V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X ESTADO, EDUCAÇÃO E PRODUÇÃO SOCIAL: DOIS MOMENTOS HISTÓRICOS 1 Alessandro de Melo 2 Carina Alves da Silva Darcoleto 3 Resumo Trata-se de uma pesquisa teórica e documental que objetiva analisar dois momentos históricos das relações entre educação escolar e o mundo do trabalho: a reforma do ensino de e graus, de 1971, e a Base Nacional Comum Curricular - BNCC, de 2017. Utiliza-se o método materialista histórico de Poulantzas (2019) para analisar o papel do Estado. As reformas caracterizam-se pela adaptação em cada período do projeto formativo ao mundo do trabalho: no primeiro momento a ênfase se dava na profissionalização; no segundo momento a ênfase é na pedagogia das competências . Palavra-chave : Estado e políticas educacionais; Pedagogia das Competências; Lei n. 5692, de 11 de agosto de 1971; Base Nacional Comum Curricular. ESTADO, EDUCACIÓN Y PRODUCCIÓN SOCIAL: DOS MOMENTOS HISTÓRICOS Resumen Se trata de una investigación teórica y documental cuyo objetivo es analizar dos momentos históricos de las relaciones entre la educación escolar y el mundo del trabajo: la reforma del sistema educativo de los niveles primario y secundario de 1971, y la Base Nacional Común Curricular (BNCC) de 2017. Se utiliza el método materialista histórico de Poulantzas (2019) para analizar el papel del Estado. Las reformas se caracterizan por la adaptación del proyecto formativo a las exigencias del mundo del trabajo en cada período: en el primer momento, el énfasis estaba en la profesionalización; en el segundo momento, el énfasis está en la pedagogía de las competencias. Palabra clave: Políticas estatales y educativas; Pedagogía de las Competencias; Ley 5692 de 11 de agosto de 1971; Base Curricular Común Nacional. STATE, EDUCATION AND SOCIAL PRODUCTION: TWO HISTORICAL MOMENTS Abstract This is a theoretical and documentary research aimed at analyzing two historical moments of the relationship between school education and the world of work: the 1971 reform of primary and secondary education, and the 2017 National Common Curricular Base (BNCC). The historical materialist method of Poulantzas (2019) is used to analyze the role of the state. The reforms are characterized by the adaptation of the educational project to the world of work in each period: in the first moment, the emphasis was on professionalization; in the second moment, the emphasis is on the pedagogy of competencies. Keyword : State and educational policies; Pedagogy of Competencies; Law n. 5692, of August 11, 1971; Common National Curriculum Base. 3 Doutora em Educação Escolar na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Araraquara, São Paulo - Brasil. Professora Adjunta do Departamento de Educação e Professora Efetiva do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E-mail: carinadarcoleto@yahoo.com.br . Lattes: http://lattes.cnpq.br/0469140663597215 . Orcid : https://orcid.org/0000-0003-0520-0637 . 2 Doutor em Educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR) - Brasil. Professor Associado do Departamento de Educação e Professor Efetivo do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG),Paraná - Brasil. E-mail: alessandrodemelo@uepg.br . Lattes: http://lattes.cnpq.br/2762977075318460 . Orcid: https://orcid.org/0000-0001-611 9-5081 . 1 Artigo recebido em 03/05/2024. Primeira Avaliação em 10/08/2024. Segunda Avaliação em 23/09/2024. Aprovado em 08/11/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49 .62850
Introdução Este texto, produto de uma pesquisa teórica e documental, tem como proposta analisar dois momentos históricos das relações entre educação escolar e o mundo do trabalho, fundamentais para a recente história da educação e das políticas educacionais no Brasil. Trata-se da “Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971, que fixa Diretrizes e Bases para o ensino de e graus, e outras providências” (Brasil, 1971a), bem como resoluções e pareceres conexos a esta lei, e, em outro momento histórico mais recente, a Resolução CNE-CP n. 2, de 22 de dezembro de 2017, que “Institui e orienta a implantação da Base Nacional Comum Curricular, a ser respeitada obrigatoriamente ao longo das etapas e respectivas modalidades no âmbito da Educação Básica” (Brasil, 2017a). O estudo justifica-se pela relevância de compreender as reformas educacionais, uma do período da ditadura civil-militar de 1964-1985, e a última relativa ao período pós-golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff (PT), durante o governo de Michel Temer (MDB), entre 2016 e 2018, e efetivada ao longo do período neofascista do governo de Jair Messias Bolsonaro (PL, à época PSL), entre 2019 e 2022, e se elas mantêm entre si elementos de continuidades e rupturas, relativas tanto ao projeto educativo stricto sensu , bem como ao contexto político e econômico específico de cada período. As marcas dos projetos educativos de cada período caracterizam-se, no primeiro, pela ênfase na profissionalização compulsória na forma de habilitações profissionais, marcada pelo tecnicismo; no segundo momento, por sua vez, a reforma educacional hodierna caracteriza-se pela adaptação pela ênfase nas subjetividades, marcada pela pedagogia das competências e o neotecnicismo (Saviani, 2007). Em termos de método, adotamos o materialismo histórico, utilizando os aportes da teoria política do pensador marxista greco-francês Nicos Poulantzas (1936-1979), especialmente na sua obra Poder político e classes sociais (Poulantzas, 2019), por meio do qual podemos compreender as ações do Estado de onde exaram as políticas educacionais, entendendo este como uma instituição cujo objetivo precípuo é o de ser o principal veículo da reprodução social, organizando, para isso, os interesses comuns das classes dominantes. 2
A partir dos pressupostos acima mencionados, o texto se divide em três partes, além das Considerações Finais. Na sequência trazemos os aportes teóricos que embasam a análise, que é a concepção de Estado no marxismo, e em Poulanzas, especialmente. Na segunda parte trataremos da Lei n. 5692, de 11 de agosto de 1971, seu contexto e resoluções e pareceres conexos. Na última parte trataremos da Resolução n. CNE-CP n. 2, de 22 de dezembro de 2017 (Brasil, 2017a). Nas Considerações Finais apresentaremos a síntese dos resultados a que chegamos nas análises realizadas. O estado capitalista: os marcos teóricos da análise das reformas educacionais Nesta parte trataremos do referencial teórico mobilizado para a análise do objeto do estudo. Na primeira parte discutimos a mediação do Estado na concepção poulantziana (Poulantzas, 2019), com o intuito de construir uma mediação teórica para compreender o movimento das reformas em relação aos projetos formativos em cada momento histórico. Nos dois momentos históricos abordados neste trabalho, o pano de fundo que faz a mediação da discussão diz respeito à relação precípua entre Estado, frações da burguesia e classe trabalhadora, no que se refere às políticas educacionais, em especial à formação para o trabalho e para a adaptação à sociedade, dadas as especificidades históricas referenciadas na Introdução do texto. Desta forma, utilizando a teoria poulantziana do Estado para análises de conjunturas específicas, em que as reformas educacionais estão inseridas, necessitamos esclarecer alguns pontos fulcrais para a compreensão do Estado nesta perspectiva. Partimos de uma concepção clássica de Marx e Engels em O manifesto comunista , publicado em 1848 (Marx; Engels, 1998), a qual indica que o Estado é uma instituição cuja função é administrar os negócios comuns de toda a burguesia 4 . Desta premissa derivam algumas conclusões, dentre as quais destacamos que Marx e Engels apreenderam desde aquele período que a burguesia não é um bloco único, mas composto de vários interesses diversos. Uma outra conclusão é que a 4 Passados 23 anos, em 1871, ao refletir sobre os efeitos da derrota da Comuna de Paris, Marx e Engels retificam algumas premissas do Manifesto Comunista. O Estado é o centro da luta de classes, mas não para se estabelecer nele o germe da sociedade comunista, ao contrário, é o centro da luta política que deve ter como objetivo o seu desaparecimento (Balibar, 1974). 3
ação do Estado se dirige a organizar e unificar estes diversos interesses, ao mesmo tempo que regula as lutas de classes na sociedade, tendo em vista a continuidade dos interesses das classes dominantes. Deriva desta premissa ainda o fato de que o Estado não se constitui em mero “reflexo” da infraestrutura, mas possui em relação a ela uma autonomia relativa (Poulantzas, 2019). Como construiu Marx em textos históricos como “O 18 brumário de Luis Bonaparte”, o Estado não é um ente que age apenas pressionado por forças externas, mas, ao contrário, possui interesses próprios (Miliband, 2001). A ação do Estado, para cumprir seu papel de manutenção da ordem social, precisa ser uma ação com certa autonomia, em benefício das classes dominantes, e isso porque esta ação acaba afetando diferente e desigualmente as frações nas quais se divide a burguesia. O Estado pode cumprir suas funções se se constituir de forma unitária e não fragmentada por frações que ocupam o bloco no poder. Ou seja, não podemos pensar o Estado sendo ocupado em cada uma das suas partes por determinadas frações, que realizariam seus interesses. O Estado é o lócus da unidade: O Estado deve ter unidade, porque é impossível implementar uma política para cada segmento da classe dominante. Não é possível o pluralismo de políticas, simplesmente porque os interesses se cruzam. As medidas governamentais são únicas, e uma medida tomada sobre um assunto rebate simultaneamente nos interesses de vários setores (Saes, Farias, 2021, p. 264). Daí a relevância de pensar a hegemonia das frações do bloco no poder, porque é neste processo de hegemonia que ocorrem as ações do Estado em suas políticas setoriais, como no caso das políticas educacionais. Hegemonia significa que dentro do bloco no poder existem frações dominantes cujos interesses particulares prevalecem sobre os interesses das demais frações. E é a fração hegemônica que sustenta a unidade do poder estatal (Saes, Farias, 2021). Outro sustentáculo do edifício estatal é seu substrato jurídico, o qual define as relações sociais como relações entre iguais, na forma da lei, causando efeitos como os do contrato de trabalho, fundamental na relação capitalista, assentada no trabalho assalariado, que se evidencia como uma relação formal entre iguais. Esse efeito de igualdade oculta o fundamental da exploração da força de trabalho, a 4
exploração da mais-valia, e com isso perpetua o fenômeno da naturalização do sistema do assalariamento 5 . Segundo Saes (1998), a estrutura jurídico-política se assenta na base de quatro conceitos articulados, que por sua vez geram determinados efeitos: direito capitalista, burocratismo, efeito de isolamento e efeito de representação da unidade. Neste texto, no entanto, nos ateremos ao par conceitual efeito de representatividade da unidade e efeito de isolamento, mas conscientes da necessidade de continuidade de pesquisas que articulem estes quatro conceitos na análise das políticas educacionais. Efeito de representatividade da unidade trata do Estado que se apresenta como unidade política frente às lutas econômicas de classes, ou seja, como defensor do interesse geral, e que oculta o caráter de classe das instituições políticas, encarnando a vontade popular do povo-nação, ou seja, do conjunto da cidadania constituída como o conjunto dos sujeitos de direito. Luiz Pereira (1977, p. 91), nos anos de 1970, ia na mesma direção: De fato, todo e qualquer Estado capitalista se diz um Estado de todos os “indivíduos-cidadãos”, juridicamente iguais, com a afirmação dessa igualdade abstrata se procurando ideologicamente indeterminá-los como diferenciados em classes sociais para considerá-los como membros de um mesmo corpo a nação. De forma unitária e dialética, constata-se outro movimento efetuado pelo Estado, a saber, o efeito de isolamento, resultado fundamentalmente da separação que ocorre no modo de produção capitalista entre produtores diretos e os meios de produção. “É principalmente dessa separação, que faz do próprio trabalhador um elemento do capital, e do trabalho uma mercadoria, que decorre o caráter do econômico desse modo como processo de produção da mais-valia” (Poulantzas, 2019, p. 35). Neste processo o trabalhador se livre de amarras extraeconômicas que o vincule ao detentor dos meios de produção, ao contrário de modos de produção anteriores, nos quais relações pessoais de dependência (feudalismo) ou 5 A relação estabelecida no contrato de trabalho entre burguesia e proletariado, bem como todo o complexo das classes médias, não se refere apenas a relações formais de trabalho com carteira de trabalho assinada. De toda relação de trabalho denominado como precarizado, seja pela via das plataformas, seja nas várias dimensões dos trabalhos autônomos (pejotização ou empreendedorismo), revelam-se outras formas de expressão desta igualdade formal, seja com uma empresa, no caso das plataformas, seja com o Estado, no caso dos empreendedores. O fundamento desta relação, enfim, não se abalado pelas mudanças hodiernas no mundo do trabalho, que precarizam as relações. 5
fatores como a privação da liberdade (escravismo) faziam acontecer o funcionamento dos sistemas de produção. No modo de produção capitalista, portanto, é o fator econômico que fornece as bases de funcionamento do sistema de produção, mediado pelo aparelho jurídico-político, que rege as relações econômicas como relações entre iguais, e que legitima o sistema de propriedade privada e a igualdade formal perante a lei, abstraída esta de seu caráter de classe. O efeito de isolamento (Melo, Pelissari, 2024) é resultado da superestrutura jurídico-política sobre os sujeitos. A cidadania moderna se constitui como a forma dominante da concretização da separação entre produtores diretos e os meios de produção, carregando consigo o traço da igualdade abstrata: todos são iguais perante a lei. Sinteticamente, trata-se de eliminar do horizonte da vida dos trabalhadores seu pertencimento de classe, e afastar a compreensão de que as relações produtivas são relações de classe, e, portanto, de exploração de classe. Em síntese sobre os dois efeitos, expressa-se Poulantzas (2019, p. 133): O povo-nação é institucionalmente fixado como conjunto de “cidadãos”, “indivíduos” cuja unidade o Estado capitalista representa, e tem precisamente como substrato real esse efeito de isolamento que as relações sociais econômicas do MPC [modo de produção capitalista] manifestam [...] Dupla função da superestrutura jurídico-política do Estado, a partir disso: De um lado, instaurando sujeitos jurídico-políticos, com o efeito de isolamento; de outro lado, com os laços com as relações econômicas, instaurando o povo-nação. Isolar e representar a unidade, eis a dupla função. Parece evidente que estas mediações são relevantes para compreender como as políticas educacionais preservam este duplo papel, e, especialmente, reforçam o efeito de isolamento, ao passo que procuram dar sustentação à cidadania. Isso fica mais evidente no período ditatorial, no qual o aparelho escolar serviu diretamente aos anseios desta dupla função, gerando efeitos igualmente mais visíveis: a nacionalidade exacerbada pelos símbolos da grandiosidade dos governos militares, sintetizada no lema “Brasil: ame-o ou deixe-o”. No entanto, no último período a ser analisado, após o golpe de 2016, este vínculo é mais visível no que tange ao reforço do efeito de isolamento, para cujo resultado joga peso a hegemonia da chamada pedagogia das competências, como será visto adiante. No que se refere ao efeito da representatividade da unidade, o período é marcado pelos lemas nacionalistas de cunho neofascista (Boito Júnior, 2020; 2021). 6
A Lei n. 5692, de 11 de agosto de 1971 A Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971, que “Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1 o e 2 o graus, e outras providências” (Brasil, 1971a), precedida pela Reforma Universitária, promulgada pela Lei n. 5.540, de 28 de novembro de 1968, é a segunda grande reforma educacional do período da ditadura militar (1964-1985). Trata-se de uma reforma educativa subordinada ao programa de “desenvolvimento econômico”. O tripé de sustentação ideológica das reformas educacionais do período é composto da Doutrina de Segurança Nacional, da Teoria do Capital Humano e por correntes do pensamento cristão conservador (Saviani, 2007). Dois grupos de interesses projetavam reformas no ensino após 1964: nos Acordos MEC-USAID havia o pleito por uma formação inicial e obrigatória de oito anos, básica apenas para possibilitar o treinamento dos trabalhadores nas empresas; o Relatório Meira Matos e o Grupo de Trabalho da Reforma Universitária e o Congresso Nacional demandavam e pressionavam pelo vínculo do 2 o grau com a profissionalização e o mercado de trabalho, freando a demanda por acesso à universidade, que esta se configurava como forma eficiente de mobilidade social (Romanelli, 1986). Germano (1994) detalha os objetivos desta reforma de 1971: regular o mercado de trabalho, absorvendo na escola a força de trabalho; atender às demandas dos empregadores por mão-de-obra mais escolarizada, mesmo que as tarefas não tenham se complexificado; busca de legitimidade do governo na sociedade, colocando a bandeira da extensão da educação obrigatória e democratização do ensino. Em termos de mudança no sistema educacional, unifica o antigo ginasial, que era o 1 o Ciclo do Ensino Médio na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei n. 4.024, de 20 de dezembro de 1961, ao Ensino Primário, unificando-os no denominado 1 o grau. A reforma coloca fim ao exame de acesso ao ensino ginasial. O 2 o grau passou a ser composto de três ou quatro séries, a depender da habilitação profissional. A grande novidade neste nível de ensino foi a profissionalização obrigatória, via habilitações profissionais, conforme Parecer n. 45/72 (Brasil, 1972). 7
Dois princípios regiam o currículo da reforma do 1 o e 2 o graus: a generalidade e a terminalidade, conforme o Parecer n. 853, de 12 de novembro de 1971, que trata do núcleo comum para os currículos de e graus (Brasil, 1971b). O princípio da generalidade identifica, no 1 o grau, a exclusividade da educação geral nas primeiras séries, e a sua predominância nas séries finais, sendo os conhecimentos específicos uma parte menor neste nível. no que se refere ao 2 o grau, a educação geral aparece em menor parte, sendo predominante os conhecimentos específicos das habilitações. Quanto aos conhecimentos específicos, estes aparecem no 1 o grau referidos à iniciação ao trabalho e à sondagem de aptidões. Os conhecimentos gerais, que neste nível é predominante, são caracterizados como potencial integrante da formação especial. No 2 o grau estes conhecimentos específicos referem-se à habilitação profissional, instituindo-se a obrigatoriedade da Orientação Educacional, incluído o aconselhamento vocacional. O currículo foi dividido em uma base comum e uma parte diversificada. Ambas as partes compõem o currículo pleno, que então se divide em educação geral e formação especial, como mencionado. O princípio da terminalidade tem seu lócus preferencial no 2 o grau, e se refere à intencionalidade de deter a demanda das massas trabalhadoras pelo ensino superior, que era o fator de crise mais importante deste nível de ensino. Na verdade, tratava-se de abreviar a escolarização dos mais pobres. Pensava-se, erroneamente, que o caráter obrigatório de formação profissional para o trabalho poderia dar conta deste intento. Porém, a terminalidade referia-se também ao 1 o grau, e, neste caso, destinava-se a criar atitudes positivas quanto ao trabalho, em qualquer momento da escolarização, conforme detalhado no Parecer n. 339/72 (Brasil, 1975). Neste caso, mesmo os conhecimentos gerais podem ser tratados como conteúdos específicos, portanto, vinculados à terminalidade. Para os interesses deste estudo, é pertinente avaliar o significado e função da formação especial para o grau, decorrente do Parecer n. 339, de 6 de abril de 1972 (Brasil, 1975), bem como os conteúdos mínimos para as habilitações profissionais em nível de grau, estabelecidos pelo Parecer n. 45, de 12 de janeiro de 1972 (Brasil, 1972). Assim, podemos apreender os objetivos da educação escolar na relação com o preparo para o trabalho e para a cidadania, em uma aproximação 8
com o que posteriormente encontramos nas competências da BNCC, que serão avaliadas na sequência. A Lei n. 5692, de 11 de agosto de 1971, expressa em três os objetivos da educação, em seu Art. 1º: autorrealização dos estudantes, seu preparo para o trabalho e para o exercício consciente da cidadania. E, no Art. 4º, estabelece que o currículo deveria contar com um núcleo comum e uma parte diversificada, que atenderia às: “[..] possibilidades concretas, às peculiaridades locais, aos planos dos estabelecimentos e às diferenças individuais dos alunos” (Brasil, 1971a). O currículo deveria atender aos princípios da generalidade, comentados anteriormente. O parágrafo do Art. 5 estabelece que a parte específica deve contemplar, no primeiro grau, à sondagem de aptidões e iniciação ao trabalho, e, no grau, às habilitações profissionais, de acordo com as necessidades do mercado de trabalho local ou regional. Inclusive, no grau, as habilitações poderiam ser realizadas em parceria com as empresas (Art. 6º). Ao tratarmos do grau e o papel da parte da formação específica, estamos nos aproximando da forma como, desde este nível de ensino, pensava-se na escola como formadora do futuro trabalhador e cidadão. E, ainda, temos que considerar que embora o conceito de continuidade seja predominante neste nível, como preparação para o grau, o conceito de terminalidade também não é desprezível. Tanto é assim que a parte de educação geral é exclusiva apenas dos primeiros anos do grau, sendo predominante nos anos finais, abrindo com isso brecha para que a parte específica, vinculada com a terminalidade, ou seja, à formação para o trabalho, se apresente precocemente na formação escolar dos filhos da classe trabalhadora. Caso ainda não tenha ficado claro, o Parecer n. 339/72 afirma categoricamente que esta parte específica se refere à qualificação para o trabalho. Adota a seguinte concepção: “Qualificação para o trabalho", ensina o documento sobre Habilitações Profissionais elaborado pelos técnicos da UTRAMIG, "compreende o processo de preparar o jovem para as ações convenientes ao trabalho produtivo, seja ele de criatividade, de multiplicação de idéias e projetos, de análise e controle de administração e supervisão ou de execução manual e mecânica, tudo de acordo com as potencialidades e diferenças individuais dos educandos". (Brasil, 1975, p. 216) Percebe-se que havia a compreensão de que o mundo do trabalho estava a exigir dos trabalhadores múltiplas habilidades, desde as subjetivas até as de 9
domínio de conteúdos especializados. No entanto, como bem esclarece este mesmo Parecer, no que se refere ao ensino de grau, a qualificação para o trabalho se por meio da sondagem de aptidões e de iniciação para o trabalho. Considera-se que a apreciação de Althusser (1998) está correta, ao analisar como a escola, como Aparelho Ideológico, age na formação das novas gerações e de maneira diversificada, conforme as classes, arranjando a distribuição da força de trabalho conforme a divisão técnico-social do trabalho na sociedade. Isso porque no Parecer n. 339 podemos ler literalmente que a: “[...] formação profissional cuida de instruir e integrar na força de trabalho, na razão direta das demandas manifestadas pelas atividades econômicas, o pessoal qualificado nas diversas categorias profissionais.” (Brasil, 1975, p. 217 itálico do original). No entanto, esclarece, no grau não se trata de especializar ou profissionalizar, dada a prematuridade dos estudantes. As “aptidões”, afinal, ainda não se encontram enraizadas nas crianças e adolescentes até os 14 anos. Como consequência, e pela característica predominantemente geral do grau, a sondagem de aptidões e a iniciação para o trabalho devem estar contidas em todos os atos curriculares deste nível de ensino. Realmente, é um objetivo que se faz presente em todos os atos escolares programados para a realização do processo educativo. Se o currículo é em última análise todo o conjunto de experiências de vida proposto pela escola, em cada uma dessas experiências deve haver a preocupação, entre outras de sondar as aptidões (Brasil, 1971b). Em todos os momentos da formação, diz o Parecer n. 853/71 (Brasil, 1971b), que trabalhar na escola o uso da mente e das mãos, e, com isso, preparar os estudantes para os estudos posteriores e para o trabalho. Desta forma, os conteúdos especiais no grau tenderiam a facilitar a observação das aptidões dos estudantes, explorando seus interesses e suas habilidades, e, também, os aproximaria do mundo do trabalho. Por isso, preferencialmente, deveriam ser trabalhadas na forma de atividades que se relacionem com os três setores da economia e da educação para o lar. Sondar aptidões, afirma o Parecer 339/72 (Brasil, 1975), é algo a ser levado a efeito não somente pelas escolas, mas também pela família e pela comunidade, conforme Art. 10 da Lei n. 5692/71. No que se refere à iniciação ao trabalho, o Parecer 339/72 remete-se ao disposto no Glossário do Parecer 45/72, onde se pode ler que esta se refere às: 10
atividades desenvolvidas pelos educandos no ensino de grau, na escola e na comunidade, com o fim de orientá-los no sentido de conhecerem os diversos campos de trabalho existentes na localidade, na região e no país, os diversos sistemas de produção e prestação de serviços, a aplicação de materiais e instrumentos e a prática inicial na execução de tarefas que envolvam os aspectos de criatividade, utilidade, organização, experimentação de técnicas básicas e avaliação da qualidade (Brasil, 1975). Sobre a iniciação ao trabalho, portanto, encontramo-nos diante de uma multifacetada gama de atividades, novamente de caráter objetivo e subjetivo, que deve se integrar às demais atividades curriculares, mesmo que na forma de conteúdos específicos, como atividades. Havia, portanto, uma incidência direta do grau na formação de futuros trabalhadores, e, ao ofertar estas possibilidades de atividades diversas, era possível mapear as aptidões que iam se mostrando pelos estudantes. Não se pode olvidar o fato de que o projeto ditatorial, a par da formação em massa de força de trabalho, tinha também como objetivo a formação civil e moral dos estudantes, e este objetivo poderia ser alcançado, segundo a ideologia do regime, pela iniciação ao trabalho e pela sondagem de aptidões. Formar o trabalhador produtivo e cidadão, afinal de contas, é e sempre foi um dos objetivos primazes da escola capitalista (Frigotto, Ciavatta, 2003). Lembremos a inserção de disciplinas como Educação Moral e Cívica, normalmente lecionada na série do Primeiro Grau, e Organização Social e Política Brasileira, lecionada comumente na série do Primeiro Grau. Ambas, direta ou indiretamente, corroboravam com esta formação para o trabalho, ou seja, para formar o indivíduo trabalhador, como parte do efeito de isolamento, e, ao mesmo tempo, para a cidadania, ou seja, como parte do efeito de representatividade da unidade. A ideia, segundo o Parecer em voga, não é “ensinar”, mas proporcionar experiências, pelas quais os sujeitos possam encarar situações problemáticas, para as quais devem dar soluções. Não exatamente experimentando situações típicas das habilitações do grau, mas evidentemente preparando as crianças e adolescentes para isso, ou, então, que estejam prontos para tais situações a qualquer momento em que saiam do sistema de ensino, que é do que se trata o caráter de terminalidade presente 6 . Não sendo exatamente a profissionalização e 6 A Lei n. 5691/71 traz em seu bojo a possibilidade da terminalidade real, tal como se refere ao fato o Parecer n. 339/72, ou seja, nos casos em que, por diversas razões, a evasão da escola antes do término do ciclo do grau. A Lei n. 5692/71 trata especificamente do tema no seu Art. 76, que especifica as possibilidades em que a iniciação ao trabalho e a sondagem de aptidões podem ser antecipadas. Em sua alínea a) afirma que uma destas condições é a seguinte: a) ao nível da série 11
especialização típicas do grau, a iniciação ao trabalho no grau tem como objetivo fomentar o gosto e a estima pelo trabalho, visando a orientação profissional posterior, bem como a formação geral (Brasil, 1975). O Parecer n. 339/72 adota os nove objetivos pertinentes à iniciação para o trabalho, pronunciados pelo professor João Batista Salles da Silva 7 . Classifico-os em duas categorias: as subjetivas e as objetivas. Nas primeiras encontram-se: interesse pelas profissões, apreciação ou crítica, desejo de cooperação, interesse pelo trabalho útil, espírito de ordem e método de trabalho. Nas categorias objetivas encontram-se as seguintes: hábitos sensório-motores e conhecimentos técnicos, orientação profissional, desenvolvimento físico e mental e matéria auxiliar (integração com o currículo escolar como um todo). Estas se relacionam com: as exigências da comunidade, as necessidades do mercado de trabalho local ou regional, as condições individuais, as inclinações e as idades dos alunos, os recursos humanos e materiais disponíveis na escola ou no local e, finalmente, o planejamento didático adotado pelo estabelecimento. (Brasil, 1975, p. 226) Ainda havia, neste mesmo Parecer, a convocação para que se constituíssem cursos de graduação de curta duração para a formação de professores para estas áreas específicas do currículo de grau, e na falta destes, as administrações dos sistemas seriam estimuladas à criação de Centros de Treinamento para este fim. E, para além do correto diagnóstico da falta de infraestrutura das escolas, tanto de laboratórios, maquinários e pessoal especializado, a Lei n. 5692/71, Art. previa soluções que passam por integrar centros educativos entre si ou com instituições sociais especializadas, incluindo escolas técnicas e empresas. A ideia é que a comunidade se alie na formação, desde o grau, do/da futuro/a trabalhador/a. Na sequência, ao analisarmos as bases que fundamentam a BNCC, pela Resolução CNE/CP n. 2, de 22 de dezembro 2017, podemos compreender como existem, de fato, aproximações relevantes no que tange à formação para o mundo do trabalho, sem que com isso queiramos dizer que identidade entre os momentos. Há, na verdade, um processo de unidade na diversidade, ou seja, processos de subordinação da educação ao mundo do trabalho, sem que isso seja 7 São poucas as informações que se encontram sobre este professor. Sabe-se que nasceu em 26 de novembro de 1913, atuando por 39 anos no SENAI, foi formado no Instituto de Educação da USP, pela Escola de Formação de Professores. Mais informações em: https://www.sp.senai.br/patrono---joao-baptista-salles-da-silva . realmente alcançada pela gratuidade escolar em cada sistema, quando inferior à oitava.” Ou seja, esta aproximação do grau ao mundo do trabalho deveria constar “realmente” em qualquer situação em que se encontrassem os estudantes, dentro ou fora da escola. 12
feito de forma automática, ou seja, mantendo a autonomia relativa do Estado, e em cada momento a forma desta subordinação se modifica em conformidade com as demandas econômicas. A Resolução CNE/CP n.2, de 22 de dezembro de 2017 O contexto de criação da Base Nacional Comum Curricular, aprovada pela Resolução CNE/CP n. 2, de 22 de dezembro de 2017, é entendido de forma controversa a depender da perspectiva a partir da qual se analisa este fato tão relevante para a educação brasileira. Do ponto de vista oficial, foi resultado de amplo processo de participação social, especialmente de atores como o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), a União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), o Conselho Nacional de Educação (CNE), e movimentos da sociedade civil, como o Movimento pela Base, bem como organismos internacionais e agentes internacionais especialistas em reformas curriculares, além de sindicatos e outros agentes representantes dos educadores (Castro, 2020). A mesma autora, que foi uma das principais articuladoras deste documento curricular, afirma que a primeira versão foi colocada a público entre outubro de 2015 e março de 2016, tendo recebido mais de 12 milhões de contribuições da sociedade em geral, sendo que essas foram sistematizadas por pesquisadores da Universidade de Brasília e da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, sendo ainda alvo de pareceres e análises (Castro, 2020). No entanto, podemos retroceder ainda mais no tempo, para o ano de 2013, tendo como primeiro evento inaugurador do processo uma parceria entre o Consed e a Fundação Lemann, em outubro daquele ano, na cidade de São Paulo. Em maio de 2014, patrocinado pela Undime, ocorreu um segundo evento do mesmo tipo, e um terceiro foi o “Seminário Internacional do Centro Lemann para o Empreendedorismo e Inovação da Educação Brasileira” em agosto do mesmo ano. “Tais eventos confirmam a intensa participação de instituições privadas na condução do processo, que mais tarde culminou na construção do documento” (D’ávila, 2018, p. 84). Ao mesmo tempo coloca em xeque a versão oficialista de que este tenha sido um processo democrático e participativo. Em maio de 2016 foi publicada a segunda versão da BNCC, coordenada nacionalmente pela Consed e pela Undime, contando com seminários estaduais 13
promovidos por secretarias estaduais de educação. Em abril de 2017 foi promulgada a terceira versão da BNCC, sem a inclusão do Ensino Médio, presente nas versões anteriores, e que sofreu críticas diretas dos movimentos organizados da comunidade educativa, como, por exemplo, a nota da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação ANPED (ANPED, 2017), bem como da Associação Nacional pela Formação dos Profissionais da Educação ANFOPE (ANFOPE, 2017). Neste mesmo ano, entre julho e setembro, o Conselho Nacional de Educação CNE realizou audiências públicas em todas as regiões do país, sendo o texto final consubstanciado em 20 de dezembro de 2017, com a assinatura pelo Ministro da Educação José Mendonça Filho. A Anfope, na Carta de João Pessoa, assim se expressou sobre a condução do processo: Questionávamos a condução por imposição da terceira versão da BNCC, e também seu processo de produção que desconsiderou as críticas propositivas das entidades educacionais e privilegiou fortemente setores do empresariado interessados na padronização do ensino para atender fins mercadológicos (ANFOPE, 2017). a Anped, no mesmo ano, expressava-se na mesma linha: A ANPEd, desde o ano de 2015, vem produzindo um conjunto de posicionamentos críticos acerca da proposição de uma Base Nacional Comum Curricular. São elementos presentes nesta crítica tanto a metodologia de elaboração que privilegia especialistas e subalterniza o diálogo com as comunidades escolares quanto suas evidentes implicações nos processos de avaliação, de ensino e aprendizagem, na homogeneização das matrizes curriculares, na formação de professores e autonomia das escolas que se fragilizam com a lógica de centralização que a BNCC instaura na educação escolar (ANPED, 2017). No interior do CNE também houve divergências das conselheiras Aurina de Oliveira Santana, Malvina Tânia Tuttman e Márcia Ângela da Silva Aguiar, que votaram contra a aprovação da Resolução (D’ávila, 2018), o que demonstra o clima desta reforma, num período político igualmente conturbado, devido ao golpe contra a presidenta Dilma Rousseff e os efeitos que se sentiram a partir de então. Desta forma, temos na condução da BNCC um caráter autoritário que não deixa de refletir de uma maneira direta o que é o próprio significado desta reforma curricular. Não é possível, assim, vislumbrar uma análise das competências da BNCC sem, antes, apontar os elementos anteriores relativos à tramitação do projeto até sua consecução. 14
Sobre a principal característica curricular desta reforma, as competências, estas são definidas no Art. da Resolução CNE/CP n. 2, de 22 de dezembro de 2017 (Brasil, 2017a): Art. No âmbito da BNCC, competência é definida como a mobilização de conhecimentos (conceitos e procedimentos), habilidades (práticas cognitivas e socioemocionais), atitudes e valores, para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho. Parágrafo Único: Para os efeitos desta Resolução, com fundamento no caput do art. 35-A e no §1º do art. 36 da LDB, a expressão “competências e habilidades” deve ser considerada como equivalente à expressão “direitos e objetivos de aprendizagem” presente na Lei do Plano Nacional de Educação (PNE). As competências e habilidades, igualadas a direitos e objetivos de aprendizagem no PNE, cumprem um papel de mediadores entre as relações entre indivíduos e meio, “[...] independentemente das práticas culturais que diferenciam indivíduos e grupos e independentemente também, dos significados que derivam dessas práticas” (Silva, 2008, p. 16). Além disso, sua concepção instrumental fica evidenciada pela subordinação das competências, logo das aprendizagens como direitos e objetivos, à mobilização de conhecimentos e práticas cognitivas e socioemocionais para a resolução de situações do cotidiano, da cidadania e do trabalho. A dimensão individualista das competências, ou a psicologização das questões sociais (Ramos, 2001), também aparece de forma direta como um dos fundamentos das reformas educativas neoliberais, com o intuito de formar subjetividades adequadas à sociedade em crise. Em termos de análise teórica, tomamos os princípios das competências sintetizados por Ramos e Paranhos (2022, p. 81): Sua versão atual tem a mesma raiz do que se tentou implementar nos anos 1990 pragmatismo e neopragmatismo; construtivismo e condutivismo; e tecnicismo visando à formação de sujeitos flexíveis para uma sociedade precária. Entretanto, não se fala mais em empregabilidade, mas em empreendedorismo, o qual se pode compreender com a ajuda de Pierre Dardot e Christian Laval (2016) como o empreendedorismo de si. Trata-se, portanto, de uma versão ainda mais cruel para os/as trabalhadores/as, pois esconde a real finalidade que se pretende impor à educação: formar sujeitos flexíveis, preparados para a precariedade, individualistas, que ignoram a vida em sociedade para tratar de seus interesses; pessoas que naturalizam a exclusão e a precarização de si próprios. Diferente do cenário dos anos 1970, marcado pela formação voltada para uma produção nos marcos do fordismo/taylorismo, visando a empregabilidade nestes mesmos termos, no período neoliberal em que as competências ganham 15
nova significação, estas acabam se relacionando com a mobilização de características subjetivas, de difícil socialização pelo ensino. A triangulação entre demandas complexas da vida cotidiana, cidadania e trabalho abarcam o leque de atuação individual. Segundo Pelissari (2018, p. 63), as pesquisas sobre as competências no Brasil têm uma conclusão em comum: “[...] o fato de o indivíduo, e não mais o posto de trabalho, ser o portador dos requisitos do exercício laboral provou o deslocamento, nas propostas curriculares, do conceito de qualificação para o de competências”. Neste sentido, a figura da subjetividade mais emblemática neste contexto é o empreendedor, cujas características são as seguintes: capacidade constante de adaptação, de conhecimento sobre o contexto do negócio, busca do autoconhecimento (controle socioemocional), não acomodação, determinação, resiliência, inovação na empresa ou no próprio negócio, busca e criação de oportunidades e pragmatismo nas ações. Esta subordinação dos direitos e objetivos de aprendizagem também se referem ao objetivo da BNCC de adequar os currículos às avaliações de larga escala, o que fica evidenciado no Parecer CNE/CP n. 15/2017, sobre a BNCC: “Art. 16. Em relação à Educação Básica, as matrizes de referência das avaliações e dos exames, em larga escala, devem ser alinhadas à BNCC, no prazo de 1 (um) ano a partir da sua publicação” (Brasil, 2017b). Com isso, cria-se um processo de uniformização tendente a facilitar processos públicos de comparação de resultados, que é um dos pilares das reformas educativas neoliberais. Uma face fundamental de tais reformas, pertinentes às competências, é a da resolução de problemas. Popkewitz (2009, p.159) assim sintetiza a questão: “A resolução de problemas não trata somente de solucionar problemas! Uma instrução efetiva deve conseguir que as crianças ‘queiram’, além de que eles sejam ‘capazes de’”. Em uma síntese que nos parece muito pertinente, Invernizzi (2000) se refere às competências como a formação para cenários com características de imprevisibilidade, que exigiriam pelo menos três aspectos formativos: - o “saber”, envolvendo as dimensões práticas, técnicas e científicas, adquirido formalmente ou através da experiência profissional; - o “saber agir” (também designado como “saber fazer”), que implica a capacidade de transpor os conhecimentos para situações concretas, 16
tomadas de decisões, resolução de problemas e enfrentamento de situações novas; - o “saber ser”, que inclui traços de personalidade e caráter adequados aos comportamentos requeridos nas relações sociais de trabalho, tais como envolvimento, responsabilidade, disponibilidade para inovação e a mudança, assimilação de novos valores de qualidade, produtividade e competitividade (Invernizzi, 2000, p.62). Podemos desdobrar estes saberes nos chamados “quatro pilares da educação”, presentes no Relatório Jacques Delors, quais sejam: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser (Delors, 1998). Todos se relacionam a soluções individuais, numa concepção de que a somatória das ações individuais, permeadas pela educação, poderiam impactar em mudanças sociais. Afinal: “Cabe-lhe a missão de fazer com que todos, sem exceção, façam frutificar os seus talentos e potencialidades criativas, o que implica, por parte de cada um, a capacidade de se responsabilizar pela realização do seu projeto pessoal” (Delors, 1998, p. 16). As competências possuem entre si uma relação de sobredeterminação, ou seja, nem todas tem o mesmo valor nas reformas educativas neoliberais. As competências que possuem mais valor são as vinculadas ao “agir” e “ser”, que se desdobram no “aprender a ser”, “aprender a conhecer” e “aprender a conviver”. Desta forma, por exemplo, o “aprender a fazer”, como mobilização prática de conhecimentos a situações concretas, tem sentido se subordinado às soluções do “saber ser”. As competências, por fim, referem-se a determinadas habilidades como: contextualização dos conhecimentos; capacidade de comunicação; criatividade; análise crítica; participação; estar aberto ao novo; ser colaborativo; ser resiliente; ser produtivo e responsável (Brasil, 2017c). Estas exigem muito mais do que informações, ou seja: aprender a aprender, saber lidar com informações, atuar com responsabilidade em contextos e culturas digitais, aplicar conhecimentos para resolver problemas, autonomia para tomar decisões, ser proativo para solucionar situações problemáticas do cotidiano, conviver e aprender com as diferenças e as diversidades (Brasil, 2017c). Na BNCC do Ensino Fundamental, as competências devem ser desenvolvidas no âmbito de uma das cinco áreas, tal como consta no Art. 14º: Área de Linguagens, Área da Matemática, Área de Ciências da Natureza, Área de Ciências Humanas e Área de Ensino Religioso. Na BNCC do Ensino Médio o 17
mesmo ocorre com os cinco Itinerários Formativos, que são: Linguagens e suas tecnologias, Matemática e suas tecnologias, Ciências da Natureza e suas tecnologias, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e a Formação Técnica e Profissional. Cada área deve desenvolver competências específicas, e de cada uma destas competências derivam habilidades, que são codificadas. Retomando a tese formulada a respeito da sobredeterminação das competências relativas à formação da subjetividade, e com o intuito de sintetizar a análise das dez competências dispostas no Art. da Resolução CNE/CP n. 2, de 22 de dezembro de 2017, questionamos: quais as características formativas que sobressaem nas competências na BNCC? Ou, de outra forma, como a “mobilização de conhecimentos [...] habilidades [...], atitudes e valores, para resolver demandas complexas da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho” aparecem nas dez competências? Na competência 1, encontra-se na mobilização dos conhecimentos historicamente construídos para “[...] entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (Brasil, 2017a). A chave de leitura está na centralidade da “colaboração”, no sentido da formação cidadã para a coesão social. Esta sobredetermina a posse dos conhecimentos, que a direciona. Na competência 2, a centralidade de “resolver problemas e criar soluções” é evidente, ao subordinar a curiosidade intelectual e o uso da abordagem própria das ciências. E esta é, conforme discutido anteriormente, um dos pilares das reformas educativas neoliberais. A competência 3 é mais específica no que se refere à estética e o reconhecimento da diversidade, o que não deixa de ser contraditório com as políticas consequentes, especialmente na Reforma do Ensino Médio, na qual a área de Artes é secundarizada apenas como conteúdo e não como disciplina obrigatória. Sobre a competência 4, a sobredeterminação encontra-se no uso das diferentes linguagens para alcançar o “entendimento mútuo”. O tema da coesão social é fundamental na compreensão da ideologia das competências na BNCC, tanto que foi reforçada na primeira competência de forma explícita, e de maneira indireta em outras. 18
Na quinta competência da BNCC apresenta-se como determinante as ideias de resolução de problemas e o protagonismo na vida pessoal e coletiva. Estas subordinam a compreensão, uso e criação de tecnologias de informação e comunicação. Na competência 6 a centralidade está na capacidade de “fazer escolhas” livres e autônomas, portanto responsáveis, no âmbito individual, escolhas estas que devem se alinhar ao exercício da cidadania e do projeto de vida. Na competência 7 estão expressos valores cosmopolitas a serem desenvolvidos e respeitados, todos eles propugnando a participação em processos de coesão social. A centralidade está na promoção de “[...] direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo responsável, em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em relação ao cuidado consigo mesmo, com os outros e com o planeta” (Brasil, 2017a). Quanto às competências 8 a 10 podemos sintetizá-las como sendo todas elas de cunho subjetivista: traços de personalidade, de autoconhecimento, autoimagem, atitudes, empatia, motivações, assim como outras competências relacionadas anteriormente e que se repetem, tais como a resolução de problemas, o reconhecimento da diversidade, o diálogo etc. Estas três competências, pensadas como unidade, são centrais para a promoção das competências que se esperam formar nos sujeitos nesta reforma curricular da BNCC. Considerações finais: uma tentativa de síntese interpretativa sobre continuidades e rupturas da presença das competências nas reformas educativas brasileiras A tese que defendemos neste trabalho, em consonância com o referencial teórico adotado, é que a legislação educacional, ao aproximar de forma clara e inequívoca o e graus, na reforma de 1971, ou a educação básica, na reforma da BNCC em 2017, configura-se em uma forma de colocar o aparelho de Estado a serviço do capital, colocando-se como seu principal “partido político” (Poulantzas, 2019; Saes; Farias, 2021), organizando os interesses de formação em massa de força de trabalho para os diferentes setores da economia, ou mesmo para situações de desemprego ou de naturalização do empreendedorismo, constituindo-se com isso uma forma de distribuir a escolarização das classes trabalhadoras e das classes 19
médias, com o consequente bloqueio pensado do ensino superior para as massas trabalhadoras e para as competências típicas do fordismo, no caso da Lei n. 5692/71, ou para o preparo para um cenário de incertezas, precariedade e do desemprego estrutural, no caso da Resolução n. 2 CNE/CP, de 22 de dezembro de 2017. O argumento que defendemos é que esta subordinação da educação com as demandas do capital qualifica-se pela sondagem de aptidões e pelas habilitações profissionais, ambas propositadamente nomeadas no arco do regime de produção fordista, no primeiro caso, ou declaradamente pela pedagogia das competências, no segundo caso. Em ambos identificamos uma sobredeterminação das competências de caráter subjetivista, bem como se pode comprovar também nas análises das legislações. Em termos de competências no âmbito dos pilares da educação (Delors, 1998), o “aprender a ser” e “aprender a conviver” sobredeterminam o “aprender a conhecer” e o “aprender a fazer”, ou, segundo a classificação de Invernizzi (2000), o “saber ser” e o “saber agir” sobredeterminam o “saber”. As reflexões alocadas neste trabalho podem auxiliar a desenvolver reflexões teóricas e pleitos práticos no que respeita à relação entre trabalho e educação, mediados pela compreensão crítica do Estado capitalista. Em termos políticos, a mera inércia do aparelho escolar necessariamente o leva a um papel reprodutivo, ou seja, o leva a cumprir em cada momento histórico um papel de reproduzir as novas gerações conformadas com as demandas sociais advindas da forma de reprodução do capital, tema farta e qualitativamente discutido desde os anos de 1970 com as teorias da reprodução social (Bourdieu; Passeron, 1992; Althusser, 1998; Cunha, 1982). As saídas para que a escola seja um aparelho contraideológico, retomando um tema clássico em nossa literatura educacional (Severino, 1986; Bosi, 2010; Gallo, 2019), ou que atue como uma instituição na luta pela hegemonia da classe trabalhadora (Saviani, 2008a; 2008b; Saviani, Duarte, 2012), ou, ainda, que lute pela emancipação humana para além da emancipação meramente cidadã (Tonet, 2005), não se encontram necessariamente encravadas na própria instituição escolar, mas nos sujeitos, educadores, estudantes e comunidades engajadas e que podem mobilizar a escola para esta disputa na sociedade, visando uma formação humana omnidimensional (Gramsci, 2011) , e não subordinada à formação do capital 20
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