V.22,
nº
49
-
2024
(setembro-dezembro)
ISSN:
1808-799
X
A
GESTÃO
ALGORÍTMICA
E
O
SALTO
NA
PRECARIZAÇÃO
DO
TRABALHO
DE
ENTREGADORES
A
PARTIR
DA
PANDEMIA
DE
COVID-19
.
1
Camila
de
Sousa
Ricarte
2
Cássio
Adriano
Braz
de
Aquino
3
Maristela
de
Souza
Pereira
4
Resumo
Este
trabalho
tem
o
intuito
de
investigar
a
intensificação
da
precarização
do
trabalho
dos
entregadores
por
aplicativos
de
delivery,
a
partir
da
Pandemia
de
COVID-19
e
em
função
da
gestão
algorítmica.
Colocamos
em
diálogo
os
excertos
do
texto
de
entregadores
presentes
nos
documentários
escolhidos,
“O
pandelivery:
quantas
vidas
vale
o
frete
grátis?”
(2020),
de
Antônio
Matos
e
Guimel
Salgado;
“Trajetos
e
trajetórias
invisíveis
na
cidade”
(2021),
de
Letícia
Masson
e
Simone
Oliveira,
e
“Da
porta
para
fora”
(2022),
de
Thiago
Foresti,
com
a
Psicologia
Social
do
Trabalho
(PST)
e,
a
partir
do
pressuposto
inicial
de
que
o
ambiente
laboral
desses
trabalhadores
está
situado
na
precarização,
destacamos
três
categorias
–
“baixa
remuneração”,
“intensificação
de
jornada”
e
“adoecimento”
–
como
guias
de
análise.
Dentre
os
resultados,
temos
que
a
partir
do
período
pandêmico
e
com
a
amplificação
desses
aspectos
surgiram
os
laços
de
organização
política
que
perpassam
a
reivindicação
de
direitos
pela
categoria
de
entregadores.
Palavra-chave:
gestão
algorítmica;
precarização;
entregadores,
delivery.
LA
GESTIÓN
ALGORÍTMICA
Y
LA
INTENSIFICACIÓN
DE
LA
PRECARIZACIÓN
LABORAL
DE
LOS
REPARTIDORES
TRAS
LA
PANDEMIA
DE
COVID-19
Resumen
El
objetivo
de
este
artículo
es
investigar
la
intensificación
de
la
precarización
del
trabajo
de
los
repartidores
desde
la
Pandemia
de
Covid-19
y
en
razón
de
la
gestión
algorítmica.
Hemos
puesto
en
diálogo
los
fragmentos
de
texto
de
los
repartidores
presentes
en
los
documentales
selecionados
-
“El
pandelelivery:
cuantas
vidas
vale
el
flete
gratis?”
(2020)
de
Antonio
Matos
e
Guimel
Salgado;
"Caminos
y
trayectorias
invisibles
en
la
ciudad"
(2021),
de
Letícia
Masson
y
Simone
Oliveira,
y
"De
la
puerta
para
afuera"
(2022),
de
Thiago
Foresti
-
con
la
Psicología
Social
del
Trabajo
(PST)
y,
partiendo
de
la
hipótesis
inicial
de
que
el
entorno
laboral
de
estos
trabajadores
se
sitúa
en
la
precariedad,
destacamos
tres
categorías
-
"baja
remuneración",
"intensificación
de
la
jornada
laboral"
y
"enfermedad"-
como
guías
de
análisis.
Los
resultados
muestran
que,
desde
el
periodo
pandémico
y
con
la
amplificación
de
estos
aspectos,
han
surgido
vínculos
políticos
organizativos
que
han
llevado
a
los
repartidores
a
exigir
sus
derechos.
Palabra
clave:
gestión
algorítmica;
precarización;
repartidores;
delivery
4
Psicóloga
e
doutora
em
Psicologia
Social
pela
Universidade
de
São
Paulo
(USP)
-
Brasil.
Docente
do
Instituto
de
Psicologia
e
do
Programa
de
Pós-Graduação
em
Psicologia
da
Universidade
Federal
de
Uberlândia
(UFU),
Minas
Gerais
-
Brasil.
E-mail:
Maristela.ufu@gmail.com
.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/7170920628750200
.
ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-6520-079X
.
3
Doutor
em
Psicologia
pela
Universidad
Complutense
de
Madrid
(UCM)
-
Espanha.
Professor
Titular
do
Departamento
de
Psicologia
da
Universidade
Federal
do
Ceará
(UFC).
E-mail:
brazaquino@ufc.br.
Lattes:
http://
lattes.cnpq.br/0857879689626098.
ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-8651-1634.
2
Mestra
em
Psicologia
pela
Universidade
Federal
do
Ceará
(UFC)
-
Brasil.
Psicanalista
em
consultório
particular
e
Assessora
Especial
de
Políticas
da
Diversidade
–
Município
de
Tauá
–
Ceará.
E-mail:
camila.ricarte5@gmail.com
.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9609785382567560
.
ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5817-8467
1
Artigo
recebido
em
15/04/2024.
Primeira
Avaliação
em
11/09/2024.
Segunda
Avaliação
em
20/10/2024.
Aprovado
em
31/10/2024.
Publicado
em
05/12/2024.
DOI:
https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.62610.
1
ALGORITHMIC
MANAGEMENT
AND
THE
INTENSIFICATION
OF
THE
PRECARIOUSNESS
OF
DELIVERY
WORKERS’
WORK
FOLLOWING
THE
COVID-19
PANDEMIC
Abstract
This
paper
aims
to
investigate
the
intensification
of
the
precariousness
of
delivery
workers'
work
by
delivery
apps,
starting
from
the
COVID-19
Pandemic
and
as
a
result
of
algorithmic
management.
We
put
into
dialogue
the
text
excerpts
of
delivery
workers
present
in
the
chosen
documentaries,
"O
pandelivery:
quantas
vidas
vale
o
frete
grátis?"
(2020),
by
Antônio
Matos
and
Guimel
Salgado,
"Trajetos
e
trajetórias
invisíveis
na
cidade"
(2021),
by
Letícia
Masson
and
Simone
Oliveira,
and
"Da
porta
para
fora"
(2022),
by
Thiago
Foresti,
with
the
Social
Psychology
of
Work
(SPW)
and,
based
on
the
initial
assumption
that
the
working
environment
of
these
workers
is
situated
in
precariousness,
we
highlight
three
categories
-
"low
payment",
"intensification
of
working
hours"
and
"illness"
-
as
guides
for
analysis.
The
results
show
that
since
the
pandemic
period,
and
with
the
amplification
of
these
aspects,
there
have
been
bonds
of
political
organization
that
permeate
the
demand
for
rights
by
the
category
of
delivery
workers.
Keywords:
algorithmic
management;
precariousness;
delivery
workers;
delivery.
Introdução
A
Pandemia
da
COVID-19,
causada
pelo
vírus
Sars–CoV-2,
iniciada
em
2020,
reconfigurou
a
vida
e
o
trabalho
das
pessoas
ao
redor
do
mundo.
Segundo
Delgado
e
Rocha
(2020),
para
além
dos
danos
sanitários
e
da
amplitude
da
crise
de
saúde,
os
prejuízos
foram
observados
também
a
partir
da
acentuação
de
desigualdades
econômicas,
sociais
e,
sobretudo,
laborais.
Ao
discutir
as
categorias
de
trabalhadores
que
no
período
da
Covid-19
foram
colocados
como
“essenciais”,
Garcia
(2023)
indica
que
os
operadores
de
“serviços”,
dentre
os
quais
os
entregadores,
foram
mais
afetados
pela
desigualdade
já
existente
nos
contextos
de
trabalho
e
que
foram
intensificadas
no
cenário
da
pandemia
.
Elegemos,
então,
como
preocupação
neste
artigo
a
exacerbação
da
precarização
do
trabalho
de
entregadores
por
aplicativos
ocorrida
durante
o
período
pandêmico.
Destacamos
que
o
intervalo
entre
2020
e
2022
intensificou
a
precariedade
característica
do
trabalho
por
aplicativos,
de
modo
que
a
jornada
foi
ampliada
e
a
remuneração
por
entrega
dos
trabalhadores
diminuiu.
No
período
crítico
da
pandemia,
o
índice
de
desempregados
chegou
à
marca
de
40%
da
população
economicamente
ativa.
Com
o
aumento
da
demanda
por
entregas,
nos
momentos
de
isolamento
social,
os
aplicativos
foram
atrativos
a
essa
parcela
da
sociedade,
e
acabaram
por
cooptar
mais
trabalhadores
para
estas
atividades
(Amorim;
Moda,
2021),
empurrando
um
grande
contingente
de
sujeitos
para
o
tipo
de
trabalho
aqui
focalizado.
Ambos
grupos,
formados
por
aqueles
que
se
inseriram
no
trabalho
por
aplicativo
e
por
aqueles
que
já
desempenhavam
esta
atividade,
2
estavam
mais
expostos
ao
vírus
no
momento
de
imposição
de
isolamento
e
de
interrupção
do
atendimento
presencial
por
diversas
empresas,
medidas
necessárias
nas
fases
mais
críticas
da
circulação
viral.
Outras
produções
científico-acadêmicas
já
focalizaram
esta
questão
e
serão
aqui
retomadas.
Todavia,
o
ponto
central
que
guiará
o
presente
trabalho
será
uma
discussão
sobre
a
gestão
algorítmica,
objetivando
tecer
reflexões
sobre
como
o
entrelaçamento
do
momento
pandêmico
com
o
gerenciamento
algorítmico
produziu
um
salto
no
processo
de
precarização
do
trabalho
de
entregadores
por
aplicativos
e
sobre
como
esses
trabalhadores
produziram
compreensões
sobre
esse
processo.
Para
tanto,
tomaremos
como
material
de
análise
documentários
que
trazem
o
discurso
dos
entregadores
na
lida
com
os
aplicativos
durante
a
Pandemia
de
COVID-19,
período
em
que
a
categoria
também
forjou
espaços
de
luta
e
organização.
Embora
se
reconheça
que
o
trabalho
dos
entregadores
é
atravessado
por
questões
pertinentes
ao
mundo
do
trabalho
na
contemporaneidade,
para
além
do
marco
temporal
que
circunscreve
o
período
pandêmico,
é
inegável
que
a
conjuntura
histórica
viabilizada
pela
Pandemia
de
COVID-19
aprofundou
e
intensificou
as
condições
de
precarização
do
trabalho
desta
e
de
outras
categorias,
trazendo
também
maior
notoriedade
para
seus
membros
e
para
suas
reivindicações.
Os
episódios
de
organização
dos
entregadores
ocorridos
em
2020
foram
nomeados
“Breques
dos
Aplicativos”
5
e
conseguiram
dar
visibilidade
aos
entregadores
e
à
problemática
oriunda
das
condições
precárias
de
trabalho
nas
plataformas.
Esses
eventos
ganharam
destaque
nas
mídias
alternativas
e
inspiraram
a
produção
de
alguns
documentários,
lançados
a
partir
de
então.
No
momento
das
dificuldades
impostas
pela
crise
sanitária,
tivemos
uma
reconfiguração
da
posição
destes
trabalhadores
diante
das
plataformas
(Cant,
2021;
Uchôa-Oliveira;
Bastos,
2022).
Assim,
os
entregadores
puderam
expor
de
maneira
mais
abrangente
as
condições
nas
quais
o
trabalho
ocorria
e
ainda
ocorre,
bem
como
conseguiram
configurar
espaços
de
formação
de
laços
entre
pares,
através
da
criação
de
associações
pelo
país.
5
Os
Breques
dos
Aplicativos
foram
paralisações
convocadas
a
partir
de
julho
de
2020,
ocorridos
em
algumas
capitais
do
país,
com
o
objetivo
de
chamar
a
atenção
para
as
arbitrariedades
dos
aplicativos
para
com
os
seus
cadastrados.
Conferir
em:
https://diplomatique.org.br/breque-apps-direito-de-resistencia-na-era-digital/
3
A
análise
das
produções
documentais
se
dará
através
das
lentes
da
Psicologia
Social
do
Trabalho
(PST).
Tal
escolha
se
dá
uma
vez
que
este
campo
compreende
o
trabalho
na
sua
materialidade
histórica
e,
simultaneamente,
na
apreensão
singular
através
da
ótica
dos
trabalhadores
e
trabalhadoras.
Desse
modo,
mostra-se
alinhada
com
os
objetivos
do
presente
estudo,
ao
colocar
em
complementaridade
a
relação
entre
os
aspectos
objetivos
e
as
perspectivas
subjetivas
depreendidas
dos
discursos
dos
trabalhadores
acerca
da
compreensão
de
suas
atividades
(Sato;
Coutinho;
Bernardo,
2017).
Destaca-se
que
a
PST
não
possui
uma
perspectiva
unificada,
constituindo-se
enquanto
um
campo
de
produções
críticas
que
se
debruçam
sobre
problemáticas
diversas
relacionadas
ao
mundo
do
trabalho,
a
partir
de
práticas
e
modalidades
interventivas
também
diversas,
sustentadas
por
diferentes
teorias
e
propostas
metodológicas.
Em
comum,
tais
produções
se
sustentam
em
uma
leitura
crítica
da
realidade,
na
interdisciplinaridade,
na
ênfase
no
conhecimento
e
experiência
dos
trabalhadores,
em
uma
perspectiva
contra-hegemônica
e
não
exploratória
desses,
na
assunção
da
dimensão
política
como
inseparável
da
dimensão
científica,
na
constatação
da
relação
fulcral
entre
a
subjetividade
e
os
aspectos
objetivos
e
materiais
de
existência,
na
indissociabilidade
entre
pesquisa,
prática
e
intervenção,
na
horizontalidade
das
relações
entre
sujeitos
pesquisadores
e
sujeitos
trabalhadores,
e
na
busca
pela
transformação
social
e
das
condições
de
trabalho
(PEREIRA,
2020,
p.
1).
As
pesquisas
desenvolvidas
no
âmbito
da
Psicologia
Social
do
Trabalho
estabelecem
importantes
relações
com
o
campo
das
práticas
laborais,
tendo
seu
ponto
de
partida
nos
problemas
concretos
vivenciados
pelos
trabalhadores
(Oliveira;
Gómez;
Hespanhol;
Sato,
2015).
Tal
premissa
se
mostra
condizente
com
a
proposta
do
estudo
em
tela,
ao
partir
das
problemáticas
apontadas
pelos
entregadores,
que
têm
lugar
no
seu
cotidiano
de
trabalho.
Faremos,
portanto,
nossa
análise
a
partir
de
uma
abordagem
crítica
das
condições
de
trabalho
em
plataformas
e
dando
ênfase
ao
que
os
entregadores
dizem
nas
entrevistas
apresentadas
nas
produções
aqui
focalizadas,
tendo
em
consideração
também
as
produções
científicas
brasileiras
recentes
que
analisam
os
processos
de
trabalho
mediados
por
plataformas
digitais,
fenômeno
nomeado
na
literatura
como
uberização
(Abílio,
2021;
Amorim;
Moda,
2021;
Lapa,
2022;
Uchôa-Oliveira;
Bastos,
2022).
4
Percurso
metodológico
Delimitamos
como
escopo
de
pesquisa
a
produção
de
documentários
ocorrida
no
período
pandêmico
acerca
do
tema,
a
saber
os
documentários:
“O
pandelivery:
quantas
vidas
vale
o
frete
grátis?”
(2020),
documentário
de
Antônio
Matos
e
Guimel
Salgado;
“Trajetos
e
trajetórias
invisíveis
na
cidade”
(2021),
de
Letícia
Masson
e
Simone
Oliveira,
e
“Da
porta
para
fora”
(2022),
de
Thiago
Foresti.
Selecionamos
estas
películas
por
acreditarmos
que
elas
expressam
um
recorte
temporal
que
abarca
o
momento
em
que
os
entregadores
surgem
como
questão
de
interesse,
pela
emergência
do
período
mais
crítico
da
pandemia
e,
simultaneamente,
pela
explicitação
contundente
da
precarização
do
trabalho
associada
a
esta
categoria,
e
ainda
mais
exacerbada
naquele
momento.
Tal
escolha
também
se
justifica
pela
representação
que
estes
documentários
fazem
do
trabalho
por
aplicativos,
ainda
que
mediada
pela
percepção
de
seus
realizadores,
bem
como
por
apresentarem
os
discursos
de
entregadores
que
estão
nas
associações
de
trabalhadores
surgidas
no
período
pandêmico.
Metodologicamente,
ancoramos
nossas
análises
em
uma
leitura
interpretativa,
que
não
segue
uma
proposição
única
e
monolítica
e
que
coloca
o
acento
na
narrativa
e
nas
categorias
que
emergem
nesse
processo
e
que
constituem
o
produto
final
(Mombelli;
Tomaim,
2014).
Essas
categorias,
ressoam
pela
recorrência
tanto
no
discurso
dos
entregadores,
quanto
na
incidência
textual
presente
nas
referências
bibliográficas
às
quais
recorremos
(Abílio,
2020;
2021;
Amorim;
Moda,
2021;
Antunes,
2020;
Grohmann,
2021),
demonstrando
sensibilidade
teórica
na
apreensão
da
realidade
vivenciada
pelos
uberizados.
Tais
categorias
são:
“baixa
remuneração”;
“intensificação
de
jornada”
e
“adoecimento”
-
tanto
físico
quanto
psíquico.
Elas
culminam
ainda
na
organização
política
dos
entregadores,
do
que
se
depreende
a
vitalidade
dessas.
Ressalta-se
ainda
que
esta
proposta
metodológica
possui
consonância
com
o
referencial
teórico
adotado,
uma
vez
que
os
estudos
formulados
a
partir
da
PST
priorizam
os
discursos
da
classe
que
vive
do
trabalho
e
a
análise
das
contradições
da
atividade
expostas
por
esses,
aspectos
presentes
nos
documentários
analisados.
Livremente
inspirados
no
projeto
“tela
crítica”
(Alves,
2021)
colocaremos
em
diálogo
as
discussões
teóricas
presentes
na
literatura
sobre
a
caracterização
do
5
trabalho
por
aplicativos
no
Brasil
e
o
modo
como
esta
atividade
é
retratada
nas
produções
documentais
selecionadas.
Este
também
é
um
ponto
de
contato
importante
com
as
premissas
da
PST,
haja
vista
que,
nos
documentários
analisados,
não
há
uma
delimitação
prévia
das
verbalizações
dos
trabalhadores,
ou
seja,
seus
discursos
não
são
controlados
a
partir
de
uma
proposição
preliminar
–
um
roteiro
–
mas
sim
construídos
no
encontro
da
realidade
experimentada
por
eles
com
a
oportunidade
de
narrar
seu
cotidiano
de
trabalho
e,
assim,
pensar
e
produzir
significações
sobre
ele.
Nesse
sentido,
resgata-se
a
dimensão
da
intervenção
produzida
pela
própria
participação
dos
entregadores
nos
documentários,
a
qual
também
tem
consonância
com
o
referencial
teórico
adotado.
A
produção
desses
filmes,
por
sua
vez,
também
pode
ser
apontada
como
uma
ferramenta
de
intervenção
sobre
a
realidade
social,
ao
dar
forma
ao
discurso
dos
entregadores
e
auxiliar
na
difusão
de
suas
reivindicações.
Também
é
importante
destacar,
no
âmbito
metodológico,
que
embora
os
discursos
apresentados
nos
documentários
tenham
sido
selecionados
a
partir
da
intenção
dos
diretores
e
dos
aspectos
que
estes
tomam
como
mais
relevantes
nas
falas
dos
entregadores,
há
uma
conexão
direta
entre
os
temas
abordados
e
a
literatura
acadêmica
sobre
o
trabalho
dessa
categoria.
Portanto,
os
temas
que
emergiram
nas
análises
apresentam
um
movimento
circular,
que
perpassa
a
atividade
em
si,
as
representações
sobre
esta
e
também
as
análises
científicas
sobre
o
fenômeno,
atestando
assim
sua
validade.
Apresentaremos
inicialmente
algumas
reflexões
sobre
o
fenômeno
que
tem
sido
reconhecido
como
uberização
do
trabalho,
destacando
principalmente
o
aspecto
que
mais
interessa
à
nossa
discussão,
o
gerenciamento
algorítmico,
para
então
passarmos
à
análise
dos
discursos
dos
trabalhadores,
relacionados
às
suas
vivências
objetivas,
os
quais
conformam
as
categorias
temáticas
aqui
consideradas.
O
gerenciamento
algorítmico
e
a
uberização
do
trabalho
As
discussões
sobre
o
modelo
de
gestão
do
qual
tratamos
ao
longo
deste
texto
evoluíram
a
partir
da
empresa
de
serviços
de
viagens
e
entregas
Uber.
Por
conta
do
alcance
da
mesma
houve
a
nomeação
inicial
desse
modo
de
organização
do
trabalho
como
uberização
(Abílio,
2019;
Antunes,
2018;
Slee,
2017).
Com
a
6
abrangência
e
expansão
do
campo
a
outros
aplicativos,
as
maneiras
de
exploração
do
trabalhador
foram
sendo
aprimoradas.
Embora
possa
parecer
um
fenômeno
novo,
a
uberização
consolida
um
processo
em
andamento
há
décadas,
de
eliminação
de
direitos
e
constituição
de
novos
arranjos
produtivos
que
ampliam
ainda
mais
a
exploração
dos
trabalhadores,
tendo
como
principais
características
a
implementação
de
novas
formas
de
gestão
e
controle
da
força
de
trabalho,
alicerçadas
na
premissa
do
trabalho
sob
demanda
(Abílio,
Amorim
&
Grohmann,
2021).
Algumas
características
da
operação
da
empresa
Uber
em
relação
aos
seus
trabalhadores
são
importantes
de
mencionar,
pois
repetem-se
enquanto
modelo
de
atuação
para
outras
empresas,
tais
como
o
rápido
espraiamento
no
momento
em
que
chegam
ao
território
e
a
não
submissão
às
leis
locais.
Dada
a
globalização,
cada
setor
-
tributário,
de
licenciamentos,
de
tecnologia
-
está
localizado
em
um
país,
no
qual
é
isento
de
impostos
(Slee,
2017),
aspecto
no
qual
esbarram
as
tentativas
de
regulamentação
da
sua
atuação.
A
manipulação
e
persuasão
por
meio
de
estratégias
de
marketing
também
são
comuns
na
construção
do
apelo
baseado
nos
ganhos
de
seus
trabalhadores
e
na
ideia
distorcida
de
não
haver
um
patrão,
o
que
faz
com
que,
à
primeira
vista,
o
cadastro
na
plataforma
pareça
um
bom
negócio.
Estar
associada
com
a
tecnologia
leva
à
inferência
do
escopo
de
atuação
dessas
empresas
como
se
fossem
apenas
uma
mídia
tecnológica,
como
se
o
aplicativo
apenas
rodasse
um
disco
rígido
que
gerencia
a
atividade,
e
não
tivessem,
portanto,
responsabilidades
com
os
entregadores
que
estão
logados
à
sua
plataforma
(Amorim;
Moda,
2021).
Esta
estratégia
de
colocar
os
aplicativos
como
um
“serviço”,
e
mais
ainda,
de
identificá-lo
como
um
aspecto
puramente
“tecnológico”,
facilita
a
isenção
de
responsabilidades
por
parte
das
empresas,
visto
que
“o
aplicativo
significa
apenas
a
interface
visível
do
software
em
celular,
como
a
ponta
do
iceberg
do
que
significa
exatamente
plataforma
-
como
infraestrutura
e
modelo
econômico”
(Abílio;
Amorim;
Grohmann,
2021,
p.
36).
Esta
é
uma
jogada
usada
pelas
empresas-aplicativo
para
subverter
as
leis
locais,
sobretudo
as
trabalhistas,
ao
se
apresentarem
apenas
como
mediadoras
da
relação
entre
o
trabalhador
que
oferece
seus
serviços
e
o
cliente
que
os
solicita.
Como
indicado
por
Ricarte
(2023),
diferentes
modos
de
reestruturação
subjetiva
foram
necessários
para
a
conformação,
não
sem
conflitos,
dos
sujeitos
ao
7
novo
de
tipo
de
trabalho,
tais
como
uma
percepção
alterada
do
tempo,
em
acordo
com
a
exigência
de
celeridade
da
plataforma,
bem
como
uma
individualização
exacerbada,
que
resulta
no
trabalhador
percebido
em
unidade
e
dissociado
de
seus
pares,
desarticulando
assim
as
condições
de
reivindicação
coletiva.
Tais
mudanças
foram
paulatinas
e
constituíram-se
ao
longo
de
muitos
anos,
no
entanto,
a
inserção
de
um
alto
e
rápido
processamento
de
dados
em
plataformas
que
agora
estão
imbricadas
à
gestão
do
trabalho
fizeram
com
que
as
reestruturações
no
mundo
laboral
fossem
mais
incisivas
e
intensas,
sobretudo
em
categorias
já
desprotegidas
por
décadas
de
desmontes
nas
leis
de
proteção
ao
trabalhador
(Abílio;
Amorim;
Grohmann,
2021;
Amorim;
Moda,
2020).
O
gerenciamento
algorítmico
(Abílio,
2021;
Amorim;
Moda,
2020;
Cant,
2021)
trata-se
de
uma
característica
central
nesse
modo
de
organização
do
trabalho,
aspecto
que
ainda
carece
de
investigações
aprofundadas.
Grohmann
(2020)
conceitua
a
gestão
algorítmica
do
trabalho
como
um
conjunto
de
práticas
de
supervisão,
controle
e
governança,
produzidas
e
conduzidas
pelos
algoritmos,
as
quais
reconfiguram
as
atividades
de
trabalho,
produzindo
rastreamento
e
avaliação
permanente
dos
trabalhadores,
automatização
das
decisões
e
menor
transparência
sobre
todo
esse
processo.
Estamos
diante
de
um
novo
modelo
de
gestão,
em
que
um
grande
fluxo
de
dados
é
extraído
no
campo
do
trabalho,
tais
como
as
estratégias
cotidianas
dos
trabalhadores,
as
rotas,
o
tempo
de
execução
das
tarefas
(Abílio,
2021);
enquanto,
por
outro
lado,
no
campo
dos
consumidores,
também
são
computados
os
dados
sobre
a
recorrência
de
pedidos,
preferências,
locais
de
circulação
e
de
fixação
desses
sujeitos,
enfim,
tudo
o
que
puder
ser
capturável
e
utilizável
em
prol
da
acumulação
capitalista.
Esses
dados
não
se
constituem
apenas
em
informação
per
se
,
mas
em
capital,
sendo
utilizados
diretamente
para
a
produção
de
mais
valor.
Ao
abordar
o
caso
da
Deliveroo,
Cant
(2021)
indica
o
gerenciamento
algorítmico
como
o
ordenamento
do
trabalho
a
partir
da
tecnologia
da
informação.
Ele
apresenta
inquietações
semelhantes
às
que
trouxemos
até
o
momento,
sobretudo
no
âmbito
da
não
compreensão
de
como
ocorrem
as
tomadas
de
decisão
vindas
a
partir
da
plataforma.
De
Brighton,
Inglaterra,
ele
explicita
vivências
que
encontram
consonância
na
fala
dos
entregadores
brasileiros
que
traremos
mais
adiante.
Por
lá,
diante
do
desconhecimento
dos
processos
organizativos
das
8
plataformas
e
por
não
saberem
como
proceder
com
o
sistema
operacional,
os
trabalhadores
tateiam
em
busca
de
indícios
e
o
nomeiam
“caixa-preta”
(Cant,
2021),
pois
os
códigos
existem,
estão
ali,
mas
são
inacessíveis
aos
entregadores;
são
sistemas
que
não
permitem
a
extração
e
análises
de
seus
dados
por
parte
daqueles
que
são
diretamente
afetados
pelos
mesmos.
Os
softwares
que
rodam
as
plataformas
que
fazem
a
interface
do
“serviço”
com
os
usuários
também
são
chamados
de
caixa-preta,
pois
não
é
possível
identificar
como
estes
operam,
visto
que
nem
mesmo
quem
produz
esses
códigos
sabe
precisar
como
os
algoritmos
se
comportarão
após
serem
lançados.
No
entanto,
é
o
processamento
de
dados,
com
o
desconhecimento
da
maioria
das
pessoas,
que
permite
que
os
gastos
operacionais
do
trabalho
sejam
minimizados,
pois
“aumenta
a
complexidade
do
processo
de
coordenação
de
trabalho
de
baixo
custo”
(Cant,
2021,
p.
85).
Através
do
exacerbado
número
de
dados
que
são
recolhidos,
as
taxas,
os
horários
de
maior
circulação,
a
desativação
de
algum
segmento,
enfim,
todos
os
fatores
podem
ser
coordenados
e
modificados
constantemente
e
sem
aviso
prévio,
seus
termos
são
mutáveis
e
os
trabalhadores
ficam
à
mercê
de
formas
de
controle
que
desconhecem.
Segundo
Doorn
(2021),
o
trabalho
em
plataformas,
tal
qual
o
de
entregadores,
é
valioso
exatamente
por
sua
produção
de
dados.
A
extração
das
informações
supracitadas
é
de
extrema
valia
para
o
capital,
pois
o
treinamento
de
algoritmos
empreendido
através
da
interação
entre
entregadores-plataforma
e
os
usuários-plataforma
são
essenciais
aos
ganhos
das
empresas-aplicativo.
Para
esse
autor,
o
trabalho
plataformizado
é
a
chave
na
compreensão
da
dinâmica
estabelecida
entre
as
pessoas
que
fornecem
os
dados
e
a
produção
de
inteligência
artificial,
através
da
qual
as
empresas-aplicativos
lucram
exorbitantemente
ao
manterem
em
sua
base
um
trabalho
de
baixa
remuneração,
no
qual
são
espelhadas
e
reproduzidas
as
desigualdades
existentes
na
sociedade.
Um
aspecto
que
salta
aos
olhos
nesse
sentido
é
a
espacialização
da
desigualdade,
dado
que
a
grande
maioria
dos
entregadores
residem
em
bairros
periféricos
e
atendem
a
demandas
daqueles
situados
majoritariamente
nas
regiões
centrais
da
cidade.
Outro
aspecto
que
deve
ser
considerado
é
o
atravessamento
das
questões
de
raça
e
gênero,
sendo,
portanto,
necessário
também
aprofundar
as
análises
sobre
a
divisão
sócio-racial
e
sexual
do
trabalho
gerenciado
por
algoritmos.
9
Cant
(2021)
aponta-nos
também
que
o
investimento
em
tecnologias
que
garantam
um
aprimoramento
da
extração
de
mais-valia
é
o
que
diferencia
os
aplicativos
disponíveis
no
mercado
hoje.
Compreender
tal
eixo
de
análise
faz-se
fundamental,
uma
vez
que
se
trata
da
extração
de
dados
realizada
por
outro
grupo
de
trabalhadores.
Já
sua
análise
ocorre
fundamentalmente
sem
mediação
humana.
Mas,
não
se
pode
desconsiderar
que
é
através
da
manipulação
destas
análises,
que
se
produzem
ainda
mais
efeitos
negativos
sobre
os
trabalhadores,
pois
as
plataformas
mascaram
informações
para
indicar
condições
de
trabalho
inexistentes,
visando
garantir
novos
cadastrados
e
boas
avaliações
por
parte
dos
usuários,
como
também
indica-nos
Slee
(2017).
Este
é
um
eixo
de
reclamação
e
demandas
recorrentes
dos
entregadores,
dado
que
o
gerenciamento
algorítmico
“é
projetado
para
aumentar
a
exploração
da
mão
de
obra
com
o
objetivo
de
proporcionar
uma
vantagem
competitiva
aos
patrões
que
investirem
nessa
tecnologia”
(Cant,
2021,
p.
84).
Alguns
destes
processos
têm
sido
referidos
desde
o
início
nos
estudos
produzidos
no
campo
(Slee,
2017;
Abílio,
2019)
e
seguem
sendo
referência
para
uma
abordagem
das
implicações
no
cotidiano
dos
trabalhadores
por
aplicativo,
como
veremos
adiante.
Análise
dos
testemunhos
de
trabalhadores
Os
documentários
selecionados
tornam-se
fontes
de
pesquisa,
à
medida
em
que
são
capazes
de
condensar,
no
tempo
gravado,
recortes
de
entregadores
em
diferentes
localidades,
testemunhando
algo
generalizante
de
suas
experiências:
a
precarização.
Tomando
como
base
os
indicativos
feitos
por
Alves
(2021),
em
que
cenas
e
personagens
são
lidos
de
forma
associada
aos
contextos
socioeconômicos
presentes
nas
películas
analisadas,
seguiremos
trazendo
aspectos
do
discurso
de
entregadores
e
articulando-os
às
perspectivas
teóricas
com
as
quais
estamos
trabalhando.
Destacamos
que,
embora
os
fragmentos
discursivos
apresentados
nas
obras
selecionadas
sejam
mediados
pela
escolha
do
diretor
destas
peças,
esses
privilegiam
a
perspectiva
da
realidade
desses
trabalhadores.
As
modificações
no
mundo
do
trabalho
a
partir
da
uberização
criaram
as
condições
para
o
surgimento
do
que
ficou
conhecido
como
“breques
dos
apps”,
o
que
é
ilustrado
nos
documentários
aqui
focalizados:
“O
pandelivery:
quantas
vidas
10
vale
o
frete
grátis?”
(2020),
“Trajetos
e
trajetórias
invisíveis
na
cidade”
(2021),
e
especificamente,
no
documentário
“Da
porta
para
fora”
(2022).
A
partir
dos
relatos
colhidos
nestas
obras,
temos
acesso
ao
vivido
da
experiência
dos
trabalhadores.
Seguimos
com
o
norte
orientador
da
PST,
de
modo
a
apreender
nos
relatos
dos
entregadores
as
dificuldades
em
constituir
uma
categoria
unificada,
bem
como
em
transformar
a
experiência
individual
com
a
precarização
do
trabalho
em
motor
para
conformar
uma
luta
política.
Em
“Da
porta
para
fora”
(2022)
temos
um
recurso
produzido
pela
captura
de
imagem:
acompanhamos,
inicialmente,
a
construção
dos
relatos
a
partir
das
gravações
feitas
através
de
uma
câmera
acoplada
a
um
entregador.
Isso
faz
com
que
possamos
seguir
sua
movimentação
ao
longo
da
jornada
de
trabalho,
de
modo
que
temos
acesso
àquilo
que
o
trabalhador
vivencia
na
sua
relação
com
a
cidade.
Este
recurso
inicial,
em
que
não
temos
o
enfoque
de
um
rosto,
mas
do
percurso
feito
por
um
trabalhador,
faz-nos
pensar
que
a
jornada
de
trabalho,
intensificada
e
extensa
é
mais
importante
do
que
aquele
que
a
produz,
como
se
o
trabalhador
pudesse
ser
invisível
ou
qualquer
um.
No
momento
em
que
o
documentário
tem
início,
escutamos
vinhetas
sobre
a
pandemia
e
sobre
os
primeiros
casos
funestos,
dando
enfoque
à
notícia
da
primeira
vítima
fatal
no
Brasil:
Rosana
Urbano,
uma
diarista
6
,
bem
como
aos
relatos
sobrepostos
de
alguns
entregadores
sobre
o
corte
inserido
pela
Pandemia:
“antes
era
mais
normal
o
cotidiano”.
Neste
documentário,
acompanhamos,
de
forma
mais
esmiuçada,
o
dia-a-dia
de
três
entregadores
do
Distrito
Federal:
Sorriso,
Marcos
e
Kelliane.
Já
em
“O
pandelivery
-
quantas
vidas
vale
o
frete
grátis?”
(2020),
no
retroceder
temporal
operado,
pouco
percebemos
de
mudança
nos
relatos
encontrados
anteriormente:
vamos
do
“desalento
do
desemprego”
(Antunes,
2018),
quando
pessoas
estão
cansadas
de
procurar
vagas
inexistentes,
à
inscrição
no
aplicativo,
cujo
salto
entre
2020
e
2022
se
deu
em
função
do
incremento
do
desemprego
e
do
fato
dessa
atividade
passar
a
ser
considerada
como
um
serviço
essencial
(Amorim;
Moda,
2021).
6
O
enfoque
dado
pelo
documentário,
indica
que
a
primeira
pessoa
a
morrer
em
decorrência
da
Covid-19
no
Brasil
foi
contagiada
por
sua
patroa,
que
havia
viajado
à
Europa.
Esta
morte
aconteceu
logo
em
março
de
2020.
Conferir
em:
https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2022/03/ha-dois-anos-morria-a-primeira-vitima-da-covi
d-19-no-brasil.shtml
.
Acesso
em
12
set
2023.
11
O
documentário
“Trajetos
e
trajetórias
invisíveis
na
cidade”
(2021)
está,
temporalmente,
entre
os
dois
supracitados.
Nele
acompanhamos
os
relatos
de
vários
participantes
de
coletivos
organizados
a
partir
dos
“Breques
dos
aplicativos”,
sobre
as
vivências
e
adoecimentos
diante
do
trabalho
por
aplicativo,
que
é
invisibilizado.
Neste
documentário
são
apresentados
trabalhadores
que
compartilham
e
dão
relevo
às
experiências
em
canais
do
Youtube
e
também
estão
organizados
em
coletivos
de
trabalhadores
precários
e
Associações,
como
a
AMABR
-
Associação
dos
motofretistas
de
aplicativos
e
autônomos
do
Brasil,
criada
em
São
Paulo,
no
ano
de
2018,
com
o
intuito
de
reunir
integrantes
para
fortalecer
os
direitos
da
categoria
(AMABR,
2021).
Nas
obras
selecionadas,
temos
relatos
em
que
são
destacados
motivos
para
a
entrada
no
aplicativo,
o
que
nos
dá
indícios
sobre
o
processo
de
precarização
da
atividade.
Para
alguns
entregadores
a
profissão
sempre
foi
essa,
embora
atuassem
antes
de
maneira
regulamentada
e
sob
contratos
vinculados
a
algum
estabelecimento,
o
que
foi
alterado
pela
chegada
do
aplicativo
(Foresti,
2022).
Vários
dos
discursos
trazidos
e
sobrepostos
ao
longo
dos
documentários,
indicam
a
estratégia
dos
aplicativos
que
é,
inicialmente,
chegar
ao
território
e
capturar
vários
trabalhadores
com
a
promessa
de
altos
ganhos,
como
apontado
por
Slee
(2017).
São
apresentados
casos
de
entregadores
que
já
trabalhavam
como
motoboys
e
perderam
seus
contratos
regulamentados,
como
é
o
caso
de
Jefferson,
que
trabalha
como
entregador
no
Rio
de
Janeiro
há
10
anos:
“Antes
a
gente
tinha
contato
diretamente
com
o
empresário”.
No
entanto,
com
a
chegada
do
aplicativo,
ele
refere
“não
ter
como
concorrer,
perdi
vários
contratos”
(Foresti,
2022).
Esse
trabalhador
ainda
faz
referência
ao
modo
de
recrutamento
que
eles
viabilizam
para
as
empresas-aplicativo,
quando
enviam
links
para
colegas
se
cadastrarem,
a
fim
de
ganharem
descontos
e
bonificação
da
plataforma,
ainda
que,
posteriormente,
o
alto
número
de
cadastros
reduza
a
quantidade
de
entregas
que
cada
um
recebe.
Tal
aspecto
representa
a
faceta
do
capitalismo
de
dados
apontado
por
van
Doorn
(2021)
como
uma
novidade
na
abordagem
possível
do
aplicativo,
em
que
os
dados
coletados
importam
e
são
mais
rentáveis
que
o
próprio
comércio
de
mercadorias.
Os
recortes
escolhidos
para
análise
desses
materiais
documentais,
“baixa
remuneração,
“intensificação
da
jornada”
e
“adoecimento”,
representam
um
modo
intrínseco
de
organização
do
trabalho
uberizado,
estando
também
em
linha
direta
12
com
o
gerenciamento
algorítmico.
Há
uma
extração
do
sofrimento
operada
de
maneira
significativa
pela
exigência
de
disponibilidade
dos
trabalhadores,
que
precisam
estar
durante
longos
períodos
conectados
ao
aplicativo,
de
forma
que
não
há
muito
tempo
livre
da
plataforma.
Embora
exista
essa
extensão
da
jornada,
os
ganhos
não
se
sobressaem
para
além
do
necessário
para
sobreviverem,
sendo
assim
operada
também
uma
“gestão
do
sofrimento
psíquico”
(Safatle;
Silva
Jr;
Dunker,
2020).
É
a
partir
dos
relatos
sobre
o
tempo
disponível
ao
aplicativo
que
temos
a
ideia
de
como
os
problemas
causados
pela
gestão
algorítmica
têm-se
imbricado
de
modo
a
levar
os
entregadores
a
crerem
que
não
têm
saída.
Através
dos
relatos
ofertados
nos
diferentes
documentários,
temos
um
retrato
dos
efeitos
devastadores
sobre
a
saúde
desses
trabalhadores,
visto
que
o
trabalho
sob
demanda
e
a
remuneração
por
entrega,
tornam
o
tempo
de
conexão
com
aplicativo
cada
vez
mais
extenso,
assim
como
o
desgaste
físico
e
psíquico
ao
qual
estão
submetidos.
O
desenho
dos
aplicativos,
que
resulta
na
experiência
conhecida
como
“gamificação”,
também
opera
nesse
processo.
Assim,
o
entregador
vivencia
o
trabalho
no
aplicativo
como
um
jogo
(Koivisto;
Hamari,
2019),
havendo
referência
à
“expectativa
do
celular
tocar
para
fazer
entrega”,
pois
no
“início
era
um
vício”,
como
nos
indica
Jean,
entregador
da
Bahia,
há
mais
de
10
anos.
Jefferson
também
refere
experiência
semelhante:
“acabamos
assim,
viciando
em
ficar
logado
e
abrindo
mão
do
descanso”
(Foresti,
2022).
Segundo
o
relato
de
Luciana,
“você
entra
numa
nóia
psicológica,
pois
como
é
pouco
dinheiro
por
corrida,
você
vai
aceitando
o
que
aparece”
(Masson;
Oliveira,
2021).
Outro
relato,
de
Carlos
Rasta,
é
significativo
e
coaduna
com
outros
entregadores:
“estou
me
expondo
à
insalubridade,
tem
vezes
em
que
a
gente
pedala
embaixo
de
chuva
ou
de
um
sol
escaldante,
a
gente
tá
correndo
esse
risco
de
ser
contaminado
pelo
corona”
(Masson;
Oliveira,
2021).
Assim
como
ao
redor
do
mundo,
em
países
que
se
deparam
com
os
efeitos
da
uberização,
no
Brasil,
uma
importante
linha
de
força
para
o
crescimento
do
contingente
de
pessoas
que
aderiram
ao
trabalho
por
aplicativos,
foi
o
esfacelamento
dos
direitos
trabalhistas,
processo
intensificado
durante
os
governos
Temer
e
Bolsonaro
e
exacerbado
durante
a
Pandemia.
Assim,
um
grande
número
de
trabalhadores
precários
foi
empurrado
para
situações
mais
degradantes
(Amorim;
Moda,
2021)
e
avolumaram
o
número
de
pessoas
à
procura
por
qualquer
atividade.
13
Por
conta
da
facilidade
cadastral,
a
entrada
no
aplicativo
acaba
por
parecer
uma
maior
abertura
de
oportunidades
(Slee,
2017).
Isto,
por
sua
vez,
contribuiu
para
aumentar
as
dificuldades
dos
trabalhadores
por
aplicativos,
como
no
depoimento
de
Marcos
Santos:
“o
aplicativo
está
acumulando
muito
motoboy;
10
horas
e
eu
não
fiz
uma
entrega!”.
Ele
denuncia
ainda
que
os
comércios
fecharam
e
os
trabalhadores
passaram
ao
aplicativo,
além
de
agregar
outras
categorias:
“tenho
amigos
vigilantes
e
policiais
no
aplicativo”
(Foresti,
2022).
Este
dado
complexifica
a
discussão
acerca
da
precarização
do
trabalho,
visto
que
amplia
o
número
de
categorias
em
que
o
salário
não
permite
a
sobrevivência,
levando
à
entrada
no
aplicativo
de
trabalhadores
de
outras
categorias.
Isto
redunda,
para
além
dos
elementos
relacionados
à
carga
cotidiana
do
trabalho
como
entregador,
em
uma
ampliação
do
tempo
despendido
no
trabalho,
excedendo
a
jornada
das
ocupações
formais.
Segundo
Paulo
Galo,
“o
Brasil
tem
uma
fábrica
de
pessoas
que
estão
precisando
trabalhar
ou
sobreviver.
Os
aplicativos
sabem
disso”
(Matos;
Salgado,
2020).
Este
relato
mostra
concordância
com
os
apontamentos
estatísticos
do
mesmo
período:
ao
final
de
2020,
havia
no
Brasil
em
média
13,5
milhões
de
desempregados
(Silveira,
2020),
o
que
contribui
para
que
um
alto
número
de
entregadores
façam
turnos
entre
12
e
16
horas
logados
,
ou
seja
conectados
e
disponíveis
à
atividade,
alguns
chegando
ao
absurdo
de
rodarem
por
18
horas
exaustivas
para
conseguirem
sobreviver
(Aliança
Bike,
2019;
Matos;
Salgado,
2020;
Masson;
Oliveira,
2021,
Foresti,
2022).
Muitas
vezes,
o
que
se
inicia
como
um
bico,
acaba
por
tornar-se
a
única
fonte
de
renda
e
ocupa
um
tempo
que
extrapola
o
exercício
de
qualquer
relação
formalizada.
Há,
portanto,
uma
sensível
extensão
de
jornada.
O
documentário
“Da
porta
para
fora”
(Foresti,
2022)
utiliza-se
do
mesmo
recurso
presente
em
“O
pandelivery”
(Matos;
Salgado,
2020)
de
trazer
alguns
discursos
de
entregadores
sem
a
nomeação.
No
primeiro,
isso
aparece
através
da
representação
figurativa
da
tela
do
aplicativo
de
mensagens,
tais
como
notícias
com
promoções
do
aplicativo,
nomeado
de
modo
fictício
“tifoddi”
ou
através
de
mensagens
que
fazem
referência
aos
chamados
para
as
manifestações.
No
último,
as
legendas
sem
atribuição
de
nomes
aparecem
quando
estes
trabalhadores
se
encontram
nas
manifestações,
não
sabemos
se
por
representarem
algo
que
indica
a
experiência
geral
ou
por
não
ter
sido
possível
acompanhar
o
entregador
por
tempo
14
suficiente
a
ponto
de
saber
nomeá-lo
e,
portanto,
referenciá-lo.
Geralmente,
o
apelo
para
participar
das
manifestações
centram-se
nas
insatisfações
mais
gerais:
a
remuneração
e
o
tempo
logado
de
maneira
excessiva.
Nos
três
documentários,
as
experiências
com
o
tempo
e
a
jornada
intensa
são
aspectos
centrais.
Segundo
Luciana
Kasai,
“há
rotas
impossíveis
de
fazer
de
bicicleta”,
mas
que
são
realizadas
por
medo
de
bloqueios
e
represálias
do
algoritmo.
Essa
gestão
e
distribuição
de
novas
chamadas
produz
um
efeito
psíquico
e
a
entregadora
menciona
que
“uma
vez
que
você
já
aceitou,
você
tem
que
ir”.
Ela
refere
ainda
que
mesmo
no
momento
em
que
chegou
a
acidentar-se,
só
conseguia
pensar
que
precisava
entregar
a
pizza
de
um
cliente,
pois
“eu
ia
ter
que
pagar
a
pizza
do
cara”
(Masson;
Oliveira,
2021).
Estes
relatos
são
possíveis,
segundo
Maurício
Santos,
“porque
o
aplicativo
não
te
deixa
falar
com
ele,
a
gente
é
desorientado,
a
gente
tem
que
aprender
sozinho”.
Há
que
se
apontar
ainda
que
essa
dificuldade
de
comunicação
é
intencional.
“Se
o
cliente
compra
e
cancela,
o
Ifood
não
escuta
o
motoboy”,
afirma
o
entregador.
Após
um
acidente,
por
exemplo,
muitas
vezes
os
entregadores
não
conseguem
uma
comunicação,
e
outras
tantas
vezes
são
bloqueados
indiscriminadamente.
Como
Cant
(2021)
afirma,
a
gerência
algorítmica
trabalha
para
que
os
erros
sejam
descartados,
deste
modo
os
trabalhadores
no
momento
em
que
apresentam
“falhas”,
precisam
ser
substituídos,
o
bloqueio
indiscriminado
decorre
deste
modo
de
operar.
Tais
estratégias
são
coordenadas
pelas
empresas-aplicativo
através
da
extração
dos
dados,
de
modo
a
não
permitirem
que
o
trabalhador
tenha
ciência
da
maneira
como
trabalha
ou
de
como
funcionam
os
seus
ganhos
(Cant,
2021;
Slee,
2017).
O
aplicativo
utiliza
de
meios
indiscriminados
para
operar
com
os
entregadores
(Abílio,
2019),
sendo
o
aumento
no
número
de
trabalhadores
cadastrados
nas
plataformas
um
modo
de
controle
sobre
estes,
posto
que
aumenta
e
visibiliza
o
exército
de
mão
de
obra
de
reserva.
A
“baixa
remuneração”
é
um
objetivo
e
uma
consequência
desse
processo:
“tá
tendo
mais
trabalho,
não
tem
mais
dinheiro”,
afirma
Paulo
Galo
(Matos;
Salgado,
2020).
Marcos
Santos,
durante
o
seu
registro
no
documentário
de
Foresti
(2022),
mostra
partes
de
um
longo
percurso
feito
durante
a
chuva
para
ganhar
uma
entrega
de
R$
6,97
e
afirma:
“antes
a
gente
rodava
menos
e
ganhava
bem;
hoje
a
gente
roda
mais
e
ganha
mal”
(Foresti,
2022).
15
A
malha
de
dados
é
produzida
para
que
eles
fiquem,
como
num
jogo
perverso,
presos
ao
trabalho:
“tô
muito
desorientado,
sem
saber
o
que
fazer!”,
pois
“a
gente
está
trabalhando
para
sobreviver”,
“hoje
não
tive
sorte”,
“não
tive
nenhum”,
segundo
Marcos
“a
gente
tá
vivendo
duas
epidemias,
a
do
vírus
e
a
da
exploração”
(Foresti,
2022).
Acompanhando
o
aplicativo,
através
dos
documentários
e
dos
relatos
de
entregadores,
desde
a
chegada
do
serviço
ao
país,
vemos
que
a
intensificação
exploratória
surgida
com
a
pandemia
mantém-se
e
faz
com
que
os
entregadores
a
percebam
de
maneira
separada
da
exploração
laboral,
algo
como
“duas
pandemias”,
tornando
mais
complexa
a
precariedade
para
os
entregadores.
Os
entregadores
apontam
ainda
a
romantização
que
a
mídia
fez
do
trabalho
durante
a
Pandemia,
o
que
ajudou
a
mascarar
a
exploração
das
empresas-aplicativo.
Indicam
também
que
a
exigência
de
rapidez
entre
o
chamado,
a
chegada
ao
estabelecimento
e
a
coleta
dos
produtos,
não
é
calculada
junto
ao
preço
final
que
recebem
do
aplicativo,
sendo
esse
um
aspecto
que
mobilizou
os
Breques,
juntamente
com
os
riscos
e
a
insalubridade.
Segundo
Paulo
Galo
“você
se
remenda,
dá
um
jeito
de
continuar”
(Matos;
Salgado,
2020).
Muitos
trabalhadores
compram
ou
alugam
objetos
para
iniciarem
a
atividade,
e
com
a
necessidade
de
manterem
as
boas
avaliações
e
índices
de
respostas
aos
chamados,
acabam
ficando
duplamente
endividados
(Matos;
Salgado,
2020).
Diante
da
exploração
vivenciada,
a
organização
política
acaba
sendo
a
alternativa
surgida
no
discurso
dos
entregadores.
Para
Luiza
Rizzo,
“os
aplicativos
não
vão
deixar
de
existir,
mas
temos
que
ter
alguma
condição
justa”,
pois
“só
ganhamos
visibilidade
quando
paramos”
(Masson;
Oliveira,
2021).
O
adoecimento
diante
desse
modelo
gerencial
parece
inevitável,
como
é
demonstrado
através
da
experiência
de
Kelliane,
ao
afirmar
“hoje
tá
sendo
um
dos
piores
dias
para
mim,
triste:
decepção,
magoada,
cansada…
cabisbaixa,
pois
estou
sem
trabalhar,
e
as
contas
estão
chegando”.
Ela
era
trocadora
de
ônibus
no
Distrito
Federal,
é
cantora
e
passou
a
ser
entregadora
durante
a
pandemia.
Sofreu
um
acidente
durante
uma
entrega
e
ficou
um
período
sem
realizar
a
atividade
e,
por
consequência,
sem
conseguir
obter
a
remuneração
diária
da
qual
precisa.
A
decepção
e
a
mágoa
referidas
por
Kelliane
são
representativas
do
cenário
econômico
que
se
desenrola
a
partir
do
avanço
neoliberal,
e
coloca
sobre
o
sujeito
a
responsabilidade
por
si,
disfarçada
sob
a
falácia
do
“empreendedorismo”.
Isso
opera
16
desresponsabilizando
o
Estado
na
fiscalização
e
na
sanção
de
garantias
dos
direitos
trabalhistas
e
de
seguridade
social,
e
desonera
as
empresas-aplicativo
de
algumas
responsabilidades
mínimas.
Hoje,
aos
sujeitos,
ficam
as
responsabilidades
por
garantirem
o
sucesso
e
a
permanência
de
suas
vidas,
trabalhando
para
gerir
o
cotidiano
como
em
uma
empresa
(Safatle,
2020).
O
individualismo
excede
os
contornos
do
discurso
econômico
e
torna-se
parte
de
um
processo
de
subjetivação,
no
qual
o
indivíduo
precisa
dirigir
os
meios
e
dar
condições
à
sua
existência,
em
uma
espécie
de
“empreendedorismo
de
si”.
A
promoção
da
autoimagem
e
a
produtividade
incessante,
em
trabalhos
degradantes,
alicerçam
a
noção
meritocrática
da
existência.
As
redes
formadas
pelos
entregadores,
a
partir
do
início
da
Pandemia,
desfazem
alguns
desses
imperativos,
como
aponta
Luciana
Rizzo:
“eu
acredito
em
formas
alternativas
de
entrega,
como
no
Rio
a
gente
tá
montando
uma
cooperativa…
a
gente
tem
que
tentar
ter
formas
alternativas
de
ter
alguma
condição
mais
digna
de
vida”
(Matos;
Oliveira,
2021).
É
essencial
para
a
manutenção
da
exploração
dos
aplicativos
que
os
entregadores
se
sustentem
na
posição
de
únicos
responsáveis
por
toda
a
lógica
que
opera
ali.
Como
Mbembe
(2017)
também
nos
alerta,
uma
das
funções
do
capitalismo
é
produzir
parte
da
população
como
excedente
descartável.
Temos
acompanhado,
ao
longo
dos
anos
que
compreendem
este
recorte
documental,
uma
intensificação
exploratória,
mas
também
o
surgimento
de
manifestações
de
entregadores
que
seguem,
dentro
do
possível,
na
contramão
do
aplicativo.
Como
pudemos
ver,
a
Pandemia
intensificou
aquilo
que
já
era
muito
precário
(Amorim;
Moda,
2021).
As
medidas
de
combate
à
pandemia
e
o
isolamento
em
caso
de
contaminação
não
foram
possíveis
para
os
trabalhadores
em
maior
vulnerabilidade,
tais
como
os
entregadores.
Quando
houve
a
disponibilização
dos
exames
comprobatórios
de
contaminação
por
COVID-19,
os
entregadores
que
atestaram
o
contágio
foram
bloqueados
(Matos;
Salgado,
2020).
Houve
ainda
os
que
trabalharam
contaminados,
por
medo
da
represália,
e,
por
consequência,
de
perder
a
fonte
de
sustento
(Matos;
Salgado,
2020).
As
medidas
de
proteção
contra
a
COVID-19
foram
demandadas
pelos
trabalhadores,
sendo
uma
das
pautas
das
mobilizações.
Assim,
essas
características
negativas
do
trabalho
uberizado
produziram
também
outro
efeito:
fizeram
surgir
iniciativas
que
modificaram
o
curso
da
história
no
âmbito
da
organização
de
resistências
por
parte
dos
entregadores
17
(Cant,
2021;
Ricarte,
2023;
Uchôa-Oliveira;
Barros,
2022).
Podemos
então
acompanhar
algumas
novidades,
uma
das
quais
os
documentários
aqui
trazidos
apontam:
as
manifestações
e
organizações
de
entregadores
surgidas
ao
redor
do
país
também
são
tributárias
de
uma
resistência
ao
modelo
de
gestão
das
empresas-aplicativo.
A
resistência
de
sujeitos
que,
no
momento
de
uma
pandemia,
e
apesar
das
próprias
necessidades,
se
negam
ao
extremo
da
exploração,
é
o
principal
aspecto
que
os
entregadores
presentes
nos
documentários
elucidam.
Tal
constatação
mostra-se
alinhada
com
as
reflexões
oriundas
da
PST,
em
suas
compreensões
que
os
trabalhadores
não
são
meros
assujeitados
aos
constrangimentos
impostos
pelo
trabalho
e
pelas
estruturas
sociais.
Ao
contrário,
são
agentes
ativos
na
transformação
do
seu
entorno
e
do
mundo.
Organizações
de
trabalhadores
uberizados
estão
surgindo
em
diversas
localidades,
há
movimentos
aos
quais
esses
estão
aderindo
e
sobre
os
quais
as
mídias
alternativas
estão
fazendo
um
trabalho
de
divulgação
mais
amplo.
Há
também
articulações
importantes
entre
esses
trabalhadores,
setores
da
academia
e
do
judiciário,
que
podem
provocar
fissuras
nesse
sistema
de
trabalho.
Considerações
Finais
O
presente
artigo
se
estruturou
em
torno
das
evidências
manifestadas
pelos
trabalhadores
acerca
de
sua
realidade
cotidiana,
como
estas
são
tratadas
nos
documentários
analisados.
Através
dos
relatos
ali
presentes,
trouxemos
apontamentos,
em
concordância
com
os
indicativos
da
Psicologia
Social
do
Trabalho,
que
propiciam
reflexões
sobre
as
experiências
subjetivas
e
objetivas
desses
trabalhadores,
em
suas
relações
com
as
contradições
do
mundo
do
trabalho
na
atualidade.
Nos
últimos
anos,
o
serviço
de
entregas
cresceu
no
país,
sobretudo
no
período
aqui
delimitado
-
de
2020
a
2022,
tornando-se
uma
“opção”
amplamente
divulgada
entre
os
trabalhadores
desempregados,
bem
como
entre
os
desalentados.
A
temporalidade
e
a
conjuntura
histórica
acabam
por
contribuir
para
a
exacerbação
de
configurações
que
caracterizam
e
potencializam
a
precarização
do
trabalho.
Nesse
sentido,
a
Pandemia
de
COVID-19
acabou
por
contribuir
com
esse
processo,
18
ao
aumentar
o
tempo
despendido
pelos
trabalhadores
nas
plataformas,
justificado
pelo
alto
número
de
entregadores
disponíveis
e
pelas
baixas
taxas
pagas
pelo
aplicativo.
O
gerenciamento
algorítmico
também
surge
como
um
potencializador
do
salto
da
precarização
que
aqui
desenhamos.
A
imbricação
entre
a
gestão
dos
algoritmos
e
a
dificuldade
em
apreender
as
características
da
atividade
laboral,
tomada
como
um
jogo,
do
tipo
em
que
não
se
compreende
as
regras,
contribuem
para
o
adoecimento
dos
trabalhadores,
visto
que
esses
perdem
amplo
domínio
sobre
a
lida
com
o
trabalho.
São
muitos
os
efeitos
sobre
a
saúde
oriundos
dessa
realidade
laboral.
Alguns
se
manifestam
na
forma
de
acidentes,
outros,
menos
visíveis,
surgem
em
decorrência
das
inferências
constantes
que
os
trabalhadores
devem
fazer
ao
longo
dos
dias,
produzindo
um
sofrimento
psíquico
a
partir
das
incertezas
da
atividade.
Para
os
entregadores,
estarem
cadastrados
e
logados
não
garante
o
recebimento
de
entregas,
não
havendo
controle
sobre
os
ganhos,
considerando
ainda
possíveis
mudanças
que
podem
ser
feitas
a
qualquer
momento,
inclusive
bloqueios.
Portanto,
as
rotas
diárias,
de
maneira
metafórica,
mas
não
só,
da
própria
vida
dos
entregadores,
podem
ser
alteradas
de
uma
hora
para
outra,
segundo
a
“vontade”
maquinal
do
sistema
operacional,
sem
que
eles
consigam
sequer
estabelecer
uma
comunicação
com
as
empresas.
Os
“breques
dos
apps”,
as
associações
de
entregadores,
os
aplicativos
que
seguem
outros
modelos
de
gerenciamento
e
os
documentários
aqui
focalizados,
ao
levar
em
consideração
as
experiências
dos
entregadores,
reconduzem
os
discursos
para
fora
dessa
lógica
algorítmica.
A
Psicologia
Social
do
Trabalho,
ao
debruçar-se
sobre
esse
fenômeno,
mostra-se
assim
uma
ferramenta
útil,
tanto
do
ponto
de
vista
analítico,
como
interventivo,
em
busca
de
novos
possíveis.
Referências
ABILIO,
L.
C.
Uberização:
a
informalização
e
o
trabalhador
just-in-time.
Trabalho,
Educação
e
Saúde,
v.
19,
2021,
e00314146.
DOI:
10.1590/1981-7746-sol00314
ABILIO,
L.
C.
Uberização:
Do
empreendedorismo
para
o
autogerenciamento
subordinado.
Psicoperspectivas
,
Valparaíso,
v.
18,
n.
3,
p.
41-51,
nov.
2019.
Disponível
em:
.
Acesso
em:
25
fev.
2023.
ABÍLIO,
L.
C.,
AMORIM,
H.,
&
GROHMANN,
R.
Uberização
e
plataformização
do
trabalho
no
Brasil:
conceitos,
processos
e
formas.
Sociologias
,
v.
23,
n.
57,
pp.
26–56,
2021.
19
ALIANÇA
BIKE.
Pesquisa
de
perfil
de
entregadores
ciclistas
de
aplicativo.
São
Paulo,
Brasil:
Aliança
Bike,
2019.
AMORIM,
H;
MODA,
F.
Trabalho
por
aplicativo:
gerenciamento
algorítmico
e
condições
de
trabalho
dos
motoristas
da
Uber.
Revista
fronteiras
-
estudos
midiáticos
,
v.22,
n.
1,
p.
59-71,
jan./abr.,
2020.
AMORIM,
H;
MODA,
F.
Trabalho
por
aplicativo:
uma
síntese
da
intensificação
do
trabalho,
da
informalidade
e
da
resistência
política
no
contexto
da
Pandemia
de
COVID-19.
RTPS,
Rev.
Trabalho,
Política
e
Sociedade
,
v.6,
n.
10,
p.
105-124,
jan./jun.,
2021.
ANTUNES,
R.
O
privilégio
da
servidão
:
o
novo
proletariado
de
serviços
na
era
digital.
1.
ed.
São
Paulo:
Boitempo,
2018.
ANTUNES,
R.
(org)
Uberização,
Trabalho
digital
e
Indústria
4.0
.
1
ed.
São
Paulo:
Boitempo,
2020.
CANT,
C.
Delivery
fight!
A
luta
contra
os
patrões
sem
rosto.
Tradução
de
Alexandre
Broide.
São
Paulo:
Veneta,
2021.
DELGADO,
G.
N.;
ROCHA,
A.
L.
G..
Um
retrato
do
mundo
do
trabalho
na
pandemia
em
cinco
paradoxos.
Direito.UnB
-
Revista
de
Direito
da
Universidade
de
Brasília,
v.
4,
n.
2,
p.
16-34,
31
ago.
2020.
Disponível
em:
https://periodicos.unb.br/index.php/revistadedireitounb/article/view/32394
.
van
DOORN,
N.
Trabalho
em
plataformas
é
trabalho
de
minorias.
In
:
Grohmann,
Rafael
(org).
Os
Laboratórios
do
trabalho
digital
:
entrevistas.
1ed.
São
Paulo:
Boitempo,
2021
FORESTI,
T.
Da
porta
para
fora
(1:24:15).
Publicado
pelo
canal
Forest
Criações.
Disponível
em
<https://vimeo.com/701471398>
.
Acesso
em:
17
ago
2023.
GARCIA,
K.
A
indústria
4.0
e
o
trabalho
mediado
por
empresas
de
plataforma:
um
estudo
a
partir
da
pandemia
de
COVID
19
no
Brasil.
2023.
66p.
Trabalho
de
Conclusão
de
Curso
–
Bacharelado
em
Serviço
Social
-
Universidade
Estadual
Paulista
(UNESP),
Franca,
2023.
GROHMANN,
R.
Plataformização
do
trabalho:
características
e
alternativas.
In:
Antunes,
R.
(org.).
Uberização,
trabalho
digital
e
indústria
4.0
.
São
Paulo:
Boitempo,
2020.
GROHMANN,
R.
(Org).
Os
laboratórios
do
trabalho
digital
:
entrevistas.
1
ed.
São
Paulo:
Boitempo,
2021.
KOIVISTO,
J.;
HAMARI,
J.
The
rise
of
motivational
information
systems:
A
review
of
gamification
research.
International
journal
of
information
management,
45,
191-210,
2019.
https://doi.org/10.1016/j.ijinfomgt.2018.10.013
LAPA,
R.
S.
O
Trabalho
em
plataformas
digitais
e
a
pandemia
da
Covid-19:
análise
dos
dados
da
PNAD
Covid-19/IBGE.
In:
SILVA,
S.
P.;
CORSEUIL,
C.
H.;
COSTA,
J.
S.
Impactos
da
pandemia
de
Covid-19
no
mercado
de
trabalho
e
na
distribuição
de
renda
no
Brasil
.
Brasília:
IPEA,
2022.
p.
285-303.
MASSON,
L.;
OLIVEIRA,
S.
Trajetos
e
trajetórias
invisíveis
na
cidade
(30:39).
Publicado
pelo
canal
VideoSaúde
Distribuidora
da
Fiocruz.
Disponível
em
https://www.youtube.com/watch?v=mKoCf338F5c&t=962s
.
Acesso
em
02
ago
2023.
20
MATOS,
A.;
SALGADO,
G.,
2020.
O
Pandelivery
-
Quantas
vidas
vale
o
frete
grátis?
(14:59).
Publicado
pelo
canal
Pandelivery
-
quantas
vidas
vale
o
frete
grátis?
Disponível
em
<https://www.youtube.com/watch?v=gwL9QdS7kbA>.
Acesso
em:
22
fev.
2021.
MBEMBE,
A.
Políticas
da
Inimizade.
Trad:
Marta
Lança
-
Portugal:
Editora
Antígona,
2017.
MOMBELLI,
N.
F.;
TOMAIM,
C.
D.
S.
Análise
fílmica
de
documentários:
apontamentos
metodológicos.
Lumina,
8(2),
2014.
OLIVEIRA,
F.;
ESTEVES,
E.
G.;
BERNARDO;
M.
H.;
SATO.
Psychologie
sociale
du
travail:
rencontres
entre
recherche
et
intervencion.
Bulletin
de
Psychologie,
t.
68,
n.
2,
p.
93-104,
2015.
PEREIRA,
M.
S.
A
Psicologia
Social
do
Trabalho
como
campo
de
práticas,
saberes
e
resistências.
Psicologia
&
Sociedade
.
v.
32,
2020.
DOI:
https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32192604
RICARTE,
C.
de
S.
Dos
#brequedosapps
às
associações
de
entregadores:
a
percepção
dos
trabalhadores
sobre
a
resistência
à
uberização
no
trabalho
por
aplicativos.
2023.
91
f.
Dissertação
(Mestrado
em
Psicologia)
-
Programa
de
Pós-
Graduação
em
Psicologia,
Centro
de
Humanidades,
Universidade
Federal
do
Ceará,
Fortaleza,
2023.
SAFATLE,
V.
A
economia
é
a
continuação
da
psicologia
por
outros
meios:
sofrimento
psíquico
e
neoliberalismo
como
economia
moral.
In
SAFATLE,
V;
SILVA
JR.,
N;
DUNKER,
C.
(org.).
Neoliberalismo
como
gestão
do
sofrimento
psíquico
.
Belo
Horizonte:
Autêntica,
2020.
p.
17-46.
SAFATLE,
V;
SILVA
JR.,
N;
DUNKER,
C.
(org.).
Neoliberalismo
como
gestão
do
sofrimento
psíquico
.
1.
ed.
Belo
Horizonte:
Autêntica,
2020.
SATO,
L;
COUTINHO,
C.
M;
BERNARDO,
H.M.
A
perspectiva
da
Psicologia
Social
do
Trabalho.
In:
COUTINHO,
M.;
BERNARDO,
M;
SATO,
L.
(org.)
Psicologia
Social
do
Trabalho
,
Petrópolis,
RJ:
Vozes,
2017.
SILVEIRA,
D.
Desemprego
diante
da
pandemia
bate
record
no
Brasil,
aponta
o
IBGE.
2020.
https://g1.globo.com/economia/noticia/2020/10/23/no-de-desempregados-diante-da-pandemi
a-aumentou-em-34-milhoes-em-cinco-meses-aponta-ibge.ghtml
SLEE,
T.
Uberização
:
a
nova
onda
do
trabalho
precarizado.
1.
ed.
São
Paulo:
Elefante,
2017.
UCHOA-DE-OLIVEIRA,
F.
M.;
BASTOS,
J.
A.
Uberização:
precarização
do
trabalho
e
ação
política
dos
trabalhadores
no
Brasil
de
2020.
Cadernos
de
Psicologia
Social
do
Trabalho
,
[S.
l.],
v.
25,
2022.
DOI:
https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.cpst.2022.180691
21