V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
O CONCEITO DE TECNOLOGIA E SEUS LIMITES: ANÁLISE DAS
TECNOLOGIAS DIGITAIS DA INFORMAÇÃO E DA
COMUNICAÇÃO NA EDUCAÇÃO
1
Patrick Dutra
2
Rafael Rodrigo Mueller
3
Resumo
Este artigo tem como objetivo analisar a inserção das Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação
(TDICs) na educação, tendo como perspectiva analítica o Conceito de Tecnologia, em Álvaro Vieira Pinto (2005),
em diálogo com as análises de Jonathan Crary (2014; 2023). A partir de uma pesquisa bibliográfica, buscou-se
compreender o conceito de tecnologia e suas possibilidades de aplicação no ambiente escolar, analisando a
politicidade em torno de sua utilização. Foi possível concluir a importância de compreender todos os aspectos
sociais e políticos das TDICs.
Palavras-chave: Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação; Educação escolar; Sociedade; Tecnologia
e poder; Conceito de tecnologia.
EL CONCEPTO DE TECNOLOGÍA Y SUS LÍMITES: ANÁLISIS DE LAS TECNOLOGÍAS DE LA
INFORMACIÓN Y LA COMUNICACIÓN DIGITAL EN LA EDUCACIÓN.
Resumen
Este artículo tiene como objetivo analizar la inserción de las Tecnologías Digitales de la Información y la
Comunicación (TDIC) en la educación, tomando como perspectiva analítica el Concepto de Tecnología, en Álvaro
Vieira Pinto (2005), en diálogo con los análisis de Jonathan Crary (2014; 2023). A partir de una investigación
bibliográfica, buscamos comprender el concepto de tecnología y sus posibilidades de aplicación en el ambiente
escolar, analizando la políticidad que rodean su uso. Se pudo concluir la importancia de comprender todos los
aspectos sociales y políticos de las TDIC.
Palabras clave: Tecnologías de la Información y las Comunicaciones Digitales; educación escolar; Sociedad; La
tecnología y el poder; Concepto de tecnología.
THE CONCEPT OF TECHNOLOGY AND ITS LIMITS: ANALYSIS OF DIGITAL INFORMATION AND
COMMUNICATION TECHNOLOGIES IN EDUCATION.
Abstract
This article aims to analyze the insertion of Digital Information and Communication Technologies (TDICs) in
education, taking as an analytical perspective the Concept of Technology, in Álvaro Vieira Pinto (2005), in
dialogue with the analyzes of Jonathan Crary (2014; 2023). Based on bibliographical research, we sought to
understand the concept of technology and its possibilities for application in the school environment, analyzing the
politicality surrounding its use. It was possible to conclude the importance of understanding all social and political
aspects of TDICs.
Keyword: Digital Information and Communication Technologies; school education; Society; Technology and
power; concept of Technology.
3
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Brasil. Professor do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC),
Santa Catarina - Brasil. E-mail: rrmueller@unesc.net.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6298676679523246. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6637-2948.
2
Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade
do Extremo Sul Catarinense (UNESC), Santa Catarina - Brasil. Possui bolsa de estudos integral pelo
Programa de Suporte à Pós-Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Superior (PROSUC)
da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
E-mail: patrickdutra.his@unesc.net. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3209513052921624.
ORCID: https://orcid.org/0009-0007-9039-0282.
1
Artigo recebido em 11/03/2024. Primeira avaliação em 05/04/2024. Segunda avaliação em
30/04/2024. Aprovado em 10/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.62263.
1
Introdução
Constantemente lidamos com discursos e posicionamentos em torno da
importância das Tecnologias Digitais da Informação e da Comunicação (TDICs)
dentro dos ambientes escolares onde são frequentes as falas de que precisamos de
uma educação para o futuro, associados a termos como: “Aluno Multimídia”, “Aluno
Ativo”, “Metodologias Ativas”, “Ferramentas digitais” etc. São muitas as noções
utilizadas e os conceitos e tendências desenvolvidas. Em todos eles, o princípio da
tecnologia digital é o aspecto central.
Neste mesmo sentido, tem sido comum pesquisas questionando até que
ponto a tecnologia colabora com o desenvolvimento da aprendizagem e a partir de
que medida ela se torna prejudicial. Estas colocações gerais - tendencialmente
totalizantes e abstratas -, são mobilizadas para reforçar o fato de que a tecnologia e
a educação estão colocadas como aspectos da realidade e tendem a se tornar cada
vez mais hegemônicas. No entanto, os questionamentos que buscamos são o que
entendemos por educação e até que ponto essa deve mudar e se adaptar às
demandas da dinâmica digital.
Todo esse processo faz parte do quadro de aceleração resultantes do
processo globalização e avanço do neoliberalismo, refletindo as condições que o
trabalho assume na modernidade, frente ao processo de valorização do valor, cujos
reflexos têm sido a aceleração da vida humana a partir de uma duração sem
descanso, caracterizada pela necessidade de um funcionamento contínuo. De
acordo com Larrosa (2015, p.75), às experiências não são mais vivenciadas naquilo
que é realizado durante o dia a dia, uma vez que qualquer experiência aceita deve
provir de alguma forma de consumo mercadológico, sendo que todo o processo
realizado deixa de ser experienciado.
Esta realidade foi analisada por Crary (2014, p.11), que descreveu este
processo como a dinâmica 24/7 (24 horas e 7 dias por semana), uma ressignificação
da identidade pessoal e social que leva as pessoas a se adaptarem à um
desempenho ininterrupto de suas funções de produção e de consumo,
proporcionando um funcionamento constante e crescente de mercados, redes de
informação e outros sistemas. Nesta existência social, não mais espaços para
fantasias de outras possibilidades sociais, reforçando o aquilo que Benjamin (2013,
2
p.16) afirmava em meados do século XX, “[...] o capitalismo é a celebração de um
culto sans rêve et sans merci [sem sonho e sem piedade]”.
Segundo Dardot e Laval (2016, p.21), o desenvolvimento das bases
produtivas do moderno sistema produtor de mercadorias, que corresponde e
desencadeia o acelerado avanço da tecnologia computacional digital para atender
as demandas produtivas, ocasionou não apenas uma mudança estrutural, mas foi
acompanhada por uma transformação no íntimo dos indivíduos, em suas formas de
sociabilidade e de condutas. Neste processo, estruturas hierárquicas de dominação
e poder foram alocadas ao lado de modelos de controle mais flexíveis e diversos, a
partir do qual Crary (2014, p.27) busca destacar
Nesse novo contexto, o consumo de tecnologia coincide com
estratégias e efeitos de poder e se torna indistinguível deles.
Certamente, por boa parte do século XX, a organização das
sociedades de consumo esteve ligada a formas de regulação e
obediência sociais, mas agora a administração do comportamento
econômico é idêntica à formação e perpetuação de indivíduos
maleáveis e submissos. [...] mesmo que a dinâmica por trás da
inovação de produtos ainda esteja ligada à margem de lucro ou à
competição entre empresas pelo domínio de um segmento do
mercado, o ritmo acelerado do ‘aprimoramento’ ou da reconfiguração
de sistemas, modelos e plataformas é parte crucial da reinvenção do
sujeito e da intensificação do controle.
Neste “admirável mundo novo” que se aproxima de distopias produzidas no
século XX, a organização da sociedade de consumo não está mais baseada na
coerção, mas sim na administração do comportamento e da formação dos
indivíduos, tendo como parâmetro estruturas de administração empresarial com o
objetivo de tornar a competitividade uma norma social. Este processo encontra na
aceleração proporcionada pelo processo de desenvolvimento tecnológico uma
estrutura ideal, que age na reinvenção dos sujeitos, forçando que estes se moldem
aos ritmos sociais estabelecidos e, consequentemente, a intensificação de
mecanismos digitais de controle aos quais os indivíduos se submetem ativamente,
sob o risco, segundo Bauman (2007, p.10), de acabar caindo no esquecimento de
uma sociedade moldada pela visibilidade, exposição e consumo constantes.
Ao retratar estes discursos em um processo de análise, principalmente
voltando-se ao tema das relações dos mais jovens com a mídia digital e a
aprendizagem, assim como a ideia de que a tecnologia tende a oferecer uma forma
3
mais eficiente para as escolas atingirem sua missão tradicional, Buckingham (2010,
p. 40) destacou que diversas
[...] alegações educacionais foram recorrentes com cada novo meio
de comunicação; e como, em cada caso, essas alegações foram em
geral refutadas por subsequentes desenvolvimentos. Os reformistas
e os marqueteiros da tecnologia [...] repetidas vezes alegaram que a
nova mídia traria novas formas de aprendizado à sala de aula,
tornando redundantes velhas mídias como os livros e, em muitos
casos, também os professores. [...] a grande maioria dos professores
ignorou esses dispositivos em aparência revolucionários: após
grandes investimentos, um período de fascínio inicial, os projetores e
os monitores de televisão foram, em geral, consignados ao armário
da sala de aula ou deixados para juntar pó. qualquer razão
para acreditar-se que a situação relacionada às Tecnologias da
Informação e da Comunicação (ICT) contemporâneas venha a ser
diferente?
Conforme os estudos de Buckingham (2010, p. 40), podemos perceber que
existe uma forma de determinismo tecnológico em torno da retórica da sociedade da
informação e das suas consequentes ferramentas tecnológicas, ou seja, a ideia de
que a tecnologia digital automaticamente produzirá certos efeitos, neste caso, em
torno da educação e da aprendizagem, ignorando os contextos sociais na qual estão
inseridas, além dos sujeitos envolvidos no processo.
Neste sentido, este artigo tem como objetivo principal desenvolver uma
análise em torno da relação entre as Tecnologias Digitais da Informação e da
Comunicação (TDICs) e o ambiente escolar da Educação Básica, tendo como
perspectiva analítica a concepção de tecnologia de Álvaro Vieira Pinto (2005), em
diálogo com as análises de Jonathan Crary (2018; 2023). O presente estudo será
possível a partir de uma pesquisa bibliográfica onde as ideias de alguns pensadores
serão mobilizados e colocados em diálogo, visando compreender o conceito de
tecnologia e sua aplicação no ambiente escolar, além de analisar o poder por trás
dos artefatos técnicos e o uso político das tecnologias, principalmente a partir dos
escritos de Winner (2013), Buckingham (2010) e Crary (2013; 2023).
É importante destacar que quando nos referimos a ambientes escolares,
estamos realizando uma abstração, pois os autores mobilizados no texto, como
Serres (2013), Buckingham (2010), Winner (2013), Vieira Pinto (2005), são autores
localizados em distintos espaços, o que caracteriza distintas realidades sociais. No
entanto, utilizamos tais obras por estarmos descrevendo o aspecto da educação que
4
dentro da realidade capitalista global vem sendo constantemente padronizada, se
não em seus meios, mas pelos seus fins, a saber, os crescentes números de
avaliações de larga escala que pretendem estabelecer e mensurar níveis
internacionais de sucesso escolar.
Os limites e as possibilidades de emancipação a partir das tecnologias digitais
As TDICs são componentes de infraestrutura tecnológica que permitem a
interconexão de diferentes ambientes e pessoas por meio de dispositivos, softwares
e mídia digital. Isso simplifica a comunicação entre os participantes, expandindo as
capacidades e oportunidades oferecidas pelas tecnologias existentes. Para que as
TDICs sejam articuladas ao desenvolvimento do processo educacional, parte das
práticas e recursos precisam ser repensadas de acordo com o avanço destas
tecnologias (Soares, 2015).
Entretanto, pensar a inserção de tais aparatos tecnológicos dentro do
ambiente escolar da educação básica requer uma reflexão sobre como o próprio
desenvolvimento tecnológico tem se configurado como um reflexo das demandas
produtivas a que estamos inseridos socialmente. Segundo Crary (2014, p.30), a
existência na sociedade 24/7 ressalta as diversas formas de controle a que estamos
diretamente submetidos, a ponto de vir a tornar supérfluo e impotente o sujeito de
suas demandas que não estejam vinculadas à geração de valor e à esfera do
consumo.
Na sociedade contemporânea, caracterizada pelo sistema econômico
produtor de mercadorias e regida pela regulação dos mercados financeiros, tem sido
comum a crença de que os indivíduos estariam dotados de autonomia e de liberdade
de escolhas, de modo que a ordem tecnológica estabelecida socialmente carregaria
um conjunto de ferramentas neutras que poderia ser utilizado tanto para a alienação
dos sujeitos quanto para a sua emancipação, a depender dos usos delas realizados.
Essa concepção vinha sendo analisada pelo filósofo Álvaro Vieira Pinto
(2005, p. 37) em uma série de escritos desde a década de 1970, a partir dos quais
buscou apontar que a tecnologia deve ser entendida a partir de certos aspectos
centrais. Primeiramente, deve ser compreendida como um processo social,
historicamente determinado e culturalmente influenciado. Ou seja, a tecnologia não
5
é apenas um conjunto de técnicas e ferramentas, mas um aspecto social que reflete
as condições econômicas, políticas e culturais em que é desenvolvida e utilizada.
Vieira Pinto (2005, p. 40) continua suas definições analisando a tecnologia
como uma forma de ação social, uma atividade humana que visa transformar a
natureza para atender às necessidades humanas e neste sentido, se desenvolve na
mesma medida em que desenvolve ferramentas para atuar neste meio. Portanto, a
tecnologia não é vista como algo passivo, mas como uma atividade que envolve
escolhas e decisões. A tecnologia é ainda um fenômeno cultural, na medida em que
está enraizada nas tradições e crenças de uma determinada sociedade, e acaba
influenciada por valores provenientes de um contexto cultural mais amplo. Por fim, o
filósofo enfatiza que a tecnologia é um processo de trabalho, uma atividade que
envolve trabalhadores, suas habilidades e conhecimentos, e que, portanto, é um
processo que pode ser moldado pelos trabalhadores, permitindo uma maior
democratização das relações de produção e um maior controle sobre o processo
produtivo.
Ao relacionarmos as análises de Vieira Pinto (2005), com os escritos do crítico
e ensaísta Jonathan Crary (2014; 2023), podemos enxergar uma série de
aproximações entre suas linhas de pensamentos, principalmente em torno da
compreensão da tecnologia enquanto um fenômeno social, histórico e cultural,
distante da ideia de neutralidade. No entanto, também encontramos profundas
divergências, principalmente em torno das possibilidades de ser utilizada como
artefato de emancipação. Se, para Vieira Pinto (2005, p. 37), a tecnologia pode vir a
se converter em um processo passível de ser apropriado pela classe trabalhadora,
Crary (2023, p. 28), ao refletir sobre as tecnologias digitais, o complexo internético
global e os discursos que eram dirigidos a estes mecanismos, destaca que em “[...]
vez de ser um meio para um conjunto maior de fins, o aparelho é um fim em si
mesmo. Sua função é conduzir o usuário a uma realização ainda mais eficiente de
suas próprias tarefas e funções de rotina”. Crary (2023, p.17–18) afirma ainda que
uma falha de concepção anacrônica segundo a qual a internet
poderia simplesmente ‘mudar de mãos’ [...] passível de receber
novos usos com a transformação do contexto político e econômico.
Mas a noção de que a internet funcionaria de forma independente
das operações catastróficas do capitalismo global é mais uma das
6
ilusões estupefacientes do atual momento. Um e outro estão
estruturalmente entrelaçados [...].
Se, nas análises de Vieira Pinto (2005, p. 54), o conjunto formado pela gama
de tecnologias digitais como processo desenvolvido pelos trabalhadores poderia vir
a desempenhar um processo de emancipação da classe trabalhadora, para Crary
(2023, p. 24), é a partir deste próprio conjunto tecnológico que o sistema capitalista
encontra sua maior expressão e capacidade de controle, a partir da manifestação de
diversas formas de poder e subjetivação, exercidas conjuntamente com antigas
estruturas hierárquicas de controle social. Neste sentido, como podemos pensar
criticamente a inserção das tecnologias da educação dentro do ambiente escolar e,
particularmente, na etapa da educação básica?
Enquanto um aspecto cultural - que rotineiramente é denominado de cultura
digital -, a tecnologia vem sendo vivenciada amplamente. No entanto, dentro dos
ambientes escolares, tem se tornado crescentes as tensões, seja no embate entre
estudantes e professores, ou estudantes e cultura escolar, visíveis a partir de
resistências que estes impõem
4
. Para Serres (2013), o embate e a falta de aceitação
das normas e condutas escolares devem ser compreendidos a partir do impacto das
próprias tecnologias no comportamento dos estudantes, uma vez que em outros
espaços estes mesmos estudantes aparecem enquanto protagonistas,
principalmente enquanto consumidores em um grande mercado global, e acabam
não se adaptando a ideia de passividade que a estrutura escolar ‘tradicional’ acaba
reproduzindo
5
.
Esta mesma questão também deve ser analisada a partir da compreensão da
tecnologia como um processo social. Vieira Pinto (2005), ao apresentar a ideia de
tecnologia não apenas como um conjunto de técnicas e ferramentas, mas um
5
Saviani (2018) caracteriza a pedagogia tradicional como um modelo de ensino que se baseia na
transmissão de conhecimento de forma autoritária e unidirecional do professor para o aluno. Nesse
modelo, o professor desempenha um papel central como detentor do conhecimento, enquanto os
alunos são considerados receptores passivos desse conhecimento. As aulas tendem a ser centradas
no professor, com ênfase na memorização e na repetição de informações. Essa caracterização não é
estática, sendo que não podemos falar em um “professor tradicional” por este seguir perspectiva
pedagógica à risca. O que buscamos destacar como “tradicional”, são algumas práticas advindas
desta caracterização, que ainda se fazem presentes em alguns espaços, gerando embates e
suscitando discussões, conforme destacou Serres (2013).
4
Segundo Mühl (2020), podemos identificar uma crise da autoridade docente, que pode ser
identificada no crescente número de conflitos, na confrontação ou na indiferença cada vez maior de
alunos diante dos professores e, em casos extremos, nas atitudes de agressão verbal ou no
surgimento de diferentes formas de violência praticadas contra docentes, gestores e funcionários da
escola.
7
aspecto social que reflete as condições econômicas, políticas e culturais em que é
desenvolvida e utilizada, possibilita uma reflexão em torno da própria ausência de
tecnologias digitais dentro dos ambientes escolares, principalmente de escolas
públicas, destacando profundas desigualdades inerentes ao próprio sistema.
Portanto, como consequência da própria dinâmica capitalista, as tecnologias
digitais não apenas visam o aumento da eficiência produtiva dos sujeitos com um fim
em si mesmo, mas enquanto artefatos que reforçam e reproduzem estruturas de
poder, acabam aprofundando desigualdades sociais dentro dos ambientes escolares
que acabam refletindo as desigualdades econômicas, políticas e culturais a que está
sujeita toda uma comunidade escolar.
Tecnologias digitais e estruturas de poder: a instituição escolar enquanto
forma de poder
Na perspectiva analítica de Foucault (1987, p.11) a instituição escolar se
configura enquanto tal justamente por sua capacidade de moldar, ou, pelo menos,
influenciar nos comportamentos dos sujeitos e atuar como um espaço de construção
de subjetividades e de identidades. Neste sentido, o espaço escolar reflete uma
concepção política e de sociedade, sendo que a forma como a tecnologia é inserida
e utilizada, ou mesmo a sua ausência, reflete uma dimensão sociopolítica.
Desde a década de 1970, período em que Buckingham (2010), inicia suas
pesquisas, diversos entusiastas da tecnologia digital se esforçavam para
demonstrar o impacto que o desenvolvimento de tais tecnologias teria no ambiente
escolar. Muitos destes entusiastas, argumenta o autor, estavam extremamente
interessados no ambiente escolar como grande nicho de mercado, além do interesse
em utilizar este ambiente como uma grande vitrine para a tecnologia residencial.
Winner (2013, p. 20), identifica que a tecnologia constitui objetos que refletem
lógicas de poder, sendo que estas lógicas refletem o sistema socioeconômico no
qual as tecnologias estão inseridas. Neste sentido, o que importa para uma reflexão
que esteja para além de análises superficiais, não é a tecnologia em si, mas o
sistema social ou econômico no qual ela está inserida. Sobre esta dimensão, ainda
fica visível a leitura sobre a técnica em Vieira Pinto (2005, p. 39), ao discutir sobre a
ideologia da técnica e a capacidade de inferência que esta ideologia, a ideia de
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produção da tecnologia, pode vir a provocar (uma ilusão). Toda técnica, influenciada
pela necessidade de produção de uma determinada época, reflete seu contexto e é
justamente neste contexto que as técnicas, no conjunto formador de tecnologias,
passam a refletir estruturas de poder.
Crary (2023, p.19), ao escrever sobre a análise do crítico social Ivan Illich e
seus estudos em torno das definições de ferramentas e conjuntos de técnicas na
relação com o social, destacou:
Illich enfatizava que as pessoas extraem felicidade e satisfação do
uso de ferramentas ‘menos controladas por terceiros’ e alertava que
‘o crescimento das ferramentas para além de um certo ponto
aumenta a arregimentação, a dependência, a exploração e a
impotência’. No final dos anos 1990, poucos anos antes de sua
morte, Illich notou o desaparecimento da técnica como ferramenta
que se apresentava como um meio destinado a um fim, como um
instrumento com o qual um indivíduo poderia investir sentido no
mundo. No lugar disso, percebeu a disseminação de tecnologias
cujas regras e operações absorviam as pessoas. Ações que antes
eram ao menos parcialmente autônomas agora se manifestavam
como comportamentos ‘sistema-adaptativos’.
A análise colabora para a conclusão de que o complexo tecnológico de hiper
conexão atualmente em voga, constituído pelas TDICs e pelo complexo internético
global não proporciona aos sujeitos um aumento de suas capacidades críticas de
compreensão da realidade ou de ação individual e social, mas, pelo contrário, amplia
a impotência e a adaptação destes frente a absorção intencionada pela formulação
de gostos e de subjetividades sociais.
É a partir da leitura destes contextos que Buckingham (2010, p. 03) passa a
argumentar o papel proativo que a escola pode vir a desempenhar nesta “sociedade
da informação”, destacando “tanto perspectivas críticas quanto oportunidades de
participação em relação à nova mídia”, além de alertar para as desigualdades de
acesso aos instrumentos tecnológicos e das desigualdades culturais vivenciadas
pelos estudantes dentro e fora da escola. Para tanto, um primeiro momento do texto
de Buckingham, é dedicado a uma análise das utopias que as tecnologias vieram a
desempenhar ao longo das últimas décadas, desde a invenção do cinema, do rádio,
da televisão, a cada avanço de um determinado conjunto de técnicas,
argumentava-se que a escola viria definhar ou mesmo, desaparecer, sendo
necessário portanto repensar a escola. Estes discursos, no geral, ganhavam maior
9
fôlego entre “os reformistas e os marqueteiros”, ávidos pelos grandes investimentos
provenientes da educação.
É neste contexto que podemos retornar aos escritos de Vieira Pinto (2005, p.
37), ao afirmar que “toda época é por definição única e possui a tecnologia a que
pode ter acesso”, ou seja, não existe ‘a sociedade tecnológica’ autoconsagrada por
seus avanços indescritíveis frente à história da humanidade, mas o desenvolvimento
tecnológico histórico em si. Crary (2014, p. 24), também direciona seus argumentos
neste sentido, ao indicar que a ideia ilusória de que a geração que tem crescido sob
os auspícios da dita era da informação e comunicação se tornará detentora de níveis
similares de competência tecnológica e pressupostos intelectuais básicos, uma vez
que
a realidade bastante diversa de nosso tempo se caracteriza pela
manutenção calculada de um estado de transição contínuo. Diante
de exigências tecnológicas em transformação constante, jamais
haverá um momento em que finalmente as ‘alcançaremos’, seja
enquanto sociedade ou enquanto indivíduos. Para a imensa maioria
das pessoas, a relação perceptiva e cognitiva com tecnologias de
informação e comunicação continuará distante e impotente dada a
velocidade com que surgem novos produtos e com que os sistemas
são completamente reconfigurados. Esse ritmo intensificado impede
que nos familiarizemos com qualquer ordem específica.
Para Crary (2014, p. 25), o fato da realidade estar caracterizada pela
produção constante de inovações como característica da geração de valor
impossibilita uma apropriação das competências tecnológicas básicas em níveis
universais, uma vez que o estado de “transição contínua” não permite a apropriação
das realidades específicas, caracterizando, segundo o autor, o que Marx afirmava ao
escrever que a história dos últimos 150 anos é inseparável da “revolução contínua”
das formas de produção, circulação, comunicação e construção de imagens.
O que esta reflexão nos proporciona para pensar nas TDICs? Conforme
Buckingham (2010, p. 40), os investimentos tecnológicos para a área de educação
têm como foco principal os hardware, ou seja, máquinas e equipamentos, sendo que
os investimentos em softwares, programas, sites, aplicativos, dentre outros, ficam
relegados a segundo plano, ou sequer aparecem. Muitos destes investimentos, em
geral de grandes valores, não contam com a participação dos professores e equipes
escolares, nem com projetos e planejamentos pensados a partir da realidade
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educacional, levando ao uso precário destas tecnologias e o seu consequente
abandono. O que se verifica, em muitos casos, é a expressão de um determinismo
tecnológico, uma ilusão de que a tecnologia digital automaticamente produzirá certos
efeitos sem que se leve em consideração os contextos sociais em que estarão
colocadas, nem mesmo dos atores sociais que a usem. Este determinismo é
incentivado por discursos de grupos industriais ávidos por recursos e mercados.
Percebemos, portanto, que as tecnologias, mesmo que no âmbito educacional
escolar, mascaram escolhas sociais de profunda significação, levantando um alerta,
um chamado à reflexão, em torno da denominada ideologia da técnica, ou seja, a
ideia de que a tecnologia é uma solução para todos os problemas humanos, como
algo que deve ser buscado pelo seu próprio valor independentemente das suas
consequências sociais, ambientais e políticas. Ao mesmo tempo que se tem
marginalizado questões fundamentais sobre como professores e alunos poderiam se
apropriar da tecnologia e sobre o que precisam saber acerca dela.
A inserção das tecnologias digitais da informação e da comunicação nos
ambientes escolares, dentro da lógica que está posta, ou seja, dentro de um sistema
que se origina a partir das necessidades de produção como norma de reprodução
da vida social, tende a se fazer necessária, mas sem se limitar a uma formação para
o uso ou para um chamado letramento digital que meramente se resuma a enviar
e-mails e acessar sites (Buckingham, 2010, p. 48). Trata-se, antes de tudo, da
necessidade de uma formação crítica capaz de levar os estudantes a perceberem
que os artefatos tecnológicos carregam em si formas e manifestações de poder,
principalmente a partir de seus usos. Este letramento digital crítico precisa ainda ser
capaz de provocar reflexões sobre as desigualdades presentes no interior destes
espaços e mesmo destes equipamentos e, apontar para horizontes de emancipação
dos sujeitos e de suas sociabilidades.
Acreditar cegamente que o uso ou a aquisição de equipamentos tecnológicos
nos conduzirá a um avanço na área da educação significa ignorar uma lógica
mercantil que permeia a educação pública e se deixar enganar por um determinismo
tecnológico que aos poucos conduz a chamada ideologia da técnica. Neste sentido,
se a necessidade de realização de investimentos em equipamentos tecnológicos
digitais para as escolas está posta, que esta seja feita sem ignorar o
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desenvolvimento de projetos adequados à realidade escolar e o diálogo permanente
com todos os envolvidos, buscando entender suas reais necessidades e aspirações.
Cabe ressaltar que mesmo em um movimento de inserção crítica das TDICs
no ambiente escolar, utilizando estes artefatos para a contestação destas lógicas de
poder, seja a partir de um letramento digital crítico que leve os estudantes a
compreender justamente as estruturas de poder existentes no contexto de produção
dos artefatos tecnológicos, seja utilizando estas tecnologias para inserção dos
estudantes naquilo que de mais avançado em termos de tecnologias digitais
visando reverter a lógica de exclusão e de desigualdade social no interior da
instituição escolar, os artefatos tecnológicos ainda são produzidos e submetidos às
demandas do sistema produtor de mercadorias, refletindo intencionalidades.
Considerações finais
Buscou-se destacar ao longo deste artigo a necessidade de entender,
conforme destacou Crary (2018, p. 24), que no contexto do capitalismo, a inovação
consiste principalmente na contínua simulação da novidade, enquanto as relações
de poder e controle existentes permanecem praticamente inalteradas. Colabora o
fato de que a aceleração dos ritmos dessas aparentes mudanças tem agido
eficazmente na eliminação das sensações de uma linha do tempo compartilhada que
poderia servir como base para a expectativa de um futuro diferente do presente
atual, mesmo que essa visão de futuro não esteja definida.
Este estilo de vida caracterizado pela aceleração e preenchimento de todo o
tempo da existência social gira em torno de metas individuais de competitividade,
promoção, acumulação de riqueza, segurança pessoal e conforto, muitas vezes às
custas dos outros. Todo este quadro colabora para que visões de futuro sejam
desenvolvidas à imagem e semelhança do presente, em um movimento denominado
por Fisher (2010, p. 26), como “cancelamento do futuro” que pode ser imaginado
como uma extensão da luta pela obtenção de ganhos pessoais ou pela
sobrevivência individual em um presente superficial.
Portanto, ao abordarmos o tema da inserção das tecnologias digitais no
ambiente escolar, é de extrema importância deixar claro que um olhar crítico a este
problema de estudos precisa superar um olhar para os objetos tecnológicos e seus
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impactos na estrutura imediata em que se encontram, que possa orientar a
compreensão para além dos dispositivos e dos programas, dos órgãos financiadores
e das instituições que os recebem, buscando analisar todos os aspectos sociais
envolvidos em tal contexto.
Imaginar que a tecnologia por si terá a capacidade de impulsionar o grau de
escolarização, de apropriação e de desenvolvimento humano, significa ignorar os
problemas historicamente enraizados no moderno sistema produtor de mercadorias,
que tende a se aprofundar quando olhamos para os distintos países e as profundas
desigualdades existentes. Significa abraçar o que Vieira Pinto (2005, p. 37)
denominou de ideologia da técnica, de acreditar que os problemas se resolveriam
magicamente, não com varas de condão, mas sim com aquisições milionárias de
aparatos sem uma reflexão real de como vinculá-los a uma formação crítica.
Referências
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BUCKINGHAM, D. Cultura Digital, Educação Midiática e o Lugar da Escolarização.
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