V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X MEMÓRIA, EDUCAÇÃO E LUTA PELO RECONHECIMENTO DO TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE BARRA 1 Géssica Maria Silva São José 2 Cláudio Eduardo Félix 3 Resumo Este artigo aborda aspectos da luta pelo reconhecimento e titularidade estatal do território quilombola de Barra, localizado no Município de Rio de Contas, Bahia. O objetivo é analisar de que forma o trabalho educativo e a memória coletiva contribuíram no processo de reconhecimento oficial do território e da construção da identidade negra-quilombola entre os moradores do quilombo de Barra. Nesse sentido, analisamos, a partir de fontes orais e escritas, aspectos da trajetória desse processo histórico de legalização do território e da construção do ser quilombola. Palavras-Chave: Memória, educação, quilombo. MEMORIA, EDUCACIÓN Y LUCHA POR EL RECONOCIMIENTO DEL TERRITORIO QUILOMBOLA DE BARRA Resumen Este artículo aborda aspectos de la lucha por el reconocimiento y la propiedad estatal del territorio quilombola de Barra, ubicado en el municipio de Rio de Contas, Bahía. El objetivo es analizar cómo el trabajo educativo y la memoria colectiva contribuyeron al proceso de reconocimiento oficial del territorio y a la construcción de la identidad negro-quilombola entre los habitantes del quilombo de Barra. En este sentido, analizamos, a partir de fuentes orales y escritas, aspectos de la trayectoria de este proceso histórico de legalización del territorio y de construcción del ser quilombola. Palabras clave: memoria, educación, quilombo. MEMORY, EDUCATION AND FIGHT FOR RECOGNITION OF THE QUILOMBOLA TERRITORY OF BARRA Abstract This article addresses aspects of the struggle for recognition and state ownership of the quilombola territory of Barra, located in the Municipality of Rio de Contas, Bahia. The objective is to analyze how educational work and collective memory contributed to the process of official recognition of the territory and the construction of black-quilombola identity among the residents of the Barra quilombo. In this sense, we analyzed, based on oral and written sources, aspects of the trajectory of this historical process of legalization of the territory and the construction of the quilombola being. Keywords: Memory, education, quilombo. 3 Doutor em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) - Brasil. Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Bahia - Brasil Email: cefsantos8@gmail.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/7594684135461900 . ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0545-1102 . 2 Mestra em memória junto ao Programa de pós-graduação em Memória: Linguagem e Sociedade (UESB). Licenciada em História (UESB). Email: gessicamaria012@gmail.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/7691928478929362 . ORCID: https://orcid.org/0009-0007-1189-650X . 1 Artigo recebido em 10/04/2024. Primeira Avaliação em 28/08/2024. Segunda Avaliação em 03/10/2024. Aprovado em 24/11/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI : https://doi.org/10.22409/tn.v22i4 9.62532 . 1
Introdução O movimento pelo reconhecimento de territórios quilombolas no Brasil é marcado por uma série de desafios no plano burocrático e das lutas sociais. O esforço coletivo pela titulação da terra aos quilombolas é mediado por um conjunto de articulações e processos políticos que têm na história e na memória uma importância fundamental para o seu sucesso. Nesse texto apresentamos resultados de pesquisa de dissertação de mestrado que teve por objetivo analisar de que forma o trabalho educativo e o trabalho da memória coletiva contribuíram no processo de reconhecimento oficial do território e da construção da identidade negra-quilombola entre os moradores do Quilombo de Barra 4 O Quilombo da Barra está localizado no município de Rio de Contas, na Chapada Diamantina, interior do estado da Bahia. A comunidade foi certificada como remanescente de quilombo pela Fundação Cultural Palmares (FCP) em 12 de setembro de 2005 sob o processo de 01420.000054/1998-92. A agricultura é o pilar da ocupação da maioria dos moradores da localidade, seja na prática de subsistência ou no comércio em Rio de Contas, distritos e cidades vizinhas. A forte ligação com a terra através do plantio da lavoura lhes condições de se manterem através da agricultura familiar. Cultivam principalmente milho, feijão, abacaxi, mandioca e banana. Para a realização das pesquisas buscamos aporte em fontes históricas documentais disponíveis no Arquivo Público Municipal de Rio de Contas. Como forma de apreender aspectos da memória coletiva da comunidade acerca do próprio quilombo e da luta pela titulação da terra foram realizadas entrevistas e visitas em lócus, onde conversamos com educadoras, educadores e lideranças da comunidade. A partir da análise da trajetória das educadoras (es) do quilombo de Barra buscamos identificar a contribuição das práticas pedagógicas desses professores na preservação dos aspectos ancestrais e culturais da memória coletiva da sua 4 O conteúdo aqui apresentado é fruto da dissertação de Mestrado intitulada “O trabalho da memória e da educação na luta pelo reconhecimento do quilombo de Barra em Rio de Contas, Bahia., defendida no Programa de Memória: Linguagem e Sociedade, da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). 2
comunidade. Nesse artigo destacamos os depoimentos do professor Carmo Joaquim (atual líder e presidente da Associação dos Moradores dos Quilombos de Rio de Contas-BA) e da Professora Bezinha (liderança quilombola e animadora do Samba do Mendengó/Bendengó, artesã, e ex-professora do quilombo). Quilombo é aqui entendido como espaço e tempos de resistência; de luta pela terra para produção da existência material e não-material de quem nele habita e se organiza. De acordo com Beatriz Nascimento (2021) o quilombo configura-se, também, como um território corporal mediador ou interlocutor de linguagens. Um decodificador dos debates sobre o pensamento “afro diaspórico” 5 repleto de signos e símbolos. Corpo que se constituiu (e se constitui) no processo dinâmico e contraditório de rupturas, continuidades, adaptações, fluxos e refluxos no espaço do Atlântico Negro após a conquista das Américas. Esses processos históricos contínuos constroem memórias que são fundamentais, sobretudo em comunidades tradicionais, para a transmissão dos saberes, das experiências e das lutas. Em relação à memória, buscamos aporte no conceito de Memória Coletiva elaborado por Maurice Halbwachs, sociólogo pioneiro em abordar a análise do fenômeno da memória a partir da sociedade e não do indivíduo em si. Segundo esse sociólogo, toda recordação e reconstrução do passado é mediada pelo coletivo pois, [...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais nós estivemos envolvidos, e com objetos que nós vimos. E porque, na realidade, nunca estamos sós (Halbwachs, 1990, p.16). O lembrar, portanto, é um ato dinâmico entre o indivíduo e o coletivo, cuja primazia, segundo Halbwachs, é a coletividade. Nesse sentido, ao investigarmos o processo de conquista da titulação do Quilombo da Barra focando na relação entre memória coletiva e educação, os estudos de Halbwachs foram importantes suportes no percurso investigativo, sobretudo pela força que algumas narrativas exercem na memória coletiva dos quilombos na região da Barra. Uma dessas, e que exploraremos com mais detalhes a seguir, corresponde a existência do naufrágio de um navio negreiro que permitiu a fuga e o estabelecimento dos sobreviventes na região onde hoje se situam os vários quilombos no município de Rio de Contas. 5 Código e símbolo cultural que se expandiu no mundo por meio da diáspora, ou seja, através da migração forçada dos povos africanos . 3
Partindo desse pressuposto analisamos a trajetória dos educadores do quilombo de Barra e buscamos identificar a contribuição do trabalho educativo escolar e não escolar na preservação dos aspectos ancestrais e culturais da memória coletiva da sua comunidade no processo de luta pela titulação estatal do território Quilombola de Barra. Memória coletiva: do naufrágio do navio negreiro à organização da Associação dos Moradores do Quilombo de Barra Na região onde está o Quilombo de Barra um suposto acontecimento compõe os quadros da memória várias gerações, qual seja: a narrativa do Naufrágio do Navio Negreiro ocorrido num passado longínquo. Nosso entrevistado, Carmo Joaquim, relata o fato da seguinte forma: Os negros que fundaram esta comunidade chegaram aqui antes dos bandeirantes e dos garimpeiros. Havia um navio trazendo escravos da África, que encalhou no sul da Bahia, perto de onde hoje existe a cidade de Itacaré. Neste lugar, se desemboca o Rio das Contas. O pessoal aproveitou do encalhe e fugiu do navio em busca da liberdade. Isto aconteceu no século XVI ou XVII. O pessoal seguiu o trajeto do Rio das Contas até chegar nesta região. Então, os escravos fugidos formaram estas comunidades, escondidos nas montanhas da chapada, (Carmo Joaquim da Silva, depoimento oral concedido em 5 de abril, 2023). Essa é a principal memória coletiva do quilombo em relação ao seu surgimento e ao surgimento dos outros dois quilombos vizinhos, Bananal e Riacho das Pedras. Apesar das pesquisas acadêmicas ainda não comprovarem essa narrativa da memória, no Arquivo Municipal de Rio de Contas encontramos documentos que comprovam a existência de “negros crioulos” desde o ano de 1681, tendo como fundador do quilombo seu Isidro Joaquim. O que nos interessa fundamentalmente nessa referência dos moradores e seus antepassados é como ela contribui para o desenvolvimento da construção de concepções de mundo e de organização das lutas dessas pessoas. Entendemos que essa evocação da memória é uma fonte motivadora de luta pelo território, pela liberdade e dignidade das comunidades quilombolas da região. Trata-se de um marco sócio-histórico da tradição da comunidade que remete a ideia de ancestrais e 4
antepassados negros e negras fugidos de um Navio Negreiro séculos e que não sofreram a experiência do cativeiro do trabalho escravizado. Portanto, os quilombolas da região de Rio de Contas são herdeiros dos que legaram uma experiência de liberdade interrompida pela captura em África, mas que não tiveram a experiência do trabalho escravo, do açoite, da senzala, do pelourinho. Assim, a memória coletiva do Quilombo da Barra tem nessa narração fundadora (o naufrágio do Navio Negreiro) um elo de articulação de uma comunidade que, independentemente da confirmação do fato da existência do naufrágio, adquiriu uma força e uma referência que tem impulsionado a construção da especificidade, da identidade das várias gerações naquela região, bem como do desafio da constatação ou não da veracidade histórica da narrativa. Considerar essa narrativa heroica e de resistência da memória coletiva transmitida várias gerações é da maior importância para compreender como uma comunidade vai se construindo, se fortalecendo, criando suas referências. Portanto, é necessário atentar às sutilezas combatentes dessas manifestações quando tratamos da memória, especialmente dos seus significados, sentidos e importância para os oprimidos seguirem em frente em suas lutas. De acordo com Benjamin: [...] a luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Apesar disso, essas últimas não podem ser representadas na luta de classes como despojos atribuídos ao vencedor. Elas vivem nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia, da firmeza e atuam retroativamente até os tempos mais remotos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores (Benjamim, 2016, p. 243). Portanto, a memória do Naufrágio do Navio Negreiro não se configura como mera narrativa ou invenção. Trata-se de um relato de memória de várias gerações que sustenta formas legítimas de construção do passado, de identidade, de resistência ao racismo e de pertencimento dessas pessoas a essa comunidade. A memória do naufrágio estabelece uma ligação direta com África e posteriormente com a resistência à escravidão. Ela está fundada no fato de os negros africanos que vieram para Rio de Contas como homens e mulheres escravizados se tornaram livres, não entregaram seu corpo à tortura das formas de exploração do trabalho escravo, pois não sobreviveram ao naufrágio, como igualmente desbravaram as matas e os sertões baianos, enfrentando dificuldades de 5
uma terra desconhecida e dialogando com os habitantes que aqui existiam, os indígenas. Concordamos com Capinan (2009), quando afirma: “os seus antepassados não teriam sido subjugados à vala comum e impessoal de uma senzala”, (p. 46). Interessante que da narrativa heroica da fuga do navio que navegava com escravos nas águas do Atlântico, outro fato marcante na história recente da região dos quilombos em Rio de Contas também tem relação com as águas, mas agora como expressão da destruição. Trata-se da construção da Barragem Luiz Vieira que produziu experiências de perdas materiais para os quilombolas atingidos e memórias traumáticas para os mesmos. A construção da barragem Luiz Vieira e seus desdobramentos na produção da vida e da memória dos quilombolas Em meados da década de 1950, o DNOCS (Departamento de Obras contra a Seca) deu início ao projeto de construção da barragem Luiz Vieira que foi efetivamente construída entre os anos 1977 a 1987, em pleno regime de ditadura militar no Brasil. A construção, a inundação das terras e a expulsão das famílias desses territórios sem a devida indenização e preparação para a reconstrução de suas vidas é bem revelador do projeto de inovação e desenvolvimento capitalista no Brasil à época. No modo de vida das comunidades tradicionais a terra é tanto o espaço para o desenvolvimento da agricultura e da pecuária e também território onde o sagrado está presente, as memórias e relações afetivas se imbricam. Desta feita, pensar sobre o conceito de modo de vida é fundamental para entender como a construção da barragem afetou a existência das pessoas atingidas por essa edificação. A categoria Modo de Vida está articulada à categoria modo de produção e tem relação com os modos singulares, específicos de fazer, sentir e estar no mundo e reproduzir-se socialmente. O conceito de modo de vida aparece diretamente relacionado aos modos de produção da existência humana, “os quais pressupõem formações sociais com regimes de propriedade dos meios de produção que modificam as relações sociais” , (Tiriba, 2021, p.412). 6
O modo de vida desenvolvido no quilombo de Barra - e nos demais quilombos da região - tem uma relação íntima e intrínseca com a terra. Essa simbiose revela as maneiras de atuar e estar no mundo daquela comunidade, de pensar e sentir as relações entre seres humanos e natureza. Por esse motivo, a forte conexão entre a terra, a cultura, a história e a memória devem ser consideradas ao analisar a realidade das formas de reprodução da vida, em especial em territórios rurais. Ao falarmos do direito à terra, destacamos tanto na questão da sobrevivência material das pessoas como da preservação da memória, cultura e tradições (Santos, 2005). As tradições e formas de organização das pessoas do Quilombo da Barra são geralmente baseadas na proximidade das casas, na união da comunidade e nos recursos que vêm daquele local. A terra é o que propicia condições de permanência, de trabalho, continuidade das referências simbólicas importantes e produção da memória coletiva, a qual é fundamental para a manutenção das tradições consolidadas e da criação de novas. Nas comunidades tradicionais, a organização social da comunidade é engendrada e pautada por algumas características: I. parentesco e herança II. terra e territorialidade. É a terra que permite a existência física da comunidade, como sinônimo de localidade, ao passo que a comunidade engendra as territorialidades (atribuição de sentido da terra). Nesse sentido, a construção da barragem Luiz Vieira alterou, como não poderia deixar de ser, o modo de vida dessas populações. A forma de desapropriação e a falta de assistência aos atingidos diretamente pela inundação da área deixou marcas profundas sentidas ainda hoje pelos que viveram aquela situação e seus descendentes. Ao estudar a construção e o impacto da construção dessa barragem, Valdir Silva chamou a atenção de alguns fatos. No início da década de 80, no Sopé da Serra das Almas e sob frondosa mangueira uma família de negros sem-rumo descansava. Durante alguns dias moraram ali. Do rio que passava em frente vinha à água necessária para a sobrevivência, mesma água que dias atrás lhes inundara a casa em que haviam vivido longos anos. No entanto, a corrente d’água outrora tão solidária com lavouras não se transformou em vilãs por dinâmica própria. A cheia que encobriu a propriedade daqueles agricultores recém desalojados foi produzida pelo Departamento Nacional de Obras Contra Secas (DNOCS) no processo de implantação da Barragem Luiz Vieira, cuja construção ocorreu no município baiano de Rio de Contas [...]; (Silva, 2009, p.1). 7
Podemos nos aproximar da dor dessas pessoas, em especial dos quilombolas de Riacho das Pedras que foram diretamente atingidas pela construção da barragem, a partir do depoimento do Professor Carmo, ao afirmar que com a inundação das terras dos parentes quilombolas, você perde o seu local de origem, você perde o povo, sua tradição muda” . 6 . Santos (2011) destaca que as águas brasileiras, por sua abundância e pelas múltiplas possibilidades de uso e compartilhamento, foram objeto dos interesses de cadeias de empresas nacionais e transnacionais principalmente neste período das políticas chamadas de nacional-desenvolvimentistas nos anos de 1950 a 1980. Em nome da aceleração do desenvolvimento aprofundaram-se a concentração de renda e degradação do ambiente e do homem: trabalhadores do campo, indígenas, ribeirinhos, quilombolas. Considerando assim os quilombos afetados pela construção da barragem, um corpo usurpado, expropriado de seu território tal como foram e são os corpos negros em diferentes processos que vão desde a escravização no século XVI às formas de racismo na atualidade, faz sentido pensar a produção da memória coletiva do quilombo de Barra ancorada no próprio corpo negro, sendo o próprio quilombo um lugar de memória. O território que foi engolido pela água também o é, pois se trata de um quilombo (Riacho das Pedras e parte de Barra e Bananal) que não existe, restando apenas o corpo que é território. Nesse sentido reafirmamos: o corpo é quilombo, que também é a própria memória. (Nascimento, 2021). A partir desses acontecimentos, os moradores e moradoras dos quilombos passaram a se mobilizar para lutarem pelo registro de suas terras e garantirem seus direitos acompanhando as lutas dos Movimentos Negros do Brasil na Constituinte de 1987. Nesse mesmo ano foi criada a Associação dos Moradores do Quilombo da Barra paripassu à articulação política de lideranças e comunidades quilombolas fazerem avançar o projeto de titulação, emitido em dezembro de 1999. Portanto, uma batalha de mais de 10 anos de organização. 6 Entrevista concedida em julho de 2023. 8
Organização comunitária e trabalho educativo na luta pelo reconhecimento do território Foi no contexto dos anos 1980, período de crise e fim da ditadura militar, que tomou corpo e ganhou robustez o combate mais organizado e articulado por demandas específicas da classe trabalhadora no Brasil após mais de 20 anos de um regime político autoritário e violento contra os seus opositores. Nessa década de 1980 destacamos o avanço e reestruturação sindical, popular e político partidário por meio de organizações que impulsionavam e eram impulsionadas por um amplo movimento de massas exigindo direitos e melhores condições de vida. O surgimento da Central Única dos Trabalhadores (CUT), os vários movimentos de luta pela terra, movimentos feministas, indígena, negro, movimentos de bairros, fundação de Partidos Políticos de esquerda como o Partido dos Trabalhadores são algumas dessas organizações que pautaram novos temas da vida concreta do povo, inclusive nos marcos da Assembleia Constituinte de 1987. Após muito esforço coletivo, a Constituição Federal de 1988 reconheceu os direitos dos quilombolas e possibilitou a regularização das suas terras. O artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) reconhece a propriedade definitiva das terras ocupadas pelos remanescentes das comunidades quilombolas cabendo ao Estado emitir os títulos respectivos. Essa conquista, fruto de um longo trabalho de organização e reivindicação do Movimento Negro, se expressou nas singularidades dos quilombos em Rio de Contas. Professora Bezinha e Professor Carmo, sujeitos de nossa pesquisa, ajudam a contar a especificidade da experiência de luta pela titulação da terra Quilombola. Isabel Prizilina Pina (Bezinha) tem 66 anos, nasceu no dia 01 de julho de 1957. Filha de uma das matriarcas do quilombo, a Dona Amancia Martinhia Silva, começou seu trabalho docente ainda muito jovem. No ano de 1977 Bezinha ingressou no curso de Habilitação de Professores Leigos HAPROL, um programa do Governo do Estado da Bahia cujo objetivo era a formação de professoras e professores que trabalhavam nas escolas baianas, mas não tinham formação específica. Eram os chamados professores leigos. (Viana; Santos, 2018). 9
Sobre as dificuldades que enfrentava para lecionar, a professora Bezinha relatou que todos da comunidade viviam uma vida de muita penúria e por vezes essas carências afetavam a segurança alimentar dos moradores do quilombo. A escola constituía-se, também, como espaço público da organização coletiva por meio da Associação dos Moradores do Quilombo que ali se reunia com frequência entre os anos 1980 e 1990. Neste período o quilombo recebeu apoio de várias entidades e lideranças negras como uma das principais lideranças do Movimento Negro Unificado, o líder sindical e Deputado Estadual, Luiz Alberto 7 . Ele teve um importante papel no reconhecimento de vários territórios quilombolas na Bahia, inclusive o da Barra. Esse despertar de Bezinha para a luta com seus irmãos veio da necessidade de lutar e se organizar quando da construção da Barragem na década de 1970. Segundo ela, era preciso lutar pela “segurança das nossas terras, nossos direitos [...]. Se a gente for olhar a educação também estava ameaçada, porque a água ia acabar com tudo, e nós íamos perder nossas terras”. Apesar dessa preocupação da professora Bezinha e sua tomada de consciência, o processo do reconhecer-se negro-quilombola na comunidade da Barra não era simples. Nesse sentido, um fato importante para destacarmos é a influência do cristianismo católico entre as pessoas quilombolas. Era recorrente nos depoimentos a lembrança das rezas, ladainhas, e da catequese que, a qual era de responsabilidade dos professores e professoras da escola no Quilombo. Na pesquisa de campo observamos que quase todas as casas possuem um pequeno painel de gravuras de santos afixados na parede que acesso à sala de estar. Encontramos a presença de imagens de São Sebastião, Nossa Senhora Aparecida e São Bernardo sendo estes, segundo os entrevistados, os principais santos de devoção das pessoas no quilombo. 7 Natural do quilombo Baixa do Guaí, no Recôncavo Baiano, Luiz Alberto dedicou sua carreira a lutar pelos direitos da população negra. Antes de ingressar na política formal, trabalhou como vigilante e técnico químico na Petrobras. Como sindicalista, atuou como Secretário-Geral do Sindicato dos Petroleiros (BA), de 1990-1991, e Diretor do Sindicato Único dos Químicos e Petroleiros (2000-2003). Foi um dos fundadores do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1978, e uma das maiores lideranças do coletivo. Defendeu a igualdade racial durante sua atuação na Câmara dos Deputados e integrou a Secretaria de Justiça e Direitos Humanos da Bahia (SJDH). Participou também da fundação do PT na Bahia e da Central Única dos Trabalhadores (CUT) nos anos 1980, SITE àwúre, consultado em 05 de março de 2024. 10
Esse é um fenômeno interessante que revela a dificuldade da afirmação de uma identidade quilombola com base na tradição cultural e religiosa afro-brasileira. Não se trata de um problema isolado do quilombo da Barra, mas de várias comunidades e organizações negras que lutam pela titulação das terras quilombolas. Camila Pereira e Alexandra Oliveira (2019), ao analisarem os processos de titulação de terras Quilombolas no Rio Grande do Norte afirmam o quão difícil é o auto reconhecimento das negras e negros acerca de sua identidade. O fortalecimento das identidades e da luta coletiva é um trabalho contínuo e desafiador, pois as dificuldades de declarar-se negro e quilombola no Brasil torna o processo complicado, mesmo que os moradores conheçam os direitos que lhes são garantidos por lei. [...] A fragilidade no conhecimento e a negação dessa identidade são frutos da herança histórica de segregação social e racial em virtude do estigma do passado de escravidão. (Pereira & Oliveira, 2019, p. 13-14). A análise de Pereira & Oliveira (2019) evidencia uma dificuldade comum no processo de organização de algumas comunidades quilombolas. A dificuldade do reconhecer-se negro/negra e quilombola está relacionado ao racismo e segregação histórica que se manifestam de várias formas. Martins e Messeder (1991), ao estudarem os quilombos na região de Rio de Contas,registraram várias atitudes racistas das pessoas brancas que vivem no povoado de Mato Grosso, vizinho ao quilombo de Barra. Eles registraram falas de moradores do referido povoado acusando as pessoas negras de preguiçosas e ociosas, acomodadas ao ganho suficiente para sobreviver. Nesse sentido, avalia os autores: As relações sociais em Rio de Contas configuram um quadro que atualiza a temática do racismo, um racismo histórico, fundado sob a égide de uma estratificação impermeável e de estereótipos culturais, cuja significação remonta a supostas diferenças biológicas, definindo atributos e circunscrevendo unidades sociais particulares. O historiador Fernand Braudel, ao comentar o livro de Harris, surpreende-se com a "anormalidade" da questão racial em Rio de Contas. Não poderia ser de outro modo, na medida em que Braudel tem como base as considerações de Freyre, o que o leva a concluir que "seguramente esse racismo, bastante benigno, de pequena cidade, se existe, não parece entrar na linha histórica do passado brasileiro [...]" (Braudel, 1969:230), (Martins & Messeder, 1991, p.12). 11
Essas análises encontram eco em falas de Bezinha, seja ao falar do racismo que a população sofria/sofre por parte de pessoas do distrito de Mato Grosso; seja quando afirmam que as pessoas do quilombo de Barra se reconheciam como “a comunidade de negros” em tempos passados. Bezinha narra que sempre passou para seus alunos a experiência e ideia de ser quilombola com orgulho, uma forma de resistência a essa e a todas as outras manifestações racistas. Em nossa pesquisa de campo no arquivo público de Rio de Contas-BA encontramos alguns jornais que nos serviram de fonte para nossas análises, como exemplo o jornal Soweto à Brasileira em que Serpa (1995) retratou os antagonismos entre o povoado de Mato Grosso e as comunidades quilombolas de Rio de Contas, afirmando que no país da “democracia racial”, “três vilarejos criam seu próprio apartheid; brancos e negros não se misturam, mal se toleram e apresentam diferenças gritantes de padrão de vida” , (p.80): Figura 1 - Jornal Soweto à Brasileira (1995) Serpa (1995) foi responsável por evidenciar que o distrito de Mato Grosso, nos anos 1990, possuía calçamento, água encanada, eletricidade e posto telefônico, enquanto os quilombos remanescentes não contavam com nenhuma infraestrutura. As pessoas não tinham acesso a energia elétrica e utilizavam a luz de lampiões, buscavam águas em bicas comunitárias, não tinham telefone público. Atualmente, após a conquista do título da terra em 1999 as comunidades quilombolas possuem eletricidade e água encanada, embora a estrada que liga as 12
comunidades à sede do município Rio de Contas e Mato Grosso e a outros distritos ainda seja “estrada de chão” e o calçamento para as comunidades ainda não tenha sido devidamente pavimentado Outra liderança entrevistada foi o Professor Carmo Joaquim da Silva. Atualmente é uma das principais lideranças do quilombo de Barra. Tem 68 anos, nasceu em 16 de julho de 1956. Segundo ele, sempre enfrentou dificuldades em suas iniciativas dentro do quilombo por defender e conquistar direitos para a comunidade. Alvo de ataques, perseguições políticas e sociais. Comecei como professor leigo na comunidade de Barra, ensinando um grupinho de alunos que eram separados uns dos outros, “questões políticas”, por isso não podiam estar juntos dos demais na escola pública. Então eu ensinava particular em uma casa e depois ensinei no MOBRAL. Nos anos 70 ensinava todos os idosos. Até meu próprio pai foi meu aluno e depois encerrou esse período e começou os professores formados (Carmo, depoimento oral concedido em 04 de outubro de 2023). Carmo relatou que tudo era improvisado e por consequência não era a mesma rotina da escola. Desta feita, cada estudante levava seu lanche. Os pais providenciaram a cartilha do ABC e o restante do material que era utilizado nas aulas. Apesar das adversidades, ele afirma que não deixou de ensinar, mesmo com as tensões e perseguições políticas da época. Após Carmo ter ido trabalhar na cidade de São Paulo ele retornou ao quilombo no final da década de 70 para continuar os estudos em Rio de Contas. Cursou magistério e técnico em contabilidade e voltou a lecionar na comunidade ficando por mais 06 anos em sala de aula. Nesse período, Carmo diz ter obtido bons resultados por conseguir estudar no colégio de Rio de Contas, no Centro Integrado Riocontense de Educação e Assistência CIRCEA, assim como também por ter enviado outros alunos do quilombo para estudarem lá. Foi neste período que ele começou a manter contato com o Padre Carlos, pároco da cidade de Rio de Contas e um bom articulador político. Em suas memórias, Carmo demonstrou os esforços que ele tinha que fazer para sair do quilombo e ir (muitas vezes a pé) estudar em Rio de Contas. Ele relembra que vivia dividido entre estudos e os trabalhos na roça. 13
Destacamos que foi nesse retorno ao Rio de Contas no final da década de 1970 e início da década de 1980 que Carmo começou a se mobilizar politicamente motivado pela construção da barragem e os efeitos dessa edificação para as comunidades. Em seus relatos, Carmo mencionou que no período da construção da barragem ele se afastou da sua função de professor para se dedicar às mobilizações e encontros políticos em prol da conquista do título das terras. Ele acompanhava os casos das famílias desabrigadas pela barragem. Nesse período essa liderança negra disse que foram tantos acontecimentos “que sua memória por vezes falha”, mas lembrou-se que ministrou um curso de formação, na década de 1990, chamado: “Programa de Educação Quilombola Venha Ler e Escrever” pelo Grupo de União e Consciência Negra da Bahia 8 . Sobre as manifestações culturais, Carmo narrou que participava de todos os festejos do quilombo. Ele informa que trabalhava as cantigas tradicionais da comunidade do samba do Mendengó, também chamado de samba Bendengó. O samba do Mendengó é um estilo de samba de roda dançado e tocado na comunidade de Barra. Com a célula rítmica do samba de roda, os brincantes formam uma roda ou ficam de frente uns para os outros e marcam o ritmo batendo na palma da mão do vizinho da direita e da esquerda ou em sua frente. Mendengó é o samba da resistência. Ele conta o dia a dia do povo do quilombo, suas vivências e a dos seus ancestrais. Segundo Bezinha, “não tem preço levar a frente o que os seus ancestrais deixaram”. Uma das letras aborda o manejo com a mandioca que por muito tempo foi um dos principais alimentos para a sobrevivência da comunidade. Não mexe com esse nego, que esse nego foi meu pai quem criou Ele veste camisa de meia Ceroula preta Chapéu de vapor Ê seu beju ta bom de virar, Ê seu beju ta bom de virar. (Samba do Beju cantado por Bezinha) Por sua vez, o conteúdo e a forma variam de acordo com cada região. Em Barra, a vida cotidiana (o modo de vida) é presente nas rodas de samba. Antigas 8 Grupo de União e Consciência Negra da Bahia, localizado em Salvador (Bahia) é uma Organização Não Governamental. 14
cantigas e contos se mesclam com acontecimentos cotidianos. Algumas canções tratam de assuntos locais, relatando fatos contemporâneos ou históricos segundo Graeff, (2015). Sobre os instrumentos que compõe o samba do Bendengó/Mendengó, o principal deles é a caixa feita da madeira do pau de óleo ou de casca de umburana, como nos explicou a professora Bezinha: “você tira a casca de umburama e põe para curtir, faz um quadrado, amarra com um cordão e passa cera, pega o coro de boi e põe por cima da caixa de madeira” . outros instrumentos que acompanham o samba do Mendegó (Ganzá, violão), mas a caixa é o que de mais original e específico do samba do Mendengó, além das palmas que seguram o ritmo e contagiam todos que estão dentro e fora da roda para que entrem no samba que é um dos aspectos mais preservados da cultura e da memória coletiva da comunidade. O samba do Mendengó está também ligado às celebrações das missas na igreja, principalmente no festejo do padroeiro da comunidade de Barra, São Sebastião, no mês de janeiro. Essas manifestações da tradição da cultura e da religiosidade do quilombo fazem parte direta ou indiretamente da formação do indivíduo que cresce e se desenvolve no quilombo de Barra através do seu modo de vida. Esses são os elementos que nos ajudaram a identificar como a identidade desses sujeitos é cotidianamente construída com o auxílio dessa memória coletiva e através da preservação da cultura da comunidade por meio da educação do grupo. Considerações finais A construção de concepções de mundo, consciência de si, de humanidade, de pertencimento a uma cultura, a uma etnia se processam por meio de experiências mediadas pelas condições histórico-sociais que, em nossa realidade, está saturada de contradições e mediações produzidas no interior de relações sociais diversas marcadas, sobretudo, pela exploração, pela dominação e opressão. O processo de reconhecimento do quilombo de Barra como território de identidade quilombola atravessou vários momentos. A memória/lembrança do Naufrágio do Navio Negreiro traz conexões importantes para a construção da história/memória desses descendentes como negros que não se submeteram à 15
escravidão e conseguiram, por meio da fuga, construir uma comunidade de pessoas livres do trabalho escravo. Outro fato de impacto na vida e na memória dos quilombolas foi a construção da barragem que foi tanto uma situação dramática para os que foram atingidos, mas que, contraditoriamente, foi o ponto de partida para o processo de reconhecimento estatal do quilombo remanescente que antes se identificava como comunidade de negros. Nesse sentido, a luta de lideranças, de educadores e de moradores da comunidade do quilombo de Barra demonstram o esforço por se ter garantido um direito. Uma condição de possibilidade de existência de sobrevivência material e espiritual/intelectual de uma comunidade. A memória, a cultura e a educação foram elementos importantes para a organização coletiva e a produção de subjetividades que potencializam a existência dos indivíduos e da coletividade negra em uma região na qual o conflito fundiário e os interesses dos capitalistas agrários, sejam no cultivo da terra ou na extração dos minerais, fomentaram o racismo e com ele a vergonha em assumir sua cor, sua cultura, suas experiências.Essa luta secular contra a opressão e a exploração e que, em meados do século XX, ganhou contornos organizativos e de valorização do ser negro e negra no Brasil fez emergir movimentos, organizações que impulsionaram a tomada de consciência e a aquisição de direitos ao povo trabalhador negro. O trabalho de educadores e líderes do quilombo de Barra como Bezinha e Carmo foi de fundamental importância pelo fato de contribuírem na conquista da titulação da terra, bem como pela afirmação do ser negro ou negra quilombola. O trabalho na escola, na organização da comunidade, o samba do Mendegó e toda a força das manifestações culturais populares são formas e conteúdos que fortalecem a luta dos oprimidos na construção, quiçá, da verdadeira emancipação das formas de exploração e opressão ainda presentes nas sociedades. Referências BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Ed. revista. São Paulo: Brasiliense, 2016. 16
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