V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X CONTRARREFORMA DO ESTADO BRASILEIRO: SOCIABILIDADE EMPREENDEDORA SOB A ÉGIDE DO INDIVIDUALISMO COMO VALOR MORAL RADICAL 1 Graziany Penna Dias 2 Resumo O presente artigo pretende buscar nas referências da contrarreforma do Estado brasileiro e nas formulações da Terceira Via, as bases para a constituição de uma sociabilidade contemporânea da autorresponsabilização pelo percurso de vida, com a assunção dos riscos, pautado no aporte hayekiano do individualismo como valor moral radical via discurso do empreendedorismo. Palavra-chave : Sociabilidade; Empreendedorismo; Terceira Via. SOCIABILIDAD Y CONTRAREFORMA DEL ESTADO BRASILEÑO: LA ÉGIDA DE LA AUTORESPONSABILIDAD Y DEL INDIVIDUALISMO Resumen Este artículo pretende observar las referencias de la contrarreforma del Estado brasileño y las formulaciones de la Tercera Vía como base para la constitución de una sociabilidad contemporánea de autorresponsabilidad por el camino de la vida, con asunción de riesgos, basada en la contribución hayekiana del individualismo como valor moral radical a través del discurso del emprendimiento. Palabra clave: Sociabilidad; Espíritu empresarial; Tercera vía. SOCIABILITY AND COUNTER-REFORMATION OF THE BRAZILIAN STATE: THE AEGIS OF SELF-RESPONSIBILITY AND INDIVIDUALISM Abstract This article aims to look at the references of the counter-reform of the Brazilian state and the formulations of the Third Way as the basis for the constitution of a contemporary sociability of self-responsibility for the path of life, with the assumption of risks, based on the Hayekian contribution of individualism as a radical moral value via the discourse of entrepreneurship. Keyword : Sociability; Entrepreneurship; Third Way. 2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Minas Gerais - Brasil. Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais/Campus Juiz de Fora (IF SUDETSE MG/JF). E-mail: graziany.dias@ifsudestemg.edu.br . Lattes: https://lattes.cnpq.br/8061118223297354 . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7933-530X . 1 Artigo recebido em 09/05/2024. Primeira Avaliação em 26/08/2024. Segunda Avaliação em 04/09/2024. Aprovado em 11/10/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.62917 . 1
Introdução Inicialmente, cabe sinalizar que, até meados do século XX, o modo de produção capitalista estava amplamente calcado na era do binômio do fordismo/taylorismo, ancorado no Welfare State . Não obstante, com a crise de acumulação, em fins da década de 1960 e início de 1970, o que se observou foram as mudanças do padrão de acumulação, os quais implicaram na utilização do toyotismo como novo modo de organização da produção e a instauração do neoliberalismo nos países de capitalismo avançado. Com relação à reestruturação produtiva, esta passagem do taylorismo/fordismo para o toyotismo, implicou numa série de mudanças que podem ser assim sintetizadas: Em síntese, os traços constitutivos mais gerais desse renovado modelo de produção flexível e suas diferenças em relação ao fordismo clássico e a produção em massa podem ser assim sumariados: ele fundamenta-se num padrão produtivo organizacional e tecnologicamente avançado, que reduz a demanda de trabalho vivo (força de trabalho); sustenta-se em produção variada e heterogênea, visando atender às demandas mais individualizadas do mercado, diferenciando-se da produção em série e de massa do padrão fordista; em contraposição à verticalização fordista tem-se a desterritorialização da produção unidades produtivas (completas ou desmanteladas) são deslocadas para novos espaços territoriais (especialmente áreas subdesenvolvidas e periféricas) onde a exploração da força de trabalho pode ser mais intensa (seja pelo seu baixo preço, seja pela ausência de legislação protetora do trabalho e da tradição sindical). Assiste-se também à descentralização da produção pela terceirização e subcontratação de uma rede de pequenas/médias empresas (Montano, Duriguetto, 2011, p. 201). No Brasil, esta tendência toyotista e flexível ocorreu de forma distinta dos países do capitalismo central, pois no caso brasileiro tinha-se um mercado de trabalho flexível e desestruturado e a estrutura social à qual este estava assentado nunca teve a presença do Estado na linha do Welfare State . Ademais, este processo de toyotização ocorreu no Brasil, muito tardiamente, nos idos da década de 1990, tendo como fio condutor a assimilação pelos governos brasileiros dos receituários oriundos do Consenso de Washington, grande catalisador do processo de reestruturação produtiva no Brasil, com uma mescla visível dos elementos do fordismo. No plano prático e imediato, a perspectiva da 2
acumulação flexível e do toyotismo produziu um enxugamento da força de trabalho, combinadas com mudanças sociotécnicas, tanto do processo produtivo, quanto do controle social do trabalho (Antunes, 2006). Sociabilidade e contrarreforma no governo FHC: as bases para formação contemporânea Inicialmente, cabe destacar que o percurso que será desenvolvido neste momento tem como pano de fundo, o processo de construção de uma hegemonia contemporânea, à qual tem, na figura do empreendedor, seu apelo mais incisivo. E, a construção da hegemonia, perpassa pelo processo da formação humana, tendo o espaço escolar, como ambiente privilegiado, mas não único, pois, conforme destaca Gramsci, as relações de hegemonia, perpassam por relações pedagógicas. De acordo com o Gramsci: Toda relação de ‘hegemonia’ é necessariamente uma relação pedagógica, que se verifica não apenas no interior de uma nação, entre as diversas forças que a compõem, mas em todo campo internacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais e continentais (Gramsci, 1978, p. 37). Nesse viés, a compreensão de educação trabalhada no presente artigo será no seu sentido amplo. Feita esta consideração passar-se-á, a seguir, ao processo das mudanças produtivas ocorridas no Brasil, na década de 1990, com a implantação do modelo neoliberal no país. Um dos grandes esforços do Estado, em promover a reestruturação produtiva no setor industrial brasileiro, foi na gestão de Fernando Collor (Antunes, 2006; Oliveira, 2004). A ação central do seu governo, para esta empreitada, foi o lançamento do Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade (PBQP), por meio do Decreto 99.675, de 07 de novembro de 1990 (Schmidt et al., 2013). A perspectiva deste foi propagar as novas técnicas de produção, gestão e modernização tecnológica inovadora, visando à obtenção de uma maior eficiência na estrutura produtiva nacional, considerando a dinâmica neoliberal de abertura dos mercados nacionais, promovida por Collor. Na sua concepção, o programa procurava, dentre outros, promover a prática do modelo japonês, pautada na qualidade total. As ações contaram com a 3
participação de vários entes gerenciados diretamente pelo Estado. Entre estes se destacam as instâncias municipais, estaduais e federais, bem como agências financiadas pelo Estado tais como: a Empresa Brasileira de Inovação e Pesquisa (Finep), o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Banco do Brasil e o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) (Oliveira, 2004). A perspectiva foi envolver vários segmentos da sociedade civil, entre empresários, sindicatos, trabalhadores etc., no ideário neoliberal que se descortinava com o início do governo Collor. No mandato-tampão de Itamar (com o impeachment de Collor), os processos de abertura da economia com programa de privatizações indicavam essa dinâmica. Não obstante, o ponto chave do governo, que se estenderia para os governos seguintes, foi o Plano Real, levado a efeito pelo então Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso (FHC). Sua tarefa principal era conter os níveis alarmantes da inflação. De acordo com o próprio Bresser-Pereira (1994), a escolha de FHC para o ministério, na época, se deveu a esperança que o povo brasileiro depositava em sua figura, para conter o drama da inflação incontrolável depois de 12 planos de estabilização mal-sucedidos. FHC era o nome bem aceito pelas diferentes frações da burguesia brasileira tanto em termos de suas políticas de ajuste fiscal quanto em relação ao acordo social estabelecido (Bresser-Pereira, 1994, p. 134). Dito isso, a contrarreforma (Behring, 2008) foi feita no primeiro governo de FHC, por meio do Plano Diretor da Reforma do Estado proposto por Bresser-Pereira, via Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE). Em agosto de 1995, foi encaminhado ao Congresso Nacional o Projeto de Emenda Constitucional 173, base de formulação para reforma do Estado. Em linhas gerais, o referido plano tinha por premissa atender às condicionalidades apresentadas desde o Consenso de Washington, impondo uma disciplina fiscal enorme ao passo que ampliava os processos de privatização e a liberalização comercial, possibilitando um ambiente seguro para o capital financeiro se instaurar efetivamente no país (Behring, 2008). As palavras de ordem gravitavam em torno de um rigoroso equilíbrio fiscal, desregulamentação dos mercados, abertura da economia e privatização de serviços públicos. 4
Segundo Silva (2001), isso implicou na ofensiva contra os direitos sociais, promulgados pela Constituição de 1988. A retórica básica era culpar o Estado como o responsável pela crise da década de 1980, que assolava a América Latina. Por sua forte intervenção na economia, o discurso contrarreformista dizia que o Estado teria interrompido o papel regulador da “mão invisível do mercado”. Sobre isso, Behring (2008) comenta que Bresser-Pereira não intentava o Estado-mínimo, como apregoava o ideário neoliberal mais ortodoxo. Em sua análise, o então ministro pensava numa visão de Estado com um caráter social-liberal, capaz de ajustar a economia segundo as demandas do mercado, mas sem abrir mão de manter as ações estatais nas áreas sociais. Nas palavras do próprio Bresser-Pereira: O novo estado social-liberal, que está surgindo, é uma resposta ao problema. Não é o estado ultraliberal com que sonhou o novo conservadorismo ou a nova direita. Não é o estado mínimo que apenas garantiria os direitos de propriedade e os contratos. Não é menor sequer do que o antigo estado social-democrático, se medirmos o tamanho do estado pela carga fiscal: ou seja, pelas receitas do estado com relação ao PIB. Tomado com esta medida, o tamanho do estado não tende a diminuir: ao contrário, tende a aumentar moderadamente, na medida em que os custos de educação e saúde tendem a aumentar com relação aos custos médios, e impostos têm que ser arrecadados para financiar essa elevação de custos (Bresser-Pereira, 2001, p. 11). A partir destas formulações, observa-se que Bresser-Pereira, na figura de grande intelectual orgânico, sensível aos pressupostos do “Consenso” e sintonizado com as frações financeiras locais e estrangeiras, compreendeu a impossibilidade de se propor ações locais, conforme o receituário neoliberal. Até porque, o governo, à sua época, gozava de pouca confiança, sobretudo nas camadas mais pobres que viram e sentiram na pele o aprofundamento da desigualdade na distribuição de renda. A partir do receituário da Terceira Via formulada por Anthony Giddens, o bloco no poder do governo FHC, reorientou suas formulações neoliberais, buscando compatibilizar economia de mercado com justiça social de modo a envernizar o capitalismo com uma face humanizada. Nas formulações do próprio Giddens: 5
[...] a “terceira via” refere-se a uma estrutura de pensamento e de prática política que visa a adaptar a social-democracia a um mundo que se transformou fundamentalmente ao longo das duas ou três décadas. É uma terceira via no sentido de que é uma tentativa de transcender tanto a social-democracia do velho estilo quanto o neoliberalismo (Giddens, 2001, p. 36, grifos do original). Não obstante, a perspectiva da Terceira Via não representou uma superação do neoliberalismo, mas, no limite, a crítica ao problema da desregulamentação do mercado e a maneira como o Estado deveria participar. Tornava-se necessário estabelecer uma nova sociabilidade para garantir a hegemonia do bloco no poder, considerando as condições que o Brasil se encontrava. De acordo com Barreto (2000), nos princípios da década de 1990, em face da crise mundial, o Brasil aprofundou ainda mais as desigualdades sociais. No sentido de restabelecer a hegemonia e garantir a “governabilidade”, a proposta de Bresser-Pereira não conseguiria agir, na perspectiva neoliberal, em toda sua plenitude. A situação implicava agir de modo pragmático, associando a liberalização do mercado com ações bem definidas na área social (Martins; Lima, 2005). Por isso, sua proposição era de um Estado social-liberal. No tocante aos aspectos da “governança” e da “governabilidade” (Bresser-Pereira, 1997), de acordo com o autor, estas seriam alcançadas na medida em que o Estado se tornasse forte, embora menor. E isto impôs o ajuste econômico, guiado pelas diretrizes do FMI (Simionatto, 1999) traduzido em cortes nas despesas públicas. Para Behring (2008), o termo “governança” aponta o aspecto mais profundo do Plano Diretor e do Mare, que não era somente a “reforma do aparelho do Estado”, entendido como a busca da administração pública mais eficiente, mas a “reforma do Estado” (ibid., p. 178), no sentido de construção de “um projeto político, econômico e social, mais amplo” (ibid.). No tocante ao espírito empreendedor, que se articula com a formação da sociabilidade necessária a esta governança, no Plano Diretor da Reforma do Estado, Bresser-Pereira fazia menção ao empreendedorismo e suas relações no setor público, mas que são apreendidas também para o setor privado, sobretudo com as intenções de mudanças nas leis protetivas do trabalho. Para o autor do referido Plano: “A legislação que regula as relações de trabalho no setor público é inadequada, notadamente pelo seu caráter protecionista e inibidor do espírito 6
empreendedor” (Brasil, 1995, p. 27). Ou seja, no documento da contrarreforma do Estado, as formulações bresserianas compreendiam que a estabilidade no trabalho seria um elemento que promoveria um desserviço no estímulo ao empreendedorismo. Como será visto, mais à frente, esta colocação coaduna-se com os fundamentos da Terceira Via proposta por Giddens, ao enfatizar o papel das oportunidades e da formação que o Estado deveria possibilitar, para desenvolver a mentalidade empreendedora, ao invés de promover a garantia ampla de direitos sem nenhuma contrapartida, transformando o indivíduo num sujeito passivo, dependente e pouco voltado à criação de novos negócios. Este viés educativo fez-se/faz-se necessário, pois com a “governança” é que a “governabilidade” será atingida. De acordo com Pina (2016), para Bresser-Pereira a “governabilidade” representa a legitimidade que o Estado (no seu sentido estrito) adquire, na sociedade civil, procurando atender aos interesses dominantes e fazer desses (ou pelo menos fazer parecer) os interesses do conjunto geral das classes e suas frações. No segundo semestre de 1998, o Brasil caiu em desconfiança nos indicadores internacionais, dada a sua evidente incapacidade de honrar os compromissos com o capital internacional. Isso promoveu, de julho a setembro de 1998, uma intensa fuga de capitais, aos quais cerca de US$30 bilhões abandonaram o território brasileiro. A lógica financeira apresentou sua face concreta de exploração mais perversa. Os capitais estrangeiros, desregulamentados desde 1970, vieram ao Brasil, valorizaram-se, e, como uma “nuvem de gafanhotos”, após destruírem a “plantação” (os recursos nacionais) saíram rapidamente em retirada. De qualquer modo, o caminho da contrarreforma do Estado, via pressupostos da Terceira Via, pavimentou o percurso histórico-social, por onde transitaram os governos seguintes: Lula (em seus dois mandatos), Dilma, Temer. É digno de nota que no governo de Bolsonaro, a perspectiva da Terceira Via sofreu um recrudescimento, em face a postura antipolítica e antidemocrática. Entretanto com o terceiro governo Lula (iniciado em 2023) esta perspectiva tende a ter uma retomada vigorosa. Assim, no tocante aos seus fundamentos e de como estes expressam elementos notórios para a formação da sociabilidade empreendedora, a seguir passaremos a exposição e análise das formulações 7
relativas ao discurso da Terceira Via, como forma de mostrar que, dentro da contrarreforma do Estado, se materializava, pelo menos nos fundamentos educativos, o discurso empreendedor. Fundamentos teóricos da contrarreforma do Estado brasileiro e suas implicações com a perspectiva empreendedora Os fundamentos da contrarreforma do Estado brasileiro podem ser encontrados na perspectiva do neoliberalismo, proposto por Hayek, e em sua roupagem contemporânea da Terceira Via, conforme formulado por Anthony Giddens. O viés de análise trabalhado neste artigo será observar as compreensões destes autores para a perspectiva do discurso empreendedor, sobretudo, a partir do aporte hayekiano “[d]o individualismo como valor moral radical” (Martins, 2009). Cabe sinalizar que a contrarreforma do Estado, proposta por Bresser-Pereira, apoiou-se, em larga medida, nos pressupostos da Terceira Via. Com relação ao aspecto neoliberal, o autor foi enfático em dizer sua posição política e a de sua reforma. Bresser-Pereira disse em entrevista 3 o seguinte: Em relação a essa reforma ser neoliberal ou não, absolutamente não é uma reforma neoliberal. Não quero discutir New Public Management e também acho que não foi neoliberal lá, quero discutir minha reforma e minha teoria antes da minha reforma. Tenho primeiro uma prova de que ela não é neoliberal, além de eu ser profundamente contra o neoliberalismo por ser uma ideologia regressiva; reacionária e regressiva (sic) (Bresser-Pereira, 2001, s/p, grifos do original). Ainda que o autor negue, diversos estudos sobre a era FHC são uníssonos ao afirmarem o caráter neoliberal de suas políticas, em todos os quadrantes de sua administração. O fato é que, ao apoiar-se na perspectiva da Terceira Via, Bresser-Pereira assumiu, pelo menos na forma, de que sua reforma não teria o caráter neoliberal, pois em seu conteúdo, esta era totalmente consonante. 3 Entrevista, realizada em 23/03/2016, concedida por Bresser-Pereira a Amon Barros, a respeito da sua Reforma Gerencial, durante o tempo em que esteve como Ministro da Administração Federal e Reforma do Estado (1995-1998). Disponível em: http://www.apgs.ufv.br/index.php/apgs/article/view/1749/html#.Wqb5vOjwbIU . Acesso dia 12 de março de 2018. 8
Com relação à Terceira Via, o autor da contrarreforma do Estado declarou que chegou a ser convidado pelo próprio Giddens para escrever um livro. Isto pode ser evidenciado na seguinte formulação: Quando saí do governo, tive um convite para escrever em um livro organizado pelo Anthony Giddens e escrevi várias coisas sobre a terceira via e a social-democracia. E para mim, a social-democracia e o social-liberalismo eram quase iguais, que o último era um avanço, o social-liberalismo era um avanço (Bresser-Pereira, 2001, s/p). Esta citação mostra a afinidade teórica e política que Bresser-Pereira tinha/tem com relação aos pressupostos da Terceira Via. Como será observado, o empreendedorismo expresso nas teorizações oriundas da Terceira Via, guardam ampla sintonia com as ideias neoliberais, relacionadas ao indivíduo e o seu valor moral superior ao coletivismo (socialismo) amplamente criticado por Hayek. O discurso empreendedor, tal como tem se apresentado (Dolabela, 2003; Filion, 1999), deposita no indivíduo a responsabilidade pelo seu percurso de vida, tendo a assunção dos riscos como elemento central. Depreende-se que o discurso do liberalismo, onde a perspectiva do empreendedor compareceu historicamente, apresenta-se hoje com novas nuances. Sobretudo, porque a recriação do liberalismo, feita por Hayek e seus companheiros, não se assenta na perspectiva científica, mas na perspectiva doutrinária que não mais pejada dos elementos científicos da teoria neoclássica (Paulani, 2006). Desde a década de 1930, Hayek havia se afastado da teoria neoclássica 4 , pois esta não daria mais conta de explicar como o mercado, deixado a si mesmo, seria capaz de produzir o ótimo social (ibid.). Hayek, por seu turno, advogou que a doutrina liberal, da forma como a compreende, representaria o uso eficaz das forças da concorrência, como forma de coordenar os esforços individuais. Para o autor, a concorrência seria um método superior, que naturalmente permitiria um funcionamento autogerido, sem a intervenção coercitiva do Estado (Hayek, 2010). Nesta linha, um elemento importante da perspectiva do mercado, em detrimento de qualquer perspectiva planificadora (como o socialismo) seria o oferecimento de oportunidades, segundo 4 A teoria neoclássica ou marginalista foi proposta no início do século XX, pelo economista inglês Alfred Marshall (1842-1924) em relação à teoria do valor-trabalho e ao movimento socialista (PAULANI, 2006). 9
as quais o próprio indivíduo teria condição de avaliar os benefícios em face dos riscos, na constituição de um negócio. No tocante ao indivíduo, Hayek é enfático sobre a responsabilidade que deveria ser assumida por este, para a obtenção do sucesso. Nas formulações do autor, é possível localizar um elemento importante da sociabilidade neoliberal ao qual o empreendedorismo está calcado. Hayek escreve o seguinte: Provavelmente, o que no futuro será considerado o efeito mais significativo e abrangente desse êxito é a nova consciência de poder sobre o próprio destino, a convicção das infinitas possibilidades de melhorar a própria sorte, adquiridas pelo homem em virtude do sucesso alcançado. Com o sucesso nasceu a ambição e o homem tem todo o direito de ser ambicioso (Hayek, 2010, p. 42). De forma cristalina, Hayek expressa o argumento que é utilizado praticamente pela maioria dos autores clássicos e contemporâneos do discurso empreendedor, ao atribuir somente ao indivíduo a responsabilidade pelo seu sucesso e em função disto pelo seu fracasso. A realidade concreta não permitiu a Hayek estabelecer esta visão como uma verdade absoluta, até porque, as desigualdades que são impostas aos homens, não permitem de fato que todos atinjam o sucesso. Neste sentido, Hayek chega a justificar que, para além do mérito individual, estariam postos também o acaso e a sorte 5 . No âmbito das ideias de Hayek, Martins (2009) destacou uma tese importante do seu pensamento que foi incorporada ao projeto neoliberal, qual seja o “individualismo como valor moral radical”. Esta tese é pautada na concepção de que o indivíduo e sua liberdade deveriam ser o centro das atenções políticas e econômicas do mundo contemporâneo. Neste ínterim, qualquer perspectiva coletivista ou planificadora seria demérita ao desenvolvimento econômico e social, na medida em que se estaria impedindo a ação do mercado, tido como a única instituição social capaz de respeitar o indivíduo e a liberdade de forma plena. Segundo Martins (2009), para o pensamento hayekiano a questão que se coloca é o reposicionamento do papel do ser humano no contexto moderno (e 5 De acordo com Hayek (2010): “A impossibilidade de prever quem será bem-sucedido e quem fracassará, o fato de recompensas e perdas não serem atribuídas segundo um determinado conceito de mérito, dependendo antes da capacidade e da sorte de cada um isso é tão importante quanto não sermos capazes de prever, na feitura das leis, quem em particular sairá ganhando ou perdendo com sua aplicação. E a circunstância de, no regime de concorrência, o destino das diferentes pessoas ser determinado não pela habilidade e a capacidade de prever, mas também pelo acaso e a sorte não torna isso menos verdadeiro” (Hayek, 2010, p. 113). 10
contemporâneo), ao qual o indivíduo, naturalmente voltado à obtenção do lucro, seria dotado de capacidades e aptidões, que lhe permitiriam movimentar-se no mundo, conforme seus desejos e no limite da sua racionalidade. Nesta compreensão, o indivíduo seria dotado de intenções previamente dadas e não inscritas pelo contexto histórico e social formador da sua sociabilidade. Para Hayek, se deixar o indivíduo tomado em si mesmo, livre de qualquer controle, este expressaria naturalmente ações voltadas à obtenção do lucro, como satisfação de seus desejos. Neste sentido, qualquer aparato jurídico deveria ser extinto, em prol de garantir o mercado como o único espaço onde as aspirações individuais poderiam, de fato, acontecer. Pois, do contrário, qualquer cerceamento levaria, segundo Hayek, ao regime coletivista, entendido pelo autor como o socialismo, segundo o qual a iniciativa privada e a propriedade privada dos meios de produção seriam abolidas, dando lugar a uma economia planificada, “[...] no qual o empresário que trabalha visando o lucro é substituído por um órgão central de planejamento” (Hayek, 2010, p. 55). Para o autor, o individualismo deveria ser, portanto, a expressão máxima em uma sociedade dita livre, a qual o indivíduo deveria ser o juiz supremo dos seus interesses e ações. Neste sentido, “o individualismo como valor moral radical” seria referência importante para balizar as ações nas diversas esferas da vida humana que, segundo Martins (2009), a partir das análises das formulações hayekianas, o ser humano seria, por essência, individualista. Aqui se observa, tal como nas formulações de Dolabela (2003), a mesma visão para o indivíduo empreendedor, que teria o seu potencial desde o nascimento, sendo a sociedade estimuladora ou desencorajadora deste espírito. Não obstante, ao contrário, o individualismo não é intrínseco ao ser humano, mas um valor moral que por meio de processos educativos, pode ser produzido direto e intencionalmente nas pessoas. Neste sentido, em críticas ao aporte hayekiano do “individualismo como valor moral radical” Martins destaca o seguinte: Em essência, o que o “individualismo como valor moral radical” procura defender é a atomização e descontextualização do ser. Malgrado as explicações de Hayek, o que esta noção procura fazer a naturalizar a condição histórica do homem e fragmentar a sua inserção na vida social, como se fosse possível isolar o ser da 11
coletividade e abstraí-lo das relações sociais, como se fosse possível naturalizar a sociedade e justificar as desigualdades e as formas de exploração (Martins , 2009, p. 40, grifos do original). O discurso empreendedor, tal como tem se apresentado, também pode ser observado, por esta mesma análise crítica do individualismo hayekiano, que compõe a formação da sociabilidade nos tempos atuais. Essa perspectiva de compreensão também é compartilhada por Neves (2011), ao comentar o tipo de sociabilidade expresso no conjunto dos modos de “ser, pensar e agir”, do modelo de individualismo contemporâneo. Segundo Neves (2011): “O empreendedorismo [nessa linha] é a expressão, na produção material da existência, do individualismo como valor moral radical” (Neves, 2011, p. 238, acréscimo meu entre colchetes). Os fundamentos que alicerçam essa sociabilidade, segundo o discurso hegemônico, representariam, na verdade, algo que o ser humano sempre quisera ser. Para tal, a constituição de uma sociabilidade faz-se necessária, para produzir este novo acordo (consenso), ao qual se almeja “[...] reduzir os antagonismos em simples diferenças, minimizando-os como específicos a grupos de indivíduos para, com isso, assegurar um equilíbrio mais estável e duradouro da ordem do capital” (Martins, 2009, p. 67). Com isto, a condição de sujeito histórico e coletivo seria minimizada, transformando os indivíduos, em seres isolados e preocupados com seus interesses privados postos em riscos, a todo o momento, antes das incertezas e indefinições futuras. Em épocas anteriores, conforme o discurso da Terceira Via, os sujeitos ainda compartilhavam uma condição de classe. Atualmente são postos em situações de individualidade e rivalidade. Nas armadilhas propaladas pela economia da base flexível que trazem os seus reflexos no campo da política, o outro passa despercebido, ou quando muito é reconhecido pelo seu par, como inimigo. Nesse ponto Sennet (2002) indaga o seguinte: Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos? As condições da nova economia alimentam, ao 12
contrário, a experiência com a deriva no tempo, de lugar em lugar, de emprego em emprego (Sennet, 2002, p. 27). No discurso propalado por Giddens (1996; 2001a; 2001b), o indivíduo seria disposto como um ser despojado da sua condição humana de sujeito histórico, para tornar-se um mero objeto dos processos oriundos das mudanças do capitalismo contemporâneo, ao qual este indivíduo não mais interferiria na realidade para transformá-la, mas antes seria um sujeito com capacidade de adaptar-se a estas mudanças postas como naturais (ibid.). De acordo com Martins (2009), esta posição gnosiológica da Terceira Via aproxima-se em muito do aporte teórico de Hayek, para o qual o ser humano, enquanto indivíduo conseguiria assimilar muito pouco da realidade que o cerca, no limite, apenas o que estaria voltado às suas necessidade e vontades, de modo que a racionalidade produzida pela humanidade seria inacessível a este, em sua plenitude. Sendo assim, o indivíduo não teria condições concretas de tornar-se sujeito histórico, capaz de transformar a realidade, dada a sua incapacidade inerente de assimilar racionalmente as mudanças que ocorrem à sua volta. Na realidade, a renovação da política e o desenvolvimento econômico, pelo programa da Terceira Via, na posição política de “centro radical”, nada mais são do que a manutenção dos interesses da classe dominante, no esforço de restauração da hegemonia burguesa, consolidando as mudanças da sociabilidade, às quais o empreendedorismo ganha uma posição destacada. Nas análises de Martins (2009), o programa da Terceira Via, compõe-se de três estratégias de consolidação da hegemonia burguesa, a saber: sociedade civil ativa , o “novo Estado democrático” e o “individualismo como valor moral radical”. Cabe uma análise sumária sobre essas estratégias. A sociedade civil ativa refere-se à compreensão de que com as novas mudanças ocorridas no mundo por meio da globalização intensificadora e da ordem pós-industrial , se estaria vivendo um novo tempo, segundo o qual a disputa entre as classes fundamentais não teria mais espaço, no contexto contemporâneo. Nesta linha, a sociedade civil teria se modificado, de tal forma que não existiria mais a localização dos indivíduos em classes sociais, apenas em grupos, conforme suas diferenças. As agências cívicas que no passado eram o espaço de organização das 13
pessoas, como classes e partidos, estariam perdendo sua influência com relação aos outros “tipos de energia comunal” (Giddens, 2001a, p. 90). A Terceira Via, defende que a sociedade civil ativa constituir-se-ia o espaço do indivíduo, do “eu” propriamente dito, onde não mais se teria como interlocutor as grandes metanarrativas. O que se propõe é a existência de inúmeros “eus”, a partir da visão que todos teriam elevado o seu conhecimento (bem ao sabor de Peter Drucker, em sua “sociedade do conhecimento”). Nesta linha, os vários indivíduos iriam ao encontro dos outros indivíduos, promovendo a coesão social. De acordo com Martins (2009), esta visão 6 reforça o “individualismo como valor moral radical”, proposto por Hayek. O discurso proposto invoca a responsabilização individual e comunitária para a resolução dos problemas cotidianos. Segundo Martins: “Com essas referências, a Terceira Via propõe que a tônica da sociedade civil ativa seria ajudar a si próprio ou ao próximo (Martins, 2009, p. 72). Esta visão tem total consonância com o discurso do empreendedorismo contemporâneo, sobretudo, por justamente atentar para a questão do indivíduo, como responsável por resolver o seu problema individual, com relação à garantia da sua existência. Além disto, este discurso captura a perspectiva da questão social, de forma despolitizada e como algo a ser resolvido, também pelas comunidades. De fato, o discurso da Terceira Via promove um deslocamento da sociedade civil ativa , localizando-a entre o aparelho de Estado e o mercado, de maneira a se promover a coesão dos indivíduos em grupos criados por semelhanças particulares. Ao invés da histórica localização coletiva de classe em função da sua posição dentro do conjunto das relações sociais de produção, ter-se-iam capitalistas, trabalhadores, empresários que se encontrariam num mesmo grupo social, passando a se mobilizarem conjuntamente para causas sociais, que não impliquem claro, na transformação social do “estado de coisas” personificada no comunismo como superação do capitalismo (Marx; Engels, 2007). De acordo com os autores: “O comunismo não é para nós um estado de coisas [ zustand ] que deve ser instaurado, 6 Martins (2009), também sinaliza que este modelo proposto pela Terceira Via, também se assemelha ao conceito de “esfera pública” e a tese da “teoria da ação comunicativa”, de Jürgen Habermas. Para fins deste estudo, não se entrará no mérito das discussões e críticas sobre os pressupostos da obra de Habermas. Para tal, sugerimos a leitura de Antunes (2001), em seu livro “Os Sentidos do Trabalho”. 14
um ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual” (Marx; Engels, 2007, p. 38). Com relação ao “novo Estado democrático”, o programa da Terceira Via proposto por Giddens, supõe-se uma síntese entre as posições neoliberal e a social-democrática, pois não se vislumbra nem um Estado dito mínimo, nem um estado máximo. Nas formulações de Giddens: Os neoliberais querem encolher o Estado; os social-democratas, historicamente, têm sido ávidos por expandi-lo. A terceira via afirma que o que é necessário é reconstruí-lo ir além daqueles da direita “que dizem que o governo é o inimigo”, e daqueles da esquerda “que dizem que o governo é a resposta” (Giddens, 2001a, p. 80, grifos do original). Nesta linha, o “novo Estado democrático” deve ter o seu tamanho ajustado, conforme se fizer necessário, em face à dinâmica do contexto flexível de acumulação. Assim, como a dinâmica da produção social, a partir do metabolismo do capital, o Estado tornar-se-ia flexível (Harvey, 2001), responsável por organizar o contexto político e formativo (Estado educador) para este novo modelo. No tocante a equalização entre o mercado e a área social, Giddens (2001a) discorre sobre este “Estado necessário” (Martins, 2009), que deveria ser a figura responsável por regular e coordenar esforços para o desenvolvimento econômico e social. Nesta linha, a reconfiguração do Estado deveria pautar-se na linha das parcerias público-privadas (ibid.). De acordo com as formulações de Giddens: As parcerias em projetos públicos podem conferir ao empreendimento privado um papel mais amplo em atividades que anteriormente os governos proviam, assegurando ao mesmo tempo que o interesse público permaneça dominante (Giddens, 2001a, p. 135, grifos do original). Não por acaso o autor irá defender não o Welfare State , mas o que o mesmo designa de “sociedade do welfare ”, sinalizando que o bem-estar social não será mais garantido apenas pelo Estado, na visão tradicional, mas por toda a sociedade, sobretudo, a partir de investimentos feitos pelos empresários em parceria com o Estado. Para Giddens (ibid.), não se poderia mais pensar em direitos universais, postos de cima para baixo, pois seria somente a partir da sociedade civil ativa , na sua relação com o “novo Estado democrático”, é que se poderia construir alguma base de proteção, na medida em que esta estivesse atrelada às responsabilidades. 15
De acordo com Giddens (2001b), a visão social-democrática tradicional pensava a justiça social, pautada na luta por uma igualdade de renda garantida a todos sem distinção e sem nenhuma contrapartida. Para Giddens (ibid.), a consequência disto foi a inobservância do esforço pessoal e da responsabilidade. O autor faz a alusão de que o Estado, na sua forma do Welfare State , em função das garantias oferecidas aos indivíduos, acabava por lhes inibir sua responsabilidade pessoal nas esferas econômica e social da vida. Neste entendimento, observa-se um apelo muito grande ao espírito empreendedor a partir do seguinte posicionamento valorativo oriundo do programa da Terceira Via: o Estado providencial é inimigo do espírito empreendedor. Pois direitos estendidos indefinidamente produzem uma “racionalidade de Estado”, incompatível com a criatividade e o empreendedorismo (Martins, 2009). Neste sentido, o “novo Estado democrático” tem de ser a favor do espírito empreendedor. Para tal, Giddens (2001a) propõe que o Estado, pautado na Terceira Via, deveria redirecionar os gastos públicos investindo em capital humano. De acordo com as formulações do autor: Os gastos com o welfare deveriam permanecer nos níveis europeus e não nos americanos, mas ser desviados tanto quanto possível para o investimento no capital humano. Os sistemas de benefícios deveriam ser reformados onde induzem perigo moral, e uma atitude mais ativa de enfrentamento do risco ser encorajada, sempre que possível mediante incentivos, mas onde necessário por obrigações legais (Giddens, 2001a, p. 133). Esta formulação sinaliza, de forma clara, a perspectiva deste “novo Estado democrático”, que deveria investir em formação, ao invés de promover direitos por tempo indefinido. Considerando a menção ao capital humano, a perspectiva da Terceira Via, incorpora os preceitos da própria teoria de Theodore Schultz, ao vislumbrar que bastaria o incentivo à formação humana, para que os problemas de desigualdade e desenvolvimento econômico fossem resolvidos. Giddens (2001a) considera o investimento social, no campo dos direitos, como algo produtor do que o autor denominou de risco moral. O “sistema de benefícios”, ou seja, as ditas benesses oferecidas pelo Estado providência teriam produzido um tipo de sociabilidade que tornou os indivíduos acomodados e incapazes de se tornarem produtivos ante ao ambiente de incertezas. 16
Neste sentido, o Estado na linha da Terceira Via, deveria ser um incentivador na produção de uma sociabilidade, à qual o indivíduo seja adaptado a não temer o risco, mas antes, administrá-lo, sabendo que este compõe a nova dinâmica do capitalismo contemporâneo, em que o ambiente de incertezas será inerente a ordem sociometabólica do capital. Para tal, segundo Giddens (2001a), o investimento em formação não pode ser de qualquer ordem. De acordo com o autor, os governos deveriam priorizar a “educação ao longo de toda a vida” (ibid., p. 135), por meio de programas que vão desde a mais tenra idade até momentos mais tardios da vida dos indivíduos. E o conteúdo dessa formação é sugerido por Giddens na seguinte formulação: Embora o treinamento para habilidades específicas possa ser necessário para a maioria das transições entre empregos, o mais importante é o desenvolvimento de competência cognitiva e emocional. Em vez de se assentar em benefícios incondicionais, as políticas deveriam ser orientadas para incentivar a poupança, o uso de recursos educacionais e outras oportunidades de investimento pessoal (Giddens, 2001a, p. 135). Nesta citação, observa-se o aporte central de formação calcado no modelo de competências, aos quais não importam somente os saberes, mas as formas de “aprender a aprender”, em que as capacidades cognitivas e socioafetivas, tornam-se o elemento central. No discurso do ensino do empreendedorismo, proposto por Dolabela (1999), constata-se a mesma perspectiva de formação para responsabilização do risco, a partir de uma formação cognitiva e emocional. De acordo com Dolabela: Ser empreendedor não é somente uma questão de acúmulo de conhecimento, mas a introjeção de valores, atitudes, comportamentos, formas de percepção do mundo em si mesmo voltados para atividades em que o risco, a capacidade de inovar, perseverar e de conviver com a incerteza são elementos indispensáveis (Dolabela, 2008, p. 44). Fazendo a comparação, observa-se a congruência entre as formulações, de modo que se pode identificar que o discurso da formação empreendedora contemporânea tem por referência, em seus fundamentos, os pressupostos da Terceira Via. Isto fica ainda mais evidente quando se observa a terceira e última 17
estratégia para formação da sociabilidade burguesa, proposta por Giddens (2001a): “o individualismo como valor moral radical”. De acordo com Martins (2009), este princípio político, oriundo das formulações de Hayek, integra e fundamenta duas estratégias específicas e nomeadas pela Terceira Via como: “política de vida” e “política gerativa”. Estas visam estabelecer o consenso, via o apelo ao desenvolvimento e respeito da individualidade, advogando que as pessoas, cujos Estados aderirem ao programa proposto, teriam ganhos em termos da sua autonomia de escolha conforme seus interesses particulares, não mais mediados por uma estrutura burocrático estatal, como seria o caso do Welfare State. É sobre a suposta “noção de autonomia e liberdade individual” (Martins, 2009) a qual se refere a “política de vida”. As formulações de Giddens (1996) se mantêm na mesma argumentação, segunda a qual a estrutura excessiva de regulamentações teria promovido o aprisionamento do indivíduo, em nível psicológico, ou seja, da forma mais íntima possível. Na visão do autor, esta suposta prisão seria passível de desmantelamento a partir da ampliação das possibilidades de liberdade de escolha, que permitiriam a construção de um projeto de vida particular, desde que as individualidades fossem respeitadas. Para o autor, a “política de vida” seria muito mais que uma política de direitos, como apregoava as perspectivas de esquerda sob a bandeira da emancipação humana. De acordo com Giddens (2001a), numa sociedade que se complexificou, os discursos de esquerda, sobretudo, os voltados à defesa do socialismo, não teriam mais espaço. A única possibilidade de se pensar a emancipação humana pautada na autonomia dos indivíduos seria a “política de vida”. Isto pode ser evidenciado na seguinte formulação: “A política de vida é uma política não de oportunidades de vida , mas de estilo de vida (Giddens, 1996, p. 23, grifos do original). Ou seja, a “política de vida” traduz-se na construção de um modelo de sociabilidade, calcado na formação de indivíduos, em que o espírito empreendedor constitui-se numa forma de ser privilegiada a ser buscada, livre das ditas amarras burocrático-estatais (leia-se também do suposto vício das benesses ilimitadas do Welfare State ). De fato, o discurso do empreendedorismo advoga a mesma perspectiva, tendo no programa da Terceira Via, o seu fundamento contemporâneo. Giddens (1996) chega a apontar um perfil de pessoa que se aproxima muito com o 18
ser empreendedor apontado por Schumpeter e por McClelland, no tocante a autorrealização do sujeito empreendedor. O autor britânico assevera que: O eu autotélico é aquele que representa uma confiança interna que se origina do amor-próprio e no qual um sentido de segurança ontológica, que se origina da confiança básica, permite a apreciação positiva da diferença social. Ele se refere a uma pessoa capaz de traduzir potenciais ameaças em desafios gratificantes, alguém que é capaz de transformar entropia em fluxo coerente de experiências. O eu autotélico não procura neutralizar o risco ou supor “uma outra pessoa vai cuidar do problema”; o risco é enfrentado como o desafio ativo que gera a autorrealização (Giddens, 1996, p. 219, grifos do original). Esta citação revela uma congruência evidente entre o “eu autotélico” da Terceira Via, com o indivíduo empreendedor. Pois na retórica do empreendedorismo, não se buscaria fugir do risco (Dolabela, 2010), mas dever-se-ia encará-lo como um desafio a ser superado. Daí o caráter destemedor do empreendedor apontado de forma crítica por Coan (2001). Este “eu autotélico” configura-se num indivíduo dessensibilizado pelas questões sociais mais gerais, dada a sua apreciação (e admissão) pelas diferenças sociais. Não obstante, para que o individualismo exaltado por Giddens (ibid.) não se confunda com o de tipo ortodoxo neoliberal criticado por este, sua saída teórica é valer-se da segunda estratégia, qual seja a “política gerativa”. Esta não renúncia à individualidade supostamente livre das amarras de leis e tradições. Considera a presença de coletivos que possam agir em benefício da autorrealização do grupo, desde que suas individualidades sejam partícipes de um mesmo projeto em comum. Note-se também que, na estratégia da “política gerativa”, o aspecto da responsabilização se expressa tanto individualmente quanto coletivamente, na mesma perspectiva que o discurso empreendedor, seja na sua expressão mais individual (empreendedorismo schumpeteriano, por exemplo) seja na sua forma mais coletiva (o empreendedorismo social). Em ambos os casos, a “política gerativa” procura convencer de que caberiam aos indivíduos ou aos grupos, se ajudarem para resolver os problemas postos pelo cotidiano. Na lógica empreendedora, se não emprego, o sujeito deveria produzir o seu emprego, criando pequenos empreendimentos, cooperativas etc., a expressão que Giddens utilizou para designar a “política gerativa”, na formulação anterior, é o grande jargão das muitas 19
faces que o discurso empreendedor se materializa. É muito comum se ouvir que “o empreendedor não espera acontecer, faz acontecer”. De acordo com Martins (2009), um aspecto que merece destaque é que o “individualismo como o valor moral radical” e as estratégias da “política de vida” e da “política gerativa”, do programa da Terceira Via, são afinados com a perspectiva do individualismo hayekiano, ao qual a suposta liberdade individual deveria ser o único horizonte a ser perseguido pela humanidade. Não por acaso, o próprio Hayek (2010) afirmou não ter elaborado nenhum programa detalhado 7 , pois para o autor importava a criação de um mundo de homens ditos livres, sob a perspectiva de “política de liberdade para o indivíduo” (Martins, 2009, p. 88) responsável pelo progresso. De acordo com os pressupostos da Terceira Via, tendo em tela essa busca pela liberdade individual, solapada tanto pela velha esquerda quanto pelo neoliberalismo; Giddens (2002b) considera que o empresário tem sido amplamente discriminado, quando desconsiderada a relevância do seu papel para o desenvolvimento econômico e social. Suas formulações sinalizam sobre a importância da figura do empresário (empreendedor) e da necessidade da difusão de sua cultura empresarial (empreendedora), aproximando-se da visão de Schumpeter, sobre sua importância para o desenvolvimento. De acordo com as formulações de Giddens: A esquerda tem visto os empresários como egoístas movidos a lucros, preocupados em extrair o que puderem de mais-valia da força de trabalho. A teoria neoliberal enfatiza a racionalidade dos mercados competitivos, em que a tomada de decisão é orientada pelas necessidades do mercado. Empresários bem-sucedidos, contudo, são inovadores. Porque reconhecem as oportunidades que os outros perdem ou assumem os riscos que os outros rejeitam, ou ambos. Uma sociedade que não estimula a cultura empresarial não pode gerar a energia econômica que provém das ideias mais criativas (Giddens, 2002b, p. 80). Desta formulação destacam-se duas inferências importantes. A primeira é que não importando qual expressão utilizada por Giddens (ibid.) seja empresário e não empreendedor; é do sujeito empreendedor que o autor trata. Do indivíduo capaz de assumir os riscos e enfrentar os desafios (Martins, 2009). A segunda inferência 7 Na conclusão do “Caminho da Servidão”, o autor diz o seguinte: “A finalidade deste livro não foi traçar um programa detalhado para uma futura ordem social desejável. [...] É duvidoso que, na fase atual, tenha grande utilidade apresentar um plano detalhado de uma nova ordem da sociedade ou que alguém seja competente para fazê-lo” (HAYEK, 2010, p. 221). 20
refere-se ao aspecto pedagógico, no sentido conferido por Gramsci (1978), da formação de uma cultura empresarial de tipo empreendedora, ajustando o modelo de sociabilidade até então assentada sob a permanência e segurança dos indivíduos em empregos protegidos nas esferas da indústria e da agricultura para um modelo de sociabilidade pautado na lógica pressuposta na economia do conhecimento, aos quais as ideias, as informações e as formas de conhecimentos; sustentariam a inovação e o crescimento econômico. Segundo o programa da Terceira Via, os Estados deveriam investir em educação, na perspectiva conferida pelo discurso do capital humano, na sua forma contemporânea. A educação é considerada pelo programa da Terceira Via vital ao seu projeto dominante societal, ao qual se interporem formas mais precárias de trabalho, justificadas pelas mudanças no capitalismo, apresentado numa suposta forma humanizada, onde todos teriam agora, por meio da “repolitização da política” (Neves, 2005), de assumir a responsabilidade e autonomia para gerir suas vidas. A “repolitização da política” perpassa pela “[...] educação para o consenso sobre os sentidos da democracia, cidadania, ética e participação adequados aos interesses privados do grande capital nacional e internacional” (Neves, 2005, p.15). Nesta linha de desenvolvimento de uma nova sociabilidade, perpassaria a ação do Estado na formulação de políticas de formação humana. De acordo com Latham: É por isso que a terceira via considera a política um exercício de persuasão e transmissão de valores [...] O caminho está claro para a política social. Um Estado de bem-estar social revitalizado tem dois propósitos conduzir as pessoas ao trabalho ou a novas habilidades. O governo precisa subsidiar a cidadania ativa, e não adular os inativos (Latham, 2007, p. 53). Para realizar esta façanha, a Terceira Via apresenta um conjunto de prioridades, em termos formativos que as grandes metanarrativas do passado não fizeram. Na visão de Latham (2007), nem as políticas da velha esquerda (calcadas na produção industrial e no keynesianismo) e nem da nova direita (calcadas no neoliberalismo ortodoxo de desregulamentação e liberdade dos mercados), trataram de produzir intencionalmente um indivíduo projetado para o novo contexto ideopolítico. Isto pode ser evidenciado da seguinte formulação do autor: Essas mudanças alteraram radicalmente a economia política das nações ocidentais. Elas exigem uma nova maneira de reconciliar as 21
economias de mercado com a justiça social. [...] a terceira via precisa seguir um conjunto de prioridades educação, empreendedorismo e recompensa pelo esforço (Latham, 2007, p. 55). Neste sentido, as formulações feitas até aqui procuraram destacar que, a partir da década de 1990, o Brasil passou por profundas mudanças em termos de reformas políticas traduzidas nas prioridades propostas pelo programa da Terceira Via e correlatas à contrarreforma do Estado brasileiro. No tocante ao empreendedorismo, as visões de formação humana têm se ancorado na proposta da Terceira Via, cujas noções educativas, em sentido amplo, adentraram em terra brasilis , sob o mote de garantir sua inserção, ainda que subordinada, no capitalismo global. Considerando a política educacional contemporânea, embora não seja escopo deste trabalho fazer uma análise específica da educação stricto sensu, cabe apontar, para futuros estudos que os itinerários formativos do Novo Ensino Médio, forjado no governo de Michel Temer, sob a Lei 13.415/2017, tem com um dos horizontes de formação humana, a construção do ser empreendedor. E, mesmo com a reformulação feita pelo governo Lula, pela Lei em 31 de julho de 2024, por meio da Lei 14.945/2024, que sancionou a nova Política Nacional de Ensino Médio, estes itinerários sob a perspectiva de formação empreendedora, permaneceram. Conclusões Ao longo do presente estudo, procurou-se expor, em linhas gerais, uma forte tendência para a dinâmica de formação de uma sociabilidade contemporânea expressa nas mudanças que ocorreram no capitalismo, especialmente, desde o último quartel do século passado, considerando a reestruturação produtiva e o neoliberalismo (seja na sua perspectiva ortodoxa, seja na sua perspectiva de Terceira Via). Esta sociabilidade tem sido amplamente alardeada sob a compreensão de que os modos de ser, pensar e agir; necessários à adaptação dos indivíduos, à nova realidade do mercado de trabalho, tem de estar antenados com a responsabilização pessoal pelo percurso de vida com a assunção do risco, como inerente à dinâmica ideopolítica do século XXI. Depreende-se que o discurso do empreendedorismo e suas subsequentes políticas de formação, representam a reforma intelectual e moral, em busca de uma 22
nova sociabilidade requerida pelas mudanças recentes no capitalismo que necessitam de um sujeito de novo tipo adequado às demandas da sociedade com perdas crescentes de direitos trabalhistas, mas com muitas oportunidades a “oferecer”. Referências ANTUNES, R. A era da informatização e a época da informalização: riqueza e miséria do trabalho no Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e Miséria do Trabalho o Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. ANTUNES, R. Os Sentidos do Trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do Trabalho. São Paulo: Boitempo, 2001. BARRETO, Helena Motta Salles. Crise e Reforma do Estado Brasileiro . Juiz de Fora, MG: Editora da UFJF, 2000. BEHRING. E. R. Brasil em contra-reforma : desestruturação do Estado e perda de direitos. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008. BRASIL. Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 . Altera as Leis nos 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, aprovada pelo Decreto-Lei 5.452, de de maio de 1943, e o Decreto-Lei 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília, 2017. Disponível em: http://legis.senado.leg.br/legislacao/ListaTextoIntegral.action?id=251273&norma=270 661 . Acesso em 22 de setembro de 2024. BRASIL. Lei 14.945, de 31 de julho de 2024 . Altera a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), a fim de definir diretrizes para o ensino médio, e as Leis 14.818, de 16 de janeiro de 2024, 12.711, de 29 de agosto de 2012, 11.096, de 13 de janeiro de 2005, e 14.640, de 31 de julho de 2023. Brasília, 2024. Disponível: https://normas.leg.br/?urn=urn:lex:br:federal:lei:2024-07-31;14945 . Acesso em 22 de setembro de 2024. BRASIL. Ministério da República Federal da Reforma do Estado. Plano Diretor da Reforma do Estado . Brasília: Presidência da República, Imprensa Oficial, 1995. BRESSER-PEREIRA, L. C. Uma Nova Gestão para um Novo Estado: liberal, social e republicano. In: Revista do Serviço Público , 52 (1), janeiro 2001: 5- 24. The 2001 John L. Manion Lecture, Ottawa, Canadá. Disponível em: 23
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