistida por um homem adulto ou mesmo um
rapaz, estampa tanta chita de quatro cores quanto antigamente o faziam duzentos
homens” (Marx, 2017, p. 465). Isso traz uma alteração importante em todo o
processo: a mudança do foco e do fundamento do sistema. Se antes era a máquina
e a tecnologia que tinham de se adaptar ao trabalho humano, o que se vê, hoje, é a
necessidade cada vez maior de o trabalhador precisar se adaptar às novas
demandas do processo.
Neste ponto, é crucial fazer menção a um fato: apesar de toda a aparente
independência e autonomia da produção e da mudança tecnológica em relação ao
trabalho humano, não se pode esquecer que a máquina e a tecnologia não se
produzem ou se operam sozinhas. Disso é possível inferir que o capital ainda
depende do trabalho e do conhecimento humano no processo de produção de valor:
“como qualquer outro componente do capital constante, a maquinaria não cria valor
nenhum, mas transfere seu próprio valor ao produto, para cuja produção ela serve”
(Marx, 2017, p. 460).
Esta é a razão que justifica o fato de o capital continuar se apropriando do
conhecimento produzido pelo trabalhador (via ciência, tecnologia e inovação) como
mecanismo para a acumulação capitalista. É neste sentido que Vera Cotrim (2009)
afirma que o capital se apropria do conhecimento tanto para aumentar a
4
produtividade quanto para transformar o conhecimento em veículo para a produção
de mais-valor. Em ambas as situações, o que se observa é que o conhecimento do
processo de trabalho desenvolvido e pertencente ao trabalhador acabam sendo
apropriados e assumidos pelo capital via mudança tecnológica. A consequência
disso é a inclusão do conhecimento apropriado na reconstrução do processo de
trabalho e repassado, em última análise, para os trabalhadores com o aumento dos
mecanismos de controle, intensificação e exploração.
Concorda-se, também, com Sedi Hirano (2011), para quem, da mesma forma
que a acumulação capitalista expropria não meios de trabalho ou mercadorias,
mas também conhecimento da classe trabalhadora. Isso se realiza quando o modo
de produção capitalista se apropria da ciência a partir de diferentes modos e
estratégias. Importante registrar que boa parte da pesquisa científica é realizada
para a satisfação dos interesses capitalistas, ou seja, muitos dos temas de pesquisa
são definidos e financiados para finalidades bem definidas pelo capital. A produção
de conhecimentos científicos, tecnológicos e de inovação ao invés de produzirem
melhores condições de vida acabam contribuindo com a acumulação capitalista ao
possibilitarem a substituição do trabalho vivo por trabalho morto, aumentando a
produção e, consequentemente, a mais-valia relativa.
A descartabilidade do trabalhador e o aumento da intensidade e da
exploração do trabalho são duas estratégias que andam juntas dentro do processo
de avanço da maquinaria. Ao refletir sobre o país pioneiro da Revolução Industrial,
Marx é direto ao afirmar que “em nenhum lugar se encontra um desperdício mais
desavergonhado de força humana para ocupações miseráveis do que justamente na
Inglaterra, o país das máquinas” (Marx, 2017, p. 467). Isso não deve ser visto como
um efeito perverso ou algo que deu errado e saiu do controle. Ao contrário: é um fato
que faz parte do processo projetado, sendo, inclusive, um de seus objetivos. Ao
substituir trabalho vivo por maquinaria (trabalho morto), o capital libera uma
quantidade de trabalhadores que ficarão desempregados e, a partir disso, faz com
que os que continuam empregados tenham que se sujeitar e aceitar todo tipo de
aumento da jornada, de intensificação e exploração. Isso significa que o capital dita
as regras do trabalho a partir dos seus interesses de acumulação, ficando indiferente
às condições de vida que essas regras impõem à classe trabalhadora.
5
A necessidade de que sejam aceitos limites cada vez mais intensos de
trabalho por conta do número excessivo de trabalhadores disponíveis para assumir a
colocação do trabalhador insatisfeito é uma estratégia do capital para apaziguar a
luta de classes e esvaziar as demandas operárias. Num mercado de trabalho
regulado pela lei da oferta e da procura, quanto maior o número de trabalhadores
desempregados disponíveis, menor pode ser o salário pago e maior e mais intensa a
jornada de trabalho. É neste sentido que se entende que a maquinaria reduz os
limites e barreiras humanas para ampliar, para além dos limites naturais, a jornada, a
intensidade e a produtividade do trabalho. Ainda que a sociedade se organize para
reagir a este movimento, o que se observa é que o capital sempre irá contornar essa
resistência impondo novos meios para a intensificação do trabalho dentro dos limites
fixados pela jornada de trabalho máximo
4
.
O aumento da intensidade e da exploração são possíveis, dentro do modo de
produção capitalista, pois, com o avanço da maquinaria, são criadas condições para
o aumento do controle e da vigilância do capital sobre o trabalho. A partir deste
ponto, o indivíduo deixa de ser o centro e a referência a partir do qual o processo de
produção irá acontecer para ser apenas mais uma peça da engrenagem que, agora,
precisa trabalhar a partir do tempo e do controle da máquina. É como se a máquina
se transformasse em sujeito e o homem em objeto, uma vez é ela que dita toda a
ordem a intensidade do movimento em uma fábrica. Tal situação não é tranquila,
nem confortável para a classe trabalhadora, uma vez que a intensificação do
trabalho traz danos à saúde do trabalhador
5
. O aumento da exploração, a diminuição
dos salários, o aumento do desemprego, a miséria e a pobreza são produtos reais
5
O primeiro livro de O Capital traz uma série de exemplos que apresentam relatos de sucessivos
acidentes de trabalho em diferentes ramos da produção. Além disso, também são apresentados
indicadores obtidos a partir de relatórios e dados oficiais sobre a diminuição da expectativa de vida e
recorrentes problemas de saúde nos operários. Tais problemas e acidentes são causados pelas
condições desumanas e degradantes do trabalho no contexto da expansão da Revolução Industrial.
4
Marx mostra, em O Capital, que muitas formas foram historicamente utilizadas pelos empresários
para criar caminhos de não cumprimento da legislação trabalhista acerca da regulação e dos limites
impostos à jornada de trabalho. Na mesma obra também são destacadas várias situações em que o
Poder Judiciário se posicionava a favor do capital, em detrimento da classe trabalhadora. As próprias
sanções e multas (quando raramente aplicadas) eram muito pequenas frente ao lucro elevado que as
empresas auferiam com o descumprimento da lei, mostrando que até isso era um bom negócio.
Atualmente, o cenário real não se afasta daquele descrito por Marx: com a aprovação da
contrarreforma trabalhista, o capital avança radicalmente sobre o trabalho no sentido de formalizar o
trabalho informal, legalizar e aprofundar a exploração, instabilizar trabalhadores, permitir o trabalho
intermitente dentre uma série de outras medidas
6
do avanço do modo de produção capitalista
6
. O crescimento assustador do número
de acidentes de trabalho também é verificado e explicado pelo fato de que operários
extenuados, cansados e sem formação passam, com o avanço da maquinaria, a
usar equipamentos sem segurança.
O que se aqui é que, ao assumir o lugar de muitos trabalhadores, a
maquinaria aumenta a concorrência entre eles, diminuindo a coesão da classe e
enfraquecendo qualquer iniciativa de resistência operária. A competitividade se
fundamenta sobre a exploração exagerada do trabalho, uma vez que “a capacidade
de resistência dos trabalhadores diminui em consequência de sua dispersão” (Marx,
2017, p. 533). Além disso, faz-se mister destacar que a maquinaria é uma forma de
chantagear os trabalhadores, sobretudo em períodos de greve. Nesse contexto de
aumento da exploração do trabalho através da competitividade gerada pela
maquinaria, o capital aproveita para empregar a família toda. Se antes eram apenas
os homens que trabalhavam (e precisavam ganhar um salário capaz de sustentar
toda a família), agora todos os membros da família são jogados ao mercado de
trabalho (mulheres e crianças), diminuindo o valor do salário necessário para a
reprodução e se apropriando tanto do trabalho doméstico quando da educação das
crianças. É neste sentido que os pais se apresentarão como portadores do direito de
colocarem crianças para trabalhar alegando que isso será uma forma de
aprendizado de um ofício e caminho para o exercício e o crescimento pessoal. Na
verdade, o que se vê, aqui, é uma pauta que mercantiliza tudo e que, por conta
disso, é compatível com as demandas do capital. O modo de produção capitalista
leva os pais à exploração dos filhos, pois transforma tudo em mercadoria, em força
de trabalho para a acumulação capitalista.
6
Ao refletir sobre a lei geral da acumulação capitalista, Marx (2017), em O Capital, mostra que apesar
de muitos operários na Inglaterra trabalharem de forma árdua e ininterrupta, eles acabavam passando
fome. Isso indica que, num contexto de tamanha miséria, a situação da classe trabalhadora era de
profunda calamidade, uma vez que, quando a pessoa está passando fome, ela perdeu todas as
outras condições para viver, como moradia, vestuário, saúde, saneamento, aquecimento, entre
outros. A mesma situação degradante da classe trabalhadora é descrita por Engels (2010), quando
apresenta, com detalhes, as condições de vida, de moradia e de saúde às quais os trabalhadores
fabris ingleses eram submetidos.
7
A indústria e a escola 4.0: impactos do avanço do capital e da mudança
tecnológica na educação
O capital não altera as relações de produção e familiares como foi
pontuado na seção anterior: ele também altera e cria demandas para a educação.
Recapitulando um pouco da história, é possível perceber que no contexto de Marx, a
grande indústria precisou operar com um ser humano fragmentado, unilateral, que
se comportava como um acessório da máquina. Isso tem relação com a
necessidade de o modo de produção capitalista transformar trabalho complexo em
trabalho simples (Netto; Braz, 2012; Rubin, 1987). Esta redução mantém relação
direta com a demanda por formação do trabalhador, pois, quanto mais se simplifica o
processo de trabalho, menores serão os gastos com a sua formação e,
consequentemente, mais baixo poderá ser o seu salário (Cotrim, 2009)
7
.
Observa-se, aqui, que prevalece a necessidade de simplificar o processo de trabalho
complexo, tendo em vista a desqualificação daqueles que trabalham, tal como
desenvolvido por Marx em O Capital:
Em todo ofício de que se apodera, a manufatura cria, portanto, uma
classe dos chamados trabalhadores não qualificados, antes
rigorosamente excluídos pelo artesanato. Ao mesmo tempo que
desenvolve, à custa da capacidade total de trabalho, a especialidade
totalmente unilateralizada, que chega ao ponto da virtuosidade, ela
começa a transformar numa especialidade a falta absoluta de
desenvolvimento. Juntamente com a gradação hierárquica, surge a
simples separação dos trabalhadores qualificados e não qualificados.
Para estes últimos, os custos de aprendizagem desaparecem por
completo, e para os primeiros esses custos são menores, em
comparação com o artesão, devido à função simplificada. Em ambos
os casos diminui o valor da força de trabalho (MARX, 2017, p. 424).
O processo de transformação da tecnologia e o consequente aprofundamento
das suas formas de apropriação pelo capital produz uma série de novas realidades e
conceitos. Schwab (2016), pontua que o termo Indústria 4.0 foi criado em 2011 no
intuito de relacionar as mudanças tecnológicas com a quarta fase da revolução
industrial. A ideia visa o “despertar digital automizado do trabalho morto, que como
uma força autônoma assume cada vez mais o controle sobre o trabalho vivo”
7
Importante relacionar este ponto com a divisão que o modo de produção capitalista opera entre
trabalho manual e trabalho intelectual, sinalizando para a divisão de trabalhadores técnicos,
científicos e administrativos e trabalhadores manuais ou braçais, impondo uma divisão no seio da
própria classe trabalhadora como mecanismo de enfraquecimento e diminuição da solidariedade de
classe.
8
(Araújo, 2022, p. 23). Surge, assim, uma série de novos conceitos que começam a
se tornar cada vez mais recorrentes no mundo do trabalho, como automação,
internet das coisas (IoT), aprendizado da máquina (machine learning), era digital,
algoritmo, inteligência artificial, robótica, entre outros.
Todas as mudanças no mundo 4.0 vão gerar, como destacado
anteriormente, a necessidade de mudanças no perfil de trabalhador que é
requisitado pelo modo de produção vigente, trazendo demandas e impactos para os
processos educativos. Tais situações desencadeiam e inauguram mudanças que
chegam à escola sob a forma do que se conhece como educação 4.0. É possível
entender a relação entre escola e indústria 4.0 quando se observa que:
A educação 4.0 surge no contexto da chamada quarta revolução
industrial e refere-se aos desdobramentos desta no campo
educacional, visando implementar no sistema de ensino a linguagem
computacional, as tecnologias da informação, a robotização, a
inteligência artificial e a automação, com o objetivo de preparar a
mão de obra para atender às necessidades da indústria (SILVA;
PEREIRA, 2021, p. 133).
A princípio, percebe-se que a educação 4.0 assume duas formas específicas
e complementares dentro do campo escolar. A primeira forma diz respeito a
inovações trazidas para o currículo. Sob o pretexto de preparar indivíduos ativos,
conectados, versáteis e inseridos nas mudanças tecnológicas do mundo atual,
novos saberes e fazeres devem participar do currículo escolar. Caetano e Porto
Júnior (2021), ao pesquisarem sobre o tema, identificaram conceitos e métodos que
começam a fazer parte do discurso escolar, a fim de orientar mudanças no currículo,
tais como: aprender fazendo (learning by doing), cultura maker, ensino híbrido,
metodologias ativas, sala de aula invertida, novas mídias, habilidades digitais,
empreendedorismo, competências socioemocionais, inovação e STEAM
8
.
A inclusão destes conteúdos, métodos e propostas no currículo é feita sob o
argumento de que o avanço tecnológico é um caminho único, necessário, urgente e
sem volta: a humanidade não tem uma alternativa à educação 4.0. Prevalece o
argumento de que a não adesão a este universo implica permanecer no atraso e que
todo discurso contrário deve ser visto como obsoleto
9
. Além disso, o apelo de
9
Importante destacar que essa ideia de modernização, tal como pontuado por Laval (2004) não é
neutra. Neste contexto, vale resgatar a ideia de modernização do atraso. Para sua melhor
8
Sigla em inglês (Science, Technology, Engineering, Arts, Mathematics) que sinaliza para a
integração dessas áreas de conhecimento na resolução de problemas concretos.
9
construir competências e habilidades necessárias para a inserção em um mercado
de trabalho radicalmente interativo, digital e desafiador também sustenta a proposta.
No entanto, tal argumento se mostra imerso numa contradição, uma vez que, frente
a tudo que foi exposto, é possível perceber que este movimento de reestruturação
tecnológica tem sido implementado no sentido de transformar trabalho vivo em
trabalho morto, gerando cada vez mais indivíduos desempregados
10
.
Além disso, é preciso destacar também que este discurso da educação 4.0
produz uma desconfiguração e uma limitação da função docente. Neste contexto, o
professor perde um pouco da profundidade de sua atuação e passa a ser apenas
um mediador e motivador do processo. O aluno, aqui, aprende sozinho, de forma
autônoma, através de práticas e metodologias ativas. É uma simplificação e redução
da educação, que perde sua abrangência teórica, emancipatória e humana e passa
a ser concebida apenas com a função de produzir adaptação da força de trabalho ao
sistema de produção. Sobre essas metodologias ativas e construtivistas focadas no
“aprender a aprender” e no “aprender fazendo”, Newton Duarte (2011) afirma que o
conceito de aprendizagem significativa acaba se tornando uma ideia ligada apenas
aos interesses e realidades dos estudantes, fundada em um ideário iminentemente
pragmático, representada por um projeto educacional raso, superficial, aligeirado e
que não traz nenhum tipo de expansão ou alargamento da visão do aprendizado,
das necessidades e das expectativas do processo de ensino e aprendizagem, nem a
10
Vale notar que este argumento, em última análise, se relaciona diretamente com a questão da
empregabilidade: um discurso perverso que transfere toda responsabilidade do desemprego ao
indivíduo, negando as causas sociais e sistêmicas que geram a falta de oportunidades de trabalho. A
estratégia aqui é mascarar a crise estrutural do mundo do trabalho e atribuir o desemprego ao
indivíduo que não reúne as competências e habilidades demandadas pelo mercado.
compreensão, é necessário recordar que no contexto político, econômico e social brasileiro das
décadas de 1960 e 1970, vários sociólogos se dedicaram à análise das transformações contraditórias
em que o desenvolvimento do país se deu. Florestan Fernandes (1975) analisou, neste ínterim, o
processo de revolução burguesa nacional dentro de um contexto de capitalismo dependente. A
conclusão do autor indicou que a natureza do processo de modernização conservadora do Brasil
impunha o fato de que, aqui, este movimento não se deu com a superação do atraso representado
pelas elites nacionais (sobretudo as elites agrárias), cuja atuação reforçava a situação de
dependência e subalternidade do país, visto apenas como fornecedor de matéria-prima bruta para os
países centrais. Muito pelo contrário, o caso brasileiro usou o atraso como motor de impulsionamento
da modernização (FERNANDES, 2009). Nessa mesma direção, sinaliza Francisco de Oliveira (2003)
para quem, no Brasil, foi o arcaico que alavancou o processo de expansão e acumulação capitalista,
produzindo, como consequência disso, uma pequena classe superprivilegiada e uma numerosa
massa de pobres e miseráveis. Não se nega, portanto, que o processo de modernização
conservadora do país tenha se dado a partir das marcas do atraso, dentre as quais se destacam o
autoritarismo, o coronelismo, a manutenção da exploração, da dependência e da desigualdade.
10
busca por uma educação crítica e libertadora. Neste sentido, o mesmo autor faz uma
crítica à aproximação entre educação e mercado:
Quanto mais a difusão do conhecimento for regida pelas leis de
mercado, mais superficial e imediatista vai-se tornando o
conhecimento oferecido aos indivíduos e mais superficiais e
imediatistas vão-se tornando as necessidades intelectuais desses
indivíduos. Temos assim um círculo vicioso no qual o objetivo do
lucro imediato vai gerando produtos mais ampla e facilmente
consumíveis e, por sua vez, as necessidades e as preferências dos
indivíduos vão-se empobrecendo cada vez mais. Nesse contexto,
defender o “aprender a aprender” é decretar a derrota do saber e
contribuir para o processo de esvaziamento dos indivíduos, processo
esse gerado pelo fato de o valor de troca ser a mediação universal
na sociedade capitalista (DUARTE, 2011, p. 175 176).
Este esvaziamento da formação escolar não é um erro de trajetória ou um
efeito indesejável, mas, como dito anteriormente, faz parte do projeto. As práticas
conservadoras do neoliberalismo precisam contar com reformas na educação na
perspectiva da difusão de valores e formação de subjetividades alinhadas aos
interesses do capital. A formação de uma subjetividade compatível com o mercado é
desenvolvida por Dardot e Laval (2016) quando apresentam o conceito de sujeito
neoliberal, entendido como o sujeito que explora a si mesmo, usando a forma
empresa como modelo para a realização da sua vida. Além de reificar e alienar
ainda mais o indivíduo, este modelo visa “fabricar homens úteis, dóceis ao trabalho,
dispostos ao consumo, fabricar o homem eficaz” (Dardot; Laval, 2016, p. 325).
A segunda forma de manifestação da educação 4.0 diz respeito à
plataformização do ensino, que se efetiva através do uso de recursos digitais e
tecnológicos no processo pedagógico no sentido de considerar a educação como
uma oportunidade de negócio para o capital. São vários os produtos educacionais
que são oferecidos por empresas para a educação: plataformas, aplicativos,
sistemas, aulas, cursos, programas, entre outros. Além de gerar possibilidade de
acumulação capitalista através da venda dessas mercadorias, estes recursos
contribuem para a lógica de formar subjetividades neoliberais e de limitar cada vez
mais a atuação de professores. Laval (2004) sinaliza para o fato de que a venda de
pacotes educacionais para o ensino dos estudantes e, também, na formação
docente constitui um mercado lucrativo e em expansão. Para funcionar e expandir,
este mercado precisa precarizar e esvaziar a formação docente por dois motivos:
11
gerar professores mais dependentes da tecnologia e, ao mesmo tempo, conquistar
clientes (professores) com menores condições técnicas de avaliarem a qualidade do
produto/mercadoria que estão consumindo.
Além disso, permanece aqui a máxima citada de transformar trabalho vivo
em trabalho morto, mediante a apropriação de aulas gravadas que são vendidas
para uma quantidade incalculável e ilimitada de estudantes que terão acesso a uma
educação que, apesar de promover interatividade e atualidade, farão um curso a
partir de vídeo aulas formatadas, assíncronas, sem possibilidade de debate ou
interatividade. É neste contexto que Silva (2020) reflete sobre o fenômeno da
uberização e da youtuberização docente. Segundo a autora, a uberização pode ser
caracterizada como “total instabilidade e ausência de direitos trabalhistas e
previdenciários” (Silva, 2020, p. 599), mediante a desoneração do empregador dos
cursos para a oferta do trabalho, maior possibilidade de monitoramento e controle do
que está sendo realizado e atrelando avaliação e responsabilização a partir da
imposição de metas. Ao lado disso, a youtuberização é entendida a partir do
momento em que o professor se transforma num produtor de conteúdo que ficará
disponível numa plataforma para um número muito grande de estudantes (a maioria
desconhecida pelo professor). Realça-se, assim, uma relação mercadológica e
comercial, dentro da qual cada vídeo aula produzida deverá ser avaliada
publicamente pelos clientes/usuários com um número específico de estrelas. A
relação entre os dois processos pode ser percebida quando se observa que:
Se a uberização rompe com a noção de serviço público e o destrói
junto com o magistério público, durante a pandemia a youtuberização
atinge o profissional da educação e remodela a sua relação com a
escola num processo que vem para aumentar a alienação e a
expropriação do trabalho docente (SILVA, 2020, p. 603).
É importante destacar que, apesar de prometer avanços, modernização e
facilidade de acesso, este discurso da educação 4.0 pode se converter num caminho
para ampliar ainda mais a desigualdade educacional que é uma marca antiga em
nosso país. Isso porque não se deve esquecer que a outra face da tecnologia é a
exclusão digital. Tal situação foi escancarada durante a pandemia, uma vez que
estudantes carentes ou que viviam em regiões sem conectividade estável tiveram
ainda mais dificuldades no acompanhamento de suas aulas. Dessa forma, ainda é
um desafio ou até mesmo uma contradição falar de uma educação digital e
12
tecnológica para estudantes que vivem de forma precária. Isso também se aplica
aos professores, uma vez que nem todos possuem a formação e letramento digital
necessário para a utilização destes recursos, gerando exclusão também no interior
do magistério. Este fenômeno é chamado por Silva (2020) de darwinismo
professoral.
O movimento da educação 4.0 está sendo abraçado, patrocinado e
impulsionado por setores influentes no Governo Federal. Nunes (2021), ao analisar
o tema, identifica pelo menos oito editais do Ministério da Educação e do Ministério
da Ciência e Tecnologia para estimular práticas relacionadas à educação 4.0 no
país. Além da oferta de editais, projetos e cursos, é interessante perceber que este
fenômeno também ganha força no discurso da gestão e da avaliação educacional.
Freitas (2018) ao refletir sobre a reforma empresarial da educação observa que
instrumentos importados da gestão das empresas privadas são trazidos para a
educação no sentido de gerar competitividade, aumentar o individualismo e
padronizar processos. Impostos de cima para baixo ou estimulados por processos
de avaliação e responsabilização, estas políticas produzem ainda mais
desigualdade, isolamento, precarização docente e estimulam a formação de uma
subjetividade neoliberal cada vez mais alienada, mercantilizada e sem condições de
organizar a resistência. Oliveira (2023) afirma que há, no Brasil, um movimento de
privatização por dentro do setor educacional, produzindo instituições estatais
não-públicas. Este processo é consequência do avanço neoliberal mediante três
caminhos: os instrumentos de gestão, avaliação e financiamento; as parcerias
público-privadas e o movimento de estreitamento curricular.
Inteligência Artificial e educação tecnobancária
A relação entre linguagem, pensamento e desenvolvimento humano foi
pontuada por uma série de trabalhos (Piaget, 1987; 1976; Vygotsky, 1991). Com as
mudanças da tecnologia, da internet e, sobretudo da inteligência artificial, o que se
observa é que esta relação tem sido desconfigurada. Ubal et al (2023) desenvolvem
o tema sinalizando para uma alteração na tríade entre estudante, conhecimento e
professor (Houssaye, 1988), destacando que recursos e aplicativos de inteligência
13
artificial de modo especial o uso do Chat GPT podem assumir tanto o lugar do
estudante, quanto do professor ou até mesmo do saber.
O argumento aqui utilizado reside no fato de que a estrutura da aula
(considerada como processo ensino e aprendizagem) é a linguagem. Dessa forma,
com o uso de uma linguagem provocada e produzida pela inteligência artificial, tanto
professor, quanto estudantes terceirizam para a tecnologia o seu pensamento
renunciando ao desenvolvimento de ambos. Recorre-se, aqui, ao pensamento de
Ludwig Wittgenstein, pensador austríaco que afirma que “os limites de minha
linguagem significam os limites do meu mundo” (Wittgenstein, 2011, p. 245). Nesse
sentido, essa alteração que a inteligência artificial provoca na tríade didática
desconfigura e prejudica o desenvolvimento da linguagem e, consequentemente, do
próprio desenvolvimento humano.
O resultado disso é o que se pode entender como uma educação
tecnobancária (Ubal et al, 2023). Este conceito é inspirado no conceito de educação
bancária de Paulo Freire (1994; 1996)
11
. Mediada pela tecnologia e pelos aplicativos
de inteligência artificial, a educação na era digital da inteligência artificial passa a ser
uma educação tecnobancária pois trata o estudante apenas como um receptor, um
depósito estanque de conhecimentos que lhe são transmitidos. É como se o
estudante terceirizasse para a tecnologia o seu próprio pensamento e sua forma de
se afirmar perante o mundo. O efeito disso, será a limitação do desenvolvimento do
pensamento e o aprofundamento de um pensamento único, sem crítica, sem
diversidade, fundado no modelo de competências simples, rasas, fragmentadas e
que empobrece a formação e confisca a capacidade criativa dos indivíduos.
Reafirma-se a questão de que com os dispositivos de inteligência artificial, a
tecnologia assume um lugar especificamente humano, interferindo na forma como os
indivíduos lidam com seus problemas. É uma situação de inversão dentro da qual os
aplicativos orientam, conduzem e ordenam a vida humana, retirando dela sua
consciência e sua autonomia: “con las inteligências artificiales generativas por
11
Muito mais que um método, a educação bancária criticada por Paulo Freire (1994; 1996) é uma
visão acerca do estudante e do processo de ensino e aprendizagem. Contempla uma situação em
que o estudante é uma parte inoperante do processo, um ser passivo sobre o qual o professor
deposita os conhecimentos que acha necessário, sem se importar se estes conhecimentos fazem ou
não sentido para a realidade na qual cada estudante está inserido. Neste caso, observa-se uma
educação do mero depósito de informações, que não produz diálogo, debate, emancipação e
autonomia. É a educação da repetição daquilo que está pronto e que nem sempre atende às
demandas que são apresentadas em cada situação específica.
14
primera vez contamos con dispositivos prácticamente de aceso universal capaces de
sintetizar y procesar la información, capacidad que era exclusiva de los seres
humanos” (UBAL et al, 2023, p. 50). Neste caso, faz-se mister reforçar que
tecnologias não são naturais, mas que fazem parte de um processo que pode ser
positivo ou negativo.
Prevalece, neste contexto, aquilo que Porto Júnior e San Segundo (2023)
chamam de visão naturalizada de tecnologia
12
, apartada do fenômeno da luta de
classes. Esta visão nega que a tecnologia, que é parte da cultura humana, seja
desenvolvida a partir da base material do trabalho, omitindo que as escolhas que
culturalmente são feitas pelos indivíduos partem de uma dimensão política. O efeito
disso é que ao naturalizar e fetichizar a tecnologia, acontece um processo de
desumanização. O conceito de fetiche da tecnologia é usado aqui para
mostrar que a tecnologia que nos é apresentada como politicamente
neutra, eterna, anistórica, sujeita a valores estritamente técnicos e,
portanto, não permeada pela luta de classes, é uma construção
histórica e social. E, assim como mercadoria, tende a obscurecer
relações de classe diluindo-as no conteúdo aparentemente não
específico da técnica (NOVAES, 2007, p. 75 76).
Ainda que o apelo para a difusão do uso dos aplicativos e recursos de
inteligência artificial na educação seja o de gerar uma maior autonomia e
versatilidade do estudante, que assume a centralidade do processo, o que se é o
oposto disso. Neste modelo, o centro é a competência e a burocracia, aliadas tanto
à criação de uma oportunidade de negócio como também de uma estratégia para o
desenvolvimento de um pensamento único. O estudante aqui é uma peça
meramente secundária que é operada pelo aparato tecnológico que se ocupa cada
vez mais em formar um indivíduo compatível com as demandas de acumulação do
capital. Ao invés de atuar no desenvolvimento integral de indivíduos críticos, aptos
ao exercício de uma cidadania política, social e econômica, trabalha-se apenas para
a criação de consumidores de conteúdos diante de uma educação sob demanda,
plataformizada e imediatista.
O discurso de que o estudante é protagonista e vai aprender o que quer,
quando quer e como quer é uma armadilha para aprofundar ainda mais a
desigualdade educacional, uma vez que fragmenta e empobrece a relação ensino e
12
Por visão naturalizada de tecnologia entende-se aquela perspectiva em que ela é considerada
neutra, autônoma e determinista, incapaz de se conter ou impossível de resistir.
15
aprendizagem. Acredita-se que o estudante não consegue realizar tais escolhas e
que, por conta disso, o professor profissional formado e habilitado para o exercício
profissional da docência deverá fazer isso. O risco que se corre aqui é que
disciplinas mais complexas e com maior nível de dificuldade sejam preteridas diante
de uma série de assuntos mais simples e superficiais
13
.
O que se aqui é a ocultação do conteúdo como centro do processo de
ensino e aprendizagem, uma desescolarização da instituição escolar, mediante a
síntese malfeita entre um escolanovismo interpretado de forma equivocada e um
tecnicismo empobrecido, implementados sob a falácia de uma neutralidade
científica, da racionalidade, da modernização, da eficiência e da produtividade.
Importante destacar que a atribuição de problemas que não são escolares às
escolas implica em dois problemas. O primeiro é o citado esvaziamento da escola
das funções para as quais ela está habilitada a desempenhar. O segundo é
consequência deste, qual seja: a não solução destes problemas, uma vez que a
instituições escolar terá pouquíssimas chances de resolver algo que está fora de
suas atribuições. Este movimento amplia a noção de crise da educação dentro da
qual qualquer solução mediana poderá ser apresentada como saída para aquilo que
não funciona.
O resultado disso trouxe o esvaziamento do conteúdo disciplinar e da
construção de conhecimento com as classes populares e, também, o foco na
organização e no método criado por um especialista que está externo à educação.
Concorda-se, assim, com Saviani quando afirma que
Os conteúdos são fundamentais e sem conteúdos relevantes,
conteúdos significativos, a aprendizagem deixar de existir, ela
transforma-se num arremedo, ela transforma-se numa farsa. (...) Por
que esses conteúdos são prioritários? Justamente porque o domínio
da cultura constitui instrumento indispensável para a participação
política das massas. Se os membros das camadas populares não
dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer valer os seus
interesses, porque ficam desarmados contra os dominadores, que se
servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e
consolidar sua dominação. Eu costumo, às vezes, enunciar isso da
seguinte forma: o dominado não se liberta se ele não vier a dominar
aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os
13
É importante destacar que este movimento vem acontecendo com intensidade a partir da
contrarreforma do ensino médio. uma série de denúncias sobre a diminuição de disciplinas
clássicas do currículo escolar em função da chegada de uma série de itinerários formativos e projetos
de vida, que tratam de generalidades, sem nenhum tipo de rigor acadêmico e didático.
16
dominantes dominam é condição de libertação (SAVIANI, 2021, p.
45).
Por fim, vale ressaltar que todo este processo em curso almeja, em última
análise, excluir o professor do processo de ensino e aprendizagem. Essa
netflixização de uma educação que para ser moderna precisa ser sob demanda
opera para acabar com o professor, visto pelas grandes empresas do ensino como o
grande problema da educação. Substituindo o professor pela inteligência artificial,
ficará mais fácil padronizar o processo e garantir a transmissão de um pensamento
único para um conjunto de indivíduos que não conseguirão resistir a tudo este
movimento. Sem contar que isso diminuirá os custos, reduzirá a resistência da
organização da classe docente na luta por seus direitos e, também, irá impossibilitar
toda e qualquer tentativa de ampliar os horizontes e demandas dos estudantes.
Considerações finais
A partir de uma leitura fundamentada na reflexão de Marx acerca do avanço
da maquinaria e, consequentemente, da tecnologia, esta reflexão buscou mostrar
que todo processo de avanço do capital sobre o trabalho, sobre o conhecimento e
na educação traz repercussões diretas e importantes em todas as dimensões da
vida. Sem atribuir um tom profético e fatalista ao texto marxiano, foi possível
perceber que o discurso da reestruturação produtiva e tecnológica trazido pela ideia
de indústria 4.0 estava presente nas reflexões sobre a maquinaria em O Capital.
Longe de ser uma novidade e um traço de modernização, o que se é um
fenômeno que recupera uma forma antiga do capital de buscar meios diversos para
se valorizar de forma ilimitada e exponencial. Ainda que o tempo atual seja
profundamente diferente do contexto no qual as obras de Marx foram escritas,
que se reconhecer que as formas e estratégias de atuação do capital pautada na
exploração do trabalho, no controle do trabalhador, no ataque aos direitos e na
necessidade de manutenção da desigualdade e da miséria continuam as mesmas.
Ainda que o ponto de partida da análise aqui realizada tenha se desenvolvido
a partir da reestruturação produtiva concretizada pela indústria 4.0, esta pesquisa
avança para tentar entender as consequências deste fenômeno no cenário
educacional, focando sua reflexão nos efeitos que os dispositivos tecnológicos
17
especificamente dos aplicativos de inteligência artificial e do Chat GPT geram para
a relação de ensino e aprendizagem. Seja na produção industrial ou no contexto
educacional, muito mais que a consolidação do tecnicismo educacional, o que se
observa é um movimento que tenta inviabilizar o ser humano do processo, que a
cada dia se mais substituído por aparatos tecnológicos por conta de sua
impossibilidade de competir com a eficiência do aparato tecnológico e, também, por
questões econômicas. Isso confirma a afirmação de Araújo (2022) para quem, na
era digital, o indivíduo produz o seu próprio descarte. Contudo, este fenômeno
quase não fica evidente para o trabalhador, por conta do elevado grau de alienação
que a própria tecnologia tem provocado.
A reflexão que aqui foi desenvolvida teve como foco os impactos que a
tecnologia traz para a relação entre linguagem e pensamento. Pensando que a
linguagem é o cerne da estrutura da aula (processo ensino e aprendizagem), as
novas formas que ela assume diante das novas tecnologias operam tanto no sentido
de um apagamento do professor, dos estudantes e uma desconfiguração do próprio
conhecimento, reconfigurando a tríade pedagógica (Houssaye, 1988). Professores e
estudantes que utilizam essas novas plataformas digitais terceirizam para a
inteligência artificial o desenvolvimento do seu pensamento, ficando reféns de uma
visão de mundo única, fragmentada, rasa e comprometida com a manutenção do
status quo.
Mas, como diria Lênin (2020), o que fazer? Sabe-se que no horizonte
neoliberal e digital as possibilidades de resistências são drasticamente diminuídas,
tanto por conta do isolamento e da intensa competitividade entre os sujeitos quanto
pelo aprofundamento da alienação e da falta de consciência acerca do fenômeno
como tal. A questão que se coloca precisa, antes de qualquer coisa, ser reconhecida
como parte da luta de classes. No entanto, a saída não deve ser feita pelo lado mais
fácil. É preciso resistir à tentação de ir pelo atalho de acreditar que a tecnologia é
em si. Isso se aproximaria de uma postura ludista, cuja tese indica a necessidade de
enfrentar e destruir máquinas e qualquer outro instrumento tecnológico. Tal saída
não é razoável nem exequível. O próprio Marx se posicionou de forma contrária
em sua época quando afirmou que, mais que lutar contra a maquinaria, é preciso
canalizar as forças para lutar e questionar o uso que o capital faz da tecnologia. O
autor afirma que essa é uma estratégia do capital que “imputa a seu adversário a
18
tolice de combater não a utilização capitalista da maquinaria, mas a própria
maquinaria” (Marx, 2017, p. 514).
Não se deve demonizar as novas tecnologias, mas sim, debater e refletir
como elas podem ser parceiras para o aprofundamento do desenvolvimento do
pensamento humano na perspectiva da emancipação e da autonomia. Para isso,
faz-se necessário desfazer o feitiço/fetiche que inverte a ordem natural de que é o
homem quem cria a tecnologia e não o inverso. Em outras palavras: é o indivíduo
que precisa dominar o uso destes instrumentos e não ser dominado por eles.
Resumindo, é preciso desconstruir as concepções deterministas, considerando que
as tecnologias são socialmente construídas ao mesmo tempo que as sociedades
são tecnológicas. O uso destes novos recursos precisa ser implementado na
direção de gerar maior autonomia, maior tempo livre, maior emancipação e não
como instrumentos de controle, vigilância e intensificação do tempo de trabalho.
A educação pode e deve se beneficiar da tecnologia, porém não deve fazê-lo
na perspectiva da mercantilização. Daí, retoma-se a necessidade de se insistir numa
educação cujo centro seja a construção dos conhecimentos que são necessários
para o crescimento e o desenvolvimento humano. Para isso, outro passo será
essencial, qual seja: o da democratização da produção e uso das tecnologias, a fim
de que elas estejam acessíveis para todos. A exclusão digital não pode ser mais um
caminho para a segmentação e a dominação. Neste caso, concorda-se com Caldart
(2023), quando afirma que “uma das características próprias da intencionalidade
formativa da escola é o trabalho pedagógico com o conhecimento, visando à
compreensão cada vez mais alargada e profunda da realidade” (Caldart, 2023, p.
245).
Neste sentido, é preciso enfatizar que a superação dos problemas da
educação burguesa não vai acontecer sem a superação do sistema capitalista e do
modo burguês de produção. Não se pode perder de vista o fato de que a escola
burguesa, ainda que permita e se organize para a entrada de todos, nunca será a
mesma para todos. Por conta disso, é urgente perceber a quem serve e interessa o
discurso de reestruturação tecnológica divulgado pela indústria e pela escola 4.0. A
tecnologia favorece ou dificulta a emancipação humana? As mudanças e avanços
no sistema tecnológico e produtivo estão a serviço de garantir bem-estar e melhores
condições de vida ao trabalhador? Ao lado disso, é central que num país como o
19
Brasil, em que não produção significativa de tecnologia do tipo aqui abordado, a
proposta 4.0 tende a aumentar ainda mais a dependência aos países centrais do
capitalismo. Essas e outras questões indicam que a temática aqui abordada é
ampla, necessária e urgente e que este artigo tentou, apenas, introduzir a questão
para o debate, no intuito de sinalizar para a necessidade de identificar ameaças e
ataques na perspectiva de traçar caminhos de resistência.
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