V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X A GESTÃO ALGORÍTMICA E O SALTO NA PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO DE ENTREGADORES A PARTIR DA PANDEMIA DE COVID-19 . 1 Camila de Sousa Ricarte 2 Cássio Adriano Braz de Aquino 3 Maristela de Souza Pereira 4 Resumo Este trabalho tem o intuito de investigar a intensificação da precarização do trabalho dos entregadores por aplicativos de delivery, a partir da Pandemia de COVID-19 e em função da gestão algorítmica. Colocamos em diálogo os excertos do texto de entregadores presentes nos documentários escolhidos, “O pandelivery: quantas vidas vale o frete grátis?” (2020), de Antônio Matos e Guimel Salgado; “Trajetos e trajetórias invisíveis na cidade” (2021), de Letícia Masson e Simone Oliveira, e “Da porta para fora” (2022), de Thiago Foresti, com a Psicologia Social do Trabalho (PST) e, a partir do pressuposto inicial de que o ambiente laboral desses trabalhadores está situado na precarização, destacamos três categorias “baixa remuneração”, “intensificação de jornada” e “adoecimento” como guias de análise. Dentre os resultados, temos que a partir do período pandêmico e com a amplificação desses aspectos surgiram os laços de organização política que perpassam a reivindicação de direitos pela categoria de entregadores. Palavra-chave: gestão algorítmica; precarização; entregadores, delivery. LA GESTIÓN ALGORÍTMICA Y LA INTENSIFICACIÓN DE LA PRECARIZACIÓN LABORAL DE LOS REPARTIDORES TRAS LA PANDEMIA DE COVID-19 Resumen El objetivo de este artículo es investigar la intensificación de la precarización del trabajo de los repartidores desde la Pandemia de Covid-19 y en razón de la gestión algorítmica. Hemos puesto en diálogo los fragmentos de texto de los repartidores presentes en los documentales selecionados - “El pandelelivery: cuantas vidas vale el flete gratis?” (2020) de Antonio Matos e Guimel Salgado; "Caminos y trayectorias invisibles en la ciudad" (2021), de Letícia Masson y Simone Oliveira, y "De la puerta para afuera" (2022), de Thiago Foresti - con la Psicología Social del Trabajo (PST) y, partiendo de la hipótesis inicial de que el entorno laboral de estos trabajadores se sitúa en la precariedad, destacamos tres categorías - "baja remuneración", "intensificación de la jornada laboral" y "enfermedad"- como guías de análisis. Los resultados muestran que, desde el periodo pandémico y con la amplificación de estos aspectos, han surgido vínculos políticos organizativos que han llevado a los repartidores a exigir sus derechos. Palabra clave: gestión algorítmica; precarización; repartidores; delivery 4 Psicóloga e doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) - Brasil. Docente do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Minas Gerais - Brasil. E-mail: Maristela.ufu@gmail.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/7170920628750200 . ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6520-079X . 3 Doutor em Psicologia pela Universidad Complutense de Madrid (UCM) - Espanha. Professor Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). E-mail: brazaquino@ufc.br. Lattes: http:// lattes.cnpq.br/0857879689626098. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8651-1634. 2 Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) - Brasil. Psicanalista em consultório particular e Assessora Especial de Políticas da Diversidade Município de Tauá Ceará. E-mail: camila.ricarte5@gmail.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/9609785382567560 . ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5817-8467 1 Artigo recebido em 15/04/2024. Primeira Avaliação em 11/09/2024. Segunda Avaliação em 20/10/2024. Aprovado em 31/10/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.62610. 1
ALGORITHMIC MANAGEMENT AND THE INTENSIFICATION OF THE PRECARIOUSNESS OF DELIVERY WORKERS’ WORK FOLLOWING THE COVID-19 PANDEMIC Abstract This paper aims to investigate the intensification of the precariousness of delivery workers' work by delivery apps, starting from the COVID-19 Pandemic and as a result of algorithmic management. We put into dialogue the text excerpts of delivery workers present in the chosen documentaries, "O pandelivery: quantas vidas vale o frete grátis?" (2020), by Antônio Matos and Guimel Salgado, "Trajetos e trajetórias invisíveis na cidade" (2021), by Letícia Masson and Simone Oliveira, and "Da porta para fora" (2022), by Thiago Foresti, with the Social Psychology of Work (SPW) and, based on the initial assumption that the working environment of these workers is situated in precariousness, we highlight three categories - "low payment", "intensification of working hours" and "illness" - as guides for analysis. The results show that since the pandemic period, and with the amplification of these aspects, there have been bonds of political organization that permeate the demand for rights by the category of delivery workers. Keywords: algorithmic management; precariousness; delivery workers; delivery. Introdução A Pandemia da COVID-19, causada pelo vírus Sars–CoV-2, iniciada em 2020, reconfigurou a vida e o trabalho das pessoas ao redor do mundo. Segundo Delgado e Rocha (2020), para além dos danos sanitários e da amplitude da crise de saúde, os prejuízos foram observados também a partir da acentuação de desigualdades econômicas, sociais e, sobretudo, laborais. Ao discutir as categorias de trabalhadores que no período da Covid-19 foram colocados como “essenciais”, Garcia (2023) indica que os operadores de “serviços”, dentre os quais os entregadores, foram mais afetados pela desigualdade existente nos contextos de trabalho e que foram intensificadas no cenário da pandemia . Elegemos, então, como preocupação neste artigo a exacerbação da precarização do trabalho de entregadores por aplicativos ocorrida durante o período pandêmico. Destacamos que o intervalo entre 2020 e 2022 intensificou a precariedade característica do trabalho por aplicativos, de modo que a jornada foi ampliada e a remuneração por entrega dos trabalhadores diminuiu. No período crítico da pandemia, o índice de desempregados chegou à marca de 40% da população economicamente ativa. Com o aumento da demanda por entregas, nos momentos de isolamento social, os aplicativos foram atrativos a essa parcela da sociedade, e acabaram por cooptar mais trabalhadores para estas atividades (Amorim; Moda, 2021), empurrando um grande contingente de sujeitos para o tipo de trabalho aqui focalizado. Ambos grupos, formados por aqueles que se inseriram no trabalho por aplicativo e por aqueles que desempenhavam esta atividade, 2
estavam mais expostos ao vírus no momento de imposição de isolamento e de interrupção do atendimento presencial por diversas empresas, medidas necessárias nas fases mais críticas da circulação viral. Outras produções científico-acadêmicas focalizaram esta questão e serão aqui retomadas. Todavia, o ponto central que guiará o presente trabalho será uma discussão sobre a gestão algorítmica, objetivando tecer reflexões sobre como o entrelaçamento do momento pandêmico com o gerenciamento algorítmico produziu um salto no processo de precarização do trabalho de entregadores por aplicativos e sobre como esses trabalhadores produziram compreensões sobre esse processo. Para tanto, tomaremos como material de análise documentários que trazem o discurso dos entregadores na lida com os aplicativos durante a Pandemia de COVID-19, período em que a categoria também forjou espaços de luta e organização. Embora se reconheça que o trabalho dos entregadores é atravessado por questões pertinentes ao mundo do trabalho na contemporaneidade, para além do marco temporal que circunscreve o período pandêmico, é inegável que a conjuntura histórica viabilizada pela Pandemia de COVID-19 aprofundou e intensificou as condições de precarização do trabalho desta e de outras categorias, trazendo também maior notoriedade para seus membros e para suas reivindicações. Os episódios de organização dos entregadores ocorridos em 2020 foram nomeados “Breques dos Aplicativos” 5 e conseguiram dar visibilidade aos entregadores e à problemática oriunda das condições precárias de trabalho nas plataformas. Esses eventos ganharam destaque nas mídias alternativas e inspiraram a produção de alguns documentários, lançados a partir de então. No momento das dificuldades impostas pela crise sanitária, tivemos uma reconfiguração da posição destes trabalhadores diante das plataformas (Cant, 2021; Uchôa-Oliveira; Bastos, 2022). Assim, os entregadores puderam expor de maneira mais abrangente as condições nas quais o trabalho ocorria e ainda ocorre, bem como conseguiram configurar espaços de formação de laços entre pares, através da criação de associações pelo país. 5 Os Breques dos Aplicativos foram paralisações convocadas a partir de julho de 2020, ocorridos em algumas capitais do país, com o objetivo de chamar a atenção para as arbitrariedades dos aplicativos para com os seus cadastrados. Conferir em: https://diplomatique.org.br/breque-apps-direito-de-resistencia-na-era-digital/ 3
A análise das produções documentais se dará através das lentes da Psicologia Social do Trabalho (PST). Tal escolha se uma vez que este campo compreende o trabalho na sua materialidade histórica e, simultaneamente, na apreensão singular através da ótica dos trabalhadores e trabalhadoras. Desse modo, mostra-se alinhada com os objetivos do presente estudo, ao colocar em complementaridade a relação entre os aspectos objetivos e as perspectivas subjetivas depreendidas dos discursos dos trabalhadores acerca da compreensão de suas atividades (Sato; Coutinho; Bernardo, 2017). Destaca-se que a PST não possui uma perspectiva unificada, constituindo-se enquanto um campo de produções críticas que se debruçam sobre problemáticas diversas relacionadas ao mundo do trabalho, a partir de práticas e modalidades interventivas também diversas, sustentadas por diferentes teorias e propostas metodológicas. Em comum, tais produções se sustentam em uma leitura crítica da realidade, na interdisciplinaridade, na ênfase no conhecimento e experiência dos trabalhadores, em uma perspectiva contra-hegemônica e não exploratória desses, na assunção da dimensão política como inseparável da dimensão científica, na constatação da relação fulcral entre a subjetividade e os aspectos objetivos e materiais de existência, na indissociabilidade entre pesquisa, prática e intervenção, na horizontalidade das relações entre sujeitos pesquisadores e sujeitos trabalhadores, e na busca pela transformação social e das condições de trabalho (PEREIRA, 2020, p. 1). As pesquisas desenvolvidas no âmbito da Psicologia Social do Trabalho estabelecem importantes relações com o campo das práticas laborais, tendo seu ponto de partida nos problemas concretos vivenciados pelos trabalhadores (Oliveira; Gómez; Hespanhol; Sato, 2015). Tal premissa se mostra condizente com a proposta do estudo em tela, ao partir das problemáticas apontadas pelos entregadores, que têm lugar no seu cotidiano de trabalho. Faremos, portanto, nossa análise a partir de uma abordagem crítica das condições de trabalho em plataformas e dando ênfase ao que os entregadores dizem nas entrevistas apresentadas nas produções aqui focalizadas, tendo em consideração também as produções científicas brasileiras recentes que analisam os processos de trabalho mediados por plataformas digitais, fenômeno nomeado na literatura como uberização (Abílio, 2021; Amorim; Moda, 2021; Lapa, 2022; Uchôa-Oliveira; Bastos, 2022). 4
Percurso metodológico Delimitamos como escopo de pesquisa a produção de documentários ocorrida no período pandêmico acerca do tema, a saber os documentários: “O pandelivery: quantas vidas vale o frete grátis?” (2020), documentário de Antônio Matos e Guimel Salgado; “Trajetos e trajetórias invisíveis na cidade” (2021), de Letícia Masson e Simone Oliveira, e “Da porta para fora” (2022), de Thiago Foresti. Selecionamos estas películas por acreditarmos que elas expressam um recorte temporal que abarca o momento em que os entregadores surgem como questão de interesse, pela emergência do período mais crítico da pandemia e, simultaneamente, pela explicitação contundente da precarização do trabalho associada a esta categoria, e ainda mais exacerbada naquele momento. Tal escolha também se justifica pela representação que estes documentários fazem do trabalho por aplicativos, ainda que mediada pela percepção de seus realizadores, bem como por apresentarem os discursos de entregadores que estão nas associações de trabalhadores surgidas no período pandêmico. Metodologicamente, ancoramos nossas análises em uma leitura interpretativa, que não segue uma proposição única e monolítica e que coloca o acento na narrativa e nas categorias que emergem nesse processo e que constituem o produto final (Mombelli; Tomaim, 2014). Essas categorias, ressoam pela recorrência tanto no discurso dos entregadores, quanto na incidência textual presente nas referências bibliográficas às quais recorremos (Abílio, 2020; 2021; Amorim; Moda, 2021; Antunes, 2020; Grohmann, 2021), demonstrando sensibilidade teórica na apreensão da realidade vivenciada pelos uberizados. Tais categorias são: “baixa remuneração”; “intensificação de jornada” e “adoecimento” - tanto físico quanto psíquico. Elas culminam ainda na organização política dos entregadores, do que se depreende a vitalidade dessas. Ressalta-se ainda que esta proposta metodológica possui consonância com o referencial teórico adotado, uma vez que os estudos formulados a partir da PST priorizam os discursos da classe que vive do trabalho e a análise das contradições da atividade expostas por esses, aspectos presentes nos documentários analisados. Livremente inspirados no projeto “tela crítica” (Alves, 2021) colocaremos em diálogo as discussões teóricas presentes na literatura sobre a caracterização do 5
trabalho por aplicativos no Brasil e o modo como esta atividade é retratada nas produções documentais selecionadas. Este também é um ponto de contato importante com as premissas da PST, haja vista que, nos documentários analisados, não uma delimitação prévia das verbalizações dos trabalhadores, ou seja, seus discursos não são controlados a partir de uma proposição preliminar um roteiro mas sim construídos no encontro da realidade experimentada por eles com a oportunidade de narrar seu cotidiano de trabalho e, assim, pensar e produzir significações sobre ele. Nesse sentido, resgata-se a dimensão da intervenção produzida pela própria participação dos entregadores nos documentários, a qual também tem consonância com o referencial teórico adotado. A produção desses filmes, por sua vez, também pode ser apontada como uma ferramenta de intervenção sobre a realidade social, ao dar forma ao discurso dos entregadores e auxiliar na difusão de suas reivindicações. Também é importante destacar, no âmbito metodológico, que embora os discursos apresentados nos documentários tenham sido selecionados a partir da intenção dos diretores e dos aspectos que estes tomam como mais relevantes nas falas dos entregadores, uma conexão direta entre os temas abordados e a literatura acadêmica sobre o trabalho dessa categoria. Portanto, os temas que emergiram nas análises apresentam um movimento circular, que perpassa a atividade em si, as representações sobre esta e também as análises científicas sobre o fenômeno, atestando assim sua validade. Apresentaremos inicialmente algumas reflexões sobre o fenômeno que tem sido reconhecido como uberização do trabalho, destacando principalmente o aspecto que mais interessa à nossa discussão, o gerenciamento algorítmico, para então passarmos à análise dos discursos dos trabalhadores, relacionados às suas vivências objetivas, os quais conformam as categorias temáticas aqui consideradas. O gerenciamento algorítmico e a uberização do trabalho As discussões sobre o modelo de gestão do qual tratamos ao longo deste texto evoluíram a partir da empresa de serviços de viagens e entregas Uber. Por conta do alcance da mesma houve a nomeação inicial desse modo de organização do trabalho como uberização (Abílio, 2019; Antunes, 2018; Slee, 2017). Com a 6
abrangência e expansão do campo a outros aplicativos, as maneiras de exploração do trabalhador foram sendo aprimoradas. Embora possa parecer um fenômeno novo, a uberização consolida um processo em andamento décadas, de eliminação de direitos e constituição de novos arranjos produtivos que ampliam ainda mais a exploração dos trabalhadores, tendo como principais características a implementação de novas formas de gestão e controle da força de trabalho, alicerçadas na premissa do trabalho sob demanda (Abílio, Amorim & Grohmann, 2021). Algumas características da operação da empresa Uber em relação aos seus trabalhadores são importantes de mencionar, pois repetem-se enquanto modelo de atuação para outras empresas, tais como o rápido espraiamento no momento em que chegam ao território e a não submissão às leis locais. Dada a globalização, cada setor - tributário, de licenciamentos, de tecnologia - está localizado em um país, no qual é isento de impostos (Slee, 2017), aspecto no qual esbarram as tentativas de regulamentação da sua atuação. A manipulação e persuasão por meio de estratégias de marketing também são comuns na construção do apelo baseado nos ganhos de seus trabalhadores e na ideia distorcida de não haver um patrão, o que faz com que, à primeira vista, o cadastro na plataforma pareça um bom negócio. Estar associada com a tecnologia leva à inferência do escopo de atuação dessas empresas como se fossem apenas uma mídia tecnológica, como se o aplicativo apenas rodasse um disco rígido que gerencia a atividade, e não tivessem, portanto, responsabilidades com os entregadores que estão logados à sua plataforma (Amorim; Moda, 2021). Esta estratégia de colocar os aplicativos como um “serviço”, e mais ainda, de identificá-lo como um aspecto puramente “tecnológico”, facilita a isenção de responsabilidades por parte das empresas, visto que “o aplicativo significa apenas a interface visível do software em celular, como a ponta do iceberg do que significa exatamente plataforma - como infraestrutura e modelo econômico” (Abílio; Amorim; Grohmann, 2021, p. 36). Esta é uma jogada usada pelas empresas-aplicativo para subverter as leis locais, sobretudo as trabalhistas, ao se apresentarem apenas como mediadoras da relação entre o trabalhador que oferece seus serviços e o cliente que os solicita. Como indicado por Ricarte (2023), diferentes modos de reestruturação subjetiva foram necessários para a conformação, não sem conflitos, dos sujeitos ao 7
novo de tipo de trabalho, tais como uma percepção alterada do tempo, em acordo com a exigência de celeridade da plataforma, bem como uma individualização exacerbada, que resulta no trabalhador percebido em unidade e dissociado de seus pares, desarticulando assim as condições de reivindicação coletiva. Tais mudanças foram paulatinas e constituíram-se ao longo de muitos anos, no entanto, a inserção de um alto e rápido processamento de dados em plataformas que agora estão imbricadas à gestão do trabalho fizeram com que as reestruturações no mundo laboral fossem mais incisivas e intensas, sobretudo em categorias desprotegidas por décadas de desmontes nas leis de proteção ao trabalhador (Abílio; Amorim; Grohmann, 2021; Amorim; Moda, 2020). O gerenciamento algorítmico (Abílio, 2021; Amorim; Moda, 2020; Cant, 2021) trata-se de uma característica central nesse modo de organização do trabalho, aspecto que ainda carece de investigações aprofundadas. Grohmann (2020) conceitua a gestão algorítmica do trabalho como um conjunto de práticas de supervisão, controle e governança, produzidas e conduzidas pelos algoritmos, as quais reconfiguram as atividades de trabalho, produzindo rastreamento e avaliação permanente dos trabalhadores, automatização das decisões e menor transparência sobre todo esse processo. Estamos diante de um novo modelo de gestão, em que um grande fluxo de dados é extraído no campo do trabalho, tais como as estratégias cotidianas dos trabalhadores, as rotas, o tempo de execução das tarefas (Abílio, 2021); enquanto, por outro lado, no campo dos consumidores, também são computados os dados sobre a recorrência de pedidos, preferências, locais de circulação e de fixação desses sujeitos, enfim, tudo o que puder ser capturável e utilizável em prol da acumulação capitalista. Esses dados não se constituem apenas em informação per se , mas em capital, sendo utilizados diretamente para a produção de mais valor. Ao abordar o caso da Deliveroo, Cant (2021) indica o gerenciamento algorítmico como o ordenamento do trabalho a partir da tecnologia da informação. Ele apresenta inquietações semelhantes às que trouxemos até o momento, sobretudo no âmbito da não compreensão de como ocorrem as tomadas de decisão vindas a partir da plataforma. De Brighton, Inglaterra, ele explicita vivências que encontram consonância na fala dos entregadores brasileiros que traremos mais adiante. Por lá, diante do desconhecimento dos processos organizativos das 8
plataformas e por não saberem como proceder com o sistema operacional, os trabalhadores tateiam em busca de indícios e o nomeiam “caixa-preta” (Cant, 2021), pois os códigos existem, estão ali, mas são inacessíveis aos entregadores; são sistemas que não permitem a extração e análises de seus dados por parte daqueles que são diretamente afetados pelos mesmos. Os softwares que rodam as plataformas que fazem a interface do “serviço” com os usuários também são chamados de caixa-preta, pois não é possível identificar como estes operam, visto que nem mesmo quem produz esses códigos sabe precisar como os algoritmos se comportarão após serem lançados. No entanto, é o processamento de dados, com o desconhecimento da maioria das pessoas, que permite que os gastos operacionais do trabalho sejam minimizados, pois “aumenta a complexidade do processo de coordenação de trabalho de baixo custo” (Cant, 2021, p. 85). Através do exacerbado número de dados que são recolhidos, as taxas, os horários de maior circulação, a desativação de algum segmento, enfim, todos os fatores podem ser coordenados e modificados constantemente e sem aviso prévio, seus termos são mutáveis e os trabalhadores ficam à mercê de formas de controle que desconhecem. Segundo Doorn (2021), o trabalho em plataformas, tal qual o de entregadores, é valioso exatamente por sua produção de dados. A extração das informações supracitadas é de extrema valia para o capital, pois o treinamento de algoritmos empreendido através da interação entre entregadores-plataforma e os usuários-plataforma são essenciais aos ganhos das empresas-aplicativo. Para esse autor, o trabalho plataformizado é a chave na compreensão da dinâmica estabelecida entre as pessoas que fornecem os dados e a produção de inteligência artificial, através da qual as empresas-aplicativos lucram exorbitantemente ao manterem em sua base um trabalho de baixa remuneração, no qual são espelhadas e reproduzidas as desigualdades existentes na sociedade. Um aspecto que salta aos olhos nesse sentido é a espacialização da desigualdade, dado que a grande maioria dos entregadores residem em bairros periféricos e atendem a demandas daqueles situados majoritariamente nas regiões centrais da cidade. Outro aspecto que deve ser considerado é o atravessamento das questões de raça e gênero, sendo, portanto, necessário também aprofundar as análises sobre a divisão sócio-racial e sexual do trabalho gerenciado por algoritmos. 9
Cant (2021) aponta-nos também que o investimento em tecnologias que garantam um aprimoramento da extração de mais-valia é o que diferencia os aplicativos disponíveis no mercado hoje. Compreender tal eixo de análise faz-se fundamental, uma vez que se trata da extração de dados realizada por outro grupo de trabalhadores. sua análise ocorre fundamentalmente sem mediação humana. Mas, não se pode desconsiderar que é através da manipulação destas análises, que se produzem ainda mais efeitos negativos sobre os trabalhadores, pois as plataformas mascaram informações para indicar condições de trabalho inexistentes, visando garantir novos cadastrados e boas avaliações por parte dos usuários, como também indica-nos Slee (2017). Este é um eixo de reclamação e demandas recorrentes dos entregadores, dado que o gerenciamento algorítmico “é projetado para aumentar a exploração da mão de obra com o objetivo de proporcionar uma vantagem competitiva aos patrões que investirem nessa tecnologia” (Cant, 2021, p. 84). Alguns destes processos têm sido referidos desde o início nos estudos produzidos no campo (Slee, 2017; Abílio, 2019) e seguem sendo referência para uma abordagem das implicações no cotidiano dos trabalhadores por aplicativo, como veremos adiante. Análise dos testemunhos de trabalhadores Os documentários selecionados tornam-se fontes de pesquisa, à medida em que são capazes de condensar, no tempo gravado, recortes de entregadores em diferentes localidades, testemunhando algo generalizante de suas experiências: a precarização. Tomando como base os indicativos feitos por Alves (2021), em que cenas e personagens são lidos de forma associada aos contextos socioeconômicos presentes nas películas analisadas, seguiremos trazendo aspectos do discurso de entregadores e articulando-os às perspectivas teóricas com as quais estamos trabalhando. Destacamos que, embora os fragmentos discursivos apresentados nas obras selecionadas sejam mediados pela escolha do diretor destas peças, esses privilegiam a perspectiva da realidade desses trabalhadores. As modificações no mundo do trabalho a partir da uberização criaram as condições para o surgimento do que ficou conhecido como “breques dos apps”, o que é ilustrado nos documentários aqui focalizados: “O pandelivery: quantas vidas 10
vale o frete grátis?” (2020), “Trajetos e trajetórias invisíveis na cidade” (2021), e especificamente, no documentário “Da porta para fora” (2022). A partir dos relatos colhidos nestas obras, temos acesso ao vivido da experiência dos trabalhadores. Seguimos com o norte orientador da PST, de modo a apreender nos relatos dos entregadores as dificuldades em constituir uma categoria unificada, bem como em transformar a experiência individual com a precarização do trabalho em motor para conformar uma luta política. Em “Da porta para fora” (2022) temos um recurso produzido pela captura de imagem: acompanhamos, inicialmente, a construção dos relatos a partir das gravações feitas através de uma câmera acoplada a um entregador. Isso faz com que possamos seguir sua movimentação ao longo da jornada de trabalho, de modo que temos acesso àquilo que o trabalhador vivencia na sua relação com a cidade. Este recurso inicial, em que não temos o enfoque de um rosto, mas do percurso feito por um trabalhador, faz-nos pensar que a jornada de trabalho, intensificada e extensa é mais importante do que aquele que a produz, como se o trabalhador pudesse ser invisível ou qualquer um. No momento em que o documentário tem início, escutamos vinhetas sobre a pandemia e sobre os primeiros casos funestos, dando enfoque à notícia da primeira vítima fatal no Brasil: Rosana Urbano, uma diarista 6 , bem como aos relatos sobrepostos de alguns entregadores sobre o corte inserido pela Pandemia: “antes era mais normal o cotidiano”. Neste documentário, acompanhamos, de forma mais esmiuçada, o dia-a-dia de três entregadores do Distrito Federal: Sorriso, Marcos e Kelliane. em “O pandelivery - quantas vidas vale o frete grátis?” (2020), no retroceder temporal operado, pouco percebemos de mudança nos relatos encontrados anteriormente: vamos do “desalento do desemprego” (Antunes, 2018), quando pessoas estão cansadas de procurar vagas inexistentes, à inscrição no aplicativo, cujo salto entre 2020 e 2022 se deu em função do incremento do desemprego e do fato dessa atividade passar a ser considerada como um serviço essencial (Amorim; Moda, 2021). 6 O enfoque dado pelo documentário, indica que a primeira pessoa a morrer em decorrência da Covid-19 no Brasil foi contagiada por sua patroa, que havia viajado à Europa. Esta morte aconteceu logo em março de 2020. Conferir em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2022/03/ha-dois-anos-morria-a-primeira-vitima-da-covi d-19-no-brasil.shtml . Acesso em 12 set 2023. 11
O documentário “Trajetos e trajetórias invisíveis na cidade” (2021) está, temporalmente, entre os dois supracitados. Nele acompanhamos os relatos de vários participantes de coletivos organizados a partir dos “Breques dos aplicativos”, sobre as vivências e adoecimentos diante do trabalho por aplicativo, que é invisibilizado. Neste documentário são apresentados trabalhadores que compartilham e dão relevo às experiências em canais do Youtube e também estão organizados em coletivos de trabalhadores precários e Associações, como a AMABR - Associação dos motofretistas de aplicativos e autônomos do Brasil, criada em São Paulo, no ano de 2018, com o intuito de reunir integrantes para fortalecer os direitos da categoria (AMABR, 2021). Nas obras selecionadas, temos relatos em que são destacados motivos para a entrada no aplicativo, o que nos indícios sobre o processo de precarização da atividade. Para alguns entregadores a profissão sempre foi essa, embora atuassem antes de maneira regulamentada e sob contratos vinculados a algum estabelecimento, o que foi alterado pela chegada do aplicativo (Foresti, 2022). Vários dos discursos trazidos e sobrepostos ao longo dos documentários, indicam a estratégia dos aplicativos que é, inicialmente, chegar ao território e capturar vários trabalhadores com a promessa de altos ganhos, como apontado por Slee (2017). São apresentados casos de entregadores que trabalhavam como motoboys e perderam seus contratos regulamentados, como é o caso de Jefferson, que trabalha como entregador no Rio de Janeiro 10 anos: “Antes a gente tinha contato diretamente com o empresário”. No entanto, com a chegada do aplicativo, ele refere “não ter como concorrer, perdi vários contratos” (Foresti, 2022). Esse trabalhador ainda faz referência ao modo de recrutamento que eles viabilizam para as empresas-aplicativo, quando enviam links para colegas se cadastrarem, a fim de ganharem descontos e bonificação da plataforma, ainda que, posteriormente, o alto número de cadastros reduza a quantidade de entregas que cada um recebe. Tal aspecto representa a faceta do capitalismo de dados apontado por van Doorn (2021) como uma novidade na abordagem possível do aplicativo, em que os dados coletados importam e são mais rentáveis que o próprio comércio de mercadorias. Os recortes escolhidos para análise desses materiais documentais, “baixa remuneração, “intensificação da jornada” e “adoecimento”, representam um modo intrínseco de organização do trabalho uberizado, estando também em linha direta 12
com o gerenciamento algorítmico. uma extração do sofrimento operada de maneira significativa pela exigência de disponibilidade dos trabalhadores, que precisam estar durante longos períodos conectados ao aplicativo, de forma que não muito tempo livre da plataforma. Embora exista essa extensão da jornada, os ganhos não se sobressaem para além do necessário para sobreviverem, sendo assim operada também uma “gestão do sofrimento psíquico” (Safatle; Silva Jr; Dunker, 2020). É a partir dos relatos sobre o tempo disponível ao aplicativo que temos a ideia de como os problemas causados pela gestão algorítmica têm-se imbricado de modo a levar os entregadores a crerem que não têm saída. Através dos relatos ofertados nos diferentes documentários, temos um retrato dos efeitos devastadores sobre a saúde desses trabalhadores, visto que o trabalho sob demanda e a remuneração por entrega, tornam o tempo de conexão com aplicativo cada vez mais extenso, assim como o desgaste físico e psíquico ao qual estão submetidos. O desenho dos aplicativos, que resulta na experiência conhecida como “gamificação”, também opera nesse processo. Assim, o entregador vivencia o trabalho no aplicativo como um jogo (Koivisto; Hamari, 2019), havendo referência à “expectativa do celular tocar para fazer entrega”, pois no “início era um vício”, como nos indica Jean, entregador da Bahia, mais de 10 anos. Jefferson também refere experiência semelhante: “acabamos assim, viciando em ficar logado e abrindo mão do descanso” (Foresti, 2022). Segundo o relato de Luciana, “você entra numa nóia psicológica, pois como é pouco dinheiro por corrida, você vai aceitando o que aparece” (Masson; Oliveira, 2021). Outro relato, de Carlos Rasta, é significativo e coaduna com outros entregadores: “estou me expondo à insalubridade, tem vezes em que a gente pedala embaixo de chuva ou de um sol escaldante, a gente correndo esse risco de ser contaminado pelo corona” (Masson; Oliveira, 2021). Assim como ao redor do mundo, em países que se deparam com os efeitos da uberização, no Brasil, uma importante linha de força para o crescimento do contingente de pessoas que aderiram ao trabalho por aplicativos, foi o esfacelamento dos direitos trabalhistas, processo intensificado durante os governos Temer e Bolsonaro e exacerbado durante a Pandemia. Assim, um grande número de trabalhadores precários foi empurrado para situações mais degradantes (Amorim; Moda, 2021) e avolumaram o número de pessoas à procura por qualquer atividade. 13
Por conta da facilidade cadastral, a entrada no aplicativo acaba por parecer uma maior abertura de oportunidades (Slee, 2017). Isto, por sua vez, contribuiu para aumentar as dificuldades dos trabalhadores por aplicativos, como no depoimento de Marcos Santos: “o aplicativo está acumulando muito motoboy; 10 horas e eu não fiz uma entrega!”. Ele denuncia ainda que os comércios fecharam e os trabalhadores passaram ao aplicativo, além de agregar outras categorias: “tenho amigos vigilantes e policiais no aplicativo” (Foresti, 2022). Este dado complexifica a discussão acerca da precarização do trabalho, visto que amplia o número de categorias em que o salário não permite a sobrevivência, levando à entrada no aplicativo de trabalhadores de outras categorias. Isto redunda, para além dos elementos relacionados à carga cotidiana do trabalho como entregador, em uma ampliação do tempo despendido no trabalho, excedendo a jornada das ocupações formais. Segundo Paulo Galo, “o Brasil tem uma fábrica de pessoas que estão precisando trabalhar ou sobreviver. Os aplicativos sabem disso” (Matos; Salgado, 2020). Este relato mostra concordância com os apontamentos estatísticos do mesmo período: ao final de 2020, havia no Brasil em média 13,5 milhões de desempregados (Silveira, 2020), o que contribui para que um alto número de entregadores façam turnos entre 12 e 16 horas logados , ou seja conectados e disponíveis à atividade, alguns chegando ao absurdo de rodarem por 18 horas exaustivas para conseguirem sobreviver (Aliança Bike, 2019; Matos; Salgado, 2020; Masson; Oliveira, 2021, Foresti, 2022). Muitas vezes, o que se inicia como um bico, acaba por tornar-se a única fonte de renda e ocupa um tempo que extrapola o exercício de qualquer relação formalizada. Há, portanto, uma sensível extensão de jornada. O documentário “Da porta para fora” (Foresti, 2022) utiliza-se do mesmo recurso presente em “O pandelivery” (Matos; Salgado, 2020) de trazer alguns discursos de entregadores sem a nomeação. No primeiro, isso aparece através da representação figurativa da tela do aplicativo de mensagens, tais como notícias com promoções do aplicativo, nomeado de modo fictício “tifoddi” ou através de mensagens que fazem referência aos chamados para as manifestações. No último, as legendas sem atribuição de nomes aparecem quando estes trabalhadores se encontram nas manifestações, não sabemos se por representarem algo que indica a experiência geral ou por não ter sido possível acompanhar o entregador por tempo 14
suficiente a ponto de saber nomeá-lo e, portanto, referenciá-lo. Geralmente, o apelo para participar das manifestações centram-se nas insatisfações mais gerais: a remuneração e o tempo logado de maneira excessiva. Nos três documentários, as experiências com o tempo e a jornada intensa são aspectos centrais. Segundo Luciana Kasai, “há rotas impossíveis de fazer de bicicleta”, mas que são realizadas por medo de bloqueios e represálias do algoritmo. Essa gestão e distribuição de novas chamadas produz um efeito psíquico e a entregadora menciona que “uma vez que você aceitou, você tem que ir”. Ela refere ainda que mesmo no momento em que chegou a acidentar-se, conseguia pensar que precisava entregar a pizza de um cliente, pois “eu ia ter que pagar a pizza do cara” (Masson; Oliveira, 2021). Estes relatos são possíveis, segundo Maurício Santos, “porque o aplicativo não te deixa falar com ele, a gente é desorientado, a gente tem que aprender sozinho”. que se apontar ainda que essa dificuldade de comunicação é intencional. “Se o cliente compra e cancela, o Ifood não escuta o motoboy”, afirma o entregador. Após um acidente, por exemplo, muitas vezes os entregadores não conseguem uma comunicação, e outras tantas vezes são bloqueados indiscriminadamente. Como Cant (2021) afirma, a gerência algorítmica trabalha para que os erros sejam descartados, deste modo os trabalhadores no momento em que apresentam “falhas”, precisam ser substituídos, o bloqueio indiscriminado decorre deste modo de operar. Tais estratégias são coordenadas pelas empresas-aplicativo através da extração dos dados, de modo a não permitirem que o trabalhador tenha ciência da maneira como trabalha ou de como funcionam os seus ganhos (Cant, 2021; Slee, 2017). O aplicativo utiliza de meios indiscriminados para operar com os entregadores (Abílio, 2019), sendo o aumento no número de trabalhadores cadastrados nas plataformas um modo de controle sobre estes, posto que aumenta e visibiliza o exército de mão de obra de reserva. A “baixa remuneração” é um objetivo e uma consequência desse processo: “tá tendo mais trabalho, não tem mais dinheiro”, afirma Paulo Galo (Matos; Salgado, 2020). Marcos Santos, durante o seu registro no documentário de Foresti (2022), mostra partes de um longo percurso feito durante a chuva para ganhar uma entrega de R$ 6,97 e afirma: “antes a gente rodava menos e ganhava bem; hoje a gente roda mais e ganha mal” (Foresti, 2022). 15
A malha de dados é produzida para que eles fiquem, como num jogo perverso, presos ao trabalho: “tô muito desorientado, sem saber o que fazer!”, pois “a gente está trabalhando para sobreviver”, “hoje não tive sorte”, “não tive nenhum”, segundo Marcos “a gente vivendo duas epidemias, a do vírus e a da exploração” (Foresti, 2022). Acompanhando o aplicativo, através dos documentários e dos relatos de entregadores, desde a chegada do serviço ao país, vemos que a intensificação exploratória surgida com a pandemia mantém-se e faz com que os entregadores a percebam de maneira separada da exploração laboral, algo como “duas pandemias”, tornando mais complexa a precariedade para os entregadores. Os entregadores apontam ainda a romantização que a mídia fez do trabalho durante a Pandemia, o que ajudou a mascarar a exploração das empresas-aplicativo. Indicam também que a exigência de rapidez entre o chamado, a chegada ao estabelecimento e a coleta dos produtos, não é calculada junto ao preço final que recebem do aplicativo, sendo esse um aspecto que mobilizou os Breques, juntamente com os riscos e a insalubridade. Segundo Paulo Galo “você se remenda, um jeito de continuar” (Matos; Salgado, 2020). Muitos trabalhadores compram ou alugam objetos para iniciarem a atividade, e com a necessidade de manterem as boas avaliações e índices de respostas aos chamados, acabam ficando duplamente endividados (Matos; Salgado, 2020). Diante da exploração vivenciada, a organização política acaba sendo a alternativa surgida no discurso dos entregadores. Para Luiza Rizzo, “os aplicativos não vão deixar de existir, mas temos que ter alguma condição justa”, pois “só ganhamos visibilidade quando paramos” (Masson; Oliveira, 2021). O adoecimento diante desse modelo gerencial parece inevitável, como é demonstrado através da experiência de Kelliane, ao afirmar “hoje sendo um dos piores dias para mim, triste: decepção, magoada, cansada… cabisbaixa, pois estou sem trabalhar, e as contas estão chegando”. Ela era trocadora de ônibus no Distrito Federal, é cantora e passou a ser entregadora durante a pandemia. Sofreu um acidente durante uma entrega e ficou um período sem realizar a atividade e, por consequência, sem conseguir obter a remuneração diária da qual precisa. A decepção e a mágoa referidas por Kelliane são representativas do cenário econômico que se desenrola a partir do avanço neoliberal, e coloca sobre o sujeito a responsabilidade por si, disfarçada sob a falácia do “empreendedorismo”. Isso opera 16
desresponsabilizando o Estado na fiscalização e na sanção de garantias dos direitos trabalhistas e de seguridade social, e desonera as empresas-aplicativo de algumas responsabilidades mínimas. Hoje, aos sujeitos, ficam as responsabilidades por garantirem o sucesso e a permanência de suas vidas, trabalhando para gerir o cotidiano como em uma empresa (Safatle, 2020). O individualismo excede os contornos do discurso econômico e torna-se parte de um processo de subjetivação, no qual o indivíduo precisa dirigir os meios e dar condições à sua existência, em uma espécie de “empreendedorismo de si”. A promoção da autoimagem e a produtividade incessante, em trabalhos degradantes, alicerçam a noção meritocrática da existência. As redes formadas pelos entregadores, a partir do início da Pandemia, desfazem alguns desses imperativos, como aponta Luciana Rizzo: “eu acredito em formas alternativas de entrega, como no Rio a gente montando uma cooperativa… a gente tem que tentar ter formas alternativas de ter alguma condição mais digna de vida” (Matos; Oliveira, 2021). É essencial para a manutenção da exploração dos aplicativos que os entregadores se sustentem na posição de únicos responsáveis por toda a lógica que opera ali. Como Mbembe (2017) também nos alerta, uma das funções do capitalismo é produzir parte da população como excedente descartável. Temos acompanhado, ao longo dos anos que compreendem este recorte documental, uma intensificação exploratória, mas também o surgimento de manifestações de entregadores que seguem, dentro do possível, na contramão do aplicativo. Como pudemos ver, a Pandemia intensificou aquilo que era muito precário (Amorim; Moda, 2021). As medidas de combate à pandemia e o isolamento em caso de contaminação não foram possíveis para os trabalhadores em maior vulnerabilidade, tais como os entregadores. Quando houve a disponibilização dos exames comprobatórios de contaminação por COVID-19, os entregadores que atestaram o contágio foram bloqueados (Matos; Salgado, 2020). Houve ainda os que trabalharam contaminados, por medo da represália, e, por consequência, de perder a fonte de sustento (Matos; Salgado, 2020). As medidas de proteção contra a COVID-19 foram demandadas pelos trabalhadores, sendo uma das pautas das mobilizações. Assim, essas características negativas do trabalho uberizado produziram também outro efeito: fizeram surgir iniciativas que modificaram o curso da história no âmbito da organização de resistências por parte dos entregadores 17
(Cant, 2021; Ricarte, 2023; Uchôa-Oliveira; Barros, 2022). Podemos então acompanhar algumas novidades, uma das quais os documentários aqui trazidos apontam: as manifestações e organizações de entregadores surgidas ao redor do país também são tributárias de uma resistência ao modelo de gestão das empresas-aplicativo. A resistência de sujeitos que, no momento de uma pandemia, e apesar das próprias necessidades, se negam ao extremo da exploração, é o principal aspecto que os entregadores presentes nos documentários elucidam. Tal constatação mostra-se alinhada com as reflexões oriundas da PST, em suas compreensões que os trabalhadores não são meros assujeitados aos constrangimentos impostos pelo trabalho e pelas estruturas sociais. Ao contrário, são agentes ativos na transformação do seu entorno e do mundo. Organizações de trabalhadores uberizados estão surgindo em diversas localidades, movimentos aos quais esses estão aderindo e sobre os quais as mídias alternativas estão fazendo um trabalho de divulgação mais amplo. também articulações importantes entre esses trabalhadores, setores da academia e do judiciário, que podem provocar fissuras nesse sistema de trabalho. Considerações Finais O presente artigo se estruturou em torno das evidências manifestadas pelos trabalhadores acerca de sua realidade cotidiana, como estas são tratadas nos documentários analisados. Através dos relatos ali presentes, trouxemos apontamentos, em concordância com os indicativos da Psicologia Social do Trabalho, que propiciam reflexões sobre as experiências subjetivas e objetivas desses trabalhadores, em suas relações com as contradições do mundo do trabalho na atualidade. Nos últimos anos, o serviço de entregas cresceu no país, sobretudo no período aqui delimitado - de 2020 a 2022, tornando-se uma “opção” amplamente divulgada entre os trabalhadores desempregados, bem como entre os desalentados. A temporalidade e a conjuntura histórica acabam por contribuir para a exacerbação de configurações que caracterizam e potencializam a precarização do trabalho. Nesse sentido, a Pandemia de COVID-19 acabou por contribuir com esse processo, 18
ao aumentar o tempo despendido pelos trabalhadores nas plataformas, justificado pelo alto número de entregadores disponíveis e pelas baixas taxas pagas pelo aplicativo. O gerenciamento algorítmico também surge como um potencializador do salto da precarização que aqui desenhamos. A imbricação entre a gestão dos algoritmos e a dificuldade em apreender as características da atividade laboral, tomada como um jogo, do tipo em que não se compreende as regras, contribuem para o adoecimento dos trabalhadores, visto que esses perdem amplo domínio sobre a lida com o trabalho. São muitos os efeitos sobre a saúde oriundos dessa realidade laboral. Alguns se manifestam na forma de acidentes, outros, menos visíveis, surgem em decorrência das inferências constantes que os trabalhadores devem fazer ao longo dos dias, produzindo um sofrimento psíquico a partir das incertezas da atividade. Para os entregadores, estarem cadastrados e logados não garante o recebimento de entregas, não havendo controle sobre os ganhos, considerando ainda possíveis mudanças que podem ser feitas a qualquer momento, inclusive bloqueios. Portanto, as rotas diárias, de maneira metafórica, mas não só, da própria vida dos entregadores, podem ser alteradas de uma hora para outra, segundo a “vontade” maquinal do sistema operacional, sem que eles consigam sequer estabelecer uma comunicação com as empresas. Os “breques dos apps”, as associações de entregadores, os aplicativos que seguem outros modelos de gerenciamento e os documentários aqui focalizados, ao levar em consideração as experiências dos entregadores, reconduzem os discursos para fora dessa lógica algorítmica. A Psicologia Social do Trabalho, ao debruçar-se sobre esse fenômeno, mostra-se assim uma ferramenta útil, tanto do ponto de vista analítico, como interventivo, em busca de novos possíveis. Referências ABILIO, L. C. Uberização: a informalização e o trabalhador just-in-time. Trabalho, Educação e Saúde, v. 19, 2021, e00314146. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00314 ABILIO, L. C. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas , Valparaíso, v. 18, n. 3, p. 41-51, nov. 2019. Disponível em: . Acesso em: 25 fev. 2023. ABÍLIO, L. C., AMORIM, H., & GROHMANN, R. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias , v. 23, n. 57, pp. 26–56, 2021. 19
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