V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X A NECESSÁRIA AUTO-ORGANIZAÇÃO DA JUVENTUDE TRABALHADORA CONTRA A OFENSIVA NEOLIBERAL NA AMÉRICA LATINA 1 Andréa Wahlbrink Padilha da Silva 2 Resumo Neste artigo, propõe-se analisar os desafios da juventude da classe trabalhadora na sociedade capitalista, compreendendo a atualidade da ofensiva neoliberal no território latino-americano. Tem-se como método de análise o materialismo histórico e dialético, em colaboração com análise documental e entrevistas semiestruturadas a partir da pesquisa com quatro organizações políticas da juventude. Este estudo proporcionou uma maior reflexão acerca da posição da juventude perante as condições de produção capitalista e as necessidades de (re)pensar os espaços urbanos e a emergência de um projeto de direito à cidade como um bem público e universal. Nesse sentido, faz-se necessário problematizar a importância da auto-organização da juventude trabalhadora como um instrumento potencializador de transformação radical da vida nas cidades. Palavras-chave : Neoliberalismo; Juventude trabalhadora; Auto-organização. LA AUTOORGANIZACIÓN NECESARIA DE LA JUVENTUD TRABAJADORA CONTRA LA OFENSIVA NEOLIBERAL EN AMÉRICA LATINA Resumen En este artículo, se propone analizar los desafíos de la juventud de la clase trabajadora en la sociedad capitalista, comprendiendo la actualidad de la ofensiva neoliberal en el territorio latinoamericano. Se tiene como método de análisis el materialismo histórico y dialéctico, en colaboración con análisis documental y entrevistas semiestructuradas a partir de la investigación con cuatro organizaciones políticas de la juventud. Este estudio proporcionó una mayor reflexión acerca de la posición de la juventud ante las condiciones de producción capitalista y las necesidades de (re)pensar los espacios urbanos y la emergencia de un proyecto de derecho a la ciudad como un bien público y universal. En este sentido, es necesario problematizar la importancia de la autoorganización de la juventud trabajadora como un instrumento potencializador de transformación radical de la vida en las ciudades. Palabras clave: Neoliberalismo; Juventud trabajadora; Autoorganización. THE NECESSARY SELF-ORGANIZATION OF WORKING YOUTH AGAINST THE NEOLIBERAL OFFENSIVE IN LATIN AMERICA Abstract In this article, the proposal is to analyze the challenges of the working-class youth in capitalist society, understanding the current nature of the neoliberal offensive in Latin American territory. The method of analysis is the dialectical and historical materialism, in collaboration with documentary analysis and semi-structured interviews based on research with four youth political organizations. This study provided a greater reflection on the position of youth in the conditions of the capitalist production and the need to (re)think urban spaces and the emergence of a project for the right to the city as a public and universal good. In this sense, it is necessary to problematize the importance of the self-organization of the working youth as an instrument that enhances the radical transformation of life in cities. Keywords : Neoliberalism; Working Youth; Self-organization. 2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Brasil. Desenvolve estudo de pós-doutorado em Educação, com bolsa CAPES, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade de Caxias do Sul (PPGEDU/UCS), Rio Grande do Sul - Brasil. E-mail: andreawahlbrink@hotmail.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/8575862926726892 . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4105-1301 . 1 Artigo recebido em 08/05/2024. Primeira Avaliação em 05/08/2024. Segunda Avaliação em 04/10/2024. Aprovado em 21/10/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.62910 1
Introdução Considerando a temática proposta para o 49 da edição da revista e a partir da inserção acadêmica da autora no desenvolvimento de pesquisas no campo da juventude 3 (Silva, 2022), em especial na área do trabalho, educação e movimentos sociais, neste artigo, propomos contextualizar as implicações sobre a atualidade da ofensiva neoliberal no Brasil em articulação com o território latino-americano, e os desafios encontrados pela juventude trabalhadora no desenvolvimento de uma práxis organizativa e emancipadora no âmbito das lutas sociais e nos processos coletivizadores da ação juvenil. As problematizações abordadas neste texto fazem parte dos resultados de uma pesquisa de doutoramento que buscou analisar os aspectos educativos das organizações políticas de juventude 4 , em especial quatro reconhecidas organizações presentes em todo o território nacional, a saber: União da Juventude Comunista (UJC), União da Juventude Socialista (UJS), Levante Popular da Juventude (Levante) e Juntos. A motivação da escolha das organizações de juventude pesquisadas decorre da importância das mesmas no contexto, e na temporalidade ao qual a pesquisa foi desenvolvida. Na ocasião, as quatro organizações encontravam-se presente em todos os Estados brasileiros, nas médias e grandes cidades, e com uma atuação muito presente no movimento de massas. Tais escolhas, não descartam a importância de outras organizações políticas da juventude que não foram diretamente analisadas, mas que compõem o escopo das lutas sociais juvenis. Entendendo que todas, em sua diversidade, ocupam-se em compreender e organizar politicamente a juventude brasileira. Destaca-se que as quatro organizações da juventude pesquisadas, correspondem aquilo que é considerado como o ‘braço juvenil’ de partidos políticos e 4 Quando mencionamos, no decorrer do texto, “movimentos de juventude”, “organizações de juventude” ou “auto-organização da juventude”, referimo-nos aos coletivos políticos de jovens. Estes são instrumentos de auto-organização da ação juvenil como a União da Juventude Comunista (UJC), a União da Juventude Socialista (UJS), o Levante Popular da Juventude (Levante) e Junto, entre outros que não foram estudados durante a pesquisa, mas fazem parte de um apanhado histórico de instrumentos de auto-organização cunhados por sujeitos jovens, como as entidades representativas estudantis como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES). 3 As análises contidas no artigo fazem parte das reflexões desenvolvidas na tese de doutorado em Educação, intitulada: “A pedagogia da juventude: uma reflexão sobre a dialética da práxis do movimento de juventude” 2
movimentos sociais populares, ou melhor dizendo; coletivos juvenis que integram a estratégia política e organizativa de partidos e movimentos sociais naquilo que compõem a diversidade da esquerda brasileira. Sendo eles: UJC do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a UJS do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), o Levante Popular da Juventude da Consulta Popular (CP), e o Juntos do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). A pesquisa contou com a análise de documentos e entrevistas semiestruturadas, ancoradas na análise de conteúdo (Bardin, 1977) e no procedimento de triangulação de dados (Triviños, 1987). Os documentos estudados foram: estatutos, resoluções, cartas, manifestos, cartilhas, boletins, jornais, artigos, vídeos, podcast, redes sociais, materiais gráficos e digitais, totalizando 168 documentos e oito entrevistas, sendo dois entrevistados para cada organização de juventude. Apresentamos dados parciais das análises, em específico as que se relacionam aos desafios da juventude trabalhadora e ao mundo do trabalho. As análises produzidas no decorrer deste estudo fundamentam-se nos pressupostos teóricos e metodológicos do Materialismo Histórico e Dialético de compreensão de pesquisa, como modo de pensar as contradições da realidade, investigar e interferir no mundo como essencialmente contraditório e permanentemente em transformação (Konder, 2008). Em colaboração com os estudos sobre a juventude (Mannhein, 1968; Margulis; Urresti, 1996), neoliberalismo (Antunes, 2018; Chauí, 2020; Katz, 2016), a questão urbana e o direto à cidade (Castels, 1983; Harvey, 2013; Vainer, 2002), e a Teoria Marxista da Dependência (Bambirra, 1992; Marini, 2005; Traspadini, 2016). O movimento da investigação exposta foi realizado na possibilidade de apresentar algumas problematizações, fundamentadas na investigação das quatro organizações políticas da juventude pesquisadas, em relação às problemáticas e às contradições da atualidade da ofensiva neoliberal no contexto brasileiro em articulação com o território latino-americano na sua relação entre a totalidade e as múltiplas dimensões da condição da juventude trabalhadora na construção de um projeto de auto-organização da sua ação política e educativa no tecido social. Considerando as implicações da categoria juventude em nosso momento histórico e na sua relação com a construção do tecido social, representa compreendê-la com profundidade e articulada aos diferentes contextos sociais, 3
políticos, históricos, econômicos e culturais que permeiam a totalidade dessa posição social no desenvolvimento da sociedade capitalista. Na expressão da construção dessa categoria, que ganhou demarcado lugar de posição social principalmente a partir do século XX, da qual se forjam algumas das concepções sobre juventude que ainda hoje estão presentes em nosso cotidiano em consonância com o desenvolvimento das forças produtivas capitalistas e da classe trabalhadora. A juventude como uma categoria historicamente construída a partir de uma abordagem dialética corresponde a uma totalidade social, permeada por diversidades, em uma posição geral e particular das condições materiais objetivas de cada jovem em sua relação. Podemos afirmar que não é possível analisarmos a juventude de forma homogênea, mas, sim, com particularidades e singularidades, que podem ser de classe, de raça, de gênero, de sexualidade, entre outras. Mesmo que a juventude em sua compreensão ampla corresponda à mesma fase/etapa da vida biológica e social –, para o conjunto desses jovens em sociedade, a juventude como uma posição na esfera social representa uma etapa da vida determinada por uma moratória vital e social, segundo Margulis e Urresti (1996). O exercício dessa condição social determinada pela moratória em uma sociedade marcada por extremas desigualdades sociais como a nossa estará amplamente legitimado para poucos. Ainda mais, é possível dizer que a juventude, como uma condição construída socialmente, carrega em si as propriedades e as ligações que são próprias e singulares do tempo e do lugar de sua existência, em conexão com formas distintas de viver a condição juvenil, como é o caso da juventude trabalhadora, articuladas a características comuns, no geral, que denominam os jovens socialmente. Assim, nos afastamos de uma visão abstrata, generalista, essencialista e fragmentada desses sujeitos, compreendendo que a constituição da juventude na sociedade de classe é atravessada pela materialidade que os constituem em coletividade no movimento da contradição. A partir dessa compreensão de juventude, destacamos o papel histórico da juventude trabalhadora como uma força social em movimento e do lugar destacado das gerações nos processos da formação social e política da sociedade no desenvolvimento coletivo de sua ação juvenil, na direção de entender e intervir nas 4
contradições societárias em curso. Para a abordagem deste artigo, destacamos principalmente a força da coletividade dos jovens, que, na ação auto-organizada em movimentos políticos, ocupam espaços de representação e mobilização da condição juvenil. Relacionando as forças políticas dos movimentos de juventude no desafio da organização da juventude trabalhadora. Assinalamos a auto-organização (Lenin, 2017; Pistrak, 2013) como uma possibilidade histórica de um instrumento de organização da classe trabalhadora. Ela se por meio de experiências de agrupamentos e de coletivos em torno de espaço de construção da coletividade, de reflexão, de estudo, de mobilização e da ação da organização do pensar e do fazer político dos mais diversos sujeitos oriundos da classe que vive do seu trabalho. Este artigo, além desta introdução, está dividido em mais duas seções, seguidas das conclusões. Na próxima seção, apresentamos o contexto da ofensiva neoliberal na América Latina, ancoradas nos estudos da Teoria Marxista da Dependência, como uma possibilidade de compreensão a partir de uma leitura de nosso território. Na sequência, abordamos a questão urbana e o direito à cidade e a necessidade de construção de processos de auto-organização da juventude trabalhadora contra a barbárie. A ofensiva neoliberal e a juventude trabalhadora latino-americana A crise hegemônica do capital na atualidade do contexto da ofensiva neoliberal produz mudanças significativas no mundo do trabalho, causando um impacto ainda mais profundo nas condições de vida do conjunto da juventude da classe trabalhadora, que enfrenta o desemprego e a informalidade, o trabalho precarizado e terceirizado, o empobrecimento, além da perda de poucos direitos sociais adquiridos. É justamente a juventude, a maior parcela da sociedade, que se encontra nessa realidade. Segundo o Censo de 2022 Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE (DESEMPREGO [...], 2024), o Brasil possui uma média de 8,5 milhões de desempregados, uma porcentagem de 7,8% da população economicamente ativa. Contudo, esse índice é ainda maior entre os mais jovens, pois a taxa de desocupação entre brasileiros com idade entre 18 e 24 anos é de 18% mais que o 5
dobro da média nacional (Pilar, 2023). Vale ressaltarmos que esses números ainda podem ser maiores, se considerarmos a flexibilização do trabalho e o ideário do empreendedorismo com o regime de Microempreendedor Individual (MEI) como forma de registro dos índices dos postos de trabalhos ativos no país. O avanço do neoliberalismo e a intensificação da exploração nos territórios dependentes da América Latina ganham contornos específicos no arranjo do capital globalizado, agudizando as marcas do processo de constituição de nossa formação social sob o capitalismo. A categoria de superexploração da força do trabalho e da transferência de valor/riqueza como fundamento dessa totalidade integrada e dependente de capitais em um contexto mundial de seu sistema de produção, desenvolvida por estudiosos da teoria Marxista da Dependência (TMD), como Marini (2005) e Bambirra (1992), demonstram as formas dessa expropriação, contidas no baixíssimo valor do pagamento da força de trabalho e na elevada e prolongada jornada de trabalho, dentro dos marcos formais vigentes, como o tipo de capitalismo produzido em nosso território. Se analisarmos as condições materiais de existência da juventude, podemos facilmente perceber que esses marcos são ainda maiores. A juventude trabalhadora ocupa os piores postos de trabalho, na condição de subemprego, com moradias precárias e ausência de sistemas de proteção social e de políticas públicas de saúde e educação. Segundo recentes dados da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura Unesco (2021), a América Latina e o Caribe registram que mais de 45 milhões de pessoas em situação de pobreza. Um número que pode representar 37% da população da região. No caso da juventude, esse número ainda pode ser maior. Ainda, faz-se necessário sublinhar que a formação social latino-americana está marcada historicamente pela ocupação colonial, pela violência, pelo extermínio dos povos originários, pelo modo de produção colonial escravista, pela alta concentração da propriedade privada, em uma dependência particular aos interesses do imperialismo, como territórios anexos ao centro de exportação de capitais, por meio da superexploração, principalmente da terra e do trabalho. Segundo Traspadini (2016, p. 120), as bases dessa exploração estão sustentadas em “[...] uma riqueza originária que serviu ao fim mercantil da acumulação primitiva baseada no saqueio, na espoliação e, não menos importante, na implementação 6
interna de novos processos produtivos ancorados na abundância de terra e de trabalho”. Essas marcas se reproduzem ainda com mais rigor no extermínio sistemático da juventude negra e periférica, em uma estrutura social demarcada pelo conservadorismo e preconceitos que repudia e se utilizam de todas as formas de violência, principalmente contra os corpos indígenas, LGBTQIA+ e de mulheres. São marcas de nossa formação social, de uma classe dominante de caráter dominada, altamente subserviente aos interesses imperialistas e de uma estrutura produtiva afastada das necessidades das massas e do desenvolvimento nacional. É constituída em uma relação de extremas desigualdades sociais e de uma mentalidade arcaica e conservadora, e de uma política de ódio contra as classes populares. Sobre os territórios latino-americanos, agudiza-se profundamente o “exército de reserva”, em que uma parcela da classe trabalhadora não possui assalariamento, um posto fixo de trabalho e se encontra imersa em uma realidade de subempregos e desemprego estrutural (Marini, 2005). Para compreendermos a atual fase do desenvolvimento do neoliberalismo no território latino-americano, parece-nos necessário entender as leis estruturais apresentadas pela TMD, juntamente com o avanço da formação das cidades e o papel que elas ocupam na sociabilidade da juventude no contexto da ofensiva neoliberalista. Castells (1983) ressalta o avanço das forças produtivas da dominação e do poder em relação de dependência e subordinação, em detrimento do avanço do capitalismo, das necessidades do imperialismo e de suas formas de sociabilidade e relações culturais principalmente a relação de dependência e de subordinação à que as cidades latino-americanas estão submetidas. Uma sociedade é dependente, quando a articulação de sua estrutura social, a nível econômico, político e ideológico, exprime relações assimétricas com outra formação social que ocupa, frente a primeira, uma situação de poder. Por situação de poder, entendemos o fato de que a organização das relações de classe na sociedade dependente exprime a forma de supremacia social adotada pela classe no poder na sociedade dominante (CASTELLS, 1983, p. 59). Trata-se, portanto, de uma relação de “subdesenvolvimento” de alguns territórios, em detrimento de um “desenvolvimento” de outros. O processo de urbanização torna-se, por conseguinte, sua expressão, sua formação econômica, 7
política, social, determinado pelas relações de dependência e de subordinação às grandes metrópoles, território das grandes capitais, de concentração de riquezas. O neoliberalismo estabelece um planejamento competitivo, que se pretende flexível e amigável, principalmente para a economia norte-americana, trazendo, segundo Chauí (2020, p. 3020), “[...] a fragmentação e desarticulação de todas as esferas e dimensões da vida social”. A noção de flexibilização da economia e das relações sociais remete à ideia de eficiência empresarial, supondo uma forma de gestão capaz de aproveitar as oportunidades mais rapidamente que os demais concorrentes. Esses mecanismos têm penetrado na formação da juventude trabalhadora em uma ideia bastante apurada da meritocracia, utilizando-se do imaginário coletivo de a juventude trabalhadora ter os mesmos direitos e as mesmas oportunidades, dependendo exclusivamente do seu empenho e de sua adaptação aos diferentes contextos do mundo do trabalho altamente instáveis, competitivos e intercambiáveis. Vainer (2002) demonstra que os territórios têm cumprido o papel de cidades/empresas, cuja função social é determinada por pressupostos empresariais de qualidade total. O autor refere que, alicerçada a uma noção de flexibilização e de competitividade da economia, outra análise entra em questão: a quebra do paradigma do processo de urbanização moderno para o pós-moderno, que projeta, para o tecido social, a intensificação da individualização e da vida em pequenos “guetos”. A juventude, por sua vez, reproduz, em sua sociabilidade, uma infinidade de “guetos/tribos”, que demarca a fragmentação e a dissociabilidade, além de um elevado apresso pela subjetividade de sua individualidade. Os interesses públicos e coletivos confrontam-se cada vez mais aos dos atores privados, cada caso de maneira específica e com uma falsa ideia de particularidade. As cidades passam a se voltar cada vez mais para os interesses privados. Sua projeção, seu planejamento, sua mobilidade, sua arquitetura, sua infraestrutura e, propriamente, seus espaços públicos acompanham os interesses privados e particulares de corporações, empresas, de empresários de sucesso, sempre com uma roupagem de movimentos espontâneos da competitividade e da ideia da meritocracia do ‘empresário de si mesmo’. O ideário neoliberal de meritocracia afirma uma visão que todos têm as mesmas oportunidades de ascensão e que a felicidade dependeria exclusivamente do esforço de cada jovem. 8
Dado o contexto, os jovens da classe trabalhadora, em especial, vivenciam a ausência do Estado e o abandono das políticas públicas, na configuração de uma sociedade fragmentada, competitiva, segregada e individualista, com pouca esperança no futuro. Os jovens da classe trabalhadora, nesse contexto de precariedade, são aqueles que têm dificuldade de concluir sua escolarização e de construir uma vida mais autônoma longe dos vínculos familiares. No mundo do trabalho, sua inserção é precária, com baixíssimos salários ou, ainda, com a ausência de um trabalho formal e de seguridade social, que se manifesta de forma expressiva, sistêmica e condicionante. Os espaços de lazer de caráter público encontram-se cada vez mais resumidos para a juventude trabalhadora. Na América Latina, com a fragilidade dos projetos de governo de esquerda, produziu-se um conjunto de políticas compensatórias de alívio à pobreza, de caráter conjunturais e, portanto, não de superação da pobreza, perseverando em essência o modelo dependente, neoliberal de suas forças produtivas. Com isso, o avanço ainda que neodesenvolvimentista (KATZ, 2016) em alguns países da América Latina, como o Brasil acabou por sofrer ataques de uma direita e de uma extrema-direita oligárquica, conservadora e subserviente aos interesses imperialistas, que, por meio de seu poder econômico, político e midiático, construíram duras disputas no interior das relações, criando um golpe parlamentar, empresarial, midiático, misógino à democracia, abrindo espaço para a chegada de um governo pró-fascista e da intensificação da expropriação da riqueza no território latino-americano. Entendendo a complexibilidade da vida sob a condição neoliberal, e os desafios impostos à humanidade, não podemos deixar de demarcar a potencialidade da construção dos seres humanos em sujeitos históricos, que, a partir da correlação de força, na luta de classe, na contraposição dos direitos individuais, os direitos coletivos entram em disputa. Podemos perceber esse movimento de disputa pelos caminhos da humanidade, quando, dentro de um sistema tradicionalmente conservador, emerge com força a luta pelos direitos humanos, tomando forma de lutas mais coletivizadoras da sociedade. É a partir desse ponto que debateremos os limites do neoliberalismo como organização societária e a capacidade de reinvenção dos caminhos da humanidade por intermédio da ação organizada da sociedade em especial o recorte da organização da juventude em cooperação com os demais seguimentos. O intuito é demarcarmos o papel dos coletivos de juventude como um 9
movimento social, que, na história de nosso país, ocupa um lugar de construção de resistência e de alternativas políticas. Na próxima seção, aprofundamos esse entendimento. A juventude e o direito à cidade: a necessária auto-organização da juventude trabalhadora contra a barbárie neoliberal São inúmeros os momentos em que a juventude preconiza manifestações e ocupa os espaços públicos como forma de denúncia da precariedade das condições de vida. Nas últimas duas décadas, presenciamos protestos contra o aumento das passagens do transporte coletivo e a defesa da tarifa zero 5 ; a ocupação das escolas públicas como ato de reivindicação contra a precariedade da educação pública 6 ; e os atos massificados nas ruas contra o projeto de privatização das universidades públicas e institutos federais do país 7 . Podemos, ainda, sublinhar um conjunto maior de movimentos preconizados pela juventude que influenciaram os caminhos da política. Entretanto, nos limites deste texto, o esforço é demonstrar o significado de uma geração no desenvolvimento dos rumos do país, perpassando pela questão do tipo de sociedade que enfrentamos e que necessariamente precisamos transformar. Analisarmos a atualidade da sociedade neoliberal passa por questionarmos os tipos de laços sociais que estamos construindo e que relação estabelecemos com a natureza. Sobre essas questões, as abordagens sobre o direito à cidade, desenvolvidas por Harvey (2013) e Lefebvre (1973), nos auxiliam a refletir o lugar do direito como uma condição coletiva irrevogável como um direito urgente de sobrevivência da 7 Tsunami da Educação foram os movimentos ocorridos em 2019 preconizados por estudantes secundaristas, do ensino universitário e da pós-graduação na realização de protestos, atos e passeatas, por todo o país, contra os cortes na educação pelo governo do ex-Presidente Jair Bolsonaro. 6 Primavera Secundarista representa os movimentos de mobilização estudantil e ocupação de escolas públicas no Brasil em 2016. As manifestações visavam barrar projetos e medidas dos governos estaduais de Geraldo Alckmin (São Paulo), Marconi Perillo (Minas Gerais), José Ivo Sartori (Rio Grande do Sul), Beto Richa (Paraná), Luiz Fernando Pezão (Rio de Janeiro) e do governo do ex-Presidente Michel Temer. Os estudantes, além de denunciarem a precariedade das escolas públicas, protestaram contra a “Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do teto de gastos”, a PEC 241, o projeto “Escola sem Partido” e a Medida Provisória do Novo Ensino Médio. 5 As Jornadas de 2013, como ficaram conhecidas, representam um conjunto de manifestações organizadas, inicialmente, pelo Movimento Passe Livre (MPL), uma organização majoritariamente formada por jovens que defendia a adoção da tarifa zero para transporte coletivo. O movimento foi fundado em uma plenária no Fórum Social Mundial, em 2005, em Porto Alegre, e ganhou destaque na organização e condução de um conjunto de manifestações que se espalharam pelo Brasil inteiro. 10
humanidade e do planeta, que representa “[...] o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade” (Harvey, 2013, p. 42). Além disso, um direito comum antes de individual que essa transformação depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo de modificar o processo de urbanização. A juventude, quando se mobiliza contra o alto valor pago pelo transporte urbano, questiona o direito à mobilidade urbana e à democratização do acesso à cidade; o direito de vivenciar a cidade como um bem público universal. As Jornadas de 2013 representam um desses eventos que questionam a possibilidade de viver a cidade como um bem comum, público, coletivo, plural e democrático. A atualidade do debate sobre a questão urbana remete-nos a pensar que tipo de cidade queremos, ou melhor, que tipo de sociedade queremos. Harvey (2013), quando aponta a profundidade do que significa a luta pelo direito à cidade, questiona que tipo de relações humanas necessariamente é preciso construir. Segundo Harvey (2013, p. 32), “[...] o direito à cidade não pode ser concebido simplesmente como um direito individual. Ele demanda um esforço coletivo e a formação de direitos políticos coletivos ao redor da solidariedade social”. As cidades necessitam incluir as diferenças de todas as ordens, precisamos expandir as esferas da liberdade, do acesso e dos direitos. Para isso, o direito às mudanças não é de forma alguma abstração, mas a materialização das rupturas e da construção de novos caminhos. A juventude, principalmente a juventude trabalhadora, sente a cada dia mais a dificuldade em acessar o que é público e sua riqueza, produto do seu próprio trabalho. Divide-se, assim, cada vez mais, a vida nas cidades daqueles que podem consumir a cidade dos que não podem, condenando-os à exclusão urbana. A questão urbana, na atualidade, expressa, por sua vez, todo o jogo político em disputa. Por mais que a hegemonia do capitalismo busque suas estratégias para vencer suas próprias crises, os processos contra-hegemônicos pulsam no interior das relações nas cidades, forjando um contingente de lutadores, assim como uma parcela da juventude, que reivindica um novo modelo societário. Analisada as últimas décadas, o movimento orientado pelo capital, que reorganizou o mundo do trabalho, aprofundou significativamente a mercantilização das cidades. Apropriou-se do patrimônio e da poupança pública, desempregou e remanejou a cadeia produtiva e não impediu a crise de seus próprios paradigmas. A população sofre com a aceleração das mudanças tecnológicas, fundamentalmente 11
pela rápida urbanização e pela favelização das periferias das grandes metrópoles (Bogo, 2008). Nossa formação social está marcada por um contingente enorme da população que vive nas periferias, em grandes favelas e subúrbios, em um país produtor de grandes riquezas, que convive ao mesmo tempo com a extrema pobreza, com a precariedade das condições básicas de vida, com longas jornadas de trabalho, e, também, em longos trajetos de transporte público nos centros urbanos. Vivemos em um momento em que o capital é altamente destrutivo, do trabalho, da natureza, do campo e da cidade, das relações humanas, enfim, da vida em sociedade. O debate do direito à cidade é parte e totalidade do tipo de civilização que temos, a qual, inevitavelmente, precisamos construir. Os desafios que cercam essa construção passam por entender a profunda crise econômica, política e ambiental que vivemos, e propor uma alternativa em médio e longo prazo para a auto-organização da classe trabalhadora, a fim de propor tensionamentos e horizontes de superação de tal precarização da condição de vida e da crise ambiental que nos assola. Entendemos que a auto-organização da juventude, principalmente a juventude trabalhadora, como parte de um campo político em atuação, é necessária e urgente. Refletiremos nesta seção do artigo sobre a possibilidade de vislumbrarmos processos autogestionários da juventude trabalhadora como formas coletivizadoras de novas relações sociais com o exemplo do processo das lutas assumidas pela juventude no passado e na necessidade de construção de um projeto de auto-organização para o presente e o futuro. Dialogar sobre o potencial da relação entre juventude e política, passa por observá-la como uma categoria sociológica, como nos estudos de Mannheim (1968). O autor aborda a categoria como uma força revigorante da sociedade, um olhar visto de fora que observa a sociedade e questiona seus padrões não como uma questão inerente, mas como uma potencialidade latente de renovação das gerações. Esse mesmo movimento pode ser percebido no interior das organizações políticas 8 , cujos coletivos juvenis representam, em muitos casos, uma força revigorante dos 8 Quando abordamos as “organizações políticas”, referimo-nos aos instrumentos políticos construídos pela classe trabalhadora, como: partidos políticos, movimentos sociais, associações comunitárias, pastorais sociais, sindicatos, entidades representativas de seguimentos sociais e trabalhistas, organizações não-governamentais, coletivos culturais, entre outros. 12
processos de rupturas e renovação da política e de problematizações sobre a ordem social vigente. Muitas das lideranças políticas eram jovens “desajustados, “desvinculados”, que questionavam sua condição social. Embora compreendamos que a juventude é parte de um agrupamento importante na luta de classe, o curso da história demonstra que somente juntos com a totalidade da classe é possível construir uma práxis verdadeiramente transformadora, quando a tomada de consciência se faz coletiva. É justamente a juventude que, neste momento, é um dos segmentos sociais que mais sofre com a destruição dos espaços públicos e, em contrapartida, busca mobilizar a sociedade em atos massificados de denúncia das mazelas sociais. Em especial, gostaríamos de destacar a importância histórica das organizações políticas da juventude, como a União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), as organizações juvenis partidárias, pastorais da juventude, as organizações comunitárias juvenis e os coletivos culturais de jovens que, em conjunto com movimentos sociais, partidos políticos e setores progressistas, organizam a indignação e constroem estratégias organizativas de uma intencionalidade política, no intuito de buscar saídas para a elevação da qualidade de vida da classe trabalhadora nas cidades. A auto-organização da juventude como a possibilidade de construção de uma infinidade de agrupamentos políticos e educativos das distintas formas de lutas sociais, como um movimento de ação coletiva das demandas juvenis, merece um olhar atento. É notório que a juventude estudantil tenha um espaço privilegiado nas lutas juvenis, ocupando um lugar histórico de reivindicação e de auto-organização de suas demandas em sua maioria vinculadas à luta pelo direito e pela qualidade da educação. Entretanto, momentos em que as demandas sociais são tão urgentes que estas acabam por direcionar as pautas do movimento estudantil e ultrapassam a agenda educacional. Um bom exemplo foi o importante papel que o movimento estudantil teve durante a Ditadura Civil, Militar e Empresarial. As lutas encabeçadas pelo movimento estudantil ultrapassaram os limites da educação e se transformaram em lutas mais amplas pelo projeto de sociedade em disputa. O movimento estudantil, quando amplia suas forças e seus canais de interferência, acaba por mobilizar outros segmentos da sociedade. Essa afirmação 13
pode ser comprovada não no Golpe de 1964, mas também mais recentemente, nas Jornadas de 2013. Em ambas as ocasiões, os atos massificados de rua foram convocados, inicialmente, pela juventude estudantil e, depois, ganharam aderência de outros setores da sociedade, ampliando, inclusive, suas palavras de ordem . Ao refletirmos sobre a juventude trabalhadora e os processos de auto-organização e mobilizações, podemos anunciar que é, no mínimo, uma tarefa um pouco mais complexa. As lutas da juventude, historicamente, como mencionamos, forjam-se em sua maioria no campo da educação e na formação do movimento estudantil. Ainda são poucos os movimentos de juventude preocupados em organizar a juventude do mundo do trabalho. E esse será o ponto que iremos explorar um pouco mais. Os documentos das organizações pesquisadas destacam a preocupação em organizar a juventude para além do movimento estudantil, de modo a construir um planejamento e uma ação mais direcionada para a juventude trabalhadora e periférica. O foco na juventude trabalhadora e periférica traz para as organizações uma ampliação significativa do seu olhar com o conjunto da juventude e do papel de suas organizações para além das pautas estudantis. Isso foi possível ser constatado por meio da pesquisa realizada: algumas organizações avançam mais em seu trabalho do que outras, em relação às pautas e ao trabalho concreto nos bairros e nas periferias das cidades. Abre-se, assim, um canal de organização e de ação direta com a juventude trabalhadora e periférica, que interfere significativamente no fazer político e pedagógico dessas organizações. A maior parte das organizações de juventude pesquisadas possuem ainda limites em desenvolver um trabalho com a juventude da classe trabalhadora. Isso é resultado de um importante acúmulo teórico e metodológico junto à juventude estudantil, mas que dialoga muito pouco com o contexto social da juventude trabalhadora no território periférico. A crítica possível de ser realizada é a de que, em geral, os movimentos históricos da organização da juventude concentram seus esforços políticos de atuação quase que exclusivamente no movimento estudantil, principalmente em uma composição dos jovens oriundos dos setores médios da sociedade, que possuem condições materiais de existência muito mais favoráveis em muitos casos, com possibilidade de dedicação exclusiva para os estudos, no exercício da moratória 14
social de sua condição juvenil. Margulis e Urresti (1996) destacam que a moratória social concedida aos jovens torna-se um período da vida em que se permite postergar diversas exigências sociais, tais como: trabalho, casamento, filhos, construção do próprio lar em uma espécie de tolerância da vivência juvenil para com o mundo adulto. a negação ou as poucas possibilidades de viver a moratória social por parte dos jovens da classe trabalhadora, em especial a juventude periférica, condiciona(m) um conjunto de possibilidades e de vivências dessa forma organizativa na qual, historicamente, o movimento estudantil se constituiu. A juventude trabalhadora, por esse motivo, carece de um instrumento de organização próprio a partir de sua materialidade social e de suas pautas, principalmente nos territórios periféricos das grandes cidades. O desafio de pautar um trabalho orgânico com a juventude trabalhadora exige que as organizações assumam um compromisso interno de priorizar o trabalho com a periferia como contribuição de um gás vital da juventude trabalhadora e periférica, um espaço de penetração no interior da população mais empobrecida de nossa sociedade e que também mais necessita de ferramentas de organização, de formação, de coletivização e de aprofundamento da consciência crítica. Vale ressaltarmos que são inúmeros os entraves para a realização de uma ação orgânica junto à juventude da classe trabalhadora. Uma delas é o conjunto de condições de precariedade da vida nas cidades que dificulta, também, os processos de auto-organização da juventude, que se encontra no limite de garantir cotidianamente sua sobrevivência, sobrando muito pouco ou quase nada de tempo para o exercício de uma prática de auto-organização. Essa questão está diretamente ligada ao crescimento exponencial do trabalho informal, sazonal e precário, agravado pelo fenômeno da “uberização” do trabalho como fenômeno crescente dos trabalhadores do setor de serviços, correspondendo ao que Antunes (2018, p. 32) denomina de “novo proletariado de serviços”, composto, em sua maioria, por trabalhadores jovens. Com isso, a juventude trabalhadora encontra-se imersa em longas jornadas de trabalho, com baixíssima remuneração e em uma condição de vida que impossibilita momentos para a família, para o lazer, para os estudos, para o direito ao ócio, para espaços de socialização e reflexão. O ritmo de vida sempre emergencial, sempre acelerado, dificulta o acesso 15
à participação da juventude trabalhadora a espaços como os movimentos de juventude aqui pesquisados. O caminho de construir raízes mais profundas e organizativas nos mais diversos territórios de vivência da classe trabalhadora juvenil, seja em seus locais de trabalho, seja de moradia, parte da capacidade das organizações construírem reflexão, tática, métodos, ferramentas pedagógicas de inserção e de trabalho concreto e cotidiano no interior da condição de vida desses sujeitos. Exige, por parte das organizações, uma leitura aprofundada da condição de vida juvenil da classe trabalhadora, como também uma agenda programática e propositiva que permita a consolidação das organizações nesses espaços. Isso exige um nível de complexibilidade maior, de mecanismos que, em sua maioria, são bem distintos aos utilizados no movimento estudantil. Esse desafio de reinvenção pode estar conectado com as experiências mais sistematizadas até então vivenciadas, que partem principalmente do trabalho comunitário e das ações de solidariedade de classe. A construção de cozinhas comunitárias, a participação nas reuniões das associações de moradores, nas reuniões do conselho de saúde, os almoços comunitários, os mutirões de limpeza nos bairros, a doação de cestas básicas, as atividades festivas, como o Dia da Criança e o Natal, têm sido porta de entrada para o diálogo e a inserção dos movimentos de juventude, principalmente nos territórios periféricos. Mesmo que essas ações de solidariedade de classe sejam extremamente importantes, principalmente em tempos de carestias, a construção de um processo organizativo autogerido pelos jovens trabalhadores ainda é um caminho mais distante nas organizações. O que percebemos na leitura dos documentos e nas entrevistas realizadas é que, mesmo que haja a vontade da realização de um trabalho orgânico com a juventude trabalhadora, em suas mais diversas condições de vida, as ações programáticas ainda se encontram limitadas em ações pontuais de solidariedade. O que é bem pouco, pensando a dimensão da luta de classe, é a necessidade da organização e construção do poder popular. Como parte de construção de vínculos com os territórios periféricos e com o desenvolvimento de uma ação concreta com a juventude mais precarizada, encontra-se, por exemplo, a estratégia dos cursinhos pré-vestibulares populares e dos coletivos de cultura popular. As organizações que possuem tais experiências 16
possuem um importante acúmulo teórico e metodológico com a juventude trabalhadora. As ações, a partir de uma participação mais ativa no movimento comunitário, possibilitam que os movimentos de juventude sejam reconhecidos como forças políticas para além dos sujeitos juvenis. A presença marcante dessas organizações de juventude qualifica os espaços de discussão no bairro, interfere no conjunto da tomada de decisão, impulsiona a ação direta e as manifestações políticas e artísticas, coloca em pauta a política e a diversidade de debates da atualidade e nutre a dimensão coletiva da auto-organização nos territórios que atuam. Quando efetivamente as organizações conseguem aprofundar essa relação para além da solidariedade, o que se expressa é um instrumento potente de auto-organização e de implicações formativas e contestatórias na luta por direitos nos territórios, principalmente os periféricos, em uma relação da execução de um trabalho de base no interior da luta de classe, com os sujeitos mais proletarizados dessa relação. O vínculo da juventude periférica e trabalhadora é um processo mais recente nas organizações, que exige métodos e metodologias ainda pouco explorados, que se diferem dos utilizados no movimento estudantil. As organizações tendem a buscar esse canal de diálogo por intermédio da cultura, das associações de bairro e das ações de solidariedade, em uma caminhada que exige um acompanhamento sistemático e bastante enraizado com a materialidade e o contexto social e cultural de cada território e de seus militantes. Faz parte dessas dificuldades de executar um trabalho no chão da periferia a ausência de infraestrutura, por exemplo. As organizações dispõem de pouquíssimo ou, até mesmo, a inexistência de recursos financeiros, o que dificulta o deslocamento, a alimentação e a execução de muitas tarefas que cumpram o papel de criar laços sociais. Em muito dos casos, as organizações, além de não disporem de recursos financeiros, passam pela dificuldade de não possuir um lugar físico para se reunir, além de não poderem dispor de condições mínimas para que as pessoas participem das atividades propostas. As organizações de juventude pesquisadas destacam em suas entrevistas o espaço que as igrejas pentecostais ou neopentecostais vêm ocupando nos territórios periféricos. A expansão dessas igrejas resulta em uma reorganização também dos 17
territórios. Os entrevistados destacaram que as igrejas católicas vêm perdendo espaço para as igrejas evangélicas e, com isso, também a juventude acaba por migrar para esses espaços religiosos. A ausência de espaços de lazer, de auto-organização das questões comunitárias e o avanço da violência, do pensamento conservador e moralista abrem espaços para que os jovens encontrem na igreja um lugar comum de socialização de sua condição juvenil. O resultado dessa inserção, segundo os entrevistados, é o crescimento de uma postura conservadora e fundamentalista, de um pensamento binário entre o bem e o mal, e na reprodução de uma consciência alienada. Estes são alguns dos aspectos levantados em relação aos desafios do trabalho de auto-organização da juventude trabalhadora e dos territórios periféricos. Ainda, como parte de expansão de suas ações, observa-se a preocupação com as novas formas de auto-organização da juventude, em um movimento de entender mais a fundo os contornos da identidade da classe trabalhadora, em conexão direta com a opressão/exploração que conformam a constituição do território latino-americano. Crescem entre as organizações dos jovens as pautas de gênero, étnico-raciais, e de sexualidade, todas elas atravessadas pela concepção de classe, expressadas na ampliação das organizações por intermédio de coletivos antirracistas, feministas e LGBTQIAPN+. Podemos dizer que a ampliação das organizações, para além do movimento estudantil, modificam profundamente não o papel das organizações historicamente inseridas no movimento estudantil, mas também o conjunto da própria organização do seu fazer político e educativo. As necessidades da juventude trabalhadora e periférica proporcionam um mergulho profundo na realidade social da juventude brasileira e em seu compromisso de classe. As bases da organização política precisam estar afinadas com os contextos locais, com a precariedade da vida nas periferias, com o subemprego, com a falta de direitos básicos e elementares, com a baixa escolaridade e a falta de oportunidades, com pouquíssimo capital cultural e, muitas vezes, pela falta de tempo e de disposição física para a luta. As experiências relatadas pelas organizações pesquisadas com a juventude trabalhadora e periférica demonstram também seu potencial organizativo e identitário, quando conseguem ocupar um espaço de atuação nos territórios. As 18
atividades culturais das mais diversas, como a batucada, o grafite, a moralização, o slam , o samba, o hip-hop , entre outros, têm se tornado um ponto de encontro e de construção de identidade com os movimentos de juventude ao contrário da juventude oriunda de extratos de classe mais elevadas, cuja porta de entrada para as organizações de juventude se pelo movimento estudantil, secundarista ou universitário. O trabalho nos territórios periféricos, a partir da organização da juventude, também possibilita uma ação para além desses sujeitos, interferindo de forma positiva no conjunto da ação política nesses espaços. Colabora, assim, com a ampliação das discussões e das ações, em uma espécie de retomada do ‘’trabalho de base nas comunidades, o que muito foi feito anteriormente pelas igrejas católicas, pelos sindicatos e pelos partidos políticos. Mesmo que percebamos alguns avanços nas proposições das organizações da juventude nos territórios periféricos, observamos um conjunto de ações ainda bastante superficiais, como panfletagem, passagem de carro de som, comunicações dispersas que pouco convocam processos mais orgânicos e propositivos de auto-organização das mais diversas comunidades urbanas. É presente a necessidade de uma maior rede de interlocução e de trabalho cooperado nos territórios. O trabalho autogestionário nesses espaços passa por uma articulação ampla, de construção de núcleos territoriais, com os mais diversos movimentos sociais, movimentos comunitários, partidos políticos, ativistas locais, produtores culturais do território, equipamentos públicos, como escola, posto de saúde e centro comunitário, em uma ação que combina objetivos comuns e específicos da juventude e de seus territórios de moradia. Entendemos que é crescente a preocupação das organizações da juventude com um trabalho específico, com uma pauta direcionada para a auto-organização da juventude trabalhadora e para o território periférico. Essa necessidade é fruto da atualidade da luta de classe e do lugar importante que as organizações da juventude vêm assumindo ao longo da história. 19
Considerações finais Considerando o que foi exposto, destacamos a preocupação em analisar a atualidade da ofensiva neoliberal no Brasil em articulação com o território latino-americano na sua relação com o mundo globalizado em seu contexto de dependência e superexploração. A atualidade do debate sobre o neoliberalismo em nosso território nos remete à avaliação do crescimento exponencial do empobrecimento da população, da produção de grandes favelas urbanas e da intensificação da superexploração da força de trabalho em longas jornadas e baixíssimos salários. É justamente a juventude trabalhadora o segmento social que ocupa, nesse contexto, os piores postos de trabalho, na condição de subemprego, com moradias precárias e ausência de sistemas de proteção social e de políticas públicas de saúde e educação, entre outros. As problematizações sobre a questão urbana nos remetem a pensar em que tipo de cidade vivemos e que tipo de sociedade necessariamente devemos construir coletivamente. A luta pelo direito à cidade questiona que tipo de relações humanas produzimos e as relações que estabelecemos com a natureza, como a possibilidade de repensarmos os espaços urbanos como constituidores do direito de viver o público como um bem comum. Entendemos a juventude como uma posição social que, por vezes, representa um farol das lutas sociais, como aqueles que deflagram a precariedade da vida e a necessidade da luta pelo direito à cidade. Reconhecemos o lugar destacado das organizações juvenis como instrumento político historicamente importante nas lutas pelos direitos humanos, principalmente no âmbito do movimento estudantil. A partir dessas análises, buscamos, então, aprofundar a possibilidade de sua ação para além dos agrupamentos estudantis, entendendo a juventude trabalhadora como uma possibilidade de ampliação da luta de classe. A auto-organização da juventude trabalhadora, como a possibilidade de construção de uma infinidade de agrupamentos políticos e educativos das distintas formas de lutas sociais, é um movimento de ação concreta que permite repensar as cidades, com o desafio de pautar um trabalho orgânico da juventude, principalmente nos territórios periféricos. É um gás vital de penetração no interior da população 20
mais empobrecida de nossa sociedade, a qual mais necessita de ferramentas de organização, de formação, de coletivização e de aprofundamento da consciência crítica. Concluímos tendo a certeza de que são inúmeros os desafios para se pensar em processos de auto-organização da condição juvenil sob a atual fase do capitalismo em nosso território latino-americano. Contudo, sublinhamos a importância de (re)pensarmos o papel das organizações políticas da juventude e a necessidade de ampliação dos processos de auto-organização com a juventude trabalhadora no desenvolvimento de metodologias e de instrumentos próprios a partir de suas materialidades. É preciso considerar a capacidade das organizações em construírem reflexões, táticas, métodos, ferramentas pedagógicas de inserção e de trabalho concreto e cotidiano no interior da condição de vida da juventude trabalhadora. Referências ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletário de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018. BAMBIRRA, V. A teoria marxista da transição e prática socialista . Brasília: Editora da UnB, 1992. BARDIN, L. Análise de conteúdo . Lisboa: Edições 70, 1977. BOGO, A. Identidade e luta de classe . São Paulo: Expressão Popular, 2008. CASTELLS, M. A questão urbana . Tradução: Arlene Caetano. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1983. CHAUÍ, M. Neoliberalismo: uma nova forma de totalitarismo. A terra é redonda , [s. l.], 6 out. 2020 Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/neoliberalismo-a-nova-forma-do-totalitarismo/ . Acesso em 25 de abril de 2024. DESEMPREGO sobe para 7,8% e atinge 8,5 milhões de trabalhadores. Brasil de Fato , Curitiba, 28 mar. 2024. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/03/28/desemprego-sobe-para-7-8-e-atinge-8-5- milhoes-de-trabalhadores . Acesso em 24 de abril de 2024. HARVEY, D . Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Martins Fontes, 2013. 21
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