V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X ENTRE A AUTONOMIA E O CONTROLE: PERCEPÇÕES DE JOVENS ENTREGADORES CICLISTAS SOBRE O TRABALHO EM PLATAFORMAS DIGITAIS 1 Caíque Diogo de Oliveira 2 Maria Carla Corrochano 3 Resumo Partindo da importância que as subjetividades assumem na experiência laboral, este artigo analisa as experiências e percepções de jovens entregadores em plataformas digitais de delivery que atuam na modalidade de ciclista, na cidade de São Paulo. A pesquisa, de caráter qualitativo, entrevistou 12 entregadores entre os anos de 2020 e 2023. Os dados evidenciam que uma percepção positivada na possibilidade de organizar o próprio horário de trabalho e na ausência de uma liderança hierárquica formal, ao mesmo tempo, um reconhecimento de que essa suposta autonomia também produz precariedade. Palavra-chave : Trabalho; Plataformas digitais; Juventude; Educação. ENTRE AUTONOMÍA Y CONTROL: PERCEPCIONES DE LOS CONDUCTORES JÓVENES DE REPARTO DE BICICLETA SOBRE EL TRABAJO EN PLATAFORMAS DIGITALES Resumen Partiendo de la importancia que asume la subjetividad en la experiencia laboral, este artículo analiza las experiencias y percepciones de jóvenes repartidores en plataformas digitales de delivery que trabajan como ciclistas en la ciudad de São Paulo. La investigación, de carácter cualitativo, entrevistó a 12 repartidores entre los años 2020 y 2023. Los datos evidencian una percepción positiva respecto a la posibilidad de organizar su propio horario de trabajo y a la ausencia de una liderazgo jerárquico formal; al mismo tiempo, se reconoce que esta supuesta autonomía también genera precariedad. Palabras clave : Trabajo; Plataformas digitales; Juventud; Educación. BETWEEN AUTONOMY AND CONTROL: YOUNG CYCLE DELIVERY DRIVERS’ PERCEPTIONS ABOUT WORKING ON DIGITAL PLATFORMS Abstract Building on the importance of subjectivities in work experience, this article examines the experiences and perceptions of young delivery workers on digital platforms operating as cyclists in São Paulo. The qualitative research involved interviews with 12 delivery workers conducted between 2020 and 2023. The data reveal a positive perception regarding the ability to set their own work schedules and the absence of formal hierarchical leadership. At the same time, there is an acknowledgment that this perceived autonomy also leads to precarious working conditions. Keywords : Work; Digital platforms; Youth; Education. 3 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Professora associada do Departamento de Ciências Humanas e Educação e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Estudos da Condição Humana da Universidade Federal de São Carlos/Campus Sorocaba. E-mail: mcarla@ufscar.br . Lattes: http://lattes.cnpq.br/7714353975585252 . ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8030-6461 . 2 Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos/Campus Sorocaba. Professor assistente na Faculdade de Educação do Sesi-SP. E-mail: caique.diogo@outlook.com.br . Lattes: http://lattes.cnpq.br/7143929390573792 . ORCID: http://orcid.org/0000-0002-6610-1299 . 1 Artigo recebido em 11/05/2024. Primeira Avaliação em 08/08/2024. Segunda Avaliação em 20/08/2024. Aprovado em 09/10/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.62932 1
Introdução A mobilização do governo federal em torno da regulamentação do trabalho nas plataformas digitais tem gerado amplos debates sobre os modos de conceber e intervir nessa forma de trabalho. A criação da figura do “trabalhador autônomo por plataforma” (Brasil, 2024) possibilita discutir quanto à supressão de direitos trabalhistas historicamente conquistados, aos interesses dos trabalhadores, bem como os caminhos possíveis para a intervenção do Estado em relação a essa categoria. De fato, a emergência do trabalho em plataformas digitais pela chamada uberização traz consigo um cenário que contribui para produzir novas indagações sobre o fazer-se da classe trabalhadora na atualidade, tornando relevante a reflexão a partir das percepções desses sujeitos. Dentre as questões mais instigantes do debate acerca da uberização está aquela que investiga as contradições entre autonomia e controle laboral diante da necessidade de gerir os próprios recursos para trabalhar nas plataformas (Abílio, 2021; Altermann, 2021; Van Dorrn, 2021; Purcell e Brook, 2022). No intuito de contribuir para a reflexão sobre a relação entre autonomia e controle a partir dos próprios sujeitos, este artigo investiga percepções sobre o trabalho de jovens ciclo-entregadores de plataformas digitais de delivery . A produção dos dados deriva de entrevistas realizadas entre 2020 e 2023 com 12 jovens, sendo 9 entregadores e 3 entregadoras ciclistas que trabalham na cidade de São Paulo. Além de classe, o olhar para outras desigualdades é relevante para compreender o capitalismo contemporâneo (Fraser, Jaeggi, 2020), assim, inicialmente é preciso destacar que esses trabalhadores possuem idade, gênero e raça. Tanto na amostra coletada para esse estudo, quanto nos surveys que caracterizam o perfil dos entregadores (Aliança Bike, 2019; Abílio, 2020; Filgueiras, Lima, 2020; CUT, 2021), nota-se que são majoritariamente homens, jovens e negros que se deslocam da periferia para o centro da cidade. Trazer esse aspecto permite dar corpo a esses sujeitos e refletir sobre a incidência desses marcadores sociais sobre as experiências laborais. Ao serem interrogados sobre as experiências de trabalho nas plataformas, em especial sobre o que mais gostavam nesse tipo de trabalho, foram comuns, entre os 2
jovens interlocutores deste estudo, respostas como: “fazer meu próprio horário”, “ser meu próprio chefe” ou “fazer meus próprios ganhos”. Ou seja, expressões que demonstravam valorização de uma certa autonomia. Ao mesmo tempo, concordando com vasta literatura nacional e internacional, verificou-se que essas percepções coabitam com mecanismos de controle laboral que fazem uso de ferramentas algorítmicas para gestão produtiva. O presente artigo compõe-se de três partes, para além desta introdução e das considerações finais. Em primeiro lugar, realiza-se uma reflexão exploratória sobre o desenvolvimento das plataformas digitais no capitalismo do século XXI. Em seguida, são tecidas considerações sobre o desenvolvimento da pesquisa. Na terceira parte, são analisadas algumas das percepções desses trabalhadores sobre a ocupação nas plataformas, no sentido de investigar as relações entre autonomia e controle do trabalho, sustentando o argumento de que as experiências desses indivíduos são emblemáticas da condição juvenil frente às transformações no mundo do trabalho. Capitalismo, uberização e trabalho Os novos arranjos produtivos possibilitados pelas tecnologias da informação, desenvolvimento da inteligência artificial e o gerenciamento algorítmico combinado a um cenário mais amplo de mobilidade, financeirização da economia, eliminação ou redefinição dos direitos trabalhistas têm constituído as bases dos desafios do trabalho no século XXI (Zuboff, 2020; Woodcook, Graham, 2020). Essas transformações no capitalismo da contemporaneidade também parecem modificar os modos como os próprios indivíduos vivenciam a experiência laboral. Do ponto de vista interno dos processos produtivos, a introdução de inovações tecnológicas e organizacionais no processo de trabalho é uma constante no capitalismo, de modo que, de tempos em tempos, os trabalhadores se deparam com inovações que requerem atualização e formação para se integrarem ao processo. Para além dos espaços da produção, cada vez mais as tecnologias digitais impactam a própria busca por emprego e a forma como os indivíduos encontram meios para obter renda (Guimarães, 2009, 2017). É no bojo dessas transformações que as plataformas aparecem como intermediárias entre a oferta comercial dos estabelecimentos e a demanda dos 3
consumidores (Srnicek, 2017). A interpretação dos impactos das plataformas digitais no âmbito do trabalho produziu a categoria “uberização” (Abílio; Amorim; Grohmann, 2021). Embora o termo faça referência a uma das plataformas de maior destaque no setor de caronas, o termo tem alcance e impacto nos estudos recentes (Franco, Ferraz, 2019; Abílio, 2019, 2021; Filgueiras, Antunes, 2020). De fato, uberização aparece como uma categoria mais adequada para descrever o vínculo entre os sujeitos desta pesquisa e as plataformas em que atuam, o que não significa ignorar o amplo e complexo debate em torno dos conceitos de informalidade, terceirização e marginalidade para abordar a questão. Conforme afirma Silveira (2021, p.3) “um trabalho uberizado é possível numa sociedade em que os controles sobre os trabalhadores transbordam os limites das paredes da fábrica”. De maneira geral, a uberização é um fenômeno recente no qual é possível encontrar e realizar trabalhos utilizando o próprio smartphone. Acessadas pelo toque na tela do próprio telefone, as plataformas digitais têm levado milhões de pessoas pelo mundo a novas experiências laborais (Rosemblat, 2018). Por mais que a autonomia seja colocada em pauta cotidianamente para definir os setores uberizados, o controle laboral é constituído por um conjunto de tecnologias de gerenciamento algorítmico (Grohmann, 2020). Logo, o controle sobre o trabalhador é uma das questões centrais para a compreensão da uberização. A discussão sobre o controle nas plataformas digitais direciona a reflexão sobre a nova arquitetura do trabalho presente no capitalismo contemporâneo. Trabalhar em plataformas digitais ou “fazer aplicativo” envolve ocupar-se com uma atividade na qual as empresas oferecem nada mais do que a demanda de pedidos e a remuneração, ao passo que os próprios indivíduos precisam prover e se responsabilizar pelas ferramentas de trabalho e a própria segurança (Antunes, 2020; Abílio et al . 2020; Gonsales, Moda, Accorsi, 2020; Braga, Silva, 2022). Para se consolidar como um trabalho que promove a autonomia, as plataformas estabelecem um modelo funcional que não possui um horário, além de pagamento por produção pré-definidos tal como na relação assalariada. O tempo todo os trabalhadores são colocados diante da percepção de que são totalmente responsáveis pelo próprio sucesso ou fracasso financeiro (Abílio, 2021; Altheman, 2021; Cant, 2021). Isto posto, uma contradição emerge nessa relação: a necessidade das plataformas de controlar o sistema produtivo, consequentemente 4
os trabalhadores, e a condição relativamente autônoma experimentada por esses indivíduos. Tentando pensar essas questões com motoristas uberizados na Inglaterra, Purcell e Brook (2022) argumentam a importância de compreender as percepções positivadas sobre “ser o próprio chefe” como expressões contemporâneas do consentimento no sentido gramsciano no capitalismo. Para o autor, essas formas contemporâneas de consentimento envolvem o cultivo de uma mentalidade empresarial para cuidar de si próprio e da própria inserção no mundo do trabalho. A aquisição dessa mentalidade empresarial é verificada e criticada por diversas obras (Sennet, 2005; Alves, 2011; Dardot, Laval, 2016). A “mentalidade empresarial” e os demais pressupostos neoliberais que terceirizam ao trabalhador a responsabilidade pelo processo produtivo tem se materializado na ascensão de novos vínculos empregatícios no Brasil, sobretudo as formas de trabalho que emergiram pós-reforma trabalhista via Lei 13.467 de 2017 (Brasil, 2017). Ocorre o fomento de uma lógica de atribuição de responsabilidade para o próprio indivíduo, transferindo-lhes os diversos ônus presentes nos processos produtivos. Tais medidas implicam uma restrição do poder dos trabalhadores planejarem sua vida pessoal e de sua família, aspecto ainda mais forte no caso de ocupações com maior incidência da precariedade (Lima, Oliveira, 2021). Essa condição marcada pela precariedade não é novidade nas relações trabalhistas brasileiras. Cabe destacar que o contexto latino-americano revela especificidades que dificultam a recepção integral da acepção de um “sujeito neoliberal” (Araújo, Martucceli, 2012). A fraca institucionalidade da proteção social faz com que os indivíduos não encontrem segurança e apoio nas instituições entre elas o trabalho -, de modo que os suportes devem ser construídos, reforçados e recriados individualmente (Corrochano, Tarábola, 2023). Acrescenta-se ainda que os vínculos de apoio são perpassados por aspectos que envolvem idade, gênero e raça. Portanto, verifica-se que as representações desse cenário projetam a figura de um novo trabalhador, distante da ideia de carreira de longo prazo em um emprego assalariado (Silva, 2002, 2018). Emerge, dessa forma, uma nova cultura do trabalho, a qual traz consigo novas subjetividades (Sennet, 2005; Dardot, Laval, 2016; Boltanski, Chiapello, 2009). Essa relação entre labor, sociedade e indivíduo 5
também é perpassada pela cultura local, sobretudo aquelas presentes nas sociedades latino-americanas (Araújo, Martuccelli, 2012). Um olhar para as experiências de jovens entregadores O enfoque analítico sobre a produção dos dados será orientado pela noção de experiência (Thompson, 1981,1987). Tomar a experiência como premissa analítica permite valorizar o (auto)fazer-se dos trabalhadores, concebendo o cotidiano não apenas como um processo alienador, mas como lócus em que os sujeitos empenham estratégias individuais e formulam percepções sobre o próprio trabalho. Essa perspectiva que explora a dimensão subjetiva dos indivíduos no capitalismo tem sido recorrente entre as pesquisas. De um lado, tem se investigado como as transformações no capitalismo têm culminado em uma governamentalidade, na qual os indivíduos percebem-se como “empreendedores de si” e utilizam uma racionalidade econômica pautada em pressupostos de liberdade, ao lado de um senso individualista para manter-se no mundo do trabalho (Dardot, Laval, 2016). De outro, estudos têm assumido uma postura compreensiva para enfatizar como a capacidade de agência dos trabalhadores e trabalhadoras também é relevante para entender as experiências e relações dos indivíduos com o mundo do trabalho (Dubet, 2014; Alvarez, Perelman, 2020). A compreensão das percepções de quem trabalha a partir de suas experiências laborais envolve também o reconhecimento de que as pessoas possuem uma corporeidade. No caso dos ciclistas entregadores de plataformas digitais, trata-se de trabalhadores que são, em sua maioria, jovens, homens, negros (Aliança Bike, 2019; Abílio et al . 2020; Filgueiras, Lima, 2020; CUT, 2021). Esses marcadores sociais de idade, gênero e raça importam na medida em que também balizam a articulação entre percepções individuais e estruturas sociais. No entanto, ao longo deste artigo, será dada maior centralidade à categoria juventude, derivada do recorte etário. Os 12 jovens interlocutores da pesquisa atuaram em aplicativos de delivery na modalidade para ciclistas na cidade de São Paulo. O intervalo etário dos 6
participantes situa-se entre os 18 e os 32 anos, ou seja, a maioria dos entrevistados experimentam o momento da vida definido como “jovens” e “jovens-adultos”. Seguindo o perfil identificado por pesquisas quantitativas, a maior parte identificou-se com o gênero masculino (9), mas também alcançamos jovens mulheres (3). Do ponto de vista étnico-racial, 5 entrevistados declararam-se pardos, 2 pretos, 3 brancos, 1 amarela e 1 indígena. Em síntese, a partir de uma perspectiva interseccional, uma presença significativa de jovens homens negros, sendo 6 de 12 entrevistados. De modo geral, apesar dos persistentes desafios, a escolaridade dos jovens acompanha algumas das transformações geracionais ocorridas na educação brasileira derivadas da expansão educacional pós-constituição de 1988. Dos 12 entrevistados, 10 haviam concluído a educação básica ao fim da segunda entrevista. Trata-se de um aspecto relevante considerando os avanços da educação de nível médio para a população jovem brasileira (Sposito, Souza, Silva, 2018). A maior parte dos interlocutores declarou-se solteiro e ainda morava com os pais. Entre os 12 jovens entrevistados, dois jovens rapazes eram pais, porém os filhos moravam com a mãe das crianças, enquanto uma das jovens interlocutora morava com o namorado, mas não tinha filhos. Os dados sobre parentalidade identificados pelo estudo corroboram uma tendência geracional de adiamento da saída da casa dos pais e constituição de uma nova família. Análises apontam que essas mudanças têm se tornado mais frequentes entre as novas gerações a partir das possibilidades abertas pelas transformações sociais e culturais na contemporaneidade (Stênico, Adam, 2018). Assim como diversas pesquisas realizadas no contexto pandêmico, esta investigação delineou a estratégia de inserção no campo e a produção de dados a partir de meios eletrônicos (Abílio et al . 2020; Silvestre, Neto, Amaral, 2021; Ferreira, 2021; Althemann, 2021; Liberato, 2022). Os meios digitais foram relevantes tanto para encontrar os trabalhadores e as trabalhadoras, quanto para estabelecer as interlocuções. As entrevistas foram realizadas de maneira remota por meio do Google Meet, seguindo as orientações do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e do Núcleo Executivo de Vigilância em Saúde (NEVS) da Universidade Federal de São Carlos, a qual este estudo está vinculado. Todas as videochamadas foram antecedidas por contatos via redes sociais. Na maior parte dos casos, foi necessário 7
o uso de aplicativos de troca de mensagem instantânea, como o WhatsApp, para a verificação da disponibilidade dos e das jovens e da capacidade tecnológica disponível para a interlocução. Cabe acrescentar que a entrevista é uma ferramenta tradicionalmente utilizada pelas ciências humanas, sobretudo quando se busca investigar as percepções e atitudes de indivíduos diante de um determinado fenômeno (Vincent, 2011). Segundo Ferreira (2017), a entrevista permanece como uma ferramenta pertinente para investigar jovens, pois a sociedade ainda tem dificuldade para uma escuta sensível das vozes e reivindicações juvenis. Controle algorítmico e percepção da autonomia Controlar o trabalho sempre foi um desafio histórico na relação capital-trabalho (Braverman, 1987). Desde Taylor e Ford, passando pelo modelo da acumulação flexível, a contradição entre o potencial produtivo da força de trabalho e a real efetivação dessa força produtiva é motriz na busca pela maximização da produção de valor (Harvey, 2016). No âmbito das plataformas, geralmente, o trabalho não possui uma orientação pré-determinada de quando se inicia e se conclui a jornada laboral. A flexibilização do sistema produtivo, em discussão desde meados do século XX, persiste na uberização (Rosenblat, 2018). Em síntese, a experiência nas plataformas é marcada pela percepção de que essa é uma ocupação que permite maior autonomia no cotidiano, autonomia que, por vezes, é definida pelos entregadores como “liberdade”. Quando perguntado sobre qual a vantagem em trabalhar em plataformas digitais com entregas, um dos jovens interlocutores responde: Liberdade. É a palavra certa: liberdade. Porque se você trabalha CLT você acaba ficando preso dentro de uma sala, fazendo um serviço que você não gosta, pra agradar um patrão que às vezes não gosta de você [ANDRÉ 4 , 26 anos, preto, ensino médio incompleto]. A suposta autonomia propiciada pelos aplicativos é um dos aspectos mais valorizados pelos entregadores. Em diversas entrevistas, seja entre os jovens mais novos ou entre os mais velhos, a valorização da “liberdade” em poder iniciar, pausar 4 Os nomes são fictícios como uma forma de manter o anonimato. 8
e encerrar a jornada de trabalho quando desejar, ou seja, “fazer o próprio horário”, aparece como algo valorizado. Essa possibilidade de definir em qual momento ligar e desligar o aplicativo propicia a realização de outras demandas da vida social. André afirma que: Liberdade, na hora que eu quiser parar eu paro, na hora que eu quiser almoçar eu almoço, na hora que não quiser ir trabalhar eu não vou, na hora que quiser voltar pra casa eu volto, então isso me bastante liberdade para fazer aquilo que eu quiser fazer. Por exemplo, agora o meu filho está de férias da escola e no dia que não tiver alguém pra ficar com ele eu fico de boa sem depender da vontade de empresa nenhuma, sem precisar dar satisfação pra ninguém. quando a mãe dele chega do trabalho eu posso ir trabalhar de boa [ANDRÉ, 26 anos, preto, ensino médio incompleto]. De fato, os trabalhadores de plataformas digitais de entregas podem definir os horários em que ligam e desligam os aplicativos, sem qualquer prejuízo, exceto pela sensação de que quanto menos horas se trabalha, menor será a renda obtida com a jornada. Assim, as diferenças em relação às empresas que possuem uma estrutura organizacional, e que exercem um poder mais perceptível no cotidiano por parte dos subordinados, aparece no relato de alguns dos jovens entregadores: [...] você não vai receber ordem né, que nem [sic], se eu fizer alguma coisa errada, o erro vai ser meu, eu não vou ter que ficar ouvindo outra pessoa, entendeu? Mas mesmo às vezes errando nas entregas eu me cobro, porque é ruim [MAYCON, 18 anos, pardo, ensino médio completo]. Olha, assim, sinceramente é um bom trabalho, pelo menos pra mim. Porque sei que tem aquele risco de você trabalhar na rua e etc e tal, mas assim, o sentimento de liberdade de você estar na rua, sem precisar ter alguém no seu ali enchendo o saco falando que você tem que fazer isso, isso e aquilo. Você é o dono da sua empresa, então você que tem que colocar as suas metas [JEFFERSON, 27 anos, branco, ensino superior incompleto]. Portanto, expressões como “você é dono da sua empresa” ou a “independência que o aplicativo dá” trazem elementos significativos para compreender as experiências desses jovens, bem como as especificidades e desafios presentes nessas novas formas de trabalho. Ao atribuir a responsabilidade pelo pedido ao entregador, sem a presença de um chefe que realiza uma supervisão pessoalizada do cotidiano, a dinâmica dos aplicativos permite que os trabalhadores se sintam responsáveis por seus erros e acertos. Essa responsabilização individual 9
aparece como expressão do processo de flexibilização laboral e terceirização da atividade ao indivíduo e, assim, uma expressão da precariedade no capitalismo contemporâneo. Reconhecer o controle por parte das plataformas, bem como a necessidade de trabalho por parte dos trabalhadores, não exclui a importância de compreender as percepções desses sujeitos sobre o próprio trabalho. Conforme identificou Dubet (2014) os trabalhadores desejam autonomia, liberdade para fazer escolhas, diferenciar-se dos colegas e ter alguma flexibilidade nas regras. Nesse sentido, pode-se contextualizar o trabalho nas plataformas frente a essa demanda por autonomia. [...] o trabalho não é redutível nem ao estatuto que oferece nem à troca de um esforço, de uma utilidade ou de uma boa vontade por um salário. O trabalho é também o engajamento da pessoa numa atividade que lhe traz satisfações intrínsecas, prazer, felicidade, um sentimento de crescimento pessoal e liberdade; pelo lado oposto, ele lhe o sentimento de ser alienado, destruído, até mesmo usado quando ganha bem e ocupa uma posição considerada conveniente. Para julgar esta dimensão do trabalho, o sujeito mobiliza uma norma subjetiva que se chama correntemente de satisfação no trabalho. No entanto, não se pode englobar tudo na noção muito vaga de satisfação, pois não é a mesma coisa estar satisfeito com seu salário e seu estatuto ou com seu métier, sua atividade “em si”. Sendo assim, o importante é levantar os julgamentos apresentados pelos indivíduos sobre um trabalho que os preenche ou que os frustra enquanto sujeitos desejosos de se realizarem na atividade profissional (DUBET, 2014, p. 113). Com uma experiência relativamente longeva em um setor marcado por forte presença juvenil e condições precárias na atividade, Jefferson - que encerrou um período de 7 anos numa empresa de call center e decidiu “arriscar” como bike-entregador destaca a crítica ao emprego anterior e a valorização da individualização nas plataformas: Não é legal porque você via as coisas acontecerem e não podia falar porque você era o peão do xadrez. eu era um número, tanto que quando eu saí da empresa contrataram outro pra colocar no meu lugar [...] por exemplo, com relação ao chefe, quando você tem um ótimo líder é uma coisa maravilhosa, ele te inspira, ele te faz crescer. Mas quando você não tem um líder, ele não te motiva, ele não te faz crescer. Agora nesse momento, o líder seria eu mesmo [JEFFERSON, 27 anos, branco, ensino superior incompleto]. 10
entre alguns entregadores a percepção de que são uma entidade formalmente autônoma em relação aos aplicativos. Em estudo com ciclo-entregadores paulistanos, Altheman (2021, p.102) identificou que “a ideia de “não trabalhar para ninguém”, mas “fazer aplicativo” parecia estar atrelada a um modelo colaborativo em que o entregador é um membro constitutivo de um sistema mais amplo, que funciona a partir da integração de suas partes atomizadas e interdependentes. A inexistência de regulamentação do trabalho nessas plataformas, a ausência de vínculo empregatício formal e essa percepção de autonomia no trabalho fazem com que a atuação nas plataformas digitais seja associada ao empreendedorismo. Haja vista o empreendedorismo ter aparecido como definição para o autogerencialismo no ideário neoliberal presente no capitalismo do século XXI (Leite, Lindôso, 2021), supõe-se que os entregadores possam ser concebidos como expressão do empreendedorismo. No entanto, a literatura descarta essa associação, (Althemann, 2021), apontando uma “responsabilização individual” que pode ser melhor definida por “autogerenciamento subordinado”. Segundo a socióloga brasileira Ludmila Abílio (2019, p.7) O autogerenciamento do trabalhador envolve a determinação de metas econômicas para si. Ou seja, o trabalhador não define quantas horas vai trabalhar, mas quanto precisa ganhar por dia. Entretanto, a distribuição do trabalho está nas mãos da empresa; ele não não tem garantias como não previsibilidade sobre sua carga de trabalho. A definição da meta para si envolverá lidar permanentemente com a incerteza e estabelecer estratégias subordinadas às dinâmicas gerenciadas pela empresa-aplicativo: como mudar o horário de trabalho, estender o tempo de trabalho, buscar outros locais na cidade (ABÍLIO, 2019, p.7). A noção de autogerenciamento subordinado possibilita explicar a necessidade que esses trabalhadores possuem de gerir os recursos tangíveis e intangíveis do próprio cotidiano laboral, enquanto permanecem subordinados à lógica algorítmica aleatória e desconhecida de distribuição de pedidos pelas plataformas. Segundo a referida autora, o autogerenciamento subordinado precede as plataformas. É possível encontrá-lo no cerne dos arranjos toyotistas e das políticas neoliberais, mas ele também é estruturante de modos de vida periféricos, tecendo 11
de forma invisibilizada e pouco conhecida a formação e reprodução de mercados de trabalho como o brasileiro. Certamente as condições materiais e históricas do capitalismo brasileiro do século XXI são significativas para entender essa percepção positivada entre os entregadores sobre “ser o próprio chefe”. Conforme acrescenta Abílio (2021, p. 944) Para além do não esquecimento de que a própria definição de emprego foi profunda e perversamente alterada pela Reforma Trabalhista, a compreensão dos modos de subjetivação periféricos é fundamental para compreender o lugar que o emprego formal ocupa nas trajetórias dos trabalhadores. A alta rotatividade, as desigualdades brutais, injustiças cotidianas e a herança escravocrata se perpetuam por dentro da formalidade. Quando o trabalhador diz que “não quer ter patrão”, é necessário estar aberto aos sentidos múltiplos e contraditórios que esta afirmação encerra. O caso de Paulo é ainda mais emblemático acerca da relação entre o mercado de trabalho formal e a informalidade das plataformas digitais. O jovem adulto, negro e morador da Zona Sul de São Paulo, trabalhava como entregador em uma empresa de bike-courrier com vínculo formalizado e deixou esse emprego para ingressar nas plataformas. Conforme relatou: Foi a melhor opção porque, tipo, estava cansado de trabalhar registrado, ficar ganhando salário-mínimo, e tipo ficar preso em um lugar pra receber salário-mínimo, e o salário-mínimo não está valendo muita coisa, então foi a melhor saída que eu achei pra conseguir me sustentar. O rapaz ingressou nas plataformas após sair de um trabalho formal como entregador em uma empresa especializada na atividade de entregas, ingressou nas plataformas sob a justificativa de que o trabalho era longe de sua residência e a remuneração não valia a pena. É interessante notar que os jovens interlocutores apontaram receber remuneração superior a um salário-mínimo por mês, se considerarmos que o salário-mínimo em 2021, momento em que a primeira entrevista foi concedida era de R$1.100,00, e Paulo afirmou receber com os aplicativos algo entre R$1.500 a R$1.750. Portanto, do ponto de vista da remuneração, é possível entender o que levou o jovem a trocar o trabalho registrado pela plataforma. Deve-se registrar como os salários pagos tanto para ciclo-entregadores em regime formal, quanto em aplicativos, são baixos em relação às urgências e 12
necessidades dos indivíduos, sobretudo no Brasil. Dados do Dieese (2024) apontam que o salário-mínimo no Brasil para o ano de 2021 deveria ser de R$5.583,90, isto é, 5 vezes maior que a remuneração obtida pelo jovem no vínculo formal e 3,2 vezes maior que a renda que Paulo declarou obter com o aplicativo. Além disso, essa “liberdade” tem suas limitações. Conforme afirmou João: “É libertador, mas tem um custo”. Outro interlocutor que indicou uma valorização da “liberdade” subjacente ao aplicativo afirmou: Óbvio, que pra você trabalhar pra si mesmo você precisa ter uma consciência, você não vai ter mais o seguro-desemprego, você não vai ter os impostos da sua aposentadoria, você precisa ter cabeça, pra que? Pra pagar a manutenção da sua bike, moto, carro, ou seja o que você estiver fazendo, pagar um MEI pra que você possa continuar contribuindo com a previdência social, se você quiser se aposentar, um dia todo mundo vai precisar disso [ANDRÉ, 26 anos, preto, ensino médio incompleto]. Valorizar a autonomia em escolher quando iniciar ou encerrar a jornada laboral não significa, portanto, ignorar as perdas. Apesar das dificuldades no acesso a direitos, os jovens reconhecem a relevância dos direitos que promovem proteção social, mesmo entre aqueles que não estão engajados em coletivos. Nesse caso, os entregadores são emblemáticos daquilo que Castro (2016) observou entre os trabalhadores informais sobre a necessidade de “emular” os direitos trabalhistas com a remuneração obtida sem os direitos garantidos no regime da CLT. A liberdade para escolher quando começar o turno laboral, também não significa necessariamente trabalhar menos ou não perceber a exploração. Ao responder sobre o significado do trabalho nas plataformas, uma das interlocutoras afirmou: A questão de eu poder trabalhar assim, a hora que eu quisesse, vulgo eu poder trabalhar toda hora, que era o que eu queria porque eu tinha que juntar dinheiro, trabalhava de madrugada, de manhã de tarde e de noite, trabalhar direto [LORENA, 19 anos, branca, ensino médio incompleto]. Assim, ao mesmo tempo que esses jovens entregadores valorizam a possibilidade de “poder trabalhar” com certa independência, a autonomia pode ser relativizada pela necessidade de realizar longas jornadas nas ruas para atender as necessidades individuais e familiares. 13
A imprevisibilidade que subjaz a “liberdade” do trabalho nos aplicativos não diz respeito somente à jornada diária, é algo que passa a impactar a própria vida dos jovens. A questão de não ter algo garantido, de não saber quanto vai ter no mês, não poder fazer uma prestação, sabe? Não poder tirar nada por não saber se você vai ter dinheiro pra pagar aquilo lá, não ter garantia, isso mudou bastante, não saber quando você vai ter aquele dinheirinho garantido no mês [LORENA, 19 anos, branca, ensino médio incompleto]. Sendo assim, trabalhadores e trabalhadoras submetidos a essa dinâmica ocupacional passam a encontrar, conforme ressaltado por Lima e Oliveira (2021), limitações no poder de planejar sua vida pessoal, bem como suas necessidades de consumo. A contradição entre autonomia e controle também precisa ser dimensionada pela possibilidade de desligamentos involuntários ocasionados por bloqueios que as plataformas estabelecem aos entregadores (Liberato, 2022). Os chamados “bloqueios indevidos” 5 merecem um aprofundamento no olhar para o controle e a autonomia nas plataformas. Na medida em que não demissão como nas ocupações formais, assim como nas informais, sofrer um bloqueio pode ser visto como um equivalente. Diante da possibilidade de exclusão da plataforma, o medo é comum aos entregadores (Liberato, 2022), ainda mais considerando que o trabalho com entregas é a única fonte de renda para a maioria deles e delas. (Aliança Bike, 2019; Filgueiras, Lima, 2020; CUT, 2021). Ser bloqueado sem qualquer justificativa ou injustamente pode significar perder a única fonte de renda disponível para o próprio sustento ou ainda o sustento dos dependentes. Visando atender algumas demandas dos entregadores, a mudança na legislação também estabeleceu normas que envolvem os bloqueios. A Lei 1.4297/22, sancionada em janeiro de 2022, determina que a empresa avise ao entregador sobre o bloqueio com antecedência de três dias úteis, explicando também os motivos e a fundamentação (Brasil, 2022). A percepção de que o trabalho nos aplicativos possibilita usufruir de uma liberdade e que os entregadores são autônomos e responsáveis por seus ganhos 5 Conforme apontou Liberatto (2022, p. 787): “Os entregadores chamam de bloqueio indevido a desativação da sua conta na plataforma de forma considerada injusta, ou quando o motivo não é informado”. 14
possui outros contrapontos. Para Maria - entregadora e membra atuante por longo período do coletivo Entregadores Antifascistas - o trabalho nas plataformas possui sim um chefe: “essa liberdade é uma ilusão”. Como destacou em sua entrevista: De certa forma eu tenho um chefe, que não é uma pessoa, mas eu tenho um chefe, a gente sabe que tem. [...] Na verdade isso não muda a questão de que a gente está todo mundo submetido a um mesmo sistema. Por mais que você trabalhe em uma multinacional e ganhe muito melhor ou por mais que você trabalhe fazendo entregas nas ruas, todos nós estamos sendo observados e vigiados através da tecnologia sobre tudo que a gente faz. Então achar que a gente tem algum tipo de liberdade em relação a isso é um tipo de ilusão. A gente faz parte de uma engrenagem que vai girar pra produzir cada vez mais, e isso se acelera cada vez mais. Então isso é uma lenda que contaram, ou seja, você não tem um chefe físico, mas é muito pior ter um chefe que é um robô. E é muito pior o fato de que o verdadeiro chefe se esconde atrás de um robô. [MARIA, 25 anos, amarela, ensino superior completo]. A tecnologia “por trás” da plataforma suscita uma discussão sobre sua transparência (Mohlmann, Zalmanson, 2017). A expressão “trabalho para um robô” é corriqueiramente utilizada entre entregadores de aplicativos (Grohmann, 2020; Cant, 2021). Cant (2021), ao descrever o cotidiano da Deliveroo , percebe que a maior parte do trabalho de supervisor de logística é automatizado, em meio às funções do aplicativo. Esse processo de automatização experimentado pelos entregadores diz respeito a uma tendência muito mais ampla que envolve o trabalho no capitalismo. Um ponto que não pode ser ignorado na análise desse ambiente de trabalho é que, em seu cotidiano, também são cultivadas práticas tipicamente juvenis. Em consonância com as observações realizadas por Braga e Santos (2022) e Pires e Perin (2023), verificamos que o cotidiano laboral é marcado por traços que indicam a existência de relações de sociabilidade e solidariedade entre os jovens no dia a dia das entregas. Ainda que o trabalho seja aparentemente disperso e “atomizado”, por acontecer pelas ruas e não contar com um teto institucional fixo onde seja possível ter acesso a água encanada e um espaço para higiene pessoal, agrupamentos em que são tecidas relações de sociabilidade juvenil. Nesses espaços é comum que os entregadores estabeleçam interações entre si, além de compartilharem refeições, cigarros, garrafas de água e dicas a respeito do cotidiano, de modo a estabelecer uma relação diferente daquela experimentada por trabalhadores em organizações com vigilância pessoalizada constante e rotinas rígidas de trabalho formal. 15
Valorizar o fato de “não receber ordens” é um aspecto que tem relevância interpretativa do ponto de vista geracional. Estudos apontam que a presença de jovens no trabalho é permeada de conflitos e violências dos mais velhos direcionada aos mais novos (Moura, 2017; Oleto et al . 2017). Logo, muitos valorizam a possibilidade de trabalhar sem terem que enfrentar constrangimentos e conflitos de ordem geracional, o que não significa não haver outros. Nesse sentido, o relato dos jovens envolve uma crítica à rigidez do setor formal e a valorização de não se subordinar à autoridade presente nas empresas. Hoje eu não consigo mais trabalhar em uma empresa. Desde quando eu entrei no [Plataforma] eu não sei mais o que é trabalhar para os outros. Você faz o seu horário a hora que você quer, sai a hora que quer, vai pra onde quiser, e volta se quiser né. [ANDRÉ, 26 anos, preto, ensino médio incompleto]. Acho bom o dinheiro que se faz, bem mais que trabalhar em uma firma, esses lugares aí. E eu gosto de ser livre, não gosto de ser mandado [sic]. Eu gosto de fazer entrega porque eu trabalho no aplicativo e eu trabalho pra mim. Isso ajuda mais ainda, entendeu? [MARCOS, 24 anos, pardo, ensino médio completo]. Michael também foi um dos jovens interlocutores que ressaltou esse aspecto. Deve-se destacar, contudo, que as experiências laborais que este jovem teve antes de baixar o aplicativo e atuar com entregas foram entregar folhetos e atender no bar da família. O jovem relatou que encontra nos aplicativos uma possibilidade de obter renda para atender às necessidades imediatas de consumo, pois, conforme relatou, a renda gerada nas plataformas possibilita que ele possa “comprar as próprias coisas”. Ter uma ocupação que propicie recursos para “comprar as próprias coisas” possui um sentido importante para compreender a própria condição juvenil. Isso vem sendo constatado desde os clássicos estudos sobre a relação entre juventude e trabalho conduzidos por Felícia Madeira (1986), na década de 1980. Por mais que não seja a única, nem a principal, na dimensão da vida juvenil, o consumo tem um papel nas formas de expressão da juventude, especialmente em nossa sociedade (Nunes, 2007). Embora o trabalho nas plataformas de aplicativo permite que os jovens se eximam dos constrangimentos típicos do emprego formal, essa forma de ocupação não os isenta de enfrentar outras formas de discriminação na jornada laboral. A 16
experiência dos entregadores é frequentemente marcada por preconceitos raciais e violências de gênero, especialmente para as mulheres jovens que desempenham essas funções. Em alguns casos foram constatadas situações de racismo ou discriminações em shoppings centers sobre entregadores negros. As jovens mulheres também apontaram violências de gênero e desafios para circular em segurança pelas ruas da cidade. A ausência de regulamentação formal e proteção laboral muitas vezes exacerba essas formas de discriminação. A complexidade dessas dinâmicas evidencia a necessidade de investigar as experiências e condições de trabalho no setor de entregas por aplicativos. Considerações finais Considerando que o trabalho se constitui como uma dimensão significativa na experiência juvenil brasileira em especial para jovens pobres, negros e moradores das periferias urbanas –, o artigo buscou trazer contribuições para aprofundar o diálogo entre os estudos do trabalho, da educação e da juventude em um segmento emblemático das transformações do capitalismo na contemporaneidade. Os dados indicam haver um contraste entre emprego formal e o trabalho nas plataformas. A persistência de baixos salários, inclusive nos empregos formais, e de uma tradição autoritária e marcada por inúmeras discriminações - de classe, gênero e sexualidade, cor/ raça, dentre outras nas relações de trabalho no Brasil, que incidem especialmente sobre os jovens negros, pode contribuir para compreensão das percepções de nossos interlocutores. Assim, a escolha em “trabalhar para um robô” encontra sentido em suas experiências quando afirmam que, nos aplicativos, têm “independência” e a possibilidade de “ser o próprio chefe”. Sobre atuar em aplicativos, a possibilidade de poder “fazer o próprio horário” mobiliza diversos discursos. Por mais que a literatura proponha reflexões importantes sobre a dimensão neoliberal na subjetividade dos trabalhadores na atualidade, verifica-se que a possibilidade de “ser o próprio chefe” é complexa. Ao mesmo tempo em que uma valorização da autonomia, os jovens tecem críticas à qualidade do trabalho nas plataformas e às possibilidades que essa ocupação oferece dentro e fora do cotidiano laboral. Portanto, valorizar a relativa autonomia ao escolher quando iniciar ou encerrar a jornada nos aplicativos não significa ignorar as 17
perdas e dificuldades que implicam a ausência de direitos do trabalho e as discriminações vividas. Torna-se necessária uma escuta sensível destes jovens para compreensão dos sentidos que atribuem a esse trabalho, inclusive para a construção de formas de regulamentar e intervir nesse segmento. O trabalho nas ciclo-entregas por aplicativos também parece sinalizar transformações nos significados que a juventude contemporânea atribui às experiências de trabalho do século XXI. Em um cenário no qual o trabalho seguro e protegido legalmente não está disponível para todos e todas, as plataformas digitais de delivery aparecem como um meio marcado pela precariedade, ao passo que é acessível para a juventude obter renda. Referências ABÍLIO, L. C. Uberização: Do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas , Valparaíso, Chile, v.18, n.3, p.1-11, dez, 2019. ABÍLIO, L. C. Empreendedorismo, autogerenciamento subordinado ou viração? Uberização e o trabalhador just-in-time na periferia. Contemporânea , São Carlos, v. 11, n. 3 p. 933-955, set./dez. 2021. ABÍLIO, L. C; AMORIM, H; GROHMANN, R. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias , Porto Alegre, v. 23, n. 57, p. 26–56, 2021. ABÍLIO, L. C. et al. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a COVID-19. Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano , v. 3, p. 1-21, 2020. ALIANÇA B. 2019. Pesquisa do Perfil dos Entregadores Ciclistas de Aplicativo. Associação Brasileira do Setor de Bicicletas . Disponível em: http://aliancabike.org.br/wp-content/uploads/2020/04/relatorio_s2.pdf > Acesso em maio de 2020. ALTHEMAN, E. Empreendedorismo de si no capitalismo de plataforma: um estudo com entregadores ciclistas em São Paulo. In: CALLIL, Victor; COSTANZO, Daniela. (Org.). Desafio : estudos de mobilidade 4. São Paulo: CEBRAP, pp. 69-120, 2021. ÁLVAREZ, M. I. F; PERELMAN, M. Perspectivas antropológicas sobre las formas de (ganarse la) vida. Cuadernos De antropología Social , Buenos Aires, n.51, 2020. ALVES, Giovanni. Trabalho e subjetividade : o espírito do Toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011. 18
ANTUNES, R (orgs.) Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 . São Paulo: Boitempo, 2020. ARAUJO, K; MARTUCCELLI, D. Desafios comunes . Retratos da sociedad chilena y sus indivíduos. Santiago: LOM, 2012. BOLTANSKI, L; CHIAPELLO, É. O novo espírito do capitalismo . São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. BRAGA, R; SANTOS, D. “Os sentidos do uberismo: juventude e plataformização do trabalho na cidade de São Paulo durante a pandemia”. In: Brasil no inferno global : capitalismo e democracia fora dos trilhos. Orgs.: André Singer, Cicero Araujo, Fernando Rugitsky. São Paulo: FFLCH/USP, 2022. BRASIL. 2022. Lei 13.467 , de 13 de julho de 2017. Brasília, DF: Presidência da República, 2017. Disponível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13467.htm> Acesso em 12 de setembro de 2023. BRASIL. 2022. Lei 14.299 , de 5 de janeiro de 2022. Brasília, DF: Presidência da República, 2022. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14299.htm> Acesso em 12 de setembro de 2023. BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Complementar 12/2024 . Brasília: Câmara dos Deputados, Comissão de Indústria, Comércio e Serviços (CICS), 2024. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2391423 &filename=PLP%2012/2024> Acesso em 8 de maio de 2024. BRAVERMAN, H. Trabalho e capital monopolista : a degradação do trabalho no século XX. 33. ed. Rio de Janeiro: Ltr, 1987. CANT, C. Delivery Fight! A luta contra os patrões sem rosto. São Paulo: Veneta, 2021. CASTRO, B. Trabalho perpétuo: o viés de gênero e o ideal de juventude no capitalismo flexível. Lua Nova , São Paulo, v.99, p.169-199, 2016. COELHO, R. N; AQUINO, C. A. B. de. Inserção laboral, juventude e precarização. Revista de Psicologia Política , São Paulo, v.9, n.18, dez. 2009. CORROCHANO, M. C; TARÁBOLA, F. de S. Neoliberalismo, trabalho e pandemia: experiências e enfrentamentos de jovens das periferias. Educação e Sociedade , Campinas, v.44, e274390, 2023. CUT. Condições de trabalho, direitos e diálogo social para trabalhadoras e trabalhadores do setor de entrega por aplicativo em Brasília e Recife . Secretaria 19
de Relações Internacionais e Instituto Observatório Social: São Paulo. Central Única dos Trabalhadores, 2021. DARDOT, P; LAVAL, C. A nova razão do mundo : ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016. DIEESE. Pesquisa nacional da Cesta Básica de Alimentos . Salário-mínimo nominal e necessário. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. 2024. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/salarioMinimo.html> Acesso: 05 de maio de 2024. DUBET, F. Injustiça : a experiência das desigualdades no trabalho. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014. FERREIRA, V. S. Os caminhos e desafios metodológicos na pesquisa com jovens In: FERREIRA, Vitor Sérgio (org.). Pesquisar jovens : caminhos metodológicos. Lisboa: ICS, 2017. FILGUEIRAS, V. A; LIMA, U. M. Levantamento sobre o Trabalho dos Entregadores por Aplicativos no Brasil . Relatório de pesquisa. Projeto caminhos do trabalho: tendências, dinâmicas e interfaces, do local ao global. Universidade Federal da Bahia. 2020. Disponível em: http://abet-trabalho.org.br/wp-content/uploads/2020/08/Relato%CC%81rio-de-Levant amento-sobre-Entregadores-por-Aplicativos-no-Brasil.pdf. Acesso em 20 de fevereiro de 2023. FILGUEIRAS, V; ANTUNES, R. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo , Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020. FRANCO, D. S; FERRAZ, D. L. da S. Uberização do trabalho e acumulação capitalista. Cadernos EBAPE , Rio de Janeiro, v.17, edição especial, nov. 2019. FRASER, N; JAEGGI, R. Capitalismo em debate : uma conversa na teoria crítica. São Paulo: Boitempo, 2020. GONSALES, M; MODA, F; ACCORSSI, A. “Heróis” por necessidade: entregadores de aplicativos em tempos de covid-19. In: LUCENA, Carlos; PREVITALI, Fabiane; BRETTAS, Anderson. Pandemia covid-19 : a distopia do século XXI. Uberlândia: Navegando, 2020. GROHMANN, R. Plataformização do trabalho: entre dataficação, financeirização e racionalidade neoliberal. Revista Eletrônica Internacional de Economia Política da Informação, da Comunicação e da Cultura . São Cristóvam, v. 22, n. 1, jan/abr. 2020. GUIMARÃES, N. A. À procura de trabalho : instituições do mercado e redes. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2009. 20
GUIMARÃES, N. A. Desemprego e procura de trabalho: alguns desafios. Revista Ciências do Trabalho , São Paulo, v.7, n.1, p. 21-35, jan./abr. 2017. HARVEY, D. 17 contradições e o fim do capitalismo . São Paulo: Boitempo, 2016. IBGE. 2023. Educação 2022 : PNAD Contínua. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101736_informativo.pdf Acesso em 24 de abril de 2024. LEITE, M. de P; LINDÔSO, R. O. Empreendedorismo, neoliberalismo e pandemia. O desmascaramento de uma ideologia. Contemporânea , São Carlos, v. 11, n. 3 p. 791-820, Set.–Dez. 2021. LIBERATO, L. V. M. Situações de violência física produzidas pelos bloqueios injustos no trabalho de entrega de comida por aplicativos. Reciis Revista Eletrônica de Comunicação, Informação & Inovação em Saúde, Rio de Janeiro, v. 16, n. 4, p. 785-799, out.-dez. 2022. LIMA, J. C; BRIDI, M. A. Trabalho digital e emprego: a reforma trabalhista e o aprofundamento da precariedade. Cadernos CRH , Salvador, v.32 n.86. mai/ago. 2019. LIMA, J. C.; OLIVEIRA, R. V. de. O empreendedorismo como discurso justificador do trabalho informal e precário. Contemporânea , São Carlos, SP, v. 11, n. 3 p.905-932, set./dez. 2021. MÖHLMANN, M; ZALMANSON, L. Hands on the wheel: Navigating algorithmic management and Uber drivers' autonomy. International Conference on Information Systems (ICIS 2017), December 10-13, Seoul, Coréia do Sul, 2017. MOURA, L. S. de. Juventude e trabalho: o sentido do trabalho para o jovem aprendiz. RIOS - Revista Científica da Faculdade Sete de Setembro, Paulo Afonso, v.11, n.14, 2017. NUNES, B. F. Consumo e identidade no meio juvenil: considerações a partir de uma área popular do Distrito Federal. Sociedade e Estado , Brasília, v. 22, n. 3, p. 647-678, set./-dez, 2007. OLETO, A. de F. et al. Assédio sexual contra jovens trabalhadores: um estudo sobre a (in)visibilidade e as consequências deste fenômeno. XX SEMEAD - Seminários em Administração. novembro de 2017. PEREIRA, M. G. V; TOMIZAKI, K. O sonho de ser metalúrgico: dimensões da vivência juvenil no ABC Paulista. Linhas Críticas , Brasília, v. 22, p. 86-109, 2016. 21
PIRES, A. S; PERIN, J. P. F. Juventude e os sentidos do trabalho: experiências e perspectivas dos cicloentregadores plataformizados. Revista Brasileira de Sociologia , Porto Alegre, v. 11, n. 29, p. 124-150, Set-Dez/2023. PURCELL, C; BROOK, P.l At Least I’m My Own Boss! Explaining Consent, Coercion and Resistance in Platform Work. British Sociological Association , London v. 36, n. 3, junho, 2022. RIZZO, C. B. da S; CHAMON, E. M. Q. de O. A representação social do trabalho para o adolescente. EccoS Revista Científica , São Paulo v. 12, n. 2, p. 453-467, jul-dez, 2010. ROSENBLAT, A. Uberland : how algorithms are rewriting the rules of work. Oakland: University of California Press, 2018. SENNET, R. A corrosão do caráter : as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Edição. Rio de Janeiro: Record, 2005. SILVA, L. A. M. O mundo popular : trabalho e condições de vida. Rio de Janeiro: Papéis Selvagens, 2018. SILVEIRA, J. O. F. C. da. Os impactos da uberização do trabalho na saúde dos entregadores de app da grande Florianópolis . TCC de Graduação em Psicologia. Universidade do Sul de Santa Catarina Unisul. 2021. Disponível em: < https://repositorio.animaeducacao.com.br/bitstream/ANIMA/20380/1/TCC%20VF%20 JANAINA%20OLIVIA%20DE%20FARIA%20CASTILHOS%20DA%20SILVEIRA%20 %281%29%20PDF%20A.pdf> Acesso em 07 de março de 2023. SILVESTRE; B. M; NETO, S. R. dos S; AMARAL, S. C. F. “Sem tempo, irmão”: o trabalho e o tempo livre de entregadores uberizados durante a pandemia de covid-19. Revista Brasileira de Ciências do Esporte , Brasília, v.43, e000421, p.1-8, 2021. SLEE, T. Uberização . São Paulo: Editora Elefante, 2017. SPOSITO, M; SOUZA, R; SILVA, F. A. e. A pesquisa sobre jovens no Brasil: traçando novos desafios a partir de dados quantitativos. Educação e Pesquisa , São Paulo, v.44, e170308, 2018. STENICO, J. A. de G; ADAM, J. M. As concepções de adolescente e as metáforas “ioiô”, “canguru” e “nem nem” como processos sociais. Revista Holos , Natal, v. 34, n. 02, março, 2018. SRNICEK, N. Plataform capitalism . Cambridge: Polity, 2017. THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros : crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar, 1981. 22
THOMPSON, E. P. A formação da classe operária . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. VAN DOORN, N. Trabalho em plataformas é trabalho de minorias. In: GROHMANN, Rafael. (org.) Os laboratórios do trabalho digital : entrevistas. São Paulo: Boitempo, 2021. VINCENT, D. Como fazer uma enquete com informantes. In: LÉTOURNEAU, Jocelyn. Ferramentas para o pesquisador iniciante . São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. ZUBOFF, S. A era do capitalismo de vigilância : a luta por um futuro humano na fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020. WOODCOCK, J; GRAHAM, M. The Gig Economy : A Critical Introduction. Cambridge: Polity, 2020. 23