V.22,
nº
49
-
2024
(setembro-dezembro)
ISSN:
1808-799
X
MEMÓRIA,
EDUCAÇÃO
E
LUTA
PELO
RECONHECIMENTO
DO
TERRITÓRIO
QUILOMBOLA
DE
BARRA
1
Géssica
Maria
Silva
São
José
2
Cláudio
Eduardo
Félix
3
Resumo
Este
artigo
aborda
aspectos
da
luta
pelo
reconhecimento
e
titularidade
estatal
do
território
quilombola
de
Barra,
localizado
no
Município
de
Rio
de
Contas,
Bahia.
O
objetivo
é
analisar
de
que
forma
o
trabalho
educativo
e
a
memória
coletiva
contribuíram
no
processo
de
reconhecimento
oficial
do
território
e
da
construção
da
identidade
negra-quilombola
entre
os
moradores
do
quilombo
de
Barra.
Nesse
sentido,
analisamos,
a
partir
de
fontes
orais
e
escritas,
aspectos
da
trajetória
desse
processo
histórico
de
legalização
do
território
e
da
construção
do
ser
quilombola.
Palavras-Chave:
Memória,
educação,
quilombo.
MEMORIA,
EDUCACIÓN
Y
LUCHA
POR
EL
RECONOCIMIENTO
DEL
TERRITORIO
QUILOMBOLA
DE
BARRA
Resumen
Este
artículo
aborda
aspectos
de
la
lucha
por
el
reconocimiento
y
la
propiedad
estatal
del
territorio
quilombola
de
Barra,
ubicado
en
el
municipio
de
Rio
de
Contas,
Bahía.
El
objetivo
es
analizar
cómo
el
trabajo
educativo
y
la
memoria
colectiva
contribuyeron
al
proceso
de
reconocimiento
oficial
del
territorio
y
a
la
construcción
de
la
identidad
negro-quilombola
entre
los
habitantes
del
quilombo
de
Barra.
En
este
sentido,
analizamos,
a
partir
de
fuentes
orales
y
escritas,
aspectos
de
la
trayectoria
de
este
proceso
histórico
de
legalización
del
territorio
y
de
construcción
del
ser
quilombola.
Palabras
clave:
memoria,
educación,
quilombo.
MEMORY,
EDUCATION
AND
FIGHT
FOR
RECOGNITION
OF
THE
QUILOMBOLA
TERRITORY
OF
BARRA
Abstract
This
article
addresses
aspects
of
the
struggle
for
recognition
and
state
ownership
of
the
quilombola
territory
of
Barra,
located
in
the
Municipality
of
Rio
de
Contas,
Bahia.
The
objective
is
to
analyze
how
educational
work
and
collective
memory
contributed
to
the
process
of
official
recognition
of
the
territory
and
the
construction
of
black-quilombola
identity
among
the
residents
of
the
Barra
quilombo.
In
this
sense,
we
analyzed,
based
on
oral
and
written
sources,
aspects
of
the
trajectory
of
this
historical
process
of
legalization
of
the
territory
and
the
construction
of
the
quilombola
being.
Keywords:
Memory,
education,
quilombo.
3
Doutor
em
Educação
pela
Universidade
Federal
da
Bahia
(UFBA)
-
Brasil.
Professor
da
Universidade
Estadual
do
Sudoeste
da
Bahia
(UESB),
Bahia
-
Brasil
Email:
cefsantos8@gmail.com
.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7594684135461900
.
ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-0545-1102
.
2
Mestra
em
memória
junto
ao
Programa
de
pós-graduação
em
Memória:
Linguagem
e
Sociedade
(UESB).
Licenciada
em
História
(UESB).
Email:
gessicamaria012@gmail.com
.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7691928478929362
.
ORCID:
https://orcid.org/0009-0007-1189-650X
.
1
Artigo
recebido
em
10/04/2024.
Primeira
Avaliação
em
28/08/2024.
Segunda
Avaliação
em
03/10/2024.
Aprovado
em
24/11/2024.
Publicado
em
05/12/2024.
DOI
:
https://doi.org/10.22409/tn.v22i4
9.62532
.
1
Introdução
O
movimento
pelo
reconhecimento
de
territórios
quilombolas
no
Brasil
é
marcado
por
uma
série
de
desafios
no
plano
burocrático
e
das
lutas
sociais.
O
esforço
coletivo
pela
titulação
da
terra
aos
quilombolas
é
mediado
por
um
conjunto
de
articulações
e
processos
políticos
que
têm
na
história
e
na
memória
uma
importância
fundamental
para
o
seu
sucesso.
Nesse
texto
apresentamos
resultados
de
pesquisa
de
dissertação
de
mestrado
que
teve
por
objetivo
analisar
de
que
forma
o
trabalho
educativo
e
o
trabalho
da
memória
coletiva
contribuíram
no
processo
de
reconhecimento
oficial
do
território
e
da
construção
da
identidade
negra-quilombola
entre
os
moradores
do
Quilombo
de
Barra
4
O
Quilombo
da
Barra
está
localizado
no
município
de
Rio
de
Contas,
na
Chapada
Diamantina,
interior
do
estado
da
Bahia.
A
comunidade
foi
certificada
como
remanescente
de
quilombo
pela
Fundação
Cultural
Palmares
(FCP)
em
12
de
setembro
de
2005
sob
o
processo
de
nº
01420.000054/1998-92.
A
agricultura
é
o
pilar
da
ocupação
da
maioria
dos
moradores
da
localidade,
seja
na
prática
de
subsistência
ou
no
comércio
em
Rio
de
Contas,
distritos
e
cidades
vizinhas.
A
forte
ligação
com
a
terra
através
do
plantio
da
lavoura
lhes
dá
condições
de
se
manterem
através
da
agricultura
familiar.
Cultivam
principalmente
milho,
feijão,
abacaxi,
mandioca
e
banana.
Para
a
realização
das
pesquisas
buscamos
aporte
em
fontes
históricas
documentais
disponíveis
no
Arquivo
Público
Municipal
de
Rio
de
Contas.
Como
forma
de
apreender
aspectos
da
memória
coletiva
da
comunidade
acerca
do
próprio
quilombo
e
da
luta
pela
titulação
da
terra
foram
realizadas
entrevistas
e
visitas
em
lócus,
onde
conversamos
com
educadoras,
educadores
e
lideranças
da
comunidade.
A
partir
da
análise
da
trajetória
das
educadoras
(es)
do
quilombo
de
Barra
buscamos
identificar
a
contribuição
das
práticas
pedagógicas
desses
professores
na
preservação
dos
aspectos
ancestrais
e
culturais
da
memória
coletiva
da
sua
4
O
conteúdo
aqui
apresentado
é
fruto
da
dissertação
de
Mestrado
intitulada
“O
trabalho
da
memória
e
da
educação
na
luta
pelo
reconhecimento
do
quilombo
de
Barra
em
Rio
de
Contas,
Bahia.,
defendida
no
Programa
de
Memória:
Linguagem
e
Sociedade,
da
Universidade
Estadual
do
Sudoeste
da
Bahia
(UESB).
2
comunidade.
Nesse
artigo
destacamos
os
depoimentos
do
professor
Carmo
Joaquim
(atual
líder
e
presidente
da
Associação
dos
Moradores
dos
Quilombos
de
Rio
de
Contas-BA)
e
da
Professora
Bezinha
(liderança
quilombola
e
animadora
do
Samba
do
Mendengó/Bendengó,
artesã,
e
ex-professora
do
quilombo).
Quilombo
é
aqui
entendido
como
espaço
e
tempos
de
resistência;
de
luta
pela
terra
para
produção
da
existência
material
e
não-material
de
quem
nele
habita
e
se
organiza.
De
acordo
com
Beatriz
Nascimento
(2021)
o
quilombo
configura-se,
também,
como
um
território
corporal
mediador
ou
interlocutor
de
linguagens.
Um
decodificador
dos
debates
sobre
o
pensamento
“afro
diaspórico”
5
repleto
de
signos
e
símbolos.
Corpo
que
se
constituiu
(e
se
constitui)
no
processo
dinâmico
e
contraditório
de
rupturas,
continuidades,
adaptações,
fluxos
e
refluxos
no
espaço
do
Atlântico
Negro
após
a
conquista
das
Américas.
Esses
processos
históricos
contínuos
constroem
memórias
que
são
fundamentais,
sobretudo
em
comunidades
tradicionais,
para
a
transmissão
dos
saberes,
das
experiências
e
das
lutas.
Em
relação
à
memória,
buscamos
aporte
no
conceito
de
Memória
Coletiva
elaborado
por
Maurice
Halbwachs,
sociólogo
pioneiro
em
abordar
a
análise
do
fenômeno
da
memória
a
partir
da
sociedade
e
não
do
indivíduo
em
si.
Segundo
esse
sociólogo,
toda
recordação
e
reconstrução
do
passado
é
mediada
pelo
coletivo
pois,
[...]
nossas
lembranças
permanecem
coletivas,
e
elas
nos
são
lembradas
pelos
outros,
mesmo
que
se
trate
de
acontecimentos
nos
quais
só
nós
estivemos
envolvidos,
e
com
objetos
que
só
nós
vimos.
E
porque,
na
realidade,
nunca
estamos
sós
(Halbwachs,
1990,
p.16).
O
lembrar,
portanto,
é
um
ato
dinâmico
entre
o
indivíduo
e
o
coletivo,
cuja
primazia,
segundo
Halbwachs,
é
a
coletividade.
Nesse
sentido,
ao
investigarmos
o
processo
de
conquista
da
titulação
do
Quilombo
da
Barra
focando
na
relação
entre
memória
coletiva
e
educação,
os
estudos
de
Halbwachs
foram
importantes
suportes
no
percurso
investigativo,
sobretudo
pela
força
que
algumas
narrativas
exercem
na
memória
coletiva
dos
quilombos
na
região
da
Barra.
Uma
dessas,
e
que
exploraremos
com
mais
detalhes
a
seguir,
corresponde
a
existência
do
naufrágio
de
um
navio
negreiro
que
permitiu
a
fuga
e
o
estabelecimento
dos
sobreviventes
na
região
onde
hoje
se
situam
os
vários
quilombos
no
município
de
Rio
de
Contas.
5
Código
e
símbolo
cultural
que
se
expandiu
no
mundo
por
meio
da
diáspora,
ou
seja,
através
da
migração
forçada
dos
povos
africanos
.
3
Partindo
desse
pressuposto
analisamos
a
trajetória
dos
educadores
do
quilombo
de
Barra
e
buscamos
identificar
a
contribuição
do
trabalho
educativo
escolar
e
não
escolar
na
preservação
dos
aspectos
ancestrais
e
culturais
da
memória
coletiva
da
sua
comunidade
no
processo
de
luta
pela
titulação
estatal
do
território
Quilombola
de
Barra.
Memória
coletiva:
do
naufrágio
do
navio
negreiro
à
organização
da
Associação
dos
Moradores
do
Quilombo
de
Barra
Na
região
onde
está
o
Quilombo
de
Barra
um
suposto
acontecimento
compõe
os
quadros
da
memória
há
várias
gerações,
qual
seja:
a
narrativa
do
Naufrágio
do
Navio
Negreiro
ocorrido
num
passado
longínquo.
Nosso
entrevistado,
Carmo
Joaquim,
relata
o
fato
da
seguinte
forma:
Os
negros
que
fundaram
esta
comunidade
chegaram
aqui
antes
dos
bandeirantes
e
dos
garimpeiros.
Havia
um
navio
trazendo
escravos
da
África,
que
encalhou
no
sul
da
Bahia,
perto
de
onde
hoje
existe
a
cidade
de
Itacaré.
Neste
lugar,
se
desemboca
o
Rio
das
Contas.
O
pessoal
aproveitou
do
encalhe
e
fugiu
do
navio
em
busca
da
liberdade.
Isto
aconteceu
no
século
XVI
ou
XVII.
O
pessoal
seguiu
o
trajeto
do
Rio
das
Contas
até
chegar
nesta
região.
Então,
os
escravos
fugidos
formaram
estas
comunidades,
escondidos
nas
montanhas
da
chapada,
(Carmo
Joaquim
da
Silva,
depoimento
oral
concedido
em
5
de
abril,
2023).
Essa
é
a
principal
memória
coletiva
do
quilombo
em
relação
ao
seu
surgimento
e
ao
surgimento
dos
outros
dois
quilombos
vizinhos,
Bananal
e
Riacho
das
Pedras.
Apesar
das
pesquisas
acadêmicas
ainda
não
comprovarem
essa
narrativa
da
memória,
no
Arquivo
Municipal
de
Rio
de
Contas
encontramos
documentos
que
comprovam
a
existência
de
“negros
crioulos”
desde
o
ano
de
1681,
tendo
como
fundador
do
quilombo
seu
Isidro
Joaquim.
O
que
nos
interessa
fundamentalmente
nessa
referência
dos
moradores
e
seus
antepassados
é
como
ela
contribui
para
o
desenvolvimento
da
construção
de
concepções
de
mundo
e
de
organização
das
lutas
dessas
pessoas.
Entendemos
que
essa
evocação
da
memória
é
uma
fonte
motivadora
de
luta
pelo
território,
pela
liberdade
e
dignidade
das
comunidades
quilombolas
da
região.
Trata-se
de
um
marco
sócio-histórico
da
tradição
da
comunidade
que
remete
a
ideia
de
ancestrais
e
4
antepassados
negros
e
negras
fugidos
de
um
Navio
Negreiro
há
séculos
e
que
não
sofreram
a
experiência
do
cativeiro
do
trabalho
escravizado.
Portanto,
os
quilombolas
da
região
de
Rio
de
Contas
são
herdeiros
dos
que
legaram
uma
experiência
de
liberdade
interrompida
pela
captura
em
África,
mas
que
não
tiveram
a
experiência
do
trabalho
escravo,
do
açoite,
da
senzala,
do
pelourinho.
Assim,
a
memória
coletiva
do
Quilombo
da
Barra
tem
nessa
narração
fundadora
(o
naufrágio
do
Navio
Negreiro)
um
elo
de
articulação
de
uma
comunidade
que,
independentemente
da
confirmação
do
fato
da
existência
do
naufrágio,
adquiriu
uma
força
e
uma
referência
que
tem
impulsionado
a
construção
da
especificidade,
da
identidade
das
várias
gerações
naquela
região,
bem
como
do
desafio
da
constatação
ou
não
da
veracidade
histórica
da
narrativa.
Considerar
essa
narrativa
heroica
e
de
resistência
da
memória
coletiva
transmitida
há
várias
gerações
é
da
maior
importância
para
compreender
como
uma
comunidade
vai
se
construindo,
se
fortalecendo,
criando
suas
referências.
Portanto,
é
necessário
atentar
às
sutilezas
combatentes
dessas
manifestações
quando
tratamos
da
memória,
especialmente
dos
seus
significados,
sentidos
e
importância
para
os
oprimidos
seguirem
em
frente
em
suas
lutas.
De
acordo
com
Benjamin:
[...]
a
luta
de
classes,
que
um
historiador
educado
por
Marx
jamais
perde
de
vista,
é
uma
luta
pelas
coisas
brutas
e
materiais,
sem
as
quais
não
existem
as
refinadas
e
espirituais.
Apesar
disso,
essas
últimas
não
podem
ser
representadas
na
luta
de
classes
como
despojos
atribuídos
ao
vencedor.
Elas
vivem
nessa
luta
sob
a
forma
da
confiança,
da
coragem,
do
humor,
da
astúcia,
da
firmeza
e
atuam
retroativamente
até
os
tempos
mais
remotos.
Elas
questionarão
sempre
cada
vitória
dos
dominadores
(Benjamim,
2016,
p.
243).
Portanto,
a
memória
do
Naufrágio
do
Navio
Negreiro
não
se
configura
como
mera
narrativa
ou
invenção.
Trata-se
de
um
relato
de
memória
de
várias
gerações
que
sustenta
formas
legítimas
de
construção
do
passado,
de
identidade,
de
resistência
ao
racismo
e
de
pertencimento
dessas
pessoas
a
essa
comunidade.
A
memória
do
naufrágio
estabelece
uma
ligação
direta
com
África
e
posteriormente
com
a
resistência
à
escravidão.
Ela
está
fundada
no
fato
de
os
negros
africanos
que
vieram
para
Rio
de
Contas
como
homens
e
mulheres
escravizados
se
tornaram
livres,
não
entregaram
seu
corpo
à
tortura
das
formas
de
exploração
do
trabalho
escravo,
pois
não
só
sobreviveram
ao
naufrágio,
como
igualmente
desbravaram
as
matas
e
os
sertões
baianos,
enfrentando
dificuldades
de
5
uma
terra
desconhecida
e
dialogando
com
os
habitantes
que
aqui
já
existiam,
os
indígenas.
Concordamos
com
Capinan
(2009),
quando
afirma:
“os
seus
antepassados
não
teriam
sido
subjugados
à
vala
comum
e
impessoal
de
uma
senzala”,
(p.
46).
Interessante
que
da
narrativa
heroica
da
fuga
do
navio
que
navegava
com
escravos
nas
águas
do
Atlântico,
outro
fato
marcante
na
história
recente
da
região
dos
quilombos
em
Rio
de
Contas
também
tem
relação
com
as
águas,
mas
agora
como
expressão
da
destruição.
Trata-se
da
construção
da
Barragem
Luiz
Vieira
que
produziu
experiências
de
perdas
materiais
para
os
quilombolas
atingidos
e
memórias
traumáticas
para
os
mesmos.
A
construção
da
barragem
Luiz
Vieira
e
seus
desdobramentos
na
produção
da
vida
e
da
memória
dos
quilombolas
Em
meados
da
década
de
1950,
o
DNOCS
(Departamento
de
Obras
contra
a
Seca)
deu
início
ao
projeto
de
construção
da
barragem
Luiz
Vieira
que
foi
efetivamente
construída
entre
os
anos
1977
a
1987,
em
pleno
regime
de
ditadura
militar
no
Brasil.
A
construção,
a
inundação
das
terras
e
a
expulsão
das
famílias
desses
territórios
sem
a
devida
indenização
e
preparação
para
a
reconstrução
de
suas
vidas
é
bem
revelador
do
projeto
de
inovação
e
desenvolvimento
capitalista
no
Brasil
à
época.
No
modo
de
vida
das
comunidades
tradicionais
a
terra
é
tanto
o
espaço
para
o
desenvolvimento
da
agricultura
e
da
pecuária
e
também
território
onde
o
sagrado
está
presente,
as
memórias
e
relações
afetivas
se
imbricam.
Desta
feita,
pensar
sobre
o
conceito
de
modo
de
vida
é
fundamental
para
entender
como
a
construção
da
barragem
afetou
a
existência
das
pessoas
atingidas
por
essa
edificação.
A
categoria
Modo
de
Vida
está
articulada
à
categoria
modo
de
produção
e
tem
relação
com
os
modos
singulares,
específicos
de
fazer,
sentir
e
estar
no
mundo
e
reproduzir-se
socialmente.
O
conceito
de
modo
de
vida
aparece
diretamente
relacionado
aos
modos
de
produção
da
existência
humana,
“os
quais
pressupõem
formações
sociais
com
regimes
de
propriedade
dos
meios
de
produção
que
modificam
as
relações
sociais”
,
(Tiriba,
2021,
p.412).
6
O
modo
de
vida
desenvolvido
no
quilombo
de
Barra
-
e
nos
demais
quilombos
da
região
-
tem
uma
relação
íntima
e
intrínseca
com
a
terra.
Essa
simbiose
revela
as
maneiras
de
atuar
e
estar
no
mundo
daquela
comunidade,
de
pensar
e
sentir
as
relações
entre
seres
humanos
e
natureza.
Por
esse
motivo,
a
forte
conexão
entre
a
terra,
a
cultura,
a
história
e
a
memória
devem
ser
consideradas
ao
analisar
a
realidade
das
formas
de
reprodução
da
vida,
em
especial
em
territórios
rurais.
Ao
falarmos
do
direito
à
terra,
destacamos
tanto
na
questão
da
sobrevivência
material
das
pessoas
como
da
preservação
da
memória,
cultura
e
tradições
(Santos,
2005).
As
tradições
e
formas
de
organização
das
pessoas
do
Quilombo
da
Barra
são
geralmente
baseadas
na
proximidade
das
casas,
na
união
da
comunidade
e
nos
recursos
que
vêm
daquele
local.
A
terra
é
o
que
propicia
condições
de
permanência,
de
trabalho,
continuidade
das
referências
simbólicas
importantes
e
produção
da
memória
coletiva,
a
qual
é
fundamental
para
a
manutenção
das
tradições
consolidadas
e
da
criação
de
novas.
Nas
comunidades
tradicionais,
a
organização
social
da
comunidade
é
engendrada
e
pautada
por
algumas
características:
I.
parentesco
e
herança
II.
terra
e
territorialidade.
É
a
terra
que
permite
a
existência
física
da
comunidade,
como
sinônimo
de
localidade,
ao
passo
que
a
comunidade
engendra
as
territorialidades
(atribuição
de
sentido
da
terra).
Nesse
sentido,
a
construção
da
barragem
Luiz
Vieira
alterou,
como
não
poderia
deixar
de
ser,
o
modo
de
vida
dessas
populações.
A
forma
de
desapropriação
e
a
falta
de
assistência
aos
atingidos
diretamente
pela
inundação
da
área
deixou
marcas
profundas
sentidas
ainda
hoje
pelos
que
viveram
aquela
situação
e
seus
descendentes.
Ao
estudar
a
construção
e
o
impacto
da
construção
dessa
barragem,
Valdir
Silva
chamou
a
atenção
de
alguns
fatos.
No
início
da
década
de
80,
no
Sopé
da
Serra
das
Almas
e
sob
frondosa
mangueira
uma
família
de
negros
sem-rumo
descansava.
Durante
alguns
dias
moraram
ali.
Do
rio
que
passava
em
frente
vinha
à
água
necessária
para
a
sobrevivência,
mesma
água
que
dias
atrás
lhes
inundara
a
casa
em
que
haviam
vivido
longos
anos.
No
entanto,
a
corrente
d’água
outrora
tão
solidária
com
lavouras
não
se
transformou
em
vilãs
por
dinâmica
própria.
A
cheia
que
encobriu
a
propriedade
daqueles
agricultores
recém
desalojados
foi
produzida
pelo
Departamento
Nacional
de
Obras
Contra
Secas
(DNOCS)
no
processo
de
implantação
da
Barragem
Luiz
Vieira,
cuja
construção
ocorreu
no
município
baiano
de
Rio
de
Contas
[...];
(Silva,
2009,
p.1).
7
Podemos
nos
aproximar
da
dor
dessas
pessoas,
em
especial
dos
quilombolas
de
Riacho
das
Pedras
que
foram
diretamente
atingidas
pela
construção
da
barragem,
a
partir
do
depoimento
do
Professor
Carmo,
ao
afirmar
que
com
a
inundação
das
terras
dos
parentes
quilombolas,
“
você
perde
o
seu
local
de
origem,
você
perde
o
povo,
sua
tradição
muda”
.
6
.
Santos
(2011)
destaca
que
as
águas
brasileiras,
por
sua
abundância
e
pelas
múltiplas
possibilidades
de
uso
e
compartilhamento,
foram
objeto
dos
interesses
de
cadeias
de
empresas
nacionais
e
transnacionais
principalmente
neste
período
das
políticas
chamadas
de
nacional-desenvolvimentistas
nos
anos
de
1950
a
1980.
Em
nome
da
aceleração
do
desenvolvimento
aprofundaram-se
a
concentração
de
renda
e
degradação
do
ambiente
e
do
homem:
trabalhadores
do
campo,
indígenas,
ribeirinhos,
quilombolas.
Considerando
assim
os
quilombos
afetados
pela
construção
da
barragem,
um
corpo
usurpado,
expropriado
de
seu
território
tal
como
foram
e
são
os
corpos
negros
em
diferentes
processos
que
vão
desde
a
escravização
no
século
XVI
às
formas
de
racismo
na
atualidade,
faz
sentido
pensar
a
produção
da
memória
coletiva
do
quilombo
de
Barra
ancorada
no
próprio
corpo
negro,
sendo
o
próprio
quilombo
um
lugar
de
memória.
O
território
que
foi
engolido
pela
água
também
o
é,
pois
se
trata
de
um
quilombo
(Riacho
das
Pedras
e
parte
de
Barra
e
Bananal)
que
já
não
existe,
restando
apenas
o
corpo
que
é
território.
Nesse
sentido
reafirmamos:
o
corpo
é
quilombo,
que
também
é
a
própria
memória.
(Nascimento,
2021).
A
partir
desses
acontecimentos,
os
moradores
e
moradoras
dos
quilombos
passaram
a
se
mobilizar
para
lutarem
pelo
registro
de
suas
terras
e
garantirem
seus
direitos
acompanhando
as
lutas
dos
Movimentos
Negros
do
Brasil
na
Constituinte
de
1987.
Nesse
mesmo
ano
foi
criada
a
Associação
dos
Moradores
do
Quilombo
da
Barra
paripassu
à
articulação
política
de
lideranças
e
comunidades
quilombolas
fazerem
avançar
o
projeto
de
titulação,
emitido
em
dezembro
de
1999.
Portanto,
uma
batalha
de
mais
de
10
anos
de
organização.
6
Entrevista
concedida
em
julho
de
2023.
8
Organização
comunitária
e
trabalho
educativo
na
luta
pelo
reconhecimento
do
território
Foi
no
contexto
dos
anos
1980,
período
de
crise
e
fim
da
ditadura
militar,
que
tomou
corpo
e
ganhou
robustez
o
combate
mais
organizado
e
articulado
por
demandas
específicas
da
classe
trabalhadora
no
Brasil
após
mais
de
20
anos
de
um
regime
político
autoritário
e
violento
contra
os
seus
opositores.
Nessa
década
de
1980
destacamos
o
avanço
e
reestruturação
sindical,
popular
e
político
partidário
por
meio
de
organizações
que
impulsionavam
e
eram
impulsionadas
por
um
amplo
movimento
de
massas
exigindo
direitos
e
melhores
condições
de
vida.
O
surgimento
da
Central
Única
dos
Trabalhadores
(CUT),
os
vários
movimentos
de
luta
pela
terra,
movimentos
feministas,
indígena,
negro,
movimentos
de
bairros,
fundação
de
Partidos
Políticos
de
esquerda
como
o
Partido
dos
Trabalhadores
são
algumas
dessas
organizações
que
pautaram
novos
temas
da
vida
concreta
do
povo,
inclusive
nos
marcos
da
Assembleia
Constituinte
de
1987.
Após
muito
esforço
coletivo,
a
Constituição
Federal
de
1988
reconheceu
os
direitos
dos
quilombolas
e
possibilitou
a
regularização
das
suas
terras.
O
artigo
68
do
Ato
das
Disposições
Constitucionais
Transitórias
(ADCT)
reconhece
a
propriedade
definitiva
das
terras
ocupadas
pelos
remanescentes
das
comunidades
quilombolas
cabendo
ao
Estado
emitir
os
títulos
respectivos.
Essa
conquista,
fruto
de
um
longo
trabalho
de
organização
e
reivindicação
do
Movimento
Negro,
se
expressou
nas
singularidades
dos
quilombos
em
Rio
de
Contas.
Professora
Bezinha
e
Professor
Carmo,
sujeitos
de
nossa
pesquisa,
ajudam
a
contar
a
especificidade
da
experiência
de
luta
pela
titulação
da
terra
Quilombola.
Isabel
Prizilina
Pina
(Bezinha)
tem
66
anos,
nasceu
no
dia
01
de
julho
de
1957.
Filha
de
uma
das
matriarcas
do
quilombo,
a
Dona
Amancia
Martinhia
Silva,
começou
seu
trabalho
docente
ainda
muito
jovem.
No
ano
de
1977
Bezinha
ingressou
no
curso
de
Habilitação
de
Professores
Leigos
–
HAPROL,
um
programa
do
Governo
do
Estado
da
Bahia
cujo
objetivo
era
a
formação
de
professoras
e
professores
que
trabalhavam
nas
escolas
baianas,
mas
não
tinham
formação
específica.
Eram
os
chamados
professores
leigos.
(Viana;
Santos,
2018).
9
Sobre
as
dificuldades
que
enfrentava
para
lecionar,
a
professora
Bezinha
relatou
que
todos
da
comunidade
viviam
uma
vida
de
muita
penúria
e
por
vezes
essas
carências
afetavam
a
segurança
alimentar
dos
moradores
do
quilombo.
A
escola
constituía-se,
também,
como
espaço
público
da
organização
coletiva
por
meio
da
Associação
dos
Moradores
do
Quilombo
que
ali
se
reunia
com
frequência
entre
os
anos
1980
e
1990.
Neste
período
o
quilombo
recebeu
apoio
de
várias
entidades
e
lideranças
negras
como
uma
das
principais
lideranças
do
Movimento
Negro
Unificado,
o
líder
sindical
e
Deputado
Estadual,
Luiz
Alberto
7
.
Ele
teve
um
importante
papel
no
reconhecimento
de
vários
territórios
quilombolas
na
Bahia,
inclusive
o
da
Barra.
Esse
despertar
de
Bezinha
para
a
luta
com
seus
irmãos
veio
da
necessidade
de
lutar
e
se
organizar
quando
da
construção
da
Barragem
na
década
de
1970.
Segundo
ela,
era
preciso
lutar
pela
“segurança
das
nossas
terras,
nossos
direitos
[...].
Se
a
gente
for
olhar
a
educação
também
estava
ameaçada,
porque
a
água
ia
acabar
com
tudo,
e
nós
íamos
perder
nossas
terras”.
Apesar
dessa
preocupação
da
professora
Bezinha
e
sua
tomada
de
consciência,
o
processo
do
reconhecer-se
negro-quilombola
na
comunidade
da
Barra
não
era
simples.
Nesse
sentido,
um
fato
importante
para
destacarmos
é
a
influência
do
cristianismo
católico
entre
as
pessoas
quilombolas.
Era
recorrente
nos
depoimentos
a
lembrança
das
rezas,
ladainhas,
e
da
catequese
que,
a
qual
era
de
responsabilidade
dos
professores
e
professoras
da
escola
no
Quilombo.
Na
pesquisa
de
campo
observamos
que
quase
todas
as
casas
possuem
um
pequeno
painel
de
gravuras
de
santos
afixados
na
parede
que
dá
acesso
à
sala
de
estar.
Encontramos
a
presença
de
imagens
de
São
Sebastião,
Nossa
Senhora
Aparecida
e
São
Bernardo
sendo
estes,
segundo
os
entrevistados,
os
principais
santos
de
devoção
das
pessoas
no
quilombo.
7
Natural
do
quilombo
Baixa
do
Guaí,
no
Recôncavo
Baiano,
Luiz
Alberto
dedicou
sua
carreira
a
lutar
pelos
direitos
da
população
negra.
Antes
de
ingressar
na
política
formal,
trabalhou
como
vigilante
e
técnico
químico
na
Petrobras.
Como
sindicalista,
atuou
como
Secretário-Geral
do
Sindicato
dos
Petroleiros
(BA),
de
1990-1991,
e
Diretor
do
Sindicato
Único
dos
Químicos
e
Petroleiros
(2000-2003).
Foi
um
dos
fundadores
do
Movimento
Negro
Unificado
(MNU),
em
1978,
e
uma
das
maiores
lideranças
do
coletivo.
Defendeu
a
igualdade
racial
durante
sua
atuação
na
Câmara
dos
Deputados
e
integrou
a
Secretaria
de
Justiça
e
Direitos
Humanos
da
Bahia
(SJDH).
Participou
também
da
fundação
do
PT
na
Bahia
e
da
Central
Única
dos
Trabalhadores
(CUT)
nos
anos
1980,
SITE
àwúre,
consultado
em
05
de
março
de
2024.
10
Esse
é
um
fenômeno
interessante
que
revela
a
dificuldade
da
afirmação
de
uma
identidade
quilombola
com
base
na
tradição
cultural
e
religiosa
afro-brasileira.
Não
se
trata
de
um
problema
isolado
do
quilombo
da
Barra,
mas
de
várias
comunidades
e
organizações
negras
que
lutam
pela
titulação
das
terras
quilombolas.
Camila
Pereira
e
Alexandra
Oliveira
(2019),
ao
analisarem
os
processos
de
titulação
de
terras
Quilombolas
no
Rio
Grande
do
Norte
afirmam
o
quão
difícil
é
o
auto
reconhecimento
das
negras
e
negros
acerca
de
sua
identidade.
O
fortalecimento
das
identidades
e
da
luta
coletiva
é
um
trabalho
contínuo
e
desafiador,
pois
as
dificuldades
de
declarar-se
negro
e
quilombola
no
Brasil
torna
o
processo
complicado,
mesmo
que
os
moradores
conheçam
os
direitos
que
lhes
são
garantidos
por
lei.
[...]
A
fragilidade
no
conhecimento
e
a
negação
dessa
identidade
são
frutos
da
herança
histórica
de
segregação
social
e
racial
em
virtude
do
estigma
do
passado
de
escravidão.
(Pereira
&
Oliveira,
2019,
p.
13-14).
A
análise
de
Pereira
&
Oliveira
(2019)
evidencia
uma
dificuldade
comum
no
processo
de
organização
de
algumas
comunidades
quilombolas.
A
dificuldade
do
reconhecer-se
negro/negra
e
quilombola
está
relacionado
ao
racismo
e
segregação
histórica
que
se
manifestam
de
várias
formas.
Martins
e
Messeder
(1991),
ao
estudarem
os
quilombos
na
região
de
Rio
de
Contas,registraram
várias
atitudes
racistas
das
pessoas
brancas
que
vivem
no
povoado
de
Mato
Grosso,
vizinho
ao
quilombo
de
Barra.
Eles
registraram
falas
de
moradores
do
referido
povoado
acusando
as
pessoas
negras
de
preguiçosas
e
ociosas,
acomodadas
ao
ganho
suficiente
para
sobreviver.
Nesse
sentido,
avalia
os
autores:
As
relações
sociais
em
Rio
de
Contas
configuram
um
quadro
que
atualiza
a
temática
do
racismo,
um
racismo
histórico,
fundado
sob
a
égide
de
uma
estratificação
impermeável
e
de
estereótipos
culturais,
cuja
significação
remonta
a
supostas
diferenças
biológicas,
definindo
atributos
e
circunscrevendo
unidades
sociais
particulares.
O
historiador
Fernand
Braudel,
ao
comentar
o
livro
de
Harris,
surpreende-se
com
a
"anormalidade"
da
questão
racial
em
Rio
de
Contas.
Não
poderia
ser
de
outro
modo,
na
medida
em
que
Braudel
tem
como
base
as
considerações
de
Freyre,
o
que
o
leva
a
concluir
que
"seguramente
esse
racismo,
bastante
benigno,
de
pequena
cidade,
se
existe,
não
parece
entrar
na
linha
histórica
do
passado
brasileiro
[...]"
(Braudel,
1969:230),
(Martins
&
Messeder,
1991,
p.12).
11
Essas
análises
encontram
eco
em
falas
de
Bezinha,
seja
ao
falar
do
racismo
que
a
população
sofria/sofre
por
parte
de
pessoas
do
distrito
de
Mato
Grosso;
seja
quando
afirmam
que
as
pessoas
do
quilombo
de
Barra
se
reconheciam
como
“a
comunidade
de
negros”
em
tempos
passados.
Bezinha
narra
que
sempre
passou
para
seus
alunos
a
experiência
e
ideia
de
ser
quilombola
com
orgulho,
uma
forma
de
resistência
a
essa
e
a
todas
as
outras
manifestações
racistas.
Em
nossa
pesquisa
de
campo
no
arquivo
público
de
Rio
de
Contas-BA
encontramos
alguns
jornais
que
nos
serviram
de
fonte
para
nossas
análises,
como
exemplo
o
jornal
Soweto
à
Brasileira
em
que
Serpa
(1995)
retratou
os
antagonismos
entre
o
povoado
de
Mato
Grosso
e
as
comunidades
quilombolas
de
Rio
de
Contas,
afirmando
que
no
país
da
“democracia
racial”,
“três
vilarejos
criam
seu
próprio
apartheid;
lá
brancos
e
negros
não
se
misturam,
mal
se
toleram
e
apresentam
diferenças
gritantes
de
padrão
de
vida”
,
(p.80):
Figura
1
-
Jornal
Soweto
à
Brasileira
(1995)
Serpa
(1995)
foi
responsável
por
evidenciar
que
o
distrito
de
Mato
Grosso,
nos
anos
1990,
possuía
calçamento,
água
encanada,
eletricidade
e
posto
telefônico,
enquanto
os
quilombos
remanescentes
não
contavam
com
nenhuma
infraestrutura.
As
pessoas
não
tinham
acesso
a
energia
elétrica
e
utilizavam
a
luz
de
lampiões,
buscavam
águas
em
bicas
comunitárias,
não
tinham
telefone
público.
Atualmente,
após
a
conquista
do
título
da
terra
em
1999
as
comunidades
quilombolas
já
possuem
eletricidade
e
água
encanada,
embora
a
estrada
que
liga
as
12
comunidades
à
sede
do
município
Rio
de
Contas
e
Mato
Grosso
e
a
outros
distritos
ainda
seja
“estrada
de
chão”
e
o
calçamento
para
as
comunidades
ainda
não
tenha
sido
devidamente
pavimentado
Outra
liderança
entrevistada
foi
o
Professor
Carmo
Joaquim
da
Silva.
Atualmente
é
uma
das
principais
lideranças
do
quilombo
de
Barra.
Tem
68
anos,
nasceu
em
16
de
julho
de
1956.
Segundo
ele,
sempre
enfrentou
dificuldades
em
suas
iniciativas
dentro
do
quilombo
por
defender
e
conquistar
direitos
para
a
comunidade.
Alvo
de
ataques,
perseguições
políticas
e
sociais.
Comecei
como
professor
leigo
na
comunidade
de
Barra,
ensinando
um
grupinho
de
alunos
que
eram
separados
uns
dos
outros,
“questões
políticas”,
por
isso
não
podiam
estar
juntos
dos
demais
na
escola
pública.
Então
eu
ensinava
particular
em
uma
casa
e
depois
ensinei
no
MOBRAL.
Nos
anos
70
ensinava
todos
os
idosos.
Até
meu
próprio
pai
foi
meu
aluno
e
aí
depois
encerrou
esse
período
e
começou
os
professores
formados
(Carmo,
depoimento
oral
concedido
em
04
de
outubro
de
2023).
Carmo
relatou
que
tudo
era
improvisado
e
por
consequência
não
era
a
mesma
rotina
da
escola.
Desta
feita,
cada
estudante
levava
seu
lanche.
Os
pais
providenciaram
a
cartilha
do
ABC
e
o
restante
do
material
que
era
utilizado
nas
aulas.
Apesar
das
adversidades,
ele
afirma
que
não
deixou
de
ensinar,
mesmo
com
as
tensões
e
perseguições
políticas
da
época.
Após
Carmo
ter
ido
trabalhar
na
cidade
de
São
Paulo
ele
retornou
ao
quilombo
no
final
da
década
de
70
para
continuar
os
estudos
em
Rio
de
Contas.
Cursou
magistério
e
técnico
em
contabilidade
e
voltou
a
lecionar
na
comunidade
ficando
por
mais
06
anos
em
sala
de
aula.
Nesse
período,
Carmo
diz
ter
obtido
bons
resultados
por
conseguir
estudar
no
colégio
de
Rio
de
Contas,
no
Centro
Integrado
Riocontense
de
Educação
e
Assistência
–
CIRCEA,
assim
como
também
por
ter
enviado
outros
alunos
do
quilombo
para
estudarem
lá.
Foi
neste
período
que
ele
começou
a
manter
contato
com
o
Padre
Carlos,
pároco
da
cidade
de
Rio
de
Contas
e
um
bom
articulador
político.
Em
suas
memórias,
Carmo
demonstrou
os
esforços
que
ele
tinha
que
fazer
para
sair
do
quilombo
e
ir
(muitas
vezes
a
pé)
estudar
em
Rio
de
Contas.
Ele
relembra
que
vivia
dividido
entre
estudos
e
os
trabalhos
na
roça.
13
Destacamos
que
foi
nesse
retorno
ao
Rio
de
Contas
no
final
da
década
de
1970
e
início
da
década
de
1980
que
Carmo
começou
a
se
mobilizar
politicamente
motivado
pela
construção
da
barragem
e
os
efeitos
dessa
edificação
para
as
comunidades.
Em
seus
relatos,
Carmo
mencionou
que
no
período
da
construção
da
barragem
ele
se
afastou
da
sua
função
de
professor
para
se
dedicar
às
mobilizações
e
encontros
políticos
em
prol
da
conquista
do
título
das
terras.
Ele
acompanhava
os
casos
das
famílias
desabrigadas
pela
barragem.
Nesse
período
essa
liderança
negra
disse
que
foram
tantos
acontecimentos
“que
sua
memória
por
vezes
falha”,
mas
lembrou-se
que
ministrou
um
curso
de
formação,
na
década
de
1990,
chamado:
“Programa
de
Educação
Quilombola
Venha
Ler
e
Escrever”
pelo
Grupo
de
União
e
Consciência
Negra
da
Bahia
8
.
Sobre
as
manifestações
culturais,
Carmo
narrou
que
participava
de
todos
os
festejos
do
quilombo.
Ele
informa
que
trabalhava
as
cantigas
tradicionais
da
comunidade
do
samba
do
Mendengó,
também
chamado
de
samba
Bendengó.
O
samba
do
Mendengó
é
um
estilo
de
samba
de
roda
dançado
e
tocado
na
comunidade
de
Barra.
Com
a
célula
rítmica
do
samba
de
roda,
os
brincantes
formam
uma
roda
ou
ficam
de
frente
uns
para
os
outros
e
marcam
o
ritmo
batendo
na
palma
da
mão
do
vizinho
da
direita
e
da
esquerda
ou
em
sua
frente.
Mendengó
é
o
samba
da
resistência.
Ele
conta
o
dia
a
dia
do
povo
do
quilombo,
suas
vivências
e
a
dos
seus
ancestrais.
Segundo
Bezinha,
“não
tem
preço
levar
a
frente
o
que
os
seus
ancestrais
deixaram”.
Uma
das
letras
aborda
o
manejo
com
a
mandioca
que
por
muito
tempo
foi
um
dos
principais
alimentos
para
a
sobrevivência
da
comunidade.
Não
mexe
com
esse
nego,
que
esse
nego
foi
meu
pai
quem
criou
Ele
veste
camisa
de
meia
Ceroula
preta
Chapéu
de
vapor
Ê
seu
beju
ta
bom
de
virar,
Ê
seu
beju
ta
bom
de
virar.
(Samba
do
Beju
cantado
por
Bezinha)
Por
sua
vez,
o
conteúdo
e
a
forma
variam
de
acordo
com
cada
região.
Em
Barra,
a
vida
cotidiana
(o
modo
de
vida)
é
presente
nas
rodas
de
samba.
Antigas
8
Grupo
de
União
e
Consciência
Negra
da
Bahia,
localizado
em
Salvador
(Bahia)
é
uma
Organização
Não
Governamental.
14
cantigas
e
contos
se
mesclam
com
acontecimentos
cotidianos.
Algumas
canções
tratam
de
assuntos
locais,
relatando
fatos
contemporâneos
ou
históricos
segundo
Graeff,
(2015).
Sobre
os
instrumentos
que
compõe
o
samba
do
Bendengó/Mendengó,
o
principal
deles
é
a
caixa
feita
da
madeira
do
pau
de
óleo
ou
de
casca
de
umburana,
como
nos
explicou
a
professora
Bezinha:
“você
tira
a
casca
de
umburama
e
põe
para
curtir,
faz
um
quadrado,
amarra
com
um
cordão
e
passa
cera,
pega
o
coro
de
boi
e
põe
por
cima
da
caixa
de
madeira”
.
Há
outros
instrumentos
que
acompanham
o
samba
do
Mendegó
(Ganzá,
violão),
mas
a
caixa
é
o
que
há
de
mais
original
e
específico
do
samba
do
Mendengó,
além
das
palmas
que
seguram
o
ritmo
e
contagiam
todos
que
estão
dentro
e
fora
da
roda
para
que
entrem
no
samba
que
é
um
dos
aspectos
mais
preservados
da
cultura
e
da
memória
coletiva
da
comunidade.
O
samba
do
Mendengó
está
também
ligado
às
celebrações
das
missas
na
igreja,
principalmente
no
festejo
do
padroeiro
da
comunidade
de
Barra,
São
Sebastião,
no
mês
de
janeiro.
Essas
manifestações
da
tradição
da
cultura
e
da
religiosidade
do
quilombo
fazem
parte
direta
ou
indiretamente
da
formação
do
indivíduo
que
cresce
e
se
desenvolve
no
quilombo
de
Barra
através
do
seu
modo
de
vida.
Esses
são
os
elementos
que
nos
ajudaram
a
identificar
como
a
identidade
desses
sujeitos
é
cotidianamente
construída
com
o
auxílio
dessa
memória
coletiva
e
através
da
preservação
da
cultura
da
comunidade
por
meio
da
educação
do
grupo.
Considerações
finais
A
construção
de
concepções
de
mundo,
consciência
de
si,
de
humanidade,
de
pertencimento
a
uma
cultura,
a
uma
etnia
se
processam
por
meio
de
experiências
mediadas
pelas
condições
histórico-sociais
que,
em
nossa
realidade,
está
saturada
de
contradições
e
mediações
produzidas
no
interior
de
relações
sociais
diversas
marcadas,
sobretudo,
pela
exploração,
pela
dominação
e
opressão.
O
processo
de
reconhecimento
do
quilombo
de
Barra
como
território
de
identidade
quilombola
atravessou
vários
momentos.
A
memória/lembrança
do
Naufrágio
do
Navio
Negreiro
traz
conexões
importantes
para
a
construção
da
história/memória
desses
descendentes
como
negros
que
não
se
submeteram
à
15
escravidão
e
conseguiram,
por
meio
da
fuga,
construir
uma
comunidade
de
pessoas
livres
do
trabalho
escravo.
Outro
fato
de
impacto
na
vida
e
na
memória
dos
quilombolas
foi
a
construção
da
barragem
que
foi
tanto
uma
situação
dramática
para
os
que
foram
atingidos,
mas
que,
contraditoriamente,
foi
o
ponto
de
partida
para
o
processo
de
reconhecimento
estatal
do
quilombo
remanescente
que
antes
se
identificava
como
comunidade
de
negros.
Nesse
sentido,
a
luta
de
lideranças,
de
educadores
e
de
moradores
da
comunidade
do
quilombo
de
Barra
demonstram
o
esforço
por
se
ter
garantido
um
direito.
Uma
condição
de
possibilidade
de
existência
de
sobrevivência
material
e
espiritual/intelectual
de
uma
comunidade.
A
memória,
a
cultura
e
a
educação
foram
elementos
importantes
para
a
organização
coletiva
e
a
produção
de
subjetividades
que
potencializam
a
existência
dos
indivíduos
e
da
coletividade
negra
em
uma
região
na
qual
o
conflito
fundiário
e
os
interesses
dos
capitalistas
agrários,
sejam
no
cultivo
da
terra
ou
na
extração
dos
minerais,
fomentaram
o
racismo
e
com
ele
a
vergonha
em
assumir
sua
cor,
sua
cultura,
suas
experiências.Essa
luta
secular
contra
a
opressão
e
a
exploração
e
que,
em
meados
do
século
XX,
ganhou
contornos
organizativos
e
de
valorização
do
ser
negro
e
negra
no
Brasil
fez
emergir
movimentos,
organizações
que
impulsionaram
a
tomada
de
consciência
e
a
aquisição
de
direitos
ao
povo
trabalhador
negro.
O
trabalho
de
educadores
e
líderes
do
quilombo
de
Barra
como
Bezinha
e
Carmo
foi
de
fundamental
importância
pelo
fato
de
contribuírem
na
conquista
da
titulação
da
terra,
bem
como
pela
afirmação
do
ser
negro
ou
negra
quilombola.
O
trabalho
na
escola,
na
organização
da
comunidade,
o
samba
do
Mendegó
e
toda
a
força
das
manifestações
culturais
populares
são
formas
e
conteúdos
que
fortalecem
a
luta
dos
oprimidos
na
construção,
quiçá,
da
verdadeira
emancipação
das
formas
de
exploração
e
opressão
ainda
presentes
nas
sociedades.
Referências
BENJAMIN,
W.
Magia
e
técnica,
arte
e
política:
ensaios
sobre
literatura
e
história
da
cultura.
8ª
Ed.
revista.
São
Paulo:
Brasiliense,
2016.
16
CAPINAN,
U.
O
quilombo
que
remanesce:
estudo
de
caso
acerca
dos
impactos
da
política
pública
de
certificação
e
de
titulação
do
território
sobre
a
identidade
étnica
dos
quilombos
remanescentes
Barra
e
Bananal
em
Rio
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Contas,
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Dissertação
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Trabalho
de
Conclusão
de
Curso
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História)
–
UESB,
Vitória
da
Conquista.
SÃO
JOSÉ,
G.
M
S.
O
trabalho
da
memória
e
da
educação
na
luta
pelo
reconhecimento
do
quilombo
de
Barra
em
Rio
de
Contas
-
BA
.
2024.135f.
Dissertação
(Mestrado
em
Memória)
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UESB,
Vitória
da
Conquista.
SANTOS,
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Relativismo
e
escolanovismo
na
formação
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educador
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uma
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histórico-crítica
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educação
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17
SANTOS,
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A
falta
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voz
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brasileiro:
as
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da
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https://digitalcollections.sit.edu/isp_collection/467
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14
de
outubro
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2024.
SERPA,
D.
Lugar
de
preto
x
lugar
de
branco.
Soweto
à
Brasileira
.
Marie
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,
nº
49,
Rio
de
Janeiro,
abril
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1995.
SILVA,
V.
P.
Deslocamentos
e
histórias
de
vida:
trajetória
da
comunidade
quilombola
Riacho
das
Pedras
atingida
pela
construção
da
barragem
Luiz
Vieira
em
Rio
de
Contas
-
BA.
2009.
164f.
Monografia
(Terapia
Ocupacional)
–
USP,
São
Paulo.
TIRIBA,
L.
Modo(s)
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vida
e
modos
de
produção
da
existência
humana:
ensaio
teórico-metodológico.
In:
Germinal:
Marxismo
e
Educação
em
Debate,
Salvador,
v.13,
nº
2,
2021.
VIANA,
Elaine
M.
S.;
SANTOS,
Claudio
Felix
dos.
Política
de
formação
de
professores
leigos
na
ditadura
civil-militar
e
a
memória
de
educadores
no
sertão
da
Bahia
(1967
–
1983).
Tempos
Históricos
,
[S.
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https://e-revista.unioeste.br/index.php/temposhistoricos/article/view/19565
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2024.
18