V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X ECONOMIA SOLIDÁRIA E MERCADO DE TRABALHO PARA AS MULHERES NEGRAS: APROXIMAÇÕES CRÍTICAS 1 Dandara Vianna de Albuquerque 2 Adrianyce Angélica Silva de Sousa 3 Resumo O artigo analisa a inserção das mulheres negras no mercado de trabalho a partir dos fundamentos da formação social brasileira, em uma perspectiva de totalidade, elegendo o materialismo histórico como referencial teórico. Tem como objetivo realizar uma aproximação critica às experiências de economia solidária voltadas para a inserção das mulheres negras no mercado de trabalho, problematizando como àquelas atualizam as atividades desenvolvidas pelas mulheres negras no período da escravidão no Brasil. Palavras-chaves : escravidão; formação social brasileira; mulheres negras; mercado de trabalho. ECONOMÍA SOLIDARIA Y MERCADO LABORAL PARA LAS MUJERES NEGRAS: ENFOQUES CRÍTICOS Resumen El artículo analiza la inserción de las mujeres negras en el mercado laboral a partir de los fundamentos de la formación social brasileña, desde una perspectiva de totalidad, eligiendo el materialismo histórico como referente teórico. Pretende abordar críticamente las experiencias de economía solidaria orientadas a la inserción de mujeres negras en el mercado de trabajo, problematizando cómo actualizan las actividades realizadas por las mujeres negras durante el período de esclavitud en Brasil. Palabras clave: esclavitud; formación social brasileña; mujeres negras; mercado de trabajo. SOLIDARITY ECONOMY AND LABOR MARKET FOR BLACK WOMEN: CRITICAL APPROACHES Abstract The article analyzes the insertion of black women in the job market based on the foundations of Brazilian social formation, from a perspective of totality, choosing historical materialism as a theoretical reference. It aims to take a critical approach to the solidarity economy experiences aimed at the insertion of black women in the job market, problematizing how they update the activities carried out by black women during the period of slavery in Brazil. Keywords: slavery; Brazilian social formation; black women; job market. 3 Assistente Social. Doutora em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro. Professora Associada 04 da Escola de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional. Bolsista de Produtividade Nível 2 do CNPQ. E-mail: adrianyce@gmail.com ; nutss.uff@gmail.com Lattes: https://lattes.cnpq.br/0371549565409132 . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4092-3438 . 2 Mestranda em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro. Assistente Social da Secretaria Municipal de Assistência Social e Economia Solidária de Niterói (SMASES). E-mail: dandara.vianna@outlook.com . Lattes: https://lattes.cnpq.br/4935517785503145 . ORCID: https://orcid.org/ 0009-0000-1804-4472 1 Artigo recebido em 09/05/2024. Primeira Avaliação em 29/08/2024. Segunda Avaliação em 08/09/2024. Aprovado em 11/10/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.62920. 1
Introdução Na ponta do abismo vai a mãe preta Aguenta o infinito num corpo Que o grito socorro acusa suspeito (...) Mãe preta resiste desde que não sabia o que era existir Mãe preta teve teus calos calejados pela falta de arrego Dos atrasos da história que traçaram teu destino (Dall Farra, 2019, s/p) O poema slam de Dall Farra, mulher negra da baixada fluminense do Rio de Janeiro, expressa o sentido das opressões sofridas pelas mulheres negras ontem e hoje. Particularmente, o presente artigo busca tecer aproximações acerca destes elementos de continuidade, destes “atrasos da história que traçaram o destino” de tantas mulheres. Nos indagamos se a realidade, das mulheres negras nas relações de trabalho, mudou desde a escravidão? Por que mulheres negras enfrentam tantas e grandes dificuldades de inserção no mercado de trabalho durante toda sua trajetória? Mobilizadas em torno dessas questões, temos como pressuposto que a resposta remete às determinações que atravessam, a nossa formação social, a partir das quais as relações sociais são produtos do colonialismo e escravização na particularidade do capitalismo brasileiro conformando relações de exploração e opressões na inserção de mulheres negras no mercado de trabalho. De tal modo, que se nos primeiros três séculos, no Brasil, a mulher negra era escravizada, hoje ocupa lugares subalternizados nas relações sociais de trabalho, tendo que desenvolver atividades menos valorizadas, de menores rendimentos e altamente precarizadas, que, a nosso ver, atualizam as atividades desenvolvidas no período da escravidão. O aprofundamento do neoliberalismo, a precarização das relações de trabalho, o desemprego são uma realidade na vida dos trabalhadores e trabalhadoras. Em seu processo de luta e organização, vêm desenvolvendo iniciativas, como é o caso da economia solidária, para tentar responder a demanda de subsistência da classe trabalhadora a partir do estímulo ao cooperativismo e autogestão, assumindo versões supostamente progressistas na pauta de segmentos dos/as trabalhadores/as. Neste ínterim, identificamos no cruzamento entre experiências de economia solidária, e a inserção de mulheres negras no mercado de trabalho no Brasil, o que nos parece ser o velho repertório de ocupações laborais ocupados especialmente pelas mulheres negras na divisão social e sexual do 2
trabalho ao longo de todo processo de nossa formação social, a saber: a produção e a comercialização de produtos e serviços com baixa expressão monetária e voltadas a atividades específicas como vendas, comidas, artesanatos. Neste sentido, nos limites deste artigo, buscamos nos aproximar desse debate de modo a refletir sobre a inserção das mulheres negras nas iniciativas de economia solidária. Nosso pressuposto é de que a economia solidária recompõe o processo histórico das mulheres negras nas relações precarizadas de trabalho atualizando as formas históricas que foram cristalizadas como “aptas” paras àquelas desde o período da escravidão no país. Para tanto, na primeira parte do texto retomamos elementos da formação social brasileira para evidenciar o lugar dessas mulheres negras. Na sequência discutimos o mercado de trabalho e a inserção das mulheres negras. Finalmente, problematizamos a relação das experiências de economia solidária e as atividades das mulheres negras e, tecemos algumas considerações finais. Formação social brasileira: determinações histórico-sociais “do lugar da mulher negra” A condição da mulher negra nas relações de trabalho na atualidade, a nosso ver, explicita a particularidade pela qual se o desenvolvimento do capitalismo no Brasil impactando nas relações sociais e de trabalho. Neste sentido, pensar o presente é retomar os elementos da nossa formação social. Diferentemente das revoluções tipicamente burguesas, como na França, por exemplo, que foi movida por ampla persuasão das massas populares e efetiva supressão dos vestígios da estrutura feudal, - que implicou para essas formações sociais um processo no qual a luta de classes explicita um caráter progressista, encampado pela classe trabalhadora, contrário ao projeto de desenvolvimento capitalista, em seu conjunto estrutural –, no Brasil verifica-se um processo lento de substituição do trabalho escravo, pelo trabalho livre nas grandes unidades agrárias que articulam momentos de mudança e de permanência. Trata-se de uma formação social marcadamente não clássica 4 , que se articula 4 Conforme Sousa (2016) dentro da tradição marxista, no Brasil, esta discussão é bastante polêmica. Foi recorrente uma leitura de que teríamos vivenciado aqui uma passagem do sistema feudal para o capitalismo. Este equívoco encontra-se presente e foi dominante nas formulações do Partido Comunista Brasileiro e de seus quadros intelectuais. A problematização dessa interpretação foi realizada inicialmente por Caio Prado Júnior e posteriormente rigorosamente analisado por Florestan 3
de maneira combinada e dependente ao mercado capitalista mundial, e, por isso, desenvolve-se marcada pelo forte traço da colonização, e, pelo forte peso do escravismo. Nos termos de Ianni (1987, p. 24) “uma economia produtora de mercadorias para o mercado internacional”. Às colônias se constituíram como estruturas produtivas integradas ao modo de produção capitalista, nas quais a produção baseada no trabalho escravo serviu para adensar a acumulação de capitais em países de capitalismo avançado, demarcando, dessa forma, a relação de subordinação e dependência das economias latino-americanas, e, em especial a brasileira. Moura analisando a realidade brasileira chega mesmo a afirmar que o mercado mundial “(...) somente poderia dinamizar o seu papel de comprador e acumulador de capitais se aqui existisse, como condição indispensável, o modo de produção escravista” (Moura, 1994, p. 38). O próprio processo de independência do país, evidencia àquela condição, quando não atinge a estrutura do sistema escravista, demarcando apenas o fim do sistema colonial, a constituição de uma economia mercantil escravista, e, a transferência dos mecanismos reguladores do sistema para o Estado (Moura,1994, p.48) Desse modo, no Brasil, - diferente de países europeus nos quais ocorreram a ruptura com as relações de servilidade, a partir da imposição dos mercados como intermédio entre produção e consumo, - o que ocorre é que a colonização e sua base escravista foram fundamentais para que houvesse a consolidação do modo de produção capitalista no país. Tem-se, pois, um fenômeno de modernização conservadora (Moore Júnior, 1983) que explica justamente como no Brasil realizou-se uma articulação complexa de adaptação ao capitalismo, com a permanência de importantes elementos da antiga ordem. Logo, o país experimenta um processo de modernização capitalista sem por isso ser obrigado a realizar uma revolução democrático-burguesa. Mais do que isso, no processo brasileiro a burguesia brasileira conciliava-se com a estrutura produtiva colonial, de modo a que isso não alterasse seu poder político (Mazzeo, 1997, p. 133). Assim, estas determinações brevemente destacadas, possibilitam compreender as repercussões sobre a dinâmica das classes no país. Pois como, bem analisam Cisne e Ianael não se trata de “legado do passado” apenas, mas Fernandes. 4
como uma relação social dinâmica que articula aos processos de exploração de classe uma particularidade no que se refere aos processos de desigualdade estabelecidos nesta dinâmica social. Nas palavras das autoras, O controle do trabalho da população negra e indígena durante a escravização traz reverberações até a atualidade, não apenas como um legado do passado, mas como relação social dinâmica e estrutural que continua estabelecendo lugares de inferioridade e desigualdade no interior da sociedade. Logo, o racismo não pode ser compreendido apenas como construção ideológica, mas como elemento primordial da nossa formação social, indispensável para consolidação do capitalismo mundial emergente (Cisne & Ianael, 2022, p. 193) Particularmente, para mulheres e homens negros o desenvolvimento desta dinâmica explicita o racismo e o patriarcado como funcionais ao capitalismo, servindo às formas de opressão, exploração e dominação, sobretudo, dos sujeitos marcados por raça e sexo (Cisne & Ianael, 2022, p. 193). Esta compreensão também está presente nas análises de Davis (2016) acerca da mulher negra escravizada, quando a autora destaca que a postura dos senhores em relação às escravas era regida pela “conveniência”. Diz a autora, [...] quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas (Davis, 2016, p. 25). Nestes termos, o entendimento da exploração de classe no Brasil, supõe considerar a exploração da população negra e indígena na economia colonial do país, “desenvolvida pelo trabalho forçado e relações de apropriação sobre o corpo e a vida desses povos, [...] diferenciadamente sobre as mulheres que, além do trabalho forçado, tiverem seus corpos apropriados para exploração sexual” (Cisne & Santos 2018, p. 100). Desta forma, como asseveram de maneira contundente Cisne e Ianael, uma persistência nos estudos sobre formação social brasileira, da ideia da miscigenação sob visão idílica, cercada pelo discurso da democracia racial e da livre união entre colonizadores e cativas. Basta ampliarmos nossa perspectiva sobre a posição da mulher negra na sociedade escravista patriarcal para percebermos que a fantasiosa integração entre raças é fruto do estupro (Cisne & Ianael, 2022, p. 195). 5
Numa linha de análise similar, Raimundo (2003) explicita que no caso das mulheres negras a escravização combinou uma exploração que pode ser considerada produtiva e reprodutiva. Produtiva quando inserida em ocupações como amas-de-leite, mucamas, cozinheiras, dentre outras. E, reprodutivas, no sentido direto, pois diferente dos homens negros, as mulheres negras eram usadas para gerar mais mão-de-obra para o sistema escravista. Nestes termos, considerando que o estatuto colonial marca os processos componentes do desenvolvimento do capitalismo, é na constituição do Estado Nacional, mediante a negociação pelo processo de independência, com o surgimento de novos agentes econômicos, com o desenvolvimento da divisão do trabalho, que se redireciona a organização das relações de poder. Contudo, e, aqui reside o ponto nodal, esta inflexão, de um lado, não afeta a perpetuação da ordem social dependente, subordinada e incapaz de promover a sua autonomia e, de outro, marca-se fortemente a ausência de qualquer compromisso da burguesia brasileira para com as massas populares, especialmente a população negra. Fernandes (1976) explicita este movimento quando afirma que a marca da nossa formação social é tanto a heteronomia , ou seja, a dificuldade de a burguesia efetivar a construção do projeto nacional, uma vez que o país está inserido na lógica do capitalismo internacional de forma subalterna, como também o fato de que a democracia liberal não se realiza revolucionariamente para o conjunto da sociedade, mas apenas para os interesses específicos da própria burguesia. Em outras palavras, a transformação capitalista tem lugar graças ao acordo entre as frações das classes economicamente dominantes com total exclusão das forças populares e com a utilização permanente dos aparelhos repressivos. E, desta forma, espraia-se na estrutura social um comportamento particular da burguesia brasileira que reverberou em valores, ações sociais e na relação com a coisa pública. Neste processo a generalização do trabalho livre não significou, do ponto de vista sociocultural, a ruptura com os valores que alicerçavam a escravatura. Ao contrário, este traço se estenderá também para as relações de trabalho livre, na medida em que o Estado se utiliza “da violência e do favor deletério” (Mazzeo, 1997) sobre os trabalhadores de uma maneira geral, e, para as pessoas negras de uma forma particular. Para estes últimos, se constitui uma inserção subalternizada imposta pela questão racial (Theodoro, 2008; Martins, 2012 e Neto 2015). É este movimento que vai, ao nosso ver explicar, porque mulheres e homens negros são 6
condicionados ao mercado de trabalho informal, subalternizado e precarizado, com baixas remunerações ou até mesmo ao desemprego. A provocação de Lélia Gonzalez em seu texto E a trabalhadora negra, cumé que fica?” torna-se, pois, super atual, quando a autora indaga “Afinal, que abolição foi essa que, 94 anos depois de ter acontecido, a gente continua praticamente na mesma situação?” (Gonzalez, 2020, p. 217). Atualiza-se, na nossa compreensão, àquela indagação, - mesmo em face a luta e avanços da luta da classe trabalhadora, em especial dos movimentos negros pela defesa e ampliação dos direitos sociais e direitos humanos e, da participação dos/as negros/as no mercado de trabalho, - pois identifica-se um continumm dos traços socioculturais que sustentaram a escravização e que se mantém atualizados como uma desigualdade racial no Brasil que se expressa em todas as dimensões e, de forma acentuada nas inserções e relações de trabalho. O atual mercado de trabalho e as mulheres negras: fios que ligam ao passado colonial As observações anteriormente feitas ao entendimento da formação social brasileira, sintetizam as determinações que possibilitam apreender a inserção das mulheres negras no mercado de trabalho. A nosso ver, a inserção da mulher negra no mercado de trabalho, em suas configurações atuais, precisam ser refletidas a partir desta visão de totalidade, na qual, os fundamentos anteriormente sumariados, explicitam como a subalternidade no mercado de trabalho é produto de relações sociais capitalistas, na particularidade brasileira, que se construíram e tiveram por base a exploração da força de trabalho de negros e negras primeiramente como pessoas escravizadas e posteriormente como desigualmente inseridas na divisão social do trabalho. Considerando que foram quase 400 anos de escravização no Brasil, podemos afirmar que esse longo período foi um elemento fundamental para o processo de acumulação de capital. Neste sentido, as atuais configurações do atual mercado de trabalho são produtos da construção histórico-social da sociedade burguesa , em cujas determinações econômicas cristalizaram para as mulheres negras, o não reconhecimento e/ou não acesso a direitos, a inferiorização da sua imagem, uma profunda desumanização do seu ser e demais violências e violações “definidas pelo 7
racismo e pelo sexismo”, como destaca Gonzalez (2020). Ao mesmo tempo, estas determinações históricos sociais são acentuadas pelos processos e dinâmicas do capitalismo contemporâneo nas quais a flexibilização dos processos produtivos, o desemprego estrutural e a imposição de vínculos e condições cada vez mais precárias para o trabalho reiteram o tom da sociedade burguesa (Antunes, 2020). Logo, o racismo e sexismo dinamizados na sociedade burguesa combinam exploração e opressão e, relegam os piores contornos possíveis as condições laborais dessas mulheres. Ao afirmar que a situação das mulheres negras continua praticamente a mesma, Gonzalez (2020) questiona o mito da democracia racial e determinados aspectos da cultura brasileira que ele oculta. Esse mito prevaleceu no racismo “à brasileira” como um arsenal das práticas discriminatórias que se manifestam cotidianamente. Entretanto, conforme tratado anteriormente, o desvelar da história confronta o mito. A realidade é que o Estado brasileiro foi o último a abolir a escravidão e, nada fez para modificar a realidade da população negra. Como aponta Gonzalez (2020), o 13 de maio de 1888 trouxe benefícios para todo mundo, menos para a massa trabalhadora negra. Logo, sem muitas opções, negros e negras continuaram ora no trabalho análogo a escravidão, ora como “a carne mais barata do mercado” 5 2 . Durante mais de 300 anos, o suor, o sangue e as lágrimas negras regaram o solo brasileiro nos martírios da escravidão, nos quais trabalharam compulsoriamente em todos as funções possíveis e, sobretudo, nas atividades centrais da economia. Após a abolição, como ex-escravizados, foram preteridos pelos empregadores e empurrados para a periferia do sistema produtivo (Moura, 2021). Nas palavras de Gonzalez (2020), até aquela data elas e eles haviam sido considerados bons para o trabalho escravo. A partir de então passaram a ser considerados ruins, incapazes para o trabalho livre. Além da construção dessa “estratificação social” das pessoas negras através de preconceitos que atribuíam uma falsa incapacidade de exercer determinadas funções no mercado de trabalho, diversos atos tomados em favor dos imigrantes estrangeiros, criaram as premissas econômicas para empurrar os/as negros/as para a periferia do sistema produtivo (Moura, 2021). Daí a preferência pelo/a 5 Música, “A Carne” escrita por Marcelo Yuka, Seu Jorge e Ulisses Cappelletti. 8
trabalhador/a branco/a, até hoje reveste-se de “meritocracia”, a partir da qual somente brancos/brancas conseguem o acesso. Dessa maneira, a população negra fica com o que sobra para garantir a sua sobrevivência, alternando-se majoritariamente entre o subemprego e o desemprego, e assim, sofrendo uma não inserção progressiva. Quando Gonzalez (2020) indaga e a trabalhadora negra, cumé que fica? Ela fica “na ponta do abismo”, como diria a poeta Dall Farra (2019), na luta pela sobrevivência em um contexto brutalizado, no qual as possibilidades materiais das mulheres negras não permitiram e não permitem que elas escapassem da ocupação de espaços e papéis que lhe foram atribuídos nos primeiros 300 anos de história do Brasil. Como afirma Gonzalez (2020), Nossa situação atual não é muito diferente daquela vivida por nossos antepassados: afinal, a trabalhadora rural de hoje não difere tanto da “escrava do eito” de ontem; a empregada doméstica não é muito diferente da “mucama” de ontem; o mesmo poderia se dizer da vendedora ambulante, da “joaninha”, da servente ou da trocadora de ônibus de hoje e da “escrava de ganho” de ontem (Gonzalez, 2020, p. 217). Partindo das noções de “mulata”, “doméstica” e “mãe preta”, a autora traça algumas reflexões sobre o lugar desenhado para as mulheres negras na sociedade brasileira. O engendramento dessas atribuições se faz a partir do trabalho da mucama no Brasil colonial. A mulher negra transita por elas, sendo objeto de desejo sexual exaltado no Carnaval e/ou a trabalhadora doméstica da prestação de bens e serviços no dia a dia do cuidado à família dos outros (Gonzalez, 2020). Não esqueçamos também do trabalho por conta própria, ocupação comum as mulheres negras, com forte simetria com as ganhadeiras que trabalhavam pelas ruas comercializando gêneros de primeira necessidade ou prestando serviços, entre os séculos XVIII e XIX. A partir da pesquisa historiográfica de Faria (2000) esta determinação fica evidenciada no que se constitui, a nosso ver, como um prolongamento dos preconceitos das atividades desenvolvidas pelas mulheres negras escravizadas mesmo após a abolição e sua entrada no mercado de trabalho como força de trabalho livre. Faria (2000) destaca em suas análises, a partir de uma crônica portuguesa de 1552, a constituição de um ideário acerca da “aptidão para a venda” das mulheres negras. A autora também observa que este e outros tipos de trabalho 9
também eram estigmatizantes como “carregar água era feito pelas ‘negras de pote’, assim como a limpeza, inclusive o ato de levar dejetos em recipientes como ‘canastras’ e eram conhecidas como negras de canastra” (Faria, 2000, p.77) sendo estas últimas consideradas de “mais baixo espírito” do que as que andavam com água. Dessa forma, compreendemos que a atual configuração do mercado de trabalho, é produto das relações econômicas e sociais construídas desde a colonização pelo processo de escravização, fundamentando relações de poder desiguais e impondo uma divisão sexual e racial do trabalho para as mulheres negras. Segundo Nascimento (2021), a estas experiências se superpõem os mecanismos atuais de manutenção de privilégios por parte do grupo dominante. Logo, as mulheres negras permanecem majoritariamente subalternizadas e relegadas aos trabalhos não qualificados que substituíram as atribuições da mucama ou nas fileiras do exército industrial de reserva, indispensável para efetiva realização da superexploração (Gonzalez, 2020; Moura, 2021). O jornal Agência Brasil (Vilela, 2022) evidenciou dados que retratam isso ao destacar que as mulheres negras são 65% das trabalhadoras domésticas 6 no país e, apresentam renda média inferior a um salário-mínimo. Em matéria correlata do jornal G1 Economia ( Martins, 2023), aponta que a maioria dos 10,9 milhões de jovens com idade entre 15 e 29 anos que não estudam nem trabalham são mulheres, o que corresponde a 6,7 milhões de pessoas. A grande razão de não estarem no mercado de trabalho é a responsabilidade com os afazeres domésticos ou cuidado com parentes. Essa desigualdade de gênero tem contornos racializados que, em 2022, cerca de 66,6% das pessoas que não estudavam nem trabalhavam para cuidar de casa ou de parentes eram mulheres negras (Pinhoni, 2023). Evidencia-se, pois, que as mulheres negras, ainda são o braço do trabalho do cuidado no Brasil. Particularmente, cabe destacar que as mulheres negras também são a maior parcela dos microempreendedores por necessidade - aqueles que criam pequenos negócios para sobreviver e que detém apenas a sua força de trabalho. Este tipo de negócio geralmente apresenta rendimento volátil e grandes dificuldades de sobrevida (Carrança, 2023). Pesquisa realizada pela SEBRAE (2023), corrobora este fenômeno, quando destaca que a população negra é o grupo que mais sonha em desenvolver o próprio negócio. Estes elementos são relevantes para a 6 É importante ressaltar que a regulamentação do trabalho das domésticas foi realizada em 2013. 10
argumentação que desenvolvemos posteriormente no que se refere às atividades de economia solidária. Observa-se assim, que a cultura do autoemprego e a racialização que atravessam o mercado de trabalho são fatores que contribuem para isso. Repercutindo com maior brutalidade sobre a população negra, e as mulheres em especial, a construção ídeo-cultural do neoliberalismo estimula a formação de uma nova subjetividade para trabalhadores/as, na qual a liberdade dos indivíduos é realizável apenas na competição do mercado. Ou seja, empreender se torna uma virtude valorizada pelo e para o mercado. Os trabalhadores são estimulados a serem microempresários, autônomos ou qualquer outro termo para o trabalho por conta própria (Barbosa, 2007). Contudo, esta reificação, é duramente confrontada pela própria realidade. Dados disponibilizados pelo próprio SEBRAE (2023) mostram que as mulheres negras apresentam o mais baixo rendimento entre os empreendedores, com uma diferença de renda média de 74% entre elas e os homens brancos, grupo que possui os maiores rendimentos. Também identificou-se que os empreendedores negros possuem menor nível de escolaridade, sendo os que estão menos formalizados e, os que menos contribuem à previdência. No segundo trimestre de 2022, 72% dos empreendedores brasileiros negros não contribuíam para o INSS, comparado a 52% dos brancos (Carrança, 2023). Assim, a desigualdade de raça e gênero entre empreendedores em idade ativa tende a se reproduzir também na velhice, quando não acessarão a aposentadoria. A tabela 01 abaixo apresenta uma fotografia recente das atividades econômicas realizadas por brasileiros, considerando raça/cor e sexo, em 2022. 11
Tabela 1. Estimativa de ocupados, por raça/cor e sexo, segundo grupamento de atividade principal do empreendimento do trabalho principal Brasil –2º trimestre de 2022 (em %) Fonte: IBGE. Pnad Contínua Elaboração: DIEESE Obs.: Negros = Pretos + Pardos; Não Negros = Brancos+ Amarelos + Indígenas. A tabela demonstra que no segundo trimestre de 2022, entre as mulheres negras ocupadas, 19,7% estavam no setor de educação, saúde humana e serviços sociais; 19,2% no comércio; e 16,4% nos serviços domésticos (DIEESE, 2022). Estes dados corroboram a argumentação desenvolvida até aqui no que se refere ao prolongamento dos tipos de ocupação das mulheres pretas desde a escravização num continuum que se atualiza a medida em que se amplificam os processos de exploração no capitalismo com particular truculência para os segmentos negros. Também é importante demarcar que as desigualdades historicamente constituídas não se limitam ao tipo de ocupação, mas na qualidade do vínculo no mercado que é substancialmente inferior à da população branca. Observemos a tabela 02 abaixo que apresenta a distribuição dos ocupados por posição na ocupação, por raça/cor e sexo no segundo trimestre de 2022. 12
Tabela 2. Distribuição dos ocupados por posição na ocupação, por raça/cor e sexo Brasil –2º trimestre de 2022 (em %) Fonte: IBGE. Pnad Contínua Elaboração: DIEESE Obs.: Negros = Pretos + Pardos; Não Negros = Brancos+ Amarelos + Indígenas A tabela evidencia a desproteção da trabalhadora negra. Ela tem o menor percentual de empregos no setor privado com carteira assinada, sendo de 31,5%. No trabalho doméstico, 12,6% eram trabalhadoras domésticas sem carteira e 3,7% com carteira. As mulheres negras também têm um índice de 21,1% no trabalho por conta própria e 10,8% no assalariamento sem carteira. No total, quase metade (47,3%) das negras trabalhavam sem proteção. Evidencia-se, pois, que mediante as desigualdades no mercado de trabalho formal, muitas mulheres negras ocupam trabalhos desprotegidos para sobreviver (DIEESE, 2022). Outro indicador importante para demonstrar a desigualdade no mercado de trabalho é o desemprego. Nas palavras de Carneiro (2011), o acesso ao emprego e ao trabalho é condição primordial para a reprodução da vida, e, sua exclusão é também a primeira forma de negação desse direito básico da cidadania. Segundo matéria publicada pela FGV (Feijó, 2022), a taxa de desemprego entre as mulheres negras tem sido bem maior do que as reportadas pelos outros grupos. Com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, no primeiro trimestre de 2022, a taxa de desemprego entre as mulheres negras foi 13
de 16,3%, o que representa mais de 4,1 milhões de mulheres negras desempregadas. Embora tenha tido uma queda no desemprego no último ano, os dados do segundo trimestre de 2023 (DIEESE, 2023) apontam uma taxa de desocupação das mulheres negras de 11,7%, em comparação a 7% das mulheres não negras, 7,8% dos homens negros e 5,7% dos homens não negros. Os dados do trimestre de 2022, a nosso ver, revelam também a expressão do racismo e sexismo no cenário dos desalentados no Brasil aqueles que gostariam de trabalhar, mas que desistiram de procurar porque acham que não vão encontrar. Das 2,3 milhões de mulheres desalentadas, cerca de 1,6 milhão são negras. Face a esta brutal realidade, e como parte do processo de resistência e organização da classe trabalhadora no país, verificam-se “novas alternativas” para fazer frente aos processos de exploração. Neste ínterim localizam-se as experiências de economia solidária que cresceram no país colocando-se como uma “economia alternativa” dentro do capitalismo voltada a romper com o trabalho subordinado de modo a supostamente responder aos interesses dos segmentos historicamente alijados do assalariamento formal. Cabe-nos refletir, como as mulheres negras são incorporadas nestas experiências. Economia Solidária e mulheres negras: uma alternativa? Não será possível nos limites deste artigo desenvolver o amplo campo do debate que se refere à economia solidária, nem muito menos seus traços e relações com o socialismo utópico e configurações na particularidade brasileira 7 . Contudo, a partir dos consensos entre os analistas brasileiros podemos demarcar que denomina-se de economia solidária àquelas experiências de práticas econômicas e sociais, - organizadas sob a forma de cooperativas, associações, empresas autogestionárias, redes de cooperação, complexos cooperativos, entre outras, que realizam atividades de produção de bens, prestação de serviços, finanças, trocas, comércio e consumo (Sousa, 2013), - que pretendem-se baseadas na solidariedade, com gestão horizontal e construção democrática entre os trabalhadores. No Brasil, a economia solidária assume status de uma política pública, no governo Lula, a partir da criação, em 2003, da Secretaria Nacional de Economia Solidária SENAES vinculada ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Como 7 Para estes aprofundamentos ver Neves, 2013. 14
observa Sousa (2008), a SENAES é resultante do investimento de setores como organizações não governamentais, igrejas, categorias e entidades sindicais e movimentos sociais que apostaram no cooperativismo e nos arranjos autogestionários como uma forma de superação da crise do capital, e suas repercussões nas relações de trabalho. Estes elementos ficam evidentes nas análises de Paul Singer 8 quando o autor enfatiza que, Esta revivescência [da economia solidária] significa, sobretudo a volta aos princípios, a valorização da democracia e da igualdade no campo de produção, distribuição e de intermediação financeira. que parcela cada vez maior está excluída do emprego assalariado regular e, portanto, da cidadania operária, mais de duas décadas, os seus componentes não têm por que continuar colocando suas esperanças numa restauração do pleno emprego e dos direitos sociais, que seus pais haviam conquistado (Singer, 2018, p.33). Nestes termos, como observa Wellen (2008) a economia solidária coloca-se como um projeto que busca substituir a centralidade do trabalho como fonte de valor da mercadoria por características individuais que lhe eram peculiares, qualidades como a consciência social. Nos termos de Yunus e Jolis, "objetivos sociais" podem substituir a ganância como uma poderosa força motivadora. Se forem bem dirigidas, às empresas orientadas para a consciência social podem se sair muito bem no mercado, competindo com as outras baseadas na ganância" (Yunus; Jolis, 2006, p. 264). Esta compreensão está presente nas formulações de Singer (2018) quando o autor defende que o fazer econômico dos grupos autogestionários baseado na solidariedade é a chave para o fim da exploração do trabalho e a inauguração de um novo modelo alternativo ao capitalismo. Para ele, a economia solidária não teria uma conciliação possível com o capitalismo porque “o ideal dos que fazem a economia solidária é uma sociedade de iguais”, ao contrário do capitalismo que, nas palavras de Singer, “o princípio reitor é a competição, logo a prática da colaboração entre concorrentes é proibida como delito” (Singer, 2018, p.167). Desta forma, para o autor a autogestão tem como principal mérito o desenvolvimento humano proporcionado aos participantes, não a eficiência econômica, embora ela seja necessária. 8 Paul Singer foi um economista autodeclarado socialista utópico e um dos fundadores do PT. É reconhecido como o maior teórico na economia solidária no Brasil. Em 2003, foi escolhido como secretário da SENAES, permanecendo no cargo até 2016. 15
Em nossa interpretação um esvaziamento das determinações histórico, políticas e econômicas que atravessam esta experiência ao mesmo tempo em que os/as trabalhadores/as são esvaziados como sujeito políticos nas figuras de sócios dos empreendimentos econômicos solidários (EES) e mobilizados pela solidariedade aprofundando a reificação de que os EES seriam capazes de criar no seu interior relações completamente suspensas do capitalismo ainda vigente. Neste processo, a economia solidária passou a fomentar e apoiar a “inclusão socioprodutiva” de grupos reconhecidos como socialmente vulneráveis e que enfrentam dificuldades de inserção no mercado de trabalho assalariado formal, como é o caso das mulheres negras. Num primeiro momento convém destacar que uma invisibilidade da mulher negra no âmbito da própria economia solidária que se expressa na ausência da incorporação da dimensão de gênero e raça/etnia no âmbito do programa, conforme aponta Leite e Souza (2010). Também se expressa, nos ainda poucos dados e estudos, que enfatizam a condição das mulheres negras nessas atividades. Apesar disso, através dos dados disponibilizados pelo Sistema de Informação em Economia Solidária 9 (SIES), desenvolvido pela SENAES, mapeamos alguns elementos que auxiliam na nossa reflexão. De modo mais geral, as condições de trabalho encontradas nos empreendimentos de economia solidária não fogem muito aos demais trabalhos precários, que como vimos anteriormente, são um traço permanente no histórico das mulheres negras. Silva e Kappes (2016) explicitam algumas características comuns aos empreendimentos solidários que são grandes empecilhos para os/as trabalhadores/as: o alto nível de informalidade, a falta de garantias trabalhistas e os problemas de viabilidade econômica. Das quatro formas de organização dos grupos de economia solidária identificadas no último mapeamento nacional (2009-2013) associações, 9 Os dados referentes aos Empreendimentos Econômicos Solidários (EES) tem base no Segundo Mapeamento Nacional de Empreendimentos Solidários no Brasil, realizado entre 2009 e 2013. A pesquisa foi organizada pela Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) e deu continuidade ao primeiro mapeamento realizado em 2007. Em 2013 também foi realizada uma pesquisa amostral através da aplicação de um questionário, nas cinco regiões do país, trazendo detalhes de quase 3 mil pessoas associadas aos EES e mostrando os impactos gerados por sua participação na Economia Solidária. Contudo, em 2017, a Secretaria foi rebaixada a Subsecretaria pelo então presidente Michel Temer e, em 2019, no Governo de Jair Bolsonaro, foi extinta, assim como o Ministério do Trabalho. Nesse contexto, não houve novos mapeamentos. A SENAES foi reativada pelo governo Lula em 2023, mas ainda não apresentou uma nova pesquisa. Embora os dados não sejam recentes, em nossa perspectiva, as tendências apresentadas continuam atuais. 16
cooperativas, grupos informais e sociedades mercantis observamos a predominância de associações, com 60% do total e de grupos informais, com 30,5%. Esses números sinalizam a fragilidade institucional da maioria dos empreendimentos. Tanto as associações 10 5 quanto os grupos informais são limitados em termos de atividade comercial e capacidade de crescimento, mas são os formatos mais acessíveis para as parcelas da população que se inserem na economia solidária (Silva e Carneiro, 2016). Vale ressaltar que é nesses grupos que a maioria das mulheres sobressaem, ou seja, como dito anteriormente dentre o grupo daqueles que empreendem por necessidade. A falta de garantias trabalhistas também é corriqueira. Nos ESS voltados à produção, menos de 2% dos participantes têm direito a férias remuneradas e 7,19% à previdência social. Essa realidade não muda muito nos demais. Isso porque nos EES de comercialização os números são respectivamente 6,7% e 12,6%, nos EES de serviços são respectivamente 8,7% e 15,6% e nos EES de consumo 1,3% e 4,3%. Apenas nos empreendimentos de poupança mais 40% dos sócios com direito a descanso remunerado e previdência. Segundo Silva e Kappes (2016), a maioria dos sócios não têm acesso a nenhum direito trabalhista, característica que não se restringe apenas aos empreendimentos informais. A sustentabilidade dos grupos produtivos autogestionários também é frágil e suas atividades têm baixíssimo impacto econômico. Os rendimentos gerados pelos empreendimentos mal sobram após os pagamentos das despesas básicas. Cerca de 76% dos EES tem como finalidade comercializar bens e serviços, e enfrentam grandes dificuldades para realizar isso. Segundo Silva e Carneiro (2016), dos EES mapeados, 61,7% afirmou ter alguma dificuldade na comercialização. Entre as principais dificuldades elencadas por eles, destacamos: a falta de capital de giro, a estrutura inadequada para a comercialização e o elevado custo de transporte, além da concorrência dos intermediários comerciais. O cenário exposto acima reitera mais uma vez como o fetiche do autoemprego é duramente confrontado pela própria realidade. Embora a economia solidária se autodeclare uma outra “economia alternativa” os “ditos segmentos vulneráveis” são tratados como uma mera consequência dos parcos marcos legais 10 Silva e Carneiro (2016) sinalizam que as associações constituam uma alternativa intermediaria de formalização que, devido a sua simplicidade jurídica, são limitadas em termos de atividade comercial. Sendo proibidas pelo Código Civil brasileiro de exercer atividade econômica e emitir nota fiscal de seus produtos. 17
para regulamentação dos empreendimentos solidários. São como pontas soltas reparáveis a partir da devida formação e assessoria técnica. Contudo, ao levarmos em consideração os processos históricos e contemporâneos de transformação da sociedade capitalista, compreendemos que a economia solidária não se diferencia das demais atividades informais que proliferam na contemporaneidade, respondendo inclusive, às necessidades atualizadas do padrão de acumulação. Segundo Barbosa (2007) encontramos no programa economia solidária atividades que se associam a gestão da pobreza e barateamento da reprodução da força de trabalho mal remunerada da informalização e atividades que subordinam seus processos de trabalho a grandes empresas contratantes para conseguir prolongar sua sobrevivência, sendo uma maneira de manter a acumulação capitalista atualizada e rentável. Sendo assim, para as mulheres negras, as condições de trabalho encontradas na economia solidária evidenciam uma continuidade da precarização do trabalho. No entanto, cabe ainda alguns apontamentos sobre o tipo de atividade desempenhada por elas que, em nossa perspectiva, reafirmam o velho desenho da divisão sexual e racial do trabalho. Ao questionarmos sobre o lugar da trabalhadora negra na economia solidária, nos deparamos com a deficiência dos dados disponíveis no SIES que não permitem muitas conclusões a respeito da população segundo a raça/cor, como aponta Leite e Souza (2010). No entanto, em relação ao gênero é possível perceber a recomposição das mulheres nos setores que representam uma extensão do trabalho doméstico, em particular o predomínio das mulheres nos setores de costura e alimentação, na reciclagem e no setor de calçados. Os homens predominam nas fábricas recuperadas e nos empreendimentos de profissionais (Leite;Souza, 2010). Evidencia-se, pois, que as mulheres se inserem na economia solidária a partir do velho lugar arranjado pela divisão sexual e racial do trabalho. Elas buscam as atividades que correspondem aos seus saberes tradicionais e partilhados. A partir do que foi visto até aqui, compreendemos que não apenas a desigualdade nas relações sociais de gênero vem moldando os contornos da inserção das mulheres nos EES. Assim, compreendemos a essência das semelhanças entre os circuitos de feiras de economia solidária - um dos principais instrumento de escoamento do que é produzido com o comércio realizado pelas mulheres negras ganhadeiras pelas ruas do Brasil oitocentista. O que elas fazem hoje na economia solidária não difere 18
tanto do que suas ancestrais faziam para sobreviver: a venda de alimentos, bebidas, artesanatos, tecidos, roupas, utensílios e outras mercadorias de produção própria. Ressaltamos que essas atividades sempre foram de grande importância para a população negra mediante a um escasso cenário de possibilidades e urgência de atendimento às necessidades básicas de sobrevivência imediatas. Entretanto, a existência desses espaços de comercializações nunca foi perigosa para o desenvolvimento do modo de produção vigente. Ao contrário, parte dos ganhos eram designados aos senhores de engenho. Além disso, precisamos desnaturalizar a perpetuação de um restrito e precário lugar para as mulheres negras no mundo do trabalho. Não uma aptidão natural para essas atividades, mas sim as desigualdades sociais costuradas pela questão racial e das relações sociais de gênero limitando as suas possibilidades como vimos anteriormente. Conforme Neves (2021) destaca, a partir da sua inserção enquanto mulher negra nos espaços de construção política do fórum de economia solidária, as mulheres negras têm a sua ocupação dificultada nos cargos representativos e de tomadas de decisões internas. Sob o pretexto de uma falsa incapacidade ou desinteresse das mulheres negras em exercer funções na gestão dos empreendimentos, o que expressa o preconceito e o racismo. Além disso, mesmo os empreendimentos sendo desenvolvidos majoritariamente por mulheres, que estão incorporadas nos processos de organização, produção e de comercialização, Neves (2021) alerta que a gestão interna costuma ser feita por homens que estão inseridos na coordenação administrativa, financeira e política dos empreendimentos, das entidades de apoio, das incubadoras e mesmos nos fóruns de economia solidária. Assim, mesmo evocando valores democráticos e solidários, ainda não dissociaram as mulheres negras do trabalho meramente braçal, que reproduz os fios coloniais. Considerações Finais As análises desenvolvidas neste artigo, evidenciam o que cantou o samba da Mangueira de 2019, em nosso país uma “história que a história não conta” um “avesso do mesmo lugar”. A realidade da população negra neste país é esse avesso. No caso das mulheres negras, desde o período colonial, baseado na escravização, as mulheres são exploradas e barbarizadas não apenas na sua 19
capacidade de trabalho, mas em seus corpos. A marca da escravização se espraia para as relações de trabalho livre, marcando a ferro o lugar e as atividades que são destinadas às mulheres negras, consideradas menos “aptas” para as atividades consideradas de repertório intelectual. O desenvolvimento do capitalismo dependente brasileiro acentua a superexploração sobre os corpos negros e, atualiza, no avanço neoliberal, o lugar do desemprego, informalidade, baixos salários e condições degradantes ou voltadas ao cuidado como as mucambas que podiam frequentar a casa grande. Dados da OIT de 2013 confirmam essa afirmação quando destacam que meninas negras representam 93% das crianças e adolescentes ocupadas em trabalhos domésticos (Sarres, 2013). Neste sentido, compreender a condição da mulher negra no mercado de trabalho significa resgatar os elementos fundantes da nossa formação social evidenciando o fio de continuidade que cristalizou atividades, e “aptidões” para essas mulheres. Ao mesmo tempo, quando analisamos as configurações atuais do mercado de trabalho, especialmente no que se refere à economia solidária, identificamos que não se altera o lugar subalternizado a que mulheres negras estão associadas nas ditas atividades “solidárias”. Evidencia-se, pois, que para este lugar no mundo do trabalho da mulher negra ser deslocado, é fundamental o desmonte do sistema que alimenta a precarização e exploração da classe trabalhadora. assim, teremos a real valorização das mulheres negras trabalhadoras. Diferente de abordagens que, no interior do debate sobre a economia solidária e feminista, defendem que existe certo protagonismo das mulheres nessas experiências que acarretam a transformação da sociedade via trabalho “solidário” e de “proximidade”, a nosso ver, o conteúdo solidário vêm servindo a mistificação das situações de exploração, precarização das condições de trabalho e baixas remunerações de mulheres que incorporam moldes tradicionais estratificados por gênero (Grecco, 2015) e pela questão racial, que recolocam no presente as marcas do passado. Referências ANTUNES, R. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2020. 20
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