V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X UNIVERSALIZAÇÃO DA PRECARIEDADE E OTIMISMO DA EXPLORAÇÃO: A RELAÇÃO ENTRE JUVENTUDE E TRABALHO PARA A ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO 1 Gabriel França Sundin 2 Domingos Leite Lima Filho 3 Resumo O objetivo com o presente artigo é analisar a concepção de juventude e trabalho presente em oito documentos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre os anos de 2008 à 2020, que compõe os estudos intitulados Tendências Mundiais do Emprego e que se direcionam especificamente para avaliação da situação dos jovens no mundo. Concluímos que as perspectivas apontadas pela organização internacional caminham em uma concepção individualizante de juventude e na defesa da inserção aligeirada e precária no mercado de trabalho, sob moldes alienantes. Palavra-chave: Juventude; Trabalho; OIT; Precariedade. UNIVERSALIZACIÓN DE LA PRECARIEDAD Y OPTIMISMO DE LA EXPLORACIÓN: LA RELACIÓN ENTRE JUVENTUD Y TRABAJO PARA LA ORGANIZACIÓN INTERNACIONAL DEL TRABAJO Resumen El objetivo de este artículo es analizar la concepción de juventud y trabajo presente en ocho documentos de la Organización Internacional del Trabajo (OIT), entre los años 2008 y 2020, que integran los estudios titulados World Employment Trends y que están dirigidos específicamente a evaluar de la situación de los jóvenes en el mundo. Concluimos que las perspectivas destacadas por el organismo internacional avanzan hacia una concepción individualizadora de la juventud y en defensa de una rápida y precaria inserción en el mercado laboral, bajo moldes alienantes. Palabra clave: Juventud; Trabajo; OIT; Precariedad. UNIVERSALIZATION OF PRECARITY AND OPTIMISM OF EXPLORATION: RELATIONSHIP BETWEEN YOUTH AND WORK FOR THE INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION Abstract The objective of this article is to analyze the conception of youth and work present in eight documents from the International Labor Organization (ILO), between the years 2008 and 2020, which make up the studies entitled World Employment Trends and which are specifically aimed at assessment of the situation of young people in the world. We conclude that the perspectives highlighted by the international organization move towards an individualizing conception of youth and in defense of a quick and precarious insertion in the job market, under alienating molds. Keyword: Youth; Work; ILO; Precariousness. 3 Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Professor Visitante do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (PPGEducação - UFF), Professor Titular (aposentado) do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). E-mail: domingosf@id.uff.br . Lattes: http://lattes.cnpq.br/1113538527015820 . ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3802-6794 . 2 Mestre em Tecnologia e Sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE/UTFPR). Psicólogo, atualmente trabalhando como psicólogo escolar. E-mail: gabriel.f.sundin@gmail.com . Lattes: https://lattes.cnpq.br/9427353783354287 . ORCID: https://orcid.org/0009-0000-0284-394X 1 Artigo recebido em 08/05/2024. Primeira Avaliação em 05/08/2024. Segunda Avaliação em 04/10/2024. Aprovado em 21/10/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.62910 1
Introdução No panorama atual do capitalismo, a interseção entre juventude e trabalho assume uma relevância inegável. Constantemente somos bombardeados com notícias e dados aterradores da situação dos jovens no mundo, em grande medida relacionados com empregos precários, desemprego, desalento etc. Ao mesmo tempo que, em um contexto de importantes mudanças conjunturais no trabalho com o advento de novas tecnologias de informação e comunicação (TICs) aplicadas na produção, os jovens muitas vezes têm sido tratados como o setor mais apto a se adaptar a tais mudanças. No decorrer da história uma série de enfoques e perspectivas foram traçadas para a juventude. Caminhando entre a coesão e coerção social, teorias e políticas versaram sobre a integração dos jovens às normas, o risco da ruptura social, a delinquência e subculturas juvenis. Assim como expectativas de renovação cultural e mudanças sociais foram atribuídas a movimentos de juventude (Groppo, 2017). Esse conjunto de ideias conformaram esse grupo como importante alvo de políticas públicas específicas e como alvo de ação de grupos sociais nas mais variadas perspectivas políticas. O objetivo com o presente artigo 4 é analisar a concepção de juventude e trabalho presente em oito documentos da Organização Internacional do Trabalho (OIT), entre os anos de 2008 a 2020, que se direcionam especificamente a essa coorte geracional. Os documentos selecionados compõem uma publicação recorrente da organização intitulada Tendências Mundiais do Emprego (TME), a qual possui numerações temáticas específicas sobre a situação do trabalho para os jovens em âmbito mundial. Nos propomos com isso a analisar as ideias e expectativas apontadas pela OIT a fim de entender como elas se relacionam com as perspectivas de desenvolvimento capitalista e como enquadram a situação da juventude trabalhadora nesse contexto. Entendemos que a forma de organização do capital e expressão de seus interesses e necessidades ocorre em diferentes níveis da vida social. Em um primeiro nível, sua base estrutural, encontramos a estrutura de produção social da 4 O presente artigo apresenta parcialmente os resultados obtidos em pesquisa de dissertação de mestrado defendida no ano de 2023, intitulada: Concepções e orientações da Organização Internacional do Trabalho para a juventude e suas inter-relações com o trabalho e tecnologia, escrita por Gabriel França Sundin, orientada pelo Prof. Dr. Domingos Leite Lima Filho, junto ao programa pós-graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE/UTFPR). 2
vida, baseada na valorização do valor e que coloca em contradição direta as duas classes fundamentais: de um lado a burguesia, detentora dos meios de produção da vida; por outro os trabalhadores, detentores apenas da sua capacidade de trabalho (força de trabalho). A partir dessa estrutura, Marx (2008) nos explica que se origina aquilo que qualifica como a expressão superestrutural dessa base econômica, que seria o desenvolvimento de uma organização política e jurídica que constrói efetivamente o sistema do capital. Essa superestrutura se expressa no Estado, na organização jurídica, na ideologia etc. A expressão das necessidades e interesses do capital, portanto, acontece nesses distintos espaços da vida social. Um desses espaços que conformam o capital e servem como instrumento de expressão de seus interesses e necessidades são as chamadas organizações internacionais, ou multilaterais. Conforme nos aponta Mendes Segundo (2005), tem força o Banco Mundial (BM), mas também distintas outras organizações Fundo Monetário Internacional (FMI); Organização das Nações Unidas (ONU) e várias outras que se constituem como espaços em princípio nomeados como neutros e acima de interesses particulares, mas que são utilizados como forma de construção dos objetivos do atual modo de produção. A OIT foi criada em 1919 no quadro do Tratado de Versalhes no contexto do pós-primeira guerra mundial. Como aponta Leitão (2016), um de seus determinantes centrais está na primazia que toma a chamada “questão social”, em especial os elementos ligados às contradições emergidas do processo da primeira e segunda revolução industrial. Junto disso estão as iniciativas que vinham sendo tomadas à época em relação às articulações internacionais e a maior organização do movimento operário e sindical. Surge então, a necessidade de responder de forma mais assertiva e articulada aos problemas do trabalho, tendo em vista a pressão exercida em decorrência do processo revolucionário russo e de amplas lutas sociais e movimentos de trabalhadores na Europa e outros continentes. Assim como a necessidade de articulação burguesa em relação às formas de organização do trabalho e as medidas legais que deveriam ser adotadas, visto que as diferenças regulatórias nacionais poderiam servir como entraves à livre concorrência propalada pelo liberalismo (Leitão, 2016). 3
A OIT surge tendo “como missão servir de plataforma permanente duma cooperação entre os seus membros, relativa ao estudo, análise e comparações das diversas legislações e regulamentações sobre o trabalho assalariado.” (Leitão, 2016, p. 106). Durante sua história, a organização teve papel importante na construção de diretrizes e princípios de regulação do trabalho, defesa do trabalho decente e da liberdade sindical (Grillo; Gondim, 2021). É composta por uma comissão tripartite, ou seja, com presença de representantes dos diferentes Estados que a constroem, patrões e trabalhadores, com objetivo de garantir diálogo e construção de consensos. Nesse sentido, vemos que as avaliações e diretrizes da OIT precisam ser entendidas dentro das contradições que constituem o organismo, expressando os embates entre as duas classes fundamentais burguesia e trabalhadores ao mesmo tempo que a aplicação das diretrizes, por mais progressistas que sejam, não significam a expressão plena dos interesses dos trabalhadores, muito menos que serão efetivamente construídas nas realidades nacionais e específicas. Para a análise das proposições da OIT tomamos como referência Le Goff (1990), ao entender que o fazer histórico pode estar baseado tanto em documentos escritos, quanto pelo não escrito, pelas relações materiais, pelas técnicas, pela arte etc. A partir dessa compreensão o autor propõe que a análise do documento não deve estar afastada do todo em que foi produzido; deve-se analisar as condições de sua produção, os objetivos e determinantes que o constituíram, quais os interesses e intencionalidades que carrega. Tomando o documento como elemento real, Evangelista e Shiroma (2019) entendem que é possível compreendê-lo se formos capazes “de teorizar, de apanhá-los conceitualmente, para alcançar sua concretude” (p. 86). As fontes, os documentos, possuem objetividade, estão inscritos na realidade concreta, no entanto sua essência não está dada imediatamente; as determinações históricas precisam ser apreendidas no percurso da pesquisa, a fim de superar a aparência. Tal exercício pode ser realizado pela mediação da teoria. Na continuidade deste artigo apresentamos uma seção dedicada à delimitação conceitual do tema de juventude e trabalho no capitalismo atual, buscando mediações teórico-práticas que sustentem a análise dos documentos a posteriori. Em seguida apresentamos os documentos e sua análise em conjunto com 4
discussões e avaliações de suas proposições. Finalizando com breves considerações finais. Juventude e Trabalho no Capitalismo Partimos da compreensão que a juventude é um período de vida bastante significativo no ponto de vista do desenvolvimento humano. Diversos elementos foram utilizados ao longo da história para definir e caracterizar as dinâmicas próprias da juventude, como geração, aspectos biológicos de maturação física e sexual, escolarização, subculturas juvenis entre outros (Groppo, 2017). Comumente define-se juventude apenas pelo critério etário agrupando sujeitos de 15 à 29 anos como é o caso da OIT nos documentos analisados ou ainda com variações mais estritas dos 15 aos 24 anos, ou dos 18 aos 24 anos. Nesses casos, a partir de um viés unicamente quantitativo e etário agrupam-se sujeitos que compõem determinada coorte, que acessam serviços e políticas públicas específicas, que se relacionam em certos espaços etc. De acordo com Abrantes e Bulhões (2016) um elemento central na experiência de vida jovem é a relação que contrai com o mundo do trabalho, determinado pela sua posição social na produção da vida sua classe social e que desembocará em experiências distintas para jovens de classes distintas. Visto dessa forma, recorremos à síntese feita por Pais (1990) de que a juventude expressa uma situação de unidade e diversidade. certa unidade na experiência, visto estarem determinados todos por um mesmo contexto e conjuntura social; no entanto, a forma e desdobramentos desse contexto se expressarão de forma diversa, a partir das condições de classe e posição social na produção da vida. Não descartamos, contudo, que o aspecto geracional e etário sejam traços presentes na formação do que entendemos por juventude, tendo em vista que pessoas de uma mesma idade compartilham uma mesma conjuntura social e econômica, ainda que em classes sociais distintas. Marcada por uma institucionalização e cronologização da vida (Groppo, 2017), a sociedade capitalista conforma espaços e momentos específicos que agrupam sujeitos de uma mesma idade, como por exemplo o processo educacional, a entrada no mercado de trabalho, o acesso a determinadas políticas sociais, a possibilidade de 5
aposentadoria etc. Vemos, então, que a ideia de geração compõe parte das determinações da juventude. No entanto, destacamos a importância de localizar nas classes sociais a dinâmica fundamental que determina a vivência do período juvenil. A partir da posição ocupada em relação à propriedade privada dos meios de produção que se desenvolvem as potencialidades ou entraves que agem sobre o desenvolvimento humano. Olhando para o jovem, é a partir da sua condição de classe que se estrutura qual a qualidade do processo educacional que terá acesso, qual a possibilidade de se manter afastado ou não da venda direta da força de trabalho, qual tipo de sociabilidade e expressão comportamental será aceita pelo restante da sociedade. Nesse sentido, a condição de classe determina a própria vivência geracional. Analisando os distintos momentos e teorias que se debruçaram sobre a condição juvenil (Sundin, 2023; Groppo, 2017), destacamos três principais aspectos que mediam a relação entre juventude e sociedade. Um primeiro aspecto diz respeito à extensão e massificação do período escolar no capitalismo, agrupando sujeitos de uma idade em um espaço social em comum. A segunda marca está relacionada com o trabalho, mais especificamente a entrada na venda direta da força de trabalho, que caracteriza parte significativa do período de vida jovem, ainda que as determinações de classe influenciam o momento e qualidade dessa venda. Por último, ressaltamos a construção de espaços de socialização enquanto grupo específico, marca também presente em diversas teorias e que representa um momento bastante potencial do desenvolvimento humano, contribuindo para a definição da juventude enquanto período de vida distinto. Tal grupalização tem um papel tanto do ponto de vista do desenvolvimento psíquico, abordado por Abrantes e Bulhões (2016) e Pandita-Pereira (2019), como na conformação de um grupo social específico, visto nos diferentes períodos da sociologia da juventude (Groppo, 2017). É através da formação de grupos específicos, determinados por situações sociais compartilhadas, que se expressa também a diversidade nas formas de vivência do que é ser jovem na sociedade atual (Abramo, 2005). Olhando agora para os dados a respeito da situação da juventude no mundo, e particularmente no Brasil, notamos uma situação de intensa precariedade e instabilidade da vida juvenil. Segundo a OIT (2020), a população jovem (15 à 29 anos) no mundo até a data de publicação representava 1,3 bilhões de pessoas. 6
Desse total, apenas 430 milhões estavam empregados, sendo que cerca de 70% em empregos informais. É significativo o alto número de jovens considerados nem-nem 5 , agrupando uma parcela de 267 milhões de pessoas globalmente. Em termos de comparação, uma população de jovens no mundo maior que o total da população brasileira, que não está empregada tampouco estudando. Os dados brasileiros não fogem à regra. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), que congrega os períodos de outubro a dezembro do ano de 2023, realizado pelo IBGE, a população em idade para trabalhar (14 anos ou mais) representa 81,1% da população brasileira 175,352 milhões de pessoas. Este dado é estratificado em agrupamentos por idade, assim composto: de 14 a 17 anos 6,8%; dos 18 aos 24 anos 12,6%; dos 25 aos 39 anos 29,1%; 40 aos 59 anos 32,0%; 60 anos ou mais 19,4%. Do total de pessoas em idade para trabalhar, apenas 100,985 milhões estão em algum emprego (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2024). Em relação à situação de informalidade no emprego, vemos que: do total de jovens de 14 à 17 anos que estão ocupados, 76,2% estão na informalidade, ou seja, mais de dois terços do grupo; dos jovens de 18 à 24 anos ocupados, 41,9% estão em empregos informais (IBGE, 2024). Vemos, portanto, que a vivência da informalidade no emprego da juventude é realidade também sentida no contexto brasileiro em alto índice. Se observarmos o total de pessoas que estão à procura de emprego, com condições de assumir, mas que não o obtém compõem a taxa de desocupação 35,7% estão na faixa de 14 a 24 anos (7,0% têm de 14 a 17 anos, e 28,7% de 18 a 24 anos) (IBGE, 2024). Ou seja, mais de um terço das pessoas desocupadas são jovens, ao passo que esse grupo representa apenas 19,4% da população brasileira em idade para trabalhar. Outro dado obtido através da PNAD Contínua que representa um pouco a situação dos jovens é em relação aos recebimentos mensais. De acordo com dados do último trimestre de 2023, o rendimento médio real efetivamente recebido 5 No decorrer deste trabalho utilizamos o termo jovens considerados nem-nem, como exposto por Bernardim e Silva (2017). Entendemos que a dinâmica de estar fora do emprego e da educação não significa que o jovem não faz nada, pelo contrário, inúmeras atividades realizadas que muitas vezes escamoteiam a realização do trabalho, como por exemplo o trabalho doméstico, cuidados de crianças e idosos etc. O uso do termo “considerados” busca também explicitar que a permanência nessa posição não é uma dinâmica inerente ao jovem, um movimento individual, mas sim um processo social que objetivamente coloca a juventude na vivência de situações precárias. 7
somando todos os trabalhos que um indivíduo possa vir a ter foi de R$ 3.134. Enquanto para a população entre 25 à 39 anos o rendimento foi de R$ 3.138, para os jovens de 18 à 24 anos foi R$1.764 (IBGE, 2024). Esses dados não representam ainda as diferenças entre os diferentes setores sociais e tipos de empregos, mas evidenciam que desemprego, informalidade e baixos salários impactam mais fortemente os jovens na sociedade brasileira. Notamos que o trabalho é central para boa parte dos jovens, seja no contexto brasileiro, mas também a nível mundial. Da mesma forma como a vivência de situações precárias no emprego como a informalidade assim como a falta dele (desemprego e desocupação) compõe a situação social dos jovens hoje em dia. Processos que parecem determinar a grande visibilidade que essa coorte geracional adquire na história, mas em especial nos anos recentes, com uma série de discursos e políticas públicas voltadas ao setor, visando a coesão e controle social da juventude (Groppo, 2017). No que se refere à educação, internacionalmente, de acordo com a OIT (2020), dos 1,3 bilhões de jovens no mundo, cerca de 500 milhões estão na educação formal. No contexto brasileiro Bernardim e Silva (2017) apontam o processo de aumento das matrículas de adolescentes e jovens no ensino médio, última fase da educação básica obrigatória, dos anos de 1990 até os dias atuais. No entanto, contradições importantes no que diz respeito à qualidade educacional ofertada e ainda às condições ofertadas para permanência escolar. Nos anos recentes no contexto brasileiro temos visto a implementação de uma reforma curricular e organizacional do Ensino Médio, que na defesa de uma lógica empresarial da educação (Freitas, 2018) esvazia os conteúdos pela retirada de disciplinas da grade obrigatória e fragmenta a oferta educacional em 5 áreas do conhecimento sem a garantia de que os estudantes possam realmente optar pela área que se interessarem pois não necessariamente as escolas disponibilizarão as cinco áreas. Em conjunto de tais mudanças está também o vínculo estreito entre escola e empresa, com a forte participação empresarial na organização da proposta de reforma, e também no próprio currículo, com a relação estreita entre as demandas do mercado e a oferta curricular. Olhando para o desenvolvimento humano partimos da ideia de situação social de desenvolvimento elaborada pela psicologia histórico-cultural, na qual devemos compreender o processo de humanização a partir de “uma combinação especial 8
entre os processos internos de desenvolvimento gestadas pelos sujeitos em seu desenvolvimento anterior e as demandas sociais típicas feitas a eles em cada período da vida” (Pandita-Pereira, 2019, p. 7). Ou seja, o desenvolvimento ocorre a partir daquilo que o sujeito internalizou e transformou em capacidade psíquica e aquilo que o sujeito é demandado e realiza pelas mediações fornecidas pelas relações sociais. Como vimos com os dados expostos acima, a sociedade capitalista exige dos jovens a entrada precoce no mercado de trabalho, seja pela dualidade estrutural que se manifesta na educação destinada à juventude oriunda da classe trabalhadora e camadas mais pobres mediante organização curricular pragmática, tecnicista, centrada em práticas e destituída dos fundamentos científico-tecnológicos e ético-políticos, seja pela não oferta de meios de subsistência que não estejam ligados com um emprego e obtenção de um salário, ou seja, não fornecem políticas públicas que possibilitem a existência juvenil afastada do mercado de trabalho. De acordo com Marx (2013), o trabalho é acima de tudo o processo entre ser humano e natureza, em que o primeiro modifica e reconstrói a última a fim de garantir as condições de sua existência no mundo. A mediação entre ser humano e natureza, realizada pelo trabalho, com a ação da totalidade do indivíduo, age sobre a realidade dada naturalmente para modificá-la a fim de obter as resoluções das necessidades que o ser humano desenvolve historicamente. Na medida em que altera a natureza, o próprio ser humano também se transforma nessa relação. Contudo, o trabalho enquanto atividade exercida pelo ser humano possui uma característica dupla no capitalismo: por um lado é uma atividade ontológica (Lukács, 2013) que fundamenta e impulsiona o desenvolvimento da humanidade, sendo essencial para o desenvolvimento da linguagem e da consciência; por outro lado, nas condições impostas pela sociedade capitalista, o trabalho se torna também uma atividade alienada dos sujeitos que a exercem, afastando o indivíduo do ato de trabalho em si, do produto do trabalho, do ser genérico humano e dos demais seres humanos (Marx, 2015). O caráter duplo do trabalho se expressa, no capitalismo hoje, em um movimento de intensa degradação do labor (Antunes, 2020), em que um suposto fim do trabalho humano assalariado pelo uso de novas tecnologias lugar ao seu contrário a intensificação do trabalho e novas formas de contratação mais precárias e instáveis. 9
mudanças significativas na atualidade, expressas em maiores níveis de degradação do trabalho, terceirização e informalidade. mudanças também na dinâmica de organização da produção capitalista, que adquire novas possibilidades de integração mundial da produção de mercadorias, assim como de organização do trabalho (Antunes, 2020). Uma expressão desse processo é por exemplo o uso de plataformas digitais, que ganham maior notoriedade com a Uber, mas estão presentes em diversos ramos produtivos. Com efeito, a plataformização do trabalho e do consumo em diversos ramos de atividade (empresas de transporte por aplicativo, de varejo online, de serviços de streaming etc.) tem relação direta com a ampliação da produção de mais valia para as empresas e para os proprietários destas plataformas. Entretanto, apesar do destaque às plataformas digitais, é necessário compreender que o movimento de crescente informalidade e terceirização antecede o advento das plataformas digitais de trabalho e tem marcado novas formas de produção e comércio de produtos e serviços (Abílio, 2020a). Para além do campo dos serviços, é possível perceber a lógica algorítmica e a utilização de recursos digitais atrelados à crescente terceirização em diversas esferas da produção, tais como na indústria de transformação, no transporte de mercadorias, entre outros. É sobre essa base, portanto, que acontece a inserção laboral da juventude. Nesse sentido, ao mesmo tempo que o capitalismo exige a entrada no mercado de trabalho, organiza sua produção de modo que os empregos disponíveis para os jovens sejam em grande medida obtidos sob condições precárias e instáveis, favorecendo com que vivam a instabilidade com menores salários, longas jornadas, pouca segurança e proteção trabalhista etc. Em conjunto com essas condições, os jovens são instados a conciliarem trabalho e estudo, visto a necessidade da venda da força de trabalho para manutenção de si e da família e o reforço a uma lógica da educação como redentora da superação da desigualdade social (Frigotto, 1993). De tal modo, compreendemos que o capitalismo demanda dos jovens a entrada no mercado de trabalho sob condições precárias, alienantes e degradantes. Ou seja, a sociedade exige a venda da força de trabalho, mas sem fornecer as condições para que isso potencialize o desenvolvimento humano. Do contrário, notamos que tais condições de trabalho e vida caminham na degradação do desenvolvimento, pelo reforço a uma lógica individualizante e alienadora dos processos sociais. 10
Juventude e Trabalho para OIT: universalização da precariedade e otimismo da exploração Os oito documentos da OIT selecionados para análise se colocam em uma linha histórica que vai do ano de 2008 até 2020, os quais são: “Tendencias Mundiales del Empleo Juvenil 2008”; “Tendencias Mundiales del Empleo Juvenil 2010 - Edición especial sobre las repercusiones de la crisis económica mundial en los jóvenes”; “Global employment trends for youth 2012”; “Tendencias Mundiales del Empleo Juvenil 2013 Una generación em peligro”; “Global employment trends for youth 2015 Scaling up investments in decent jobs for youth”; “Perspectivas sociales y del empleo en el mundo 2016: Tendencias del empleo juvenil”; “Global employment trends for youth 2017 Paths to a better working future”; “Global employment trends for youth 2020 thecnology and the future of jobs” . Conforme citado na introdução, estes documentos compõem a publicação TME e se direcionam especificamente para a juventude. Vimos que além dessas publicações é possível encontrar alguns outros artigos e textos da OIT sobre o tema no período estudado, mas se direcionando especificamente a uma região ou abordando um aspecto apenas como, por exemplo, jovens considerados nem-nem. Nesse sentido, compreendendo os limites de nossa pesquisa, optamos por selecionar apenas aqueles documentos que compõem as publicações TME, por tratar o tema de forma mais ampla, apontando os dados estatísticos e achados principais que a organização obteve. Além disso, percebemos nesses materiais a expressão de algumas das concepções da OIT sobre juventude e trabalho. A seleção do período de análise decorreu da avaliação da necessidade de obter um mínimo do panorama histórico em que se agrupam as proposições do organismo internacional a respeito da temática. Vimos especialmente a necessidade de observar as possíveis transformações nos discursos em um contexto de estabelecimento da crise econômica de 2008/09 e os impactos mundiais que foram sentidos nos anos seguintes. A partir disso, optamos pelo estudo das publicações que vão do ano de 2008 até 2020 garantido ao menos uma década e mudanças conjunturais significativas. Iniciamos tecendo breves considerações sobre a forma de apresentação dos documentos, pois entendemos que forma e conteúdo caminham conjuntamente e os traços estéticos e a apresentação das ideias constroem também o próprio conteúdo 11
do texto. Vemos que a OIT se utiliza de uma forma de apresentação da situação e perspectivas para os jovens bastante similar entre os documentos. A organização traça um panorama geral sobre as condições de vida e participação juvenil no mercado de trabalho, destacando os principais dados e problemáticas que norteiam a análise. Inicialmente pelo uso de inúmeros dados quantitativos, que geram uma base sob a qual a organização argumenta qualitativamente como nas argumentações sobre os impactos do desemprego na vida dos jovens, dificuldades da transição escola-trabalho etc. Somado a esse movimento, os documentos reúnem situações e experiências particulares de alguns países descritas de forma rápida e superficial, sem de fato trabalhar os elementos específicos e gerais que determinam cada situação. Utilizam-nas ora para apresentar uma situação extrema de certo dado como por exemplo o desemprego em algum local ora para a apresentação de determinada política ou iniciativas que foram aplicadas, geralmente “bem-sucedidas”. No decorrer do texto vão se firmando algumas definições gerais e perspectivas construídas na somatória de dados e situações particulares. Essas definições culminam no grande quadro, geralmente apresentado nos últimos capítulos que são finalizados pela elaboração de direcionamentos de ações. Em síntese, nos documentos vemos uma estrutura que pode ser resumida em: apresentação geral do quadro, com inúmeros dados quantitativos e algumas avaliações sobre eles; aprofundamento em dados específicos, que se alteram em relação à temática de cada informe por exemplo, em 2012 avaliou-se o cenário pós crise econômica; em 2020 os impactos das alterações tecnológicas para o trabalho dos jovens em conjunto com exemplos e situações limites; finalizam em proposição de políticas e perspectivas. A estrutura dos documentos referida nos remete ao debate sobre a estética textual das publicações de organizações internacionais trazidas por Lima Filho (2002). O autor aponta que a justaposição de dois textos, tendo um como principal na forma discursiva e analítica e um secundário, na forma de quadros e descrições de experiências, representam uma escolha discursiva de base historiográfica pós-moderna “em que a narrativa histórico-temporal cede lugar à dimensão estético-espacial” (Lima Filho, 2002, p. 62). O contexto histórico-social é fragmentado e recomposto por uma nova historiografia espacial. 12
A utilização exemplar de experiências singulares de cada cultura e formação social ou Estado nacional, na conformação de uma lógica conceptual pré-ordenada, guarda relação com uma pretensa intencionalidade de conferir estatuto universal e científico às recomendações dos textos, as quais deveriam ser seguidas à risca pelas nações que desejassem lograr êxitos semelhantes às experiências citadas (LIMA FILHO, 2002, p. 62). Vemos que essa estratégia argumentativa constrói uma visão a-histórica, mecânica, parcial e burguesa da realidade. Primeiramente a-histórica pelo raso aprofundamento nas temáticas e dados utilizados. Em inúmeros momentos a argumentação é feita pelos dados quantitativos, observados um em sequência do outro, sem entender sua origem e com pouco aprofundamento histórico. É mecânica pois produz as argumentações na justaposição de situações e problemáticas sem levar em consideração as particularidades de cada uma, construindo uma ideia de direcionamentos e políticas universais, que podem ser aplicadas em distintos espaços sociais. É parcial na medida em que amarra o quadro analítico de forma a apresentar como fundamento das problemáticas meras disfuncionalidades localizadas da organização capitalista. Apresenta, ainda, apenas as saídas específicas que envolvem a reformulação de algumas políticas, a regulamentação de certo espaço; no geral são saídas a serem aplicadas por entidades governamentais ou empresariais. E por fim, é burguesa por defender a manutenção da estabilidade econômico-política do capital, mesmo que a peso de maior precarização das condições de vida e trabalho da classe trabalhadora. Nos documentos analisados aparecem distintas qualificações sobre o que é ser jovem. No entanto, podemos perceber que um elemento em comum: a compreensão da juventude como transição para mundo do trabalho, como visto, por exemplo, na publicação de 2008 “existe um denominador comum que consiste em ingressar no mercado de trabalho, seja para exercer uma função ou para procurá-la. O emprego decente e produtivo é, sem dúvida, o que os jovens buscam e pelo qual lutam.” (OIT, 2008, p. 1, tradução nossa) 6 . É essa concepção que guia as avaliações em relação à juventude, observando sempre que é na conquista de um emprego, ou na falta dele, que se subsume a experiência juvenil, deixando de lado características importantes do período de vida, como a construção de grupos coetâneos, a formação da 6 “existe un denominador común que consiste en el ingreso al mercado del trabajo, sea para desempeñar un trabajo o para buscarlo. Un empleo decente y productivo es sin duda alguna lo que buscan con ahínco y por lo que luchan los jóvenes.” 13
personalidade e construção de uma visão de mundo (Abrantes; Bulhões, 2016). O olhar sobre a juventude a partir dela mesma, ou seja, olhar as características específicas que constroem o grupo e não apenas a relação do jovem com os adultos, como argumenta Abramo (2005), é um processo ausente nas publicações da OIT. Na publicação de 2008, assim como nas anteriores (2004 e 2006) apontadas por Rivera-Aguilera (2018), os problemas enfrentados pela juventude são bastante dicotomizados entre os países do centro e da periferia capitalista na concepção da OIT a dicotomia está entre países ditos “desenvolvidos” e “em desenvolvimento” 7 . Problemas como o desemprego e pobreza mais restritos às economias “em desenvolvimento” e nos poucos países “desenvolvidos” problemas mais ligados à qualidade dos empregos obtidos. As publicações seguintes, marcadamente OIT (2010; 2012; 2013; 2015), avaliando os impactos da crise econômica de 2008/09, passam a demarcar uma universalização das condições de precariedade na vida juvenil, especialmente em relação às condições de trabalho e aumento do desemprego sentidas também nos países ditos “desenvolvidos”. Como visto em OIT (2010), os impactos da crise econômica nos jovens podem acarretar na construção de uma verdadeira geração perdida “Ultimamente, aliás, tem havido a preocupação de que a crise deixe como legado uma ‘geração perdida’, formada por jovens totalmente desconectados do mercado de trabalho.” (p. 1, tradução nossa) 8 Outro exemplo, agora em OIT (2013), aponta que O enfraquecimento da recuperação global em 2012 e 2013 exacerbou a crise do emprego jovem, tornando o acesso ao emprego ainda mais difícil para muitos desafortunados jovens à procura de 8 “Últimamente, además, preocupa que la crisis deje como legado una “generación perdida”, integrada por jóvenes que se desvinculan por completo del mercado del trabajo.” 7 De acordo com Sousa (2020), entendemos que a divisão dicotômica entre desenvolvidos e não desenvolvidos pressupõe uma relação mecânica e eurocentrada. Aquilo que é desenvolvido é tomado pelo parâmetro do desenvolvimento político-econômico europeu e norte-americano, defendido como caminho a ser seguido. De outro modo, compreendemos a sociedade capitalista atual como um sistema produtivo e social hegemônico no mundo todo, que impõe, necessariamente, uma divisão internacional do trabalho a nível mundial, de forma com que alguns países detenham a maior parte das riquezas, da propriedade privada, do domínio da ciência e tecnologia, enquanto os demais países sigam subordinadamente integrados, em posição inferior no que se refere à produção econômica, acúmulo de riquezas, aprimoramento cientifico e tecnológico etc. De tal modo, discordamos da visão dicotômica e mecânica que a OIT se utiliza nas publicações aqui estudadas, pois fazem parte de uma visão de mundo burguesa que devemos nos opor e superar. Por isso ao nos referirmos sobre as posições expressas pela OIT utilizaremos os termos “desenvolvidos” e “em desenvolvimento” entre aspas. 14
emprego. E está dificultando tanto que muitos estão desistindo de procurar. A prolongada crise econômica também está forçando a atual geração de jovens a ser menos seletiva quanto aos empregos que estão dispostos a aceitar, uma tendência que era evidente antes da crise. Está a aumentar o número de jovens que aceitam empregos a tempo parcial ou que se limitam a empregos temporários. Empregos seguros, uma vez que a norma para as gerações anteriores pelo menos nas economias avançadas tornaram-se mais difíceis de encontrar para os jovens de hoje. (OIT, 2013, p. 1, tradução nossa) 9 . O jovem, conforme argumentam na publicação, passa por sérias dificuldades na construção de sua autonomia através da entrada no mercado de trabalho, tendo em vista a precariedade de condições de trabalho a que estão expostos. Nesse sentido, a OIT deixa transparecer que as condições vividas demandam com que os jovens sejam menos seletivos em relação ao trabalho, que aceitem com menor grau de crítica a piora das condições de vida e trabalho, que aceitem o trabalho informal e temporário (OIT, 2013). A linha geral é de que os jovens devem se adaptar ao contexto precário vivido. Tal maneira de construção argumentativa, em nossa análise, parece demonstrar um viés naturalizante e individualizante da condição precária do ser jovem. Cabe-se apenas aceitar que as coisas estão do modo que estão; cabe aceitar as condições visto que refletem uma falta de sorte da geração atual (jovens desafortunados) e não porque são fruto de uma determinada forma de organização da produção em contexto pós-crise. De forma geral, vemos que a OIT faz um movimento de constatar uma universalização das condições de precariedade da vida dos jovens, traço reforçado pelo pessimismo em relação às perspectivas de futuro desse setor. A maior precariedade, que em 2008 era definidor apenas nas economias ditas “em desenvolvimento”, se generalizam também para o centro do sistema capitalista a partir da crise econômica de 2008/09 maior incidência de fatores como o desemprego, aumento da informalização, aumento do número de jovens que se afastam do mercado de trabalho, aumento no número de jovens considerados 9 “El debilitamiento de la recuperación mundial en 2012 y 2013 ha agravado la crisis del empleo juvenil, dificultando aún más el acceso al empleo para muchos desafortunados jóvenes que buscan trabajo. Y está dificultándolo hasta tal punto que muchos están renunciando a seguir buscando. La prolongada crisis económica también obliga a la generación actual de jóvenes a ser menos selectivos con los empleos que están dispuestos a aceptar, una tendencia que ya era evidente antes de la crisis. El número de jóvenes que está aceptando trabajos a tiempo parcial o que se encuentra confinado en empleos temporales es cada vez mayor. Los empleos seguros, que en una época eran lo habitual para generaciones anteriores por lo menos en las economías avanzadas han pasado a ser más difíciles de conseguir para los jóvenes de hoy.” 15
nem-nem etc. Notamos, nesse sentido um movimento que temos chamado de periferização da concepção de juventude , ou seja, os traços da precariedade de condições de vida e trabalho, que marcavam a situação vivida pelos jovens nas economias periféricas, passam agora a ser traço definidor também no centro do sistema (Sundin, 2023). Sousa (2020) aponta, a partir da teoria marxista, que uma das formas de expressão do desenvolvimento capitalista é o aumento do volume de capital constante (que sinteticamente podemos chamar de meios de produção, como máquinas, estrutura física etc.) em comparação com o capital variável (força de trabalho). Tal dinâmica implica na diminuição dos postos de trabalho e uma tendência à ampliação estrutural do contingente de desempregados e subempregados (superpopulação relativa). Esse processo afeta de formas distintas as economias de centro e da periferia capitalista. Partindo das ideias de Aníbal Quijano e José Nun, Sousa (2020) nota que os autores buscaram identificar a existência dessa superpopulação relativa nos países de capitalismo dependente. Nesses países predomina uma heterogeneidade estrutural da economia, com a difusão do progresso técnico importado dos países centrais em poucos setores econômicos, em geral ligados à produção para exportação e que absorve uma pequena parcela da força de trabalho. O maior contingente de trabalhadores é inserido em atividades de baixa produtividade e remuneração, com grande número de trabalhadores precários e pauperizados. Nesse sentido, o mercado de trabalho se constitui com características precárias, com alto número de subempregos, trabalho por conta própria, desemprego etc.; isso é o que conforma a especificidade da superpopulação relativa em economias periféricas e dependentes. Com isso podemos notar a raiz das ideias apresentadas pela OIT ao tratar das diferenças entre países “desenvolvidos” e “em desenvolvimento”, em que nos últimos é onde predominam formas de trabalho precário e instável durante toda a análise. Conforme interpretado nos documentos analisados, as mudanças que acontecem nos países de centro são localizadas como reflexo da crise econômica e se refletem em novas formas de precarização do trabalho processos que eram a norma nos países dependentes. Vemos que a OIT não trata da raiz do problema, fazendo a análise em termos abstratos ou meramente aparentes, em que as diferenças entre países de centro e periferia no que se refere às condições de venda 16
da força de trabalho, que se coloca na estrutura do sistema social capitalista, é tratada apenas como incapacidade de políticas públicas específicas e localizadas, ou então devido à maior qualificação de trabalhadores dos ditos países “desenvolvidos” (OIT, 2017; 2020). A universalização da condição de precariedade no trabalho e vida dos jovens é em grande medida determinada pelas novas formas de trabalho decorrente do maior uso das tecnologias de informação e comunicação (TICs). Percebemos que os documentos (OIT, 2017; OIT, 2020) as caracterizam em dois aspectos: um primeiro aspecto é o elemento negativo, no sentido da precariedade de condições de trabalho, menores salários etc.; o segundo aspecto diz respeito à positividade de inserção de novos trabalhadores no mercado global, possibilidade de trabalhar para uma empresa mesmo não estando em seu país de residência, de usar o tempo de descanso para adquirir outra atividade remunerada e assim aumentar a renda pessoal e familiar etc. A OIT olha então para o fenômeno da plataformização do trabalho ou trabalho digital ou seja, a contratação, organização e execução do trabalho mediado pelas plataformas digitais nessa duplicidade. Afirma ainda que essas condições passam a ser expressas no mundo como um todo, não mais restrita aos países menos desenvolvidos (OIT, 2020). Ainda que de forma dúplice, vemos que o movimento discursivo percorrido pela OIT passou do pessimismo no início da década de 2010 em relação às perspectivas de trabalho para os jovens ao maior otimismo no final dos anos estudados (OIT, 2017; 2020) com a ampliação do uso de novas tecnologias para organização do trabalho no capitalismo. Ainda que em condições de trabalho precárias, baixos salários, defasagem nas qualificações, o trabalho digital é fonte de esperanças da organização ao perceber o rápido vínculo entre essas formas trabalhistas e o engajamento dos jovens. Parte do otimismo se baseia na possibilidade da juventude se utilizar dessas formas de trabalho como uma primeira experiência no mercado de trabalho, possibilidade para adquirirem alguma renda e ainda pelo potencial de alinhamento entre trabalho e estudo, como visto na passagem a seguir: Formas atípicas de emprego, quando devidamente regulamentadas, têm o potencial de fornecer trabalho decente. Horários mais flexíveis podem melhorar o equilíbrio entre vida pessoal e profissional e oferecer maior independência e autoconfiança. Para alguns, especialmente trabalhadores mais jovens baseados em países de 17
baixa e média renda, as oportunidades de ganhos oferecidas pelo crowdwork podem ser atraentes, dada a relativa escassez de fontes alternativas de emprego e renda estáveis. (OIT, 2017, p. 70, tradução nossa) 10 . No entanto, o trabalho digital em grande medida se caracteriza pela instabilidade, informalidade e precariedade. De acordo com Abílio (2020b), o trabalho plataformizado possui um traço marcante que é o amadorismo, na qual mesmo sendo um trabalho, não confere identidade profissional ao sujeito que o realiza pela perda de mediações públicas e regulações estatais que caracterizariam a atividade como profissão. O trabalho se torna um bico; o aparente caráter provisório se torna permanente pela indisponibilidade de obtenção de uma ocupação formalizada. Em vista disso nos questionamos sobre o otimismo expresso pela OIT em relação ao trabalho digital para a juventude, visto que tais ocupações carregam os traços degradantes do trabalho no capitalismo, assolado pela precariedade e até mesmo amadorismo. O conjunto de alterações no processo produtivo, sentidas pela classe trabalhadora através de formas de contratação terceirizada, pejotizada ou pelo trabalho em plataformas, produz uma série de impactos para o sujeito trabalhador. Com salários mais baixos e jornadas mais longas, falta de acesso à direitos trabalhistas etc., os trabalhadores tem que se engajar em mais de uma ocupação para compor a fração da remuneração mensal que dificilmente atinja uma renda considerada adequada. Dentro disso, “Os jovens que se inserem no mercado de trabalho nesse cenário precisarão construir estratégias para lidar com excesso de trabalho, fragilidade de vínculos e possibilidade de não construir uma carreira fundada em uma atividade exclusiva.” (Sousa; Pochmann; Bonone, 2021, p. 7) É preciso compreender que as condições e impactos da plataformização expressam a generalização de uma situação instável, precária e contraditória, presente na periferia capitalista de forma constante (Abílio, 2020a). As novas expressões e nomes dados ao processo, como gig economy, economia do compartilhamento etc., não são mais do que a tentativa de explicação desse processo em curso, que se generaliza. 10 “Non-standard forms of employment, when appropriately regulated, have the potential to provide decent work. More flexible hours can improve the work–life balance and offer greater independence and self-reliance. For some, especially younger workers based in low- and middle-income countries, the earnings opportunities offered by crowd work may be attractive, given the relative paucity of alternative sources of stable employment and income.” 18
O elemento novo representa a flexibilização generalizada do trabalho mundialmente. Tal forma de trabalho não está mais restrita à trabalhadores migrantes, negros, LGBTs, ou mesmo à trabalhadores com baixa qualificação; é agora a regra geral e tendência de desenvolvimento do capitalismo. Vemos, portanto, que a forma que a OIT caracteriza e defende as mudanças no trabalho em curso hoje no capitalismo expressa a naturalização e determinismo dessas mudanças, assumindo como processos necessários e potenciais para o aumento da produtividade e bem-estar social, ainda que gerem movimentos contraditórios, em especial nas condições de vida e trabalho dos trabalhadores. As novas dinâmicas de trabalho, estabelecidas pelo trabalho digital, rumam na direção da maior precarização, informalidade e piora drástica da qualidade de vida dos trabalhadores, atingindo os trabalhadores jovens em especial. Considerações finais Concluímos que os documentos aqui estudados, publicados pela Organização Internacional do Trabalho entre os anos de 2008-2020, apresentam uma riqueza de dados e elementos quantitativos sobre a situação da juventude no mundo, se constituindo como fonte importante para estudos a respeito do período de vida delimitado. Contudo, notamos que a organização internacional apresenta uma visão limitada de juventude, localizando a característica específica do período de vida apenas na transição para o mercado de trabalho. Sobre a relação entre juventude e trabalho avaliamos que a organização realiza dois saltos analíticos no decorrer das publicações. Na primeira publicação aqui analisada (OIT, 2008) constrói-se um quadro dicotômico entre os problemas vividos entre os jovens das ditas economias “desenvolvidas” e “em desenvolvimento”. No entanto, a partir de 2010 ocorre um primeiro salto, em nossa análise, que se com a universalização das condições precárias aos jovens a partir do cenário de crise econômica como dito durante o texto, uma possível periferização da concepção de juventude . Esse primeiro salto se expressa em uma visão negativa das perspectivas futuras pela generalização da precariedade de vida e trabalho dos jovens no mundo, mesmo nos países tidos como “desenvolvidos”. Ainda que discursivamente a OIT tente expressar uma visão otimista, os dados demonstram a permanência das 19
dificuldades que os jovens terão que enfrentar nos anos que iniciam a década de 2010. Esse movimento se inicia na publicação de 2010, indo até a publicação de 2015, onde apresentam um viés otimista sobre os jovens, mas ainda em um cenário em que as possíveis saídas não estão colocadas. A visão derrotista não nos parece estar apenas na conceituação de juventude e na elaboração dos dados, mas se expressa também na falta de clareza das respostas que são oferecidas apenas ideias gerais e abstratas de direcionamentos que as políticas locais podem se basear; individualização da raiz da precariedade de vida dos jovens, localizando na falta de engajamento na educação etc. Em 2016 vemos o começo de uma mudança na argumentação, que poderíamos definir como um segundo salto analítico, expressado pela transformação tecnológica que se acentua no sistema capitalista. O segundo salto encontra-se na transição para um discurso mais otimista, trazido com a aplicação de novas tecnologias na produção mundial. Na publicação de 2017 que ganha maior corpo tal avaliação, culminando em 2020 como tema central do informe. Ainda que o cenário, representado nos dados sobre participação dos jovens no mercado de trabalho, mantenha-se problemático, notamos um vislumbre otimista na argumentação da OIT, determinada pela esperança que as mudanças tecnológicas favorecerão aberturas de postos de trabalho e maior desenvolvimento econômico ainda que com as contradições relacionadas às piores condições de trabalho, perda da capacidade educacional de qualificação para o trabalho etc. De certa forma é nessa mudança discursiva que se expressa o vínculo direto entre concepção de juventude e trabalho. Notamos a clara concepção utilitarista e economicista de juventude, em que o grupo geracional é atrelado unicamente ao seu papel de avanço econômico. Somada com uma concepção de trabalho apenas no seu sentido negativo, de alienação, em que as condições precárias de trabalho são reforçadas e mantidas, pois seriam as únicas formas de acesso dos jovens ao mercado de trabalho, ainda que acarretando contradições de longo prazo para o indivíduo e sociedade. Como apontam Evangelista e Shiroma (2019), um dos grandes desafios postos para análises documentais é o de “explicitar o que o discurso dominante esconde sob sua aparência de verdade” (p. 90). Não cabe apenas entender o significado de determinado discurso, mas sim explicar a que veio, quais objetivos procura alcançar na realidade concreta. 20
Nesse sentido, vemos que os objetivos da OIT, nas edições TME voltadas à juventude, vão no sentido de reforçar a inserção aligeirada dos jovens no mercado de trabalho, sob moldes alienantes e precários. Não cabe a formação de qualidade e potencialização do desenvolvimento humano, mas apenas a inserção na venda direta da força de trabalho, na tentativa de que haja alguma forma de minimizar as contradições sociais que podem gerar revolta por meio de políticas públicas específicas e localizadas e mecanismos de integração do sujeito no ordenamento social posto. Não cabe o desvelar das contradições sociais para que os jovens enxerguem a realidade a partir das determinações concretas, mas sim o reforço de um discurso ideológico que naturaliza e individualiza as contradições sociais. É preciso destacar que as avaliações aqui realizadas estão circunscritas nas proposições feitas pela OIT a partir das publicações analisadas. Compreendemos que a instituição tem, em sua história centenária, um conjunto de ações e perspectivas que defendem o trabalho decente, a liberdade sindical, a proteção trabalhista etc. Sendo, portanto, referência para diversas legislações trabalhistas aplicadas mundialmente (Grillo; Gondim, 2021) e tendo como principal característica a composição tripartite (Estados, empregadores e empregados), servindo como espaço de disputa e denúncia da precarização do trabalho 11 . Nos limites de nosso artigo não nos propusemos a comparar as diferentes convenções promulgadas pela OIT e sua relação com as análises da publicação TME para juventude, sendo uma possível continuidade de pesquisa. No entanto, a partir do histórico da organização, é necessário ressaltar o aparente espaço de contradição que a defesa de inserção aligeirada e precária dos jovens no mercado de trabalho, visto nas publicações analisadas, encontra ao comparar a defesa do trabalho decente, da regulação trabalhista e da crítica à vulnerabilidade dos empregos na sociedade atual, expressa em demais publicações da instituição (Grillo; Gondim, 2021). Esperamos que este trabalho tenha contribuído para análise das teorias e concepções que norteiam as avaliações da OIT sobre juventude e trabalho nas publicações intituladas TME voltadas ao tema. Considerando o papel significativo que as organizações multilaterais têm como fontes de ideias e prescrições a serem 11 A OIT foi, por exemplo, um dos espaços de denúncia da contrarreforma trabalhista aplicada no Brasil em 2018 pelo então governo de Michel Temer, listando o Brasil na chamada “lista suja” de países violadores de convenções internacionais do trabalho. 21
avaliadas e reconstruídas nas particularidades de países e regiões, esperamos que este estudo seja útil para a avaliação posterior de políticas que envolvam a juventude, como por exemplo os conceitos presentes nas políticas educacionais para o Ensino Médio no Brasil, políticas que envolvam a inserção dos jovens no mercado de trabalho etc. E, especialmente, quais as correlações que as proposições da OIT têm com as políticas públicas concretas aplicadas em nível nacional. Visto que um possível desdobramento da pesquisa é apoiar análises posteriores que se debrucem sobre a temática da juventude e trabalho nas políticas públicas e orientações regionais. Referências ABÍLIO, L. C. Plataformas digitais e uberização: Globalização de um Sul administrado? Contracampo , Niterói, v. 39, n. 1, p. 12-26, abr./jul. 2020a. ABÍLIO, L. C.. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados , São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, abr. 2020b. ABRAMO, H. W.. Condição juvenil no Brasil contemporâneo. In: ABRAMO, Helena Wendel; BRANCO, Pedro Paulo Martoni (Orgs.). Retratos da juventude brasileira . Análise de uma pesquisa nacional. São Paulo: Perseu Abramo, Instituto Cidadania, 2005. ABRANTES, A. A; BULHÕES, L. Idade adulta e o desenvolvimento psíquico na sociedade de classes: juventude e trabalho. In: MARTINS, Lígia Márcia; ABRANTES, Angelo Antonio; FACCI, Marilda Gonçalves Dias (Org.). Periodização histórico-cultural do desenvolvimento psíquico : do nascimento à velhice. Campinas, SP: Autores Associados, 2016. ANTUNES, R. O privilégio da servidão : o novo proletariado de serviços na era digital. 2 ed. São Paulo: Boitempo, 2020. BERNARDIM, M. L; SILVA, M. R. Juventude(s) e Ensino Médio: da inclusão escolar excludente aos jovens considerados nem-nem. Revista Contrapontos Eletrônica. Itajaí, vol.17, n.4, out-dez, 2017. EVANGELISTA, E; SHIROMA, E. O. Subsídios teórico-metodológicos para o trabalho com documentos de política educacional: contribuições do marxismo. In: CÊA, Georgia Sobreira; RUMMERT, Sonia Maria; GONÇALVES, Leonardo Dorneles (Orgs). Trabalho e Educação : interlocuções marxistas. Rio Grande: Editora da FURG, 2019. FREITAS, L. C. A reforma empresarial da educação : nova direita, velhas ideias. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2018. 22
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