V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
NOVAS TECNOLOGIAS, VELHAS PROPOSTAS: SOLUÇÕES EDUCACIONAIS
PRIVADAS DO ANALÓGICO AO DIGITAL
1
Paula Valim de Lima
2
Vera Maria Vidal Peroni
3
Daniela de Oliveira Pires
4
Resumo
O artigo discute as relações entre público e privado na educação mobilizando categorias do
pensamento materialista histórico-dialético que situam o debate como parte da totalidade da
sociedade capitalista. Em torno de uma perspectiva solucionista, analisam-se as formas de atuação
do privado que historicamente se propõe a salvar a educação pública. Desde as tradicionais formas
analógicas de privatização até o atual processo de transformação digital da educação protagonizado
por sujeitos privados, verifica-se a vinculação do conteúdo das propostas privadas ao projeto mais
amplo do capital.
Palavras-chave: Público-privado; Soluções educacionais; Capitalismo na era digital.
NUEVAS TECNOLOGÍAS, VIEJAS PROPUESTAS: SOLUCIONES EDUCATIVAS PRIVADAS DE LO
ANALÓGICO A LO DIGITAL
Resumen
El artículo discute las relaciones entre lo público y lo privado en la educación, movilizando categorías del
pensamiento materialista histórico-dialéctico que sitúan el debate como parte de la totalidad de la sociedad
capitalista. Desde una perspectiva solucionista, se analizan las formas de actuación del sector privado que
históricamente se ha propuesto salvar la educación pública. Desde las formas tradicionales analógicas de
privatización hasta el actual proceso de transformación digital de la educación liderado por actores privados, se
verifica la vinculación del contenido de las propuestas privadas al proyecto más amplio del capital.
Palabras clave: Público-privado; Soluciones educativas; Capitalismo en la era digital.
NEW TECHNOLOGIES, OLD PROPOSALS: PRIVATE EDUCATIONAL SOLUTIONS FROM ANALOG TO
DIGITAL
Abstract
The article discusses the relations between public and private in education by mobilizing categories of
historical-dialectical materialist thought that situate the debate as part of the totality of capitalist society. From a
problem-solving perspective, it analyzes the ways in which the private sector historically endeavors to rescue
public education. From traditional analog forms of privatization to the current digital transformation of education
led by private entities, the connection of the content of private proposals to the broader capital project is evident.
Keyword: Public-private; Educational solutions; Capitalism in the digital age.
4
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. Professora da
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Brasil. E-mail: danielaopires77@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5744203752177071. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6671-9195.
3
Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Brasil. Professora do
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil.
E-mail: veraperoni@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/9945008202279221.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6543-8431.
2
Mestra e doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil.
Professora da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre (RME POA). E-mail: paulavalimd@gmail.com.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0506929649115557. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1798-7476.
1
Artigo recebido em 10/03/2024. Primeira avaliação em 27/04/2024. Segunda avaliação em 21/04/2024.
Aprovado em 30/07/2024. Publicado em 07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62246.
1
Introdução
O desenvolvimento tecnológico e a inserção de tecnologias digitais nas
escolas vêm sendo foco de atenção de pesquisadores no Brasil e no mundo, sob
diferentes perspectivas, especialmente desde o contexto de pandemia global de
Covid-19. Este artigo apresenta o debate a partir de algumas ferramentas analíticas
que permitem situar a criação de soluções tecnológicas e digitais em relação aos
processos mais amplos de privatização educacional, em curso nas últimas
décadas, ainda que principalmente em formato analógico. Trata-se de uma
concepção, difundida, particularmente a partir dos anos 1970 com as propostas de
reestruturação produtiva e sob influência do neoliberalismo, em que o mercado é o
parâmetro de qualidade e o público deve incorporar suas formas de gestão e
dinâmicas de atuação. Nessa perspectiva, o privado é chamado a salvar a educação
pública.
Mais recentemente, neste período particular do capitalismo em sua era
digital (Saura, Peroni, Pires, Lima, 2024) incorpora-se a essa perspectiva uma
visão tecnosolucionista, em que as soluções não somente serão ofertadas pelo
privado, mas elas deverão ser de base tecnológica. Muito vinculada ao paradigma
da inovação, esta perspectiva corresponde a uma realidade na qual as diferentes
dimensões da vida social são cada vez mais mediadas pelas tecnologias
informacionais-digitais.
Ocorre, no entanto, que o fenômeno de transformação digital da educação
não é mera continuidade dos processos anteriores, embora tampouco seja um
fenômeno absolutamente novo, como não é sua substituição, pois acabam
coexistindo. Nessa direção, o objetivo deste artigo é analisar, por um lado, como as
soluções educacionais digitais simplesmente atualizam as formas de atuação do
privado historicamente presentes e como, por outro lado, apresentam novas
particularidades e representam uma nova ofensiva do capital sobre a educação
pública.
O artigo propõe inicialmente o tratamento de algumas categorias do
pensamento materialista histórico-dialético que auxiliam na compreensão da relação
entre o público e o privado na educação pública como fenômeno inserido na
totalidade da sociedade capitalista. Em seguida, retomam-se as tradicionais
soluções propostas privatizantes para a educação vinculadas ao capital desde as
2
reformas gerencialistas dos anos 1990 no Brasil, tomando o Instituto Ayrton Senna
(IAS) como um exemplo de sujeito privado que materializa este processo. Por fim,
são analisadas as atuais configurações e mecanismos de privatização decorrentes
do processo de transformação digital da educação no período pós-pandemia, com
destaque à ideologia tecnossolucionista, e como operam no processo de subsunção
da educação pública aos interesses do capital.
Relação público-privado sob as lentes do materialismo histórico dialético
Compreendidos enquanto projetos societários em disputa, público e privado
historicamente representam interesses antagônicos que se materializam nos
processos educacionais, como parte da sociedade capitalista. Nesse sentido, é
preciso compreender o movimento do real neste período particular do capitalismo,
sendo a categoria de particular uma mediação entre o singular e o universal (Lukács,
1967). A relação dialética entre tais categorias possibilita a compreensão da
essência dos fenômenos sociais.
O particular assume centralidade ao se analisar o período particular do
capitalismo, pois permite considerar particularidades de um dado contexto social,
tendo em conta a totalidade do modo de produção capitalista, suas questões
estruturantes e seu objetivo final de acumulação. Com esta categoria afirma-se, em
primeiro lugar, o próprio capitalismo, com as correlações de forças sociais de seu
tempo histórico (Peroni, Lima, 2023).
Compreender a realidade, a essência dos seus processos, equivale a
necessidade de ir além da análise do tempo presente. A realidade está em
constante transformação, considerando as experiências vivenciadas, relacionadas
às situações concretas e às relações produtivas. Ao analisar um período histórico
específico, é necessário compreendê-lo enquanto processo, por vezes, com
avanços e/ou retrocessos, rupturas e/ou descontinuidades, que não o entendemos
como resultante de fatos isolados, mas em relação, fluxos futuros ou vir-a-ser
(Thompson, 1981).
Em vista disso, o objeto de análise neste caso os processos de
privatização via proposição de soluções privadas para a educação pública é parte
de um processo histórico, que não começa e tampouco se encerra no momento
3
atual, e, mais do que isso, é parte de um contexto mais abrangente de fenômenos
sociais.
A afirmação do caráter material da história (e a consequente recusa ao seu
caráter abstrato ou determinista) indica que ela se materializa por meio da ação de
homens e mulheres, afirmando a ação de sujeitos na história (Thompson, 1981) e a
possibilidade de transformação social.
Assim, público e privado correspondem a interesses de diferentes ordens, em
permanente correlação de forças sociais, que se materializam pela ação de sujeitos
atravessados por interesses de classe, relacionando-se e opondo-se uns aos outros
(Thompson, 1981). Trata-se de um processo de luta que abrange diferentes
dimensões da vida social e transforma as relações de classe estabelecidas, sob a
compreensão de classe como categoria “histórica descritiva de pessoas numa
relação no decurso do tempo e das maneiras pelas quais se tornam conscientes das
suas relações, como se separam, unem, entram em conflito, formam instituições e
transmitem valores de modo classista” (Thompson, 2012, p. 260).
Daí decorre a afirmação inicial de que público e privado são tratados como
projetos societários em disputa, de uma forma mais abrangente, muito além da
discussão em torno da propriedade. Por um lado, o público incorpora a noção de
um projeto coletivamente construído, vinculado a uma concepção de democracia
desde a teoria crítica. O privado, por outro lado, representa, fundamentalmente, o
projeto do capital e os valores que dele decorrem. A relação público-privado
expressa as correlações de forças entre projetos societários que expressam
interesses particulares de classe (no limite, a própria luta de classes). Deste modo, o
real se constitui em um movimento permeado por contradições entre forças e
interesses antagônicos, o que atribui ao complexo social seu caráter essencialmente
contraditório e em permanente transformação.
Nesse processo de correlação de forças, as classes dominantes buscam
conquistar a hegemonia e manter seu poder de classe. Precisamente nesse sentido
é necessário considerar o papel da educação como parte de uma totalidade mais
ampla. Sendo a educação um processo societário de formação humana e a escola
um espaço privilegiado para formação social, as disputas que ocorrem em torno do
conteúdo da educação pública são centrais para a análise da privatização (Lima,
2020). Apesar dos avanços societários e educacionais na direção da construção de
um projeto democrático, coletivo e de justiça social pós-ditadura civil-militar, as
4
forças do capital se voltam à construção de uma educação com o objetivo histórico
de “não fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à máquina produtiva
em expansão do sistema do capital, como também gerar e transmitir um quadro de
valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver
nenhuma alternativa à gestão da sociedade” (Mészáros, 2008, p. 35).
O solucionismo na educação e a justificativa histórica de atuação do privado
O setor privado é parte constitutiva do movimento estruturante do Estado e
sociedade civil, no qual, em termos históricos, estiveram aliados aos interesses dos
grupos sociais hegemônicos e ao desenvolvimento do capitalismo. Historicamente,
sua atuação está relacionada a uma perspectiva salvacionista da educação.
Assim, pretende-se problematizar como os discursos e o conteúdo das
soluções educacionais propostas pelo setor privado são vinculados à lógica de
mercado, que é tomado como parâmetro de qualidade e eficiência, e
fundamentalmente respondem às demandas do capital na educação.
Com relação ao papel do Estado brasileiro no atendimento do direito à
educação, historicamente a esfera pública se constitui vinculada à lógica privatista
(Pires, 2015). Isso é resultado de um processo materializado no embate de forças
sociais, através da luta de classes e determinado pela lógica da produção e da
lucratividade pelo sistema capitalista.
As parcerias público-privadas na educação foram amplamente difundidas a
partir dos anos 1990, passando a haver novas regulamentações entre a esfera
pública e a privada. Especialmente com o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do
Estado (1995), incorpora-se uma perspectiva gerencialista, com a chamada Nova
Administração Pública (New Public Management), redefinindo o papel do Estado
brasileiro em vários setores. A partir daí, o poder público continua financiando, mas
repassa suas responsabilidades pela direção e/ou execução (Peroni, 2018) das
políticas sociais para instituições do público não-estatal e do quase-mercado.
A justificativa para a sua atuação passa a significar uma condição necessária
para atingir a melhoria da qualidade do ensino, vinculada a ideais de eficácia e
eficiência importados de uma lógica mercantil. Sendo necessário, para tanto,
5
estabelecer com o poder público a parceria
5
, no sentido da preservação da sua
hegemonia.
Neste contexto, entidades privadas com e sem fins lucrativos (Montano,
Pires, 2019 e Peroni, Rossi, Lima, 2021), afirmam que a posição que assumem com
relação ao direito à educação é de subsidiariedade, no entanto ao defender o
diagnóstico de que a educação brasileira possui problemas, apontam soluções
educacionais padronizadas e replicáveis, ou seja, soluções simples para desafios
historicamente complexos. Com isso, acabam assumindo uma posição de destaque
na direção e na execução da educação pública. Este é o caso do IAS, que é
ilustrativo do debate que se pretende neste artigo.
O IAS é uma organização não-governamental, associativa
6
e que se
apresenta como sem fins lucrativos, fundada em 1994, atuando em parceria com
sistemas públicos de educação. O instituto iniciou sua atuação nos sistemas
públicos de ensino com programas complementares no período inverso ao das aulas
e em classes de aceleração, mas passou a influenciar na política educacional, desde
a sala de aula, escola, sistemas de ensino até a direção das pautas educacionais
nacionais.
Sob o diagnóstico de que para ter mudanças substantivas, não adiantaria
atuar apenas em questões focalizadas, mas na educação como um todo, passa a
articular diversas tecnologias educacionais e ferramentas de atuação, incluindo
planejamento, monitoramento e avaliação dos sistemas públicos, currículo, gestão e
formação. Seus programas, desde o princípio, apresentam-se como “soluções
educacionais que ajudam a combater os principais problemas da educação pública
do país”
7
. Esta perspectiva salvacionista, de que o privado mercantil é o único capaz
7
Disponível em:
http://senna.globo.com/institutoayrtonsenna/programas/programas_educacao_formal.asp. Acesso em
2 de fevereiro de 2014.
6
O Instituto Ayrton Senna, por se tratar de uma Organização não-governamental, juridicamente
qualificada como uma associação, não é fiscalizada com o rigor das fundações e demais instituições
públicas, como as entidades da Administração Pública direta e indireta (Pires, 2009, pg. 103).
5
Na centralidade da correlação de forças entre a afirmação dos direitos proclamados na Constituição
Federal de 1988 e a propagação do Estado neoliberal e da terceira via, é possível perceber a
hegemonia das parcerias com o terceiro setor, em âmbito legislativo com a promulgação de um
arcabouço legal que sustentação a reforma proposta: em 13 de fevereiro de 1995, com a Lei
8.987 que “Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos
previstos no art. 175 da Constituição Federal”; em 2004 com a Lei 11.079 que “Institui normas
gerais para licitação e contratação de parceria público-privada no âmbito da administração pública”; a
Lei 9.637/98, que trata das Organizações Sociais (OS); a Lei 9.790/99 das Organizações da
Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Esse arcabouço normativo, acrescido da recente
aprovação da Lei 13.019/14 que cria o Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil
(OSCs) e acabou entrando em vigor em janeiro de 2016 (PIRES; SUSIN; MONTANO, p.245, 2018).
6
de garantir a qualidade da educação pública, não é uma visão isolada de um
instituto, ela está inserida em uma lógica que naturaliza esta participação, pois parte
do pressuposto neoliberal que não é o capitalismo que está em crise, mas o Estado.
A estratégia, para esta concepção, é reformar o Estado ou diminuir sua atuação para
superar a crise. O mercado é que deverá superar as falhas do Estado, portanto a
lógica do mercado deve prevalecer para que ele possa ser mais eficiente e produtivo
(Peroni, 2003).
Nesse sentido, vincula-se o ensino e a aprendizagem a uma forma de gestão
gerencialista, rigidamente monitorada e com atividades padronizadas, através de
aulas prontas e uma rotina pré-determinada. A aprendizagem é concebida como um
produto, que pode ser mensurado através dos resultados das avaliações e metas
pré-estabelecidas. As soluções educacionais apresentam um material com forte
conteúdo prescritivo e de controle das ações pedagógicas.
Além das ferramentas analógicas, o IAS fazia uso de tecnologias digitais
informacionais desde o início dos anos 2000 como instrumento de controle da
gestão e do trabalho docente. O Sistema Ayrton Senna de Informação (SIASI),
instrumento de controle de qualidade do trabalho pedagógico, consistiu em uma
plataforma virtual que reunia dados, informações e relatórios armazenados pelas
escolas. O SIASI foi desenvolvido sob assessoria da empresa Auge Tecnologia &
Sistemas que na primeira década dos anos 2000, propunha a “utilização de
sistemas de tecnologia de informação, comunicação e Internet, para o
desenvolvimento de Ambientes Colaborativos de Ensino e Aprendizagem, Sistemas
de Gestão Educacional e tecnologias de Gestão de Projetos Educacionais e
Melhoria de Processos de Gestão Educacional”
8
. Atualmente, a empresa oferece
uma solução para gerenciamento de redes de ensino, com aplicativos próprios
direcionados às famílias, educadores e gestores, atendendo 12 mil escolas, 25
milhões de alunos e 2,3 mil municípios
9
.
Este caso é representativo da dimensão de continuidade que as tecnologias
digitais representam em relação à atuação histórica do privado na educação pública.
Muito antes da pandemia de Covid-19, embora este contexto tenha condicionado
uma aceleração deste processo, as soluções privadas se propunham como
9
Disponível em: https://www.auge.com.br/#/educacional. Acesso em 10 de março de 2024.
8
A informação foi coletada em 13 de março de 2007 (Peroni, 2010). No entanto, não se encontra
mais disponível devido a atualizações no site da empresa (www.auge.com.br).
7
alternativa aos problemas educacionais e, mais do que isso, suas ferramentas
tecnológicas sempre estiveram vinculadas a processos de controle sobre a
educação pública.
No entanto, a inserção de tecnologias não substitui outras formas e
dimensões da atuação privada sobre a educação pública, intensificando este
processo, como é o caso do IAS que vem atuando em novas plataformas digitais,
como a Humane, voltada à formação de professores e o Portal Farol, de
monitoramento, gestão de dados para planejamento de políticas. Além de pesquisa
e inovação, por meio do eduLab21, o laboratório de ciências para a educação,
implementação de projetos e componentes educacionais voltados à educação
integral e ao desenvolvimento de competências para o século 21, como foco nas
competências socioemocionais, desenvolvendo soluções escaláveis em parceria
com as secretarias de educação, organizações e empresas; e mobilização
(advocacy) e disseminação do conhecimento, impactando o debate público em
educação
10
.
Como se observa pelo exemplo do IAS, sujeitos privados promovem
diferentes estratégias e formas de atuação sobre a educação pública, desde a
definição dos conteúdos, formação de professores até influenciando a formulação de
políticas educacionais. Novamente, situando a educação como instrumento
fundamental de formação societária, é premente considerar os interesses expressos
em suas propostas. Ao dar centralidade à formação para competências
socioemocionais como resiliência e adaptabilidade, busca-se conformar as
subjetividades de acordo com o que se julga ser adequado para não questionar as
contradições da sociedade que se vive.
Público e privado na era digital do capitalismo
Conforme verificou-se até aqui, os processos de privatização da educação se
vinculam a um discurso salvacionista mais amplo, cuja presença na realidade
brasileira acompanha a atuação do privado sobre os serviços públicos. O
capitalismo contemporâneo aprofunda essa dinâmica na educação voltada para o
10
Informações disponíveis no Relatório Anual 2022 do Instituto Ayrton Senna. Disponível em:
https://institutoayrtonsenna.org.br/app/uploads/2023/06/instituto-ayrton-senna-2023-relatorio-institucio
nal-2022.pdf. Acesso em 10 de março de 2024.
8
mercado em escala global ancorado nas perspectivas de modernização e inovação,
aceleradas pelo contexto de emergência da pandemia de Covid-19.
Com este movimento, os diferentes sujeitos privados, com e sem fins
lucrativos, ampliam suas formas de atuação, voltando-se às disputas em torno dos
processos de formulação de políticas vinculadas à transformação digital da
educação. Não por acaso, nos últimos anos no Brasil proliferam-se políticas e
diretrizes relacionadas à transformação digital da educação, seguindo as tendências
globais, aceleradas pelo contexto de pandemia. Destacam-se a Política de Inovação
Educação Conectada (PIEC) aprovada em 2021; o complemento à BNCC com
normas sobre Computação na Educação Básica, aprovado em 2022; a Política
Nacional de Educação Digital (PNED) e a Estratégia Nacional Escolas Conectadas
(ENEC), aprovadas em janeiro e setembro de 2023, respectivamente.
Desde a PIEC, conformam-se dois objetivos para as políticas educacionais
vinculadas ao processo de digitalização da educação: por um lado, “apoiar a
universalização do acesso à internet em alta velocidade” e, por outro lado, “fomentar
o uso pedagógico de tecnologias digitais na educação básica” (BRASIL, 2021).
Assim, estão presentes duas dimensões da digitalização educacional: que as
escolas estejam equipadas com as tecnologias e que as tecnologias sejam
mobilizadas para as práticas educativas. A ENEC renova estas pretensões,
desenvolvendo seus objetivos de forma mais abrangente. Seu primeiro objetivo é
“garantir que todos os educandos tenham acesso às diferentes formas de
tecnologia, com uma formação que lhes permita desenvolver um uso consciente,
autônomo e socialmente referenciado” (BRASIL, 2023).
Aqui tem-se uma associação entre a garantia de acesso à tecnologia em suas
diversas dimensões (eletricidade, internet banda larga e wi-fi, dispositivos
eletrônicos) e a formação dos estudantes para sua utilização. É natural esperar que
os estudantes sejam formados para dominar as ferramentas tecnológicas oferecidas
pela escola e tão presentes na vida social. No entanto, é precisamente a partir deste
ponto que decorrem discursos em torno do papel da escola, que hoje deve voltar-se
a educar para o chamado futuro digital. Nessa perspectiva, redefinem-se os
currículos escolares, a partir das habilidades e competências para o século XXI,
muitas vezes sintetizadas em torno do conceito de pensamento computacional,
conforme ocorreu com o complemento à BNCC.
9
Documentos de organismos internacionais como o Banco Mundial, por
exemplo, reforçam esta perspectiva quando afirmam que “o mundo está no meio de
uma revolução tecnológica, e as crianças e os jovens precisam ser adequadamente
preparados para prosperar neste mundo em rápida transformação”
11
. Este tipo de
afirmação opera com a naturalização de uma determinada realidade, esvaziando-a
de conteúdo econômico, político e social. Primeiro, porque trata a tecnologia como
algo dado, como um fenômeno abstrato, quase ontológico (Morozov, 2011), como
parte da natureza própria da sociedade. É uma forma de fetiche da tecnologia, que a
dissocia de seu contexto de produção e existência, assim como das relações sociais
subjacentes.
Em segundo lugar, porque esvazia também o conteúdo da educação,
tornando-a simplesmente uma ferramenta para adequação dos sujeitos ao mundo tal
como está. Embora a tecnologia digital possa ser alternativa para a resolução de
alguns problemas, isso não inclui a educação, “pelo menos não se por educação
entendemos o desenvolvimento das habilidades para pensar criticamente sobre
qualquer questão específica” (Morozov, 2011).
A Google, maior corporação tecnológica global, também favorece essa
compreensão, promovendo transformações das salas de aula pelo mundo todo, sob
a alegação de que “um ambiente mais parecido com o mundo real prepara melhor
os alunos para entrar em um mercado de trabalho cada vez mais conectado e
globalmente competitivo”
12
. Nessa direção, os crescentes processos de digitalização
inserem-se nas diferentes dimensões educativas (aprendizagem, ensino, gestão,
avaliação, formação de professores etc). Elaborados fora do espaço da escola, além
de não dialogarem com as necessidades reais da educação pública, respondem
exclusivamente aos interesses do mercado global, como duas faces da mesma
moeda: a dominação ideológica na formação das subjetividades coerentes ao
projeto do capital e a qualificação (se é que se pode usar este termo) das novas
gerações para responderem às novas demandas do mercado digital.
Assim, as novas diretrizes educacionais redefinem os fins da educação, agora
atualizados a um contexto produtivo que é, na verdade, pautado pela instabilidade e
precariedade, expressa principalmente na forma do trabalho informal, intermitente,
12
Disponível em: https://skillshop.exceedlms.com/student/path/111609/activity/175736#/page/5f9c46
b42ec1f8153acaff4a. Acesso em 10 de março de 2024.
11
Tradução nossa. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/entities/publication/5a8
4be59-1fd5-4c52-b82d-2f2059f0acba. Acesso em 10 de março de 2024.
10
terceirizado e desprovido de direitos, para o qual é preciso desenvolver as
chamadas habilidades socioemocionais (soft skills, no universo da inovação)
compatíveis com este cenário, como adaptabilidade, persistência e capacidade
inovadora. Cabe observar, conforme discutido na seção anterior, que as habilidades
socioemocionais integram o repertório privatista sobre a educação muito
tempo, como se observa pela atuação de sujeitos como o IAS.
Concretamente, as visões hegemônicas do futuro digital que são globalmente
construídas, ainda que com especificidades nacionais, representam a materialização
de interesses particulares, orientados pelo e para o mercado, que conformam junto
ao Estado e à sociedade civil mecanismos para o avanço do projeto societário
capitalista e sua naturalização na formação de consensos. Retomando a ENEC, seu
segundo objetivo expressa a pretensão de:
Garantir que os processos de gestão dos sistemas de ensino e das
escolas e que as práticas pedagógicas desenvolvidas no processo
de ensino-aprendizagem possam ampliar sua qualidade e sua
potência, através de um uso cada vez mais consistente e
contextualizado de tecnologias digitais (BRASIL, 2023).
Neste trecho tem-se uma espécie de síntese de uma ideologia cada vez mais
presente na realidade social em geral e na educação pública em particular. O
solucionismo historicamente presente nas propostas privadas vincula-se de forma
imediata à utilização das tecnologias digitais, atualizado em forma de um
tecnosolucionismo (Morozov, 2018), para o qual as novas tecnologias são
apresentadas como o único caminho para a superação dos problemas que se
apresentem. A partir daí, as soluções não apenas devem ser oferecidas pelo
mercado, elas devem ser de base tecnológica.
Nessa direção, multiplicam-se as afirmações que vinculam a qualidade da
educação à sua transformação digital. O Todos Pela Educação (TPE), por exemplo,
principal movimento empresarial que incide sobre as políticas educacionais no país,
defende que “a adoção qualificada de tecnologias educacionais é estratégia central
para acelerar e expandir os avanços da agenda educacional brasileira”. Sob a
prerrogativa da melhoria da qualidade da educação e promoção de novas
competências e habilidades para a sociedade da era digital, amplia-se a entrada de
startups, EdTechs e empresas tecnológicas na educação, disputando o fundo
11
público e o controle da educação, dois processos que se caracterizam como formas
de privatização (RIKOWSKI, 2017).
Por isso, neste contexto, ampliam-se as formas de atuação do privado na
educação pública e, consequentemente, os seus processos de privatização, agora
em escala digital, a partir de novas dinâmicas. As propostas tecnosolucionistas para
a educação pública promovem um processo de despolitização das tecnologias, que
são apresentadas desvinculadas de quaisquer interesses sociais, políticos ou
econômicos.
Para fazer frente a este movimento, não basta analisar as tecnologias por elas
mesmas, como uma abstração ou fetiche, mas é preciso considerá-las “resultado de
tendências econômicas mais profundas [...] implicadas dentro de um sistema de
exploração, exclusão e competição” (Srnicek, 2018, p. 14). Isso significa considerar
as tecnologias hoje como parte integrante do sistema capitalista e seus processos
de acumulação e, no limite, como o elemento central em sua forma mais atualizada.
Considerações finais
O artigo desenvolveu alguns elementos conceituais e ferramentas analíticas
que contribuem para investigar a atuação do setor privado sobre a educação como
continuidade de um processo histórico, ao mesmo tempo em que apresenta novas
particularidades vinculadas ao capitalismo contemporâneo e as demandas da era
digital.
Tratando do público e privado enquanto projetos societários em disputa,
atravessados por interesses de classe, as particularidades do momento atual
direcionam a atenção às questões vinculadas aos avanços tecnológicos na
educação, como parte do projeto capitalista de formação social e dominação de
classe. Enquanto proliferam novas análises sobre as tecnologias na educação,
especialmente desde o contexto de pandemia de Covid-19 com a aceleração do
processo de digitalização das práticas educacionais, é necessário considerar a
historicidade deste fenômeno, não tratando-o de modo isolado da realidade social ou
como um acontecimento inédito.
Analisando a atuação histórica de sujeitos privados que disputam a educação
pública, verifica-se uma perspectiva salvacionista: a partir do diagnóstico de que a
educação vai mal, diferentes instituições com e sem fins lucrativos passam a
12
apresentar soluções que prometem salvar a educação. Nesta dinâmica, o privado é
tomado como parâmetro de qualidade e como caminho possível para a solução dos
problemas educacionais.
No entanto, não um interesse real em compreender criticamente a
complexa natureza dos problemas educacionais, por sua vez vinculados a enormes
problemas sociais da tão diversa e desigual realidade brasileira. O comportamento
típico dos solucionistas é retorcer os problemas de tal forma que estes se
transformam em algo novo, simplificados e desconectados da realidade (MOROZOV,
2018).
Tomando como exemplo o caso do Instituto Ayrton Senna, verifica-se que ao
longo de suas três décadas de atuação, passa por processos de reconfiguração de
suas formas de atuação. No entanto, sustenta seu controle sobre os processos
educacionais, disputando sua hegemonia sobre a educação pública por meio de
diferentes mecanismos e soluções, sejam analógicas ou digitais.
Sob a alegação de contribuir para a melhoria da qualidade e da eficiência da
educação pública, promove mecanismos de controle via monitoramento digital das
redes e proposição de soluções padronizadas, replicáveis e escaláveis,
desconsiderando as particularidades de cada contexto sobre o qual incide. Trata-se
de uma forma de alienação do processo educativo e do trabalho docente que
prejudica o papel da escola na construção de conhecimento elaborado, autônomo e
criativo.
Mais recentemente, o imaginário da tecnologia como solução de todos os
problemas sociais e a entrada de soluções educacionais digitais na escola pública
abrem um novo terreno para a privatização. Diante da suposta necessidade de
transformação digital da educação, diferentes sujeitos privados atualizam seus
mecanismos de atuação e buscam influenciar na formulação de políticas públicas
para ampliar seu espaço de inserção. Os diferentes programas e políticas
apresentados no último período, como a Política de Inovação Educação Conectada
(PIEC); o complemento à BNCC; a Política Nacional de Educação Digital (PNED) e a
Estratégia Nacional Escolas Conectadas (ENEC), evidenciam o avanço dessa
perspectiva, reforçando o ideal tecnossolucionista e a necessidade de atualização
dos conteúdos educativos em acordo com o que se naturalizou como demandas do
século XXI.
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Assim, o avanço do mercado educacional digital sobre a educação diz
respeito a um processo de naturalização de uma determinada realidade social, que
não apenas legitima como fomenta a transformação digital da educação,
promovendo novas ordens de subsunção da educação aos interesses do capital e
às novas demandas produtivas dos mercados digitais.
As novas tecnologias, portanto, representam as mesmas velhas ideias. No
conteúdo das propostas privadas para a educação pública, sejam analógicas ou
digitais, situa-se como premissa a incorporação dos valores e prerrogativas
favoráveis ao capital na formação das novas gerações, o que ocorre por meio da
influência sobre os currículos, a gestão, a formação de professores, entre outras
estratégias.
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