V.22,
nº
49
-
2024
(setembro-dezembro)
ISSN:
1808-799
X
PODE
A
ESCOLA
ENSINAR
A
GOSTAR
DOS
CLÁSSICOS?
ENSINO
DE
LITERATURA
E
ONTOLOGIA
MATERIALISTA
1
João
Pedro
Nardy
2
Resumo
Problematizando
a
concepção
de
gosto
como
inexplicável
e
intangível,
apresenta-se
a
possibilidade
de
o
prazer
pela
leitura
dos
clássicos
ser
moldada
pelo
trabalho
docente.
Colocando
a
oposição
entre
“sabor”
e
“saber”
como
produto
da
dinâmica
de
alienação,
aposta-se
na
dimensão
prazerosa
dos
clássicos
realistas,
porque
vinculados
à
vida
humana
concreta.
Tais
reflexões
foram
realizadas
à
luz
da
ontologia
materialista
de
Marx
e
da
estética
de
György
Lukács,
e
revelaram-se
contraditórias
para
com
os
postulados
não-diretivos
do
“Aprender
a
aprender”,
típico
do
neoliberalismo.
Palavra-chave
:
Estética
Marxista;
Gosto
literário;
Leitura
literária;
Prazer
estético;
Realismo.
¿PUEDE
LA
ESCUELA
ENSEÑAR
A
GUSTAR
LOS
CLÁSICOS?
ENSEÑANZA
DE
LITERATURA
Y
ONTOLOGÍA
MATERIALISTA
Resumen
Problematizando
la
concepción
del
gusto
como
inexplicable
e
intangible,
se
presenta
la
posibilidad
de
que
el
placer
de
leer
a
los
clásicos
sea
moldeado
por
la
labor
docente.
Al
situar
la
oposición
entre
“sabor”
y
“saber”
como
producto
de
la
dinámica
de
alienación,
se
aposta
en
la
dimensión
placentera
de
los
clásicos
realistas,
porque
vinculados
a
la
vida
humana
concreta.
Tales
reflexiones
se
hicieran
a
la
luz
de
la
ontología
materialista
de
Marx
y
de
la
estética
de
György
Lukács,
resultando
contradictorias
con
los
postulados
no
directivos
del
“Aprender
a
aprender”,
típico
del
neoliberalismo.
Palabras
clave:
Estética
marxista;
Gusto
literario;
Lectura
literaria;
Placer
estético;
Realismo;
CAN
SCHOOL
TEACH
TO
TASTE
THE
CLASSICS?
LITERATURE
TEACHING
AND
MATERIALIST
ONTOLOGY
Abstract
Rendering
as
problematic
the
conception
of
liking
as
unexplainable
and
intangible,
this
paper
presents
the
possibility
of
the
pleasure
in
reading
the
classics
be
molded
by
the
educational
work.
Assigning
the
opposition
between
savor
and
knowledge
as
product
by
the
dynamics
of
alienation,
it
is
waged
in
the
pleasured
dimension
of
the
realistic
classics,
given
its
bond
to
concrete
human
life.
The
work
is
enlightened
by
Marx’s
materialist
ontology
and
the
aesthetics
of
György
Lukács
and
ended
revealing
itself
contradictories
to
the
non-directive
postulates
of
“learning
to
learn”,
typical
of
neoliberalism.
Keywords:
Marxist
aesthetics;
Literary
taste;
Literary
reading;
Aesthetic
pleasure;
Realism.
2
Doutorando
em
Educação
Escolar
pela
Faculdade
de
Ciências
e
Letras
da
Universidade
Estadual
Paulista
(FCLAr/Unesp)
-
Brasil.
Professor
de
Língua
Portuguesa
da
rede
pública
estadual
de
São
Paulo
(SEE-SP)
desde
2015.
E-mail:
jpedronardy@gmal.com
.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/0222676863249780
.
ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-2475-4566
.
1
Artigo
recebido
em
11/05/2024.
Primeira
Avaliação
em
18/08/2024.
Segunda
Avaliação
em
06/09/2024.
Aprovado
em
24/11/2024.
Publicado
em
05/12/2024.
DOI
:
https://doi.org/10.22409/tn.v22i4
9.62934
1
Introdução
De
muitos
homens
viu
as
cidades
e
a
mente
conheceu
;
e
foram
muitas
no
mar
as
dores
que
sofreu
em
seu
coração
(Homero,
Odisseia,
I,
3-4).
Cuando
algún
pintor
quiere
salir
famoso
en
su
arte
procura
imitar
los
originales
de
los
más
únicos
pintores
que
sabe,
y
esta
misma
regla
corre
por
todos
los
más
oficios
o
ejercicios
de
cuenta
que
sirven
para
adorno
de
las
repúblicas,
y
así
lo
ha
de
hacer
y
hace
el
que
quiere
alcanzar
su
nombre
de
prudente
y
sufrido,
imitando
a
Ulises,
en
cuya
persona
y
trabajos
nos
pinta
Homero
en
retrato
vivo
de
prudencia
y
de
sufrimiento,
como
también
nos
mostró
Virgilio
en
persona
de
Eneas
el
valor
de
un
hijo
piadoso
y
la
sagacidad
de
un
valiente
y
entendido
capitán,
no
pintándolo
ni
descubriéndolo
como
ellos
fueron,
sino
como
habían
de
ser
,
para
quedar
ejemplo
a
los
venideros
hombres
de
sus
virtudes
(Cervantes,
Don
Quijote,
I-XXV).
Um
dos
temas
recorrentes
na
relação
entre
Educação
e
Literatura
é
a
relação
entre
formação
do
leitor
e
o
conteúdo
desse
ensino,
tema
que
toca
reflexões
sobre
o
gosto
pela
leitura.
Fundamentado
na
teoria
social
marxista,
o
artigo
partiu
do
pressuposto
modificável
da
ação
humana,
a
qual
se
explica
pelos
atributos
inerentes
à
dinâmica
do
trabalho,
considerado
como
atividade
vital
especificamente
humana
(Marx;
Engels,
2007;
Lukács,
2013;
Márkus,
2015).
Em
posse
desse
arcabouço,
problematiza-se
o
tema
do
gosto
no
seio
de
sua
propositura
concreta
na
educação
escolar:
o
problema
do
ponto
de
partida.
Desta
forma,
duas
hipóteses
,
interligadas
e
complementares
entre
si,
são
apresentadas
à
resolução
do
problema,
sendo
a
primeira
sobre
o
caráter
modificável
do
gosto
pela
dinâmica
de
teleologia
e
causalidade
inerentes
ao
processo
de
trabalho;
e
a
segunda,
de
que
os
grandes
clássicos
da
literatura
podem
vir
a
ser
o
conteúdo
do
ensino
escolar,
não
só
porque
são
importantes
para
uma
formação
humana
multilateral,
mas,
sobretudo,
porque
são
apreciáveis
por
serem
representativos
dos
grandes
temas
da
vida
humana,
presentes
na
vida
de
cada
indivíduo.
A
interrelação
das
hipóteses
deve-se
ao
fato
de
que
apesar
dos
atributos
qualitativos
dos
clássicos,
eles
não
estão
dados
na
vida
cotidiana
da
sociedade
capitalista,
marcada
por
amplas
desigualdades,
contradição
que
o
trabalho
docente
pode
tematizar
e
enfrentar,
ainda
que
plenamente
exitoso
apenas
num
processo
coletivo
e
de
mudanças
sociais
radicais.
2
Chega-se
à
conclusão
de
que
é
possível
e
desejável
ao
trabalho
docente
influenciar
o
gosto
literário
dos
discentes,
o
que
não
significa
determiná-lo
de
maneira
absoluta.
Essa
reflexão
aponta
divergência
com
o
sentido
corrente
nas
considerações
pedagógicas
tecidas
nos
marcos
do
“Aprender
a
Aprender”,
cuja
essência
é
marcada
pela
adaptação
às
relações
sociais
da
sociedade
capitalista
(Duarte,
2011),
e
para
as
quais
importam
mais
as
realizações
que
os
aprendizes
fazem
por
si
mesmos,
sendo
indesejadas
as
intervenções
docentes
rumo
a
um
ponto
de
chegada
estabelecido
à
luz
de
uma
teoria
crítica
sobre
a
sociedade.
Tais
pressupostos
estão
amplamente
vigentes
nos
programas
dos
reformadores
empresariais
da
educação
(Freitas,
2012),
inclusive
na
Base
Nacional
Comum
Curricular
(Brasil,
2017,
p.
14,
480,
482,
489).
Contudo,
as
contribuições
específicas
deste
trabalho
estão
na
realização
de
pesquisa
teórica
e
bibliográfica
sobre
parâmetros
para
o
ensino
de
literatura,
colocada
esta
arte
como
forma
específica
de
conhecimento
da
realidade,
portanto
relevante
para
uma
perspectiva
que
considere
a
formação
humana
pelo
princípio
do
desenvolvimento
multilateral
dos
indivíduos.
A
seguir,
o
trabalho
estrutura-se
em
três
tópicos,
sendo
o
primeiro
dedicado
a
uma
exposição
dos
fundamentos
da
ontologia
materialista
do
trabalho;
o
segundo
apresentando
fundamentação
sobre
o
atributo
do
realismo
como
qualidade
dos
clássicos
literários;
para
que
o
terceiro
tópico
coloque
o
problema
em
termos
propriamente
pedagógicos:
o
ponto
de
partida
do
ensino
de
literatura.
Ao
longo
do
texto,
algumas
categorias
de
análise
foram
destacadas,
por
considerá-las
fundamentais
à
compreensão
do
percurso
dissertativo.
Fundamentos
da
ontologia
materialista
Fundamentamos
nossas
considerações
sobre
o
trabalho
com
obras
literárias
na
educação
escolar
à
luz
da
teoria
social
de
Marx,
inventariada
por
Lukács
(2013),
a
qual
estabelece
o
trabalho
como
fundação
material
e
histórica
do
ser
social.
Trata-se
de
uma
concepção
humanista,
que
assinala
o
ser
humano
como
artífice
do
seu
próprio
mundo,
rechaçando
as
ontologias
religiosas
e
idealistas.
Com
isso,
queremos
estabelecer
que
a
questão-problema
deste
trabalho
–
se
o
gosto
pelo
clássico
é
natural
ou
pode
ser
produzido
pelo
trabalho
educativo
–
pode
ser
abordada
pela
compreensão
mais
geral
da
atividade
vital
humana
que
é
o
trabalho
3
em
sentido
ontológico.
A
essa
questão
apresentaremos
a
hipótese
de
uma
resposta
positiva,
baseada
numa
asserção
complementar
e
indissociável:
tais
clássicos,
devido
ao
processo
de
trabalho
que
os
criou,
possuem
atributos
que
favorecem
a
intervenção
docente.
O
intuito
é
deslocar
a
abordagem
do
gosto
literário
como
fenômeno
puramente
subjetivo
ou
inexplicável
para
uma
concepção
coerente
com
a
ciência
da
história
(Marx;
Engels,
2007),
para
a
qual
os
atos
de
vontade
são
tangíveis
pelos
traços
fundamentais
da
atividade
de
trabalho
(teleologia
e
causalidade),
e
que,
portanto,
podem,
num
projeto
educativo
crítico
e
emancipador,
alinhar-se
à
perspectiva
da
formação
humana
multilateral
3
,
na
qual
a
literatura
não
deixa
de
ser
fruição
e
prazer,
mas
não
se
separa
da
aquisição
do
conhecimento
que
permite
criticar
e
transformar
a
realidade.
Afinal,
os
clássicos
da
literatura
que
aqui
se
valoram
não
deixaram
de
agradar
inúmeras
e
variadas
gerações;
seus
atributos
qualitativos,
também
não
devem
ser
entendidos
como
mistério
de
gênios,
mas
pela
dinâmica
ontológica
do
trabalho,
que
também
se
aplica
ao
trabalho
de
criação
artístico-literária.
Nessa
concepção,
o
trabalho
é
a
inter-relação
entre
humano
(sociedade)
e
natureza,
assinalando
a
transição
do
ser
meramente
biológico
ao
ser
social.
Segundo
Marx
(2013),
o
trabalho
como
criador
de
valores
de
uso
(produtos
de
uso
útil
para
sua
existência)
aparece
como
permanente
condição
de
existência
humana.
Conforme
Lukács
(2013),
admitir
o
trabalho
como
categoria
fundante
do
ser
social
não
implica
a
desconsideração
de
outras
categorias
que
surgem
dele,
simultaneamente,
como
linguagem,
socialidade
e
a
primeira
divisão
do
trabalho.
A
novidade
do
trabalho
rumo
ao
salto
ontológico,
rumo
ao
ser
social,
é
a
pré-figuração
de
um
objeto,
isto
é,
a
capacidade
de
pôr-lhe
uma
finalidade
(
teleologia
).
A
atividade,
assim,
passa
a
ter
um
fim
que
não
coincide
com
sua
realização
imediata,
mas
que
está
dado
na
mente
de
quem
a
realiza.
Trata-se
do
pôr
teleológico,
nas
palavras
de
Lukács,
uma
categoria
que
existe
como
par
inter-relacionado
à
categoria
causalidade,
isto
é,
à
existência
de
causas
no
desenvolvimento
de
certas
consequências
(certas
vezes
imprevistas).
A
teleologia,
por
outro
lado,
é
sempre
a
3
A
superação
do
capitalismo
levaria,
segundo
Marx,
ao
terceiro
estágio
histórico
do
desenvolvimento
da
individualidade
humana,
no
qual
os
indivíduos,
coletivamente
organizados,
direcionariam
de
forma
intencional
as
relações
sociais
para
que
estas
permitissem
o
desenvolvimento
multilateral
e
universal
da
individualidade,
como
consequência
do
caráter
também
multilateral
e
universal
das
relações
sociais
(DUARTE,
2011,
p.
180).
4
colocação
de
uma
finalidade
possibilitada
por
uma
consciência
capaz
de
agir
para
pôr
finalidades
às
coisas.
A
categoria
consciência
é
outro
elemento
fundamental
da
atividade
humana,
cujo
atributo
fundamental
é
a
obtenção
de
um
reflexo
da
realidade.
O
papel
do
espelhamento
no
ser
ativo
e
produtivo
é
o
de
realizar
uma
forma
desenvolvida
da
dýnamis
(potência)
descrita
por
Aristóteles
(
apud
Lukács,
2013,
p.
69),
isto
é,
a
“faculdade
de
levar
a
bom
termo
determinada
coisa
e
de
executá-la
de
acordo
com
a
própria
intenção”,
marcada
pelo
caráter
alternativo
(isto,
é
de
realização
de
escolhas)
de
qualquer
realização
do
trabalho.
Esse
caráter
alternativo
não
existe
na
causalidade
natural,
isto
é,
nas
cadeias
de
causas
e
consequências
da
natureza.
Já
nas
formas
mais
primitivas
do
trabalho
havia
essa
alternativa,
quando
alguém
escolhia
uma
determinada
pedra
para
produção
de
um
machado.
Por
outro
lado,
de
modo
algum,
aquela
propriedade
da
pedra
estava
destinada
à
função
de
tornar-se
machado,
como
não
é
finalidade
do
capim
crescer
para
alimentar
o
bezerro,
e
este
engordar
para
alimentar
os
predadores;
ambas
são
determinações
biologicamente
necessárias
de
um
e
de
outro.
No
trabalho,
não
só
a
finalidade
é
teleologicamente
posta,
mas
também
a
cadeia
de
causas
que
o
realiza
deve
transformar-se
numa
causalidade
posta
.
Para
isso,
é
necessário
que
as
alternativas,
em
cada
detalhe
do
processo
de
trabalho,
sejam
corretamente
consideradas,
devidamente
orientadas
para
a
finalidade
desejada,
levando
em
conta
o
mais
preciso
possível
espelhamento
da
realidade.
Além
da
ênfase
sobre
essas
diversas
alternativas
possíveis
e/ou
necessárias
dentro
processo
de
trabalho,
devemos
enfatizar
que
são
as
próprias
alternativas
que
fazem
com
que
uma
causalidade
seja
a
causalidade
posta,
sem
as
quais
ela
volta
à
simples
condição
de
causalidade
natural.
A
cadeia
de
alternativas
existentes
no
trabalho
não
deve
ser
esquecida
nem
quando
as
alternativas
singulares,
por
força
de
repetições,
hábitos
e
tradições,
sejam
feitas
na
condição
de
reflexos
condicionados
4
,
assumindo
uma
aparência
de
“atos
inconscientes”.
Questionamos:
não
poderiam
certos
gostos
e
preferências
terem
sido
formados
na
qualidade
de
reflexo
condicionado?
Nossa
hipótese
é
de
que
sim,
mas
somente
conforme
mantêm
o
caráter
de
elaboração
inconsciente.
4
Isto
é,
ações
que
se
tornaram
mecânicas,
executadas
inconscientemente
e,
muitas
vezes,
dadas
como
naturais.
5
Todo
reflexo
condicionado
deve
ser
visto
como
originado
de
decisões
alternativas,
predicado
válido
tanto
para
o
desenvolvimento
humano
geral,
quanto
para
os
indivíduos.
Nota-se,
portanto,
a
necessidade
de
aprender
e
exercitar
esses
reflexos,
que
no
início
aparecem
como
cadeia
de
alternativas.
Assim,
podem-se
ver
a
alternativa
e
o
espelhamento
como
categorias
mediadoras
de
algo
que
é
posto
pela
teleologia.
Contudo,
o
ser
humano,
como
ser
social,
lega
às
gerações
futuras
os
produtos
de
suas
realizações
anteriores,
de
modo
que
certos
modos
de
atividade
aparecem
como
determinados
não
pelos
indivíduos,
mas
pela
sociedade.
Lembra-nos
Marx
(2011,
p.
25):
“Os
homens
fazem
sua
própria
história;
contudo
não
a
fazem
de
livre
e
espontânea
vontade,
pois
não
são
eles
quem
escolhem
as
circunstâncias
sob
as
quais
ela
é
feita,
mas
estas
lhes
foram
transmitidas
assim
como
se
encontram”.
Determinação
das
circunstâncias,
portanto,
não
quer
dizer
ausência
de
liberdade.
No
ato
da
alternativa
reside
o
momento
da
decisão,
orientado
pela
consciência
humana.
É
no
trabalho
–
cuja
base
é
a
transformação
dos
objetos
naturais,
desde
a
produção
de
valores
de
uso
mais
imediato,
até
a
produção
artística
–
que
se
realiza
o
próprio
tema
da
liberdade,
portanto,
tema
humano
por
excelência,
nem
natural,
nem
transcendente.
É
necessário
diferenciar
as
ações
humanas
baseadas
em
reflexos
condicionados
dos
meros
instintos
biológicos
que
caracterizam
a
vida
animal.
O
elemento
não-consciente
da
ação
humana
baseia-se
na
transformação
de
movimentos
conscientes
em
reflexos
condicionados
fixos,
mas
que
são
revogáveis,
modificáveis.
Esses
reflexos
condicionados
foram
fixados
por
experiências
acumuladas,
mas
outras
podem
vir
a
substituí-las.
Além
dessa
formulação
de
Lukács,
acrescentamos
que,
evidentemente,
essa
desautomatização
dos
reflexos
condicionados
não
seria
simples
ato
da
vontade,
e
exigiria
esforço
e
dispêndio
de
energia
para
a
realização
contínua
de
atos
decididos
em
seu
favor.
Um
exemplo
disso
seria
a
readequação
de
um
determinado
comportamento
de
estudo
que
um
estudante
desejasse
realizar,
e
o
papel
que
pode
ter
um
ato
externo
(do
professor)
nessa
mudança
qualitativa,
propondo-lhe
outra
rotina,
outra
forma
de
se
relacionar
com
os
estímulos,
com
a
sistematização
dos
conteúdos
no
material
didático,
etc.
Conforme
apresentamos
o
papel
da
escolha
no
devir
dos
comportamentos
humanos
pela
exposição
da
dinâmica
da
atividade
especificamente
humana
–
o
trabalho
–
acreditamos
que
também
tenha
ficado
claro
o
fundamento
da
6
possibilidade
de
o
trabalho
docente
agir
em
prol
da
influência
no
gosto
literário
de
seus
discentes.
Planejar
essa
influência
é
colocá-la
sob
os
termos
de
uma
causalidade
posta,
contudo
de
modo
bastante
relativo,
já
que
não
se
pode
conceber
ação
sobre
a
subjetividade
de
outrem
de
forma
mecânica.
Trata-se
tão
somente
de
uma
influência
bastante
planejada.
Certamente,
concorrem
com
os
clássicos
o
advento
da
indústria
cultural,
mas,
como
condicionantes,
esses
problemas
não
devem
ser
vistos
como
fatalidades
que
impedem
qualquer
mudança.
Por
outro
lado,
esperamos
que
está
superada
a
ideia
de
que
o
gosto
seja
“autêntica”
manifestação
do
ser,
uma
escolha
totalmente
livre
e
consciente
que
represente
o
sujeito
em
sua
individualidade,
desconsiderado
de
uma
sociabilidade.
A
publicidade
e
a
massiva
difusão
da
indústria
cultural
podem
ser
vistas
como
fatores
que
atuam
na
fixação
do
gosto,
o
qual
aparecerá,
portanto,
como
reflexo
condicionado.
A
consideração
do
complexo
do
trabalho
na
ontologia
marxista
também
implica
a
consideração
do
fenômeno
da
alienação,
o
qual
atravessa
o
complexo
do
trabalho,
portanto
as
formas
de
apreensão
da
realidade.
Gyorgy
Márkus
(2015),
apoiado
nas
mesmas
fontes
marxianas,
estabelece-a
como
a
discrepância
pela
qual
o
progresso
histórico
da
humanidade
separa-se
do
desenvolvimento
dos
indivíduos.
Na
dinâmica
do
trabalho,
aquelas
características
formativas
e
criativas
do
processo
teleológico
são
perdidas
em
função
das
divisões
e
fragmentações
do
trabalho,
dadas
as
relações
de
produção
baseadas
na
apropriação
privada
dos
meios
e
produtos
do
trabalho,
a
qual
enseja
a
divisão
da
sociedade
em
classes
sociais
desiguais.
Contudo,
Lukács
e
Márkus
sublinham
que
o
trabalho
nunca
perde
seu
caráter
de
atividade
vital,
por
mais
alienado
que
seja
seu
contexto:
no
par
alienação-liberdade
existe
sempre
uma
margem
relativa
e
modificável.
O
trabalho
educativo
atua
como
proposição
de
uma
causalidade
posta
e,
na
Pedagogia
Histórico-crítica,
preocupa-se
com
o
problema
da
alienação.
É
o
que
propõe
Saviani
(2011,
p.
13)
quando
assevera
a
necessidade
de
compreensão
do
trabalho
educativo
como
“ato
de
produzir,
direta
e
intencionalmente,
em
cada
indivíduo
singular,
a
humanidade
que
é
produzida
histórica
e
coletivamente
pelo
conjunto
dos
homens”.
Lukács
também
estabelece
a
categoria
ontológica
de
trabalho
como
subjacente
à
intenção
artística
de
reprodução
da
realidade
na
forma
do
reflexo
estético.
O
artista
ou
escritor
literário
estabelece
os
meios
de
reprodução
intensiva
da
realidade
conforme
recria
a
dialética
de
aparência
e
essência
dos
7
fenômenos
da
realidade,
de
modo
que
a
aparência
das
coisas,
na
obra,
atue
para
revelação
da
realidade.
Trata-se
de
um
modo
de
pensar
diferente
do
pensamento
cotidiano,
do
senso
comum,
os
quais
fundem
essência
e
aparência,
relativizando
fatos
diversos.
É
nesse
sentido
que
este
artigo
propõe
a
influência
no
gosto
literário
dos
discentes
como
causalidade
posta
pelo
trabalho
docente,
como
forma
de
contraposição
à
alienação
presente
tanto
nas
formas
dominantes
de
consciência
(estranhamento),
quanto
na
falta
de
acesso
às
grandes
obras
para
os
indivíduos.
A
hipótese
de
que
é
possível
gostar
do
clássico:
o
realismo
como
qualidade
Ainda
que
salientando
a
influência
positiva
da
mediação
docente,
apresentamos
a
possibilidade
de
o
gosto
pelo
clássico
encontrar
substância
no
poder
do
próprio
texto,
pelos
seus
elementos
constitutivos
fundamentais:
a
característica
de
reflexo
da
realidade,
na
qual
estão,
também,
dados
da
história
de
vida
do
indivíduo
concreto,
porque
tratam
do
substrato
comum
do
desenvolvimento
humano.
Na
teoria
lukacsiana,
o
reflexo
científico
visa
explicar
dado
fenômeno
pelo
máximo
de
objetividade,
isto
é,
pelo
fato
em
si
mesmo,
removendo
crenças,
aparências
e
impressões
criadas
por
ações
humanas
sobre
ele.
Exemplo
disso
é
a
atribuição
da
capacidade
humana
de
criação
pelo
trabalho
a
fenômenos
essencialmente
naturais,
atribuindo-lhes
vida
e
consciência
(processo
que
esteve
na
base
da
criação
dos
mitos
e
dos
deuses);
o
reflexo
científico
opera
um
processo
de
desantropomorfização.
O
reflexo
literário,
um
gênero
do
reflexo
estético
,
constitui-se
como
um
reflexo
antropomórfico
da
realidade.
Mesmo
tematizando
a
natureza
ou
a
sociedade,
nele
prevalece
a
relação
do
humano
com
elas:
“No
seu
centro
estão
os
seres
humanos,
as
relações
entre
si
e
com
o
mundo,
suas
formas
de
percepção,
seus
sentimentos,
seus
conflitos,
dramas
etc.
(Duarte,
2016,
p.
75)”.
Este
antropomorfismo,
contudo,
é
diferente
daquele
existente
nos
reflexos
cotidiano
e
religioso:
ao
assumir-se
antropomórfico,
ele
evidencia
a
ação
humana
subjacente
à
realidade
social,
e
aponta
para
a
possibilidade
de
uma
vida
humana
genérica,
isto
é,
de
uma
comunidade
do
gênero
humano,
contribuindo
para
revelar
a
realidade
que
pode
ter
sido
ocultada
pelo
dogma
do
pensamento
religioso
ou
pelo
reflexo
cotidiano
(Heller,
1994).
A
teoria
estética
de
Lukács,
de
base
ontológica,
assinala
o
realismo
8
como
método
de
criação
que
efetivamente
possibilita
uma
obra
constituir-se
como
reflexo
estético
da
realidade.
A
definição
de
Lukács
difere
da
definição
do
clássico
pelo
prestígio
que
determinados
autores
ou
obras
obtiveram.
O
crítico
literário
húngaro
inclusive
problematiza
obras
que
alçaram
esse
patamar,
mas,
especialmente
no
século
XIX,
mergulharam
na
perspectiva
naturalista
em
voga.
Esses
autores
pretenderam
retratar
com
fidelidade
a
realidade
vivida
e
chamaram-se
realistas,
mas
não
o
foram.
Lukács
questionou
a
capacidade
do
reflexo
fotográfico,
à
maneira
dos
etnógrafos,
captar
a
realidade
em
suas
múltiplas
determinações.
Contra
o
descritivismo,
evocou
o
poder
da
narração,
priorizando
a
ação
em
detrimento
da
cena
estática.
Por
outro
lado,
não
deixou
de
ver
valor
em
obras
associadas
ao
gênero
conhecido
como
fantástico,
que
apesar
da
liberdade
criativa,
não
necessariamente
significa
transcendência
arbitrária
das
determinações
das
relações
sociais
existentes,
com
o
pretexto
de
rejeitar
radicalmente
uma
dada
realidade.
O
crítico
rejeitou,
ainda,
a
concepção
de
uma
independência
absoluta
das
formas
artísticas,
da
perfeição
formal
como
um
fim
em
si
mesmo
como
responsável
pela
eficácia
estética,
pautando,
por
sua
vez,
o
conteúdo
como
momento
predominante.
A
verdadeira
obra
de
arte
visa
o
maior
aprofundamento
e
a
máxima
compreensão.
Visa
captar
a
vida
na
sua
totalidade
onicompreensiva.
Quer
dizer,
ela,
a
verdadeira
arte,
aprofunda-se
sempre
na
busca
daqueles
momentos
mais
essenciais
que
se
acham
ocultos
sob
a
capa
dos
fenômenos;
mas
não
representa
esses
momentos
essenciais
de
forma
abstrata,
fazendo
abstração
dos
fenômenos
e
contrapondo-se
àqueles,
e
sim
apreende
exatamente
aquele
processo
dialético
vital
pelo
qual
a
essência
se
transforma
em
fenômeno,
se
revela
no
fenômeno
,
fixando
também,
aquele
aspecto
do
mesmo
processo
segundo
o
qual
o
fenômeno
manifesta,
na
sua
mobilidade,
a
sua
própria
essência.
Por
outro
lado,
esses
momentos
singulares
não
só
contêm
neles
mesmos
um
movimento
dialético,
que
os
leva
a
se
superarem
continuamente,
mas
se
acham
em
relação
uns
com
outros
numa
permanente
ação
e
reação
mútua,
constituindo
momentos
de
um
processo
que
se
reproduz
sem
interrupção.
A
verdadeira
arte,
portanto,
fornece
sempre
um
conjunto
da
vida
humana,
representando-a
no
seu
movimento,
na
sua
evolução
e
desenvolvimento
(Lukács,
1965,
p.
29,
grifos
nossos).
Com
isso,
Lukács
salienta
a
especificidade
do
reflexo
estético
que,
como
se
vê,
atua
diferentemente
do
reflexo
científico.
O
texto
literário
não
possibilita
conhecer
a
realidade
por
meio
de
uma
exposição
sistemática,
linear,
salientando
gênese,
9
causas
e
consequências
abstraídas
da
vida
humana
real,
enfatizando
cada
aspecto
como
aparência
ou
como
essência
de
algo,
como
é
próprio
da
ciência
ou
do
texto
didático;
antes
o
texto
literário,
como
gênero
do
reflexo
estético,
permite
que
o
experienciador
viva
aquela
realidade
como
uma
“segunda
realidade”,
que
já
foi
organizada
pelo
escritor
realista
com
mediação
do
conhecimento
humano.
Quanto
maior
for
o
domínio
da
realidade
enquanto
síntese
de
múltiplas
determinações,
mais
perfeitamente
será
a
recriação
das
relações
universais
do
objeto
retratado
num
particular
,
isto
é,
numa
realidade
recriada
como
forma
de
conhecimento
sensível
(sensível
justamente
porque
se
sente).
O
trabalho
docente
pode
produzir
o
gosto
pelo
clássico
porque
seu
conteúdo
ecoa
nos
indivíduos
concretos.
O
passado
refletido
nas
obras
literárias
também
pertence
às
gerações
do
presente,
e,
por
meio
delas,
é
possível
sentir-se
pertencente
ao
gênero
humano.
Isso
não
ocorre
por
acaso,
mas
porque
elas
apresentam
situações
e
indivíduos
típicos.
Diante
da
pergunta
de
Marx
sobre
a
permanência
do
prazer
na
fruição
de
obras
antigas,
Lukács
responde:
O
que
o
espectador
sente
com
emoção,
no
Édipo
5
,
é
precisamente
um
destino
humano
típico,
no
qual
mesmo
o
homem
moderno
–
ainda
que
só
possa
perceber
os
pressupostos
históricos
concretos
aproximadamente
–
reconhece
com
emoção
imediata,
ao
revivê-lo,
um
mea
causa
agitur
[uma
causa
sua,
própria].
(Lukács,
2018,
p.
262).
Apresentamos
a
hipótese
de
que
o
típico
realize
aproximações
e
distanciamentos
entre
leitor
e
obra.
Se
por
um
lado
a
personagem
típica
é
indivíduo
único
e
irrepetível,
que
se
destaca
das
demais
por
traços
singulares,
distanciando-se
da
média
dos
indivíduos
e
apresentando-se
como
novidade
interessante,
por
outro
ocorre
aproximação
conforme
o
típico
também
esteja
atravessado
por
aquelas
características
universais
em
seu
gênero:
os
conflitos
inerentes
à
dialética
de
humanização
e
desumanização,
como
na
jornada
humana
em
torno
das
formas
5
A
tragédia
do
Rei
Édipo
(Sófocles,
2011)
tem
seu
ponto
culminante
no
conflito
típico
do
destino
fatalmente
traçado
ou
livremente
determinado
pela
ação
humana.
Na
cidade
de
Corinto,
Édipo
recebe
o
presságio
de
que
matará
o
pai
e
desposará
a
mãe,
então
imediatamente
foge
em
direção
a
Tebas.
No
caminho,
mata
o
homem
que
vem
a
descobrir
ser
seu
pai;
na
chegada,
casa-se
e
tem
filhos
com
a
mulher
que
posteriormente
descobre
ser
sua
mãe.
O
personagem
grego
vivia
como
filho
adotivo
e,
sem
sabê-lo,
retorna
à
família
biológica;
no
afã
de
fugir
do
destino,
de
traçar
sua
própria
história.
Além
do
típico
par
determinismo
e
liberdade,
a
peça
implica
o
apelo
à
dignidade
da
condição
humana,
dada
a
catastrófica
punição
que
o
próprio
herói
impõe
a
si
mesmo:
a
mutilação
dos
olhos
e
perpétua
mendicância.
10
históricas
do
trabalho.
Alfredo
Bosi
(1974,
p.
191)
cita
os
personagens
Capitu
e
Rubião,
de
Machado
de
Assis,
como
exemplares
do
típico
lukacsiano.
Para
ele,
são
personagens
que
transcendem
singularmente
as
redes
gerais
dos
tipos
“provinciano
desfrutável
e
impressionável”,
da
“mocinha
pobre
e
ambiciosa”,
de
maneiras
enrijecidas
ou
simplificadas
em
“figuras
médias”,
conforme
ocorre
com
certas
personagens
concebidas
à
luz
do
método
naturalista
em
Aluísio
de
Azevedo.
A
título
de
outro
exemplo,
apresentaremos
brevemente
como
o
conceito
atravessa
o
clássico
personagem
Odisseu,
de
Homero
6
.
Ao
longo
da
Odisseia,
os
traços
de
caráter
do
heroi
grego
o
singularizam,
para
bem
ou
mal,
muitas
vezes
afligindo-o
verdadeiramente.
A
jornada
começa
quando
Odisseu,
rei
de
Ítaca,
adere
à
guerra
contra
Tróia,
a
qual
colocaria
o
nome
dos
guerreiros
na
história,
pouco
importando
os
motivos
gananciosos
dos
líderes
gregos.
Vencida
a
guerra,
na
viagem
de
volta,
sua
decisão
de
saquear
os
pacíficos
cícones
e
explorar
a
ilha
do
ciclope
Polifemo
impõem
a
perda
de
vários
companheiros.
Suas
demoras
em
churrascos
e
bebedeiras,
como
na
ilha
de
Circe,
atrasam
cada
vez
mais
seu
urgente
retorno,
tal
qual
sua
permanência
na
ilha
Ogígia,
fazendo-o
chorar
de
saudades
de
casa
durante
os
dias,
prostrado
ante
o
mar,
mesmo
que
se
entregue
à
ninfa
Calipso
durante
as
noites.
Por
outro
lado,
sua
astúcia
e
seu
discernimento
evitaram
a
perda
derradeira
de
companheiros
que
se
viciaram
na
flor
de
lótus,
espécie
de
droga.
Também
foram
benéficas
suas
atitudes
de
comedimento
e
modéstia
ao
decidir
passar
pelas
sereias
amarrado
ao
mastro
do
barco,
para
não
ceder
a
seu
canto,
bem
como
a
renúncia
à
carne
nos
momentos
que
fora
orientado
a
não
se
desviar
de
sua
jornada,
situações
em
que
vidas
de
companheiros
foram
salvas,
ou
a
do
próprio
Odisseu
(na
verdade,
os
últimos
companheiros
perecem
quando
comem
o
gado
de
Hiperíon,
o
Sol).
Não
escapou
de
sofrer
quando
retornou
à
sua
terra,
conforme
a
célebre
passagem
do
reencontro
com
o
cão
Argos,
que,
moribundo,
esperava
o
mestre
para
dar
o
último
suspiro,
sem
que
Odisseu
pudesse
sequer
abraçá-lo,
devido
ao
disfarce
que
necessitou
utilizar.
A
experiência
da
dor
da
perda
também
foi
vivida
pelo
herói
quando
ele
desce
ao
Hades
para
se
informar
com
o
sábio
Tirésias,
mas
acaba
por
encontrar
ali,
na
mansão
dos
mortos,
a
própria
mãe,
cuja
morte
o
herói
não
sabia.
6
Edição
de
referência:
tradução
portuguesa
de
Frederico
Lourenço
(2018).
11
Essa
individualização
é
atravessada
por
aquilo
que
a
Ontologia
do
Ser
Social
estabelece
como
universal
no
gênero
humano:
a
dinâmica
do
momento
alternativo
no
pôr
teleológico,
bem
como
a
cadeia
causal
que
ele
aciona,
podendo
ensejar
consequências
diversas.
Além
dos
pares
causa/consequência
ou
teleologia/causalidade,
podemos
observar
outros
pares
típicos:
determinismo/liberdade,
finitude/permanência,
humanização/
desumanização
.
Para
além
do
típico,
o
método
narrativo
também
aparece
na
Odisseia
–
embora,
sublinhe-se,
não
se
trate
de
um
recurso
exclusivo
à
epopeia
ou
ao
romance,
podendo
ocorrer
no
drama
e
na
lírica
–
tratando
de
enfatizar
o
ser
humano
como
artífice
do
próprio
mundo,
tal
qual
estabelece
a
ciência
da
história
(Marx;
Engels,
2007).
Eis
o
par
distanciamento
e
aproximação
na
dialética
de
produção
e
recepção
da
arte.
Por
mais
distante
que
esteja
o
leitor
de
hoje
em
relação
a
Odisseu,
o
núcleo
humano
dessa
personagem
o
aproxima.
A
particularização
de
Odisseu
nesses
temas
típicos
–
anseio
por
conhecer,
realizar
escolhas,
desejar,
renunciar,
vivenciar
o
luto,
viajar,
aprender
–
faz
parte
do
realismo
homérico,
que
apresenta
um
heroi
imperfeito
e
contraditório
,
e
que
só
por
isso
é
tido
como
modelar.
Assinalando
esse
exemplo,
é
fundamental
observar
que
o
realismo
clássico
que
fundamenta
a
estética
lukacisana
apresenta
o
ser
humano
não
apenas
como
ele
é,
mas
no
que
ele
pode
vir
a
ser,
tal
qual
dito
no
comentário
de
Cervantes,
pelas
palavras
do
Quixote,
na
epígrafe
deste
artigo.
Em
sua
Ontologia,
Lukács
observa
como
uma
constante
nas
narrativas
míticas
de
diversos
povos
a
elaboração
do
tema
do
domínio
humano
sobre
seus
instintos
e
anseios
impulsivos,
irrefletidos,
estabelecendo
valores
especificamente
humanos
aos
comportamentos
possíveis,
tema
que
também
é
uma
constante
em
filósofos
muito
diferentes
entre
sí,
como
Espinosa
e
Kant.
Desse
modo,
aquelas
decisões
que
realizam
em
sua
forma
mais
pura
essas
possibilidades
reais
–
afirmando
ou
negando
o
valor
–
realizam,
em
cada
estágio
do
desenvolvimento,
uma
exemplaridade
positiva
ou
negativa.
Essa
exemplaridade,
nos
estágios
primitivos,
é
transmitida
através
da
tradição
direta,
oral.
Tornam-se
heróis
do
mito
aqueles
que
responderam
a
essas
alternativas
–
que
culminam
em
valores
–
da
vida
da
tribo,
num
nível
de
exemplaridade
humana
tal
que
a
resposta
tenha
se
tornado
–
positiva
ou
negativamente
–
social
e
duravelmente
significativa
para
a
reprodução
daquela
vida
e
por
isso
parte
constitutiva
daquele
processo
de
reprodução
no
seu
processo
de
mudança
e
preservação
(Lukács,
2013,
p.
123).
12
Destaque-se
que
a
condição
de
permanência
desses
mitos
e
herois
exemplares
está
na
possibilidade
de
serem
constantemente
reinterpretados.
O
exemplo
do
autor
é
a
reinterpretação
de
Prometeu:
por
Hesíodo
fora
apresentado
como
transgressor
corretamente
punido
pelos
deuses;
por
Ésquilo,
sob
os
ares
da
democracia
ateniense,
fora
interpretado
como
benfeitor
da
humanidade
conforme
assinalou
metaforicamente
a
ciência
e
a
técnica
(fogo)
como
libertação
humana.
Essa
reelaboração
é
muito
interessante
por
permitir
que
cada
época
leia
os
clássicos
e
os
reelabore
à
luz
dos
seus
problemas
específicos.
A
jornada
de
Odisseu,
por
exemplo,
pode
ser
lida
e
discutida
à
luz
das
problematizações
sobre
as
relações
de
gênero,
patriarcado,
etc.,
ou
ainda
sobre
o
caráter
cosmopolita
desse
mundo
antigo,
que
lega
ao
mundo
uma
matriz
relevante
de
arte
como
reflexo
da
realidade.
Um
legado
construído
por
diversos
povos,
e
não
por
uma
Europa
branca,
como
se
pinta
em
algumas
interpretações
pós-modernas
que
defendem
o
relativismo
cultural.
Afinal,
conta-nos
uma
passagem
da
Odisseia
que
Odisseu
era
um
homem
negro
7
.
Se
em
outros
momentos
históricos
de
leitura
da
obra
isso
foi
irrelevante
ou
até
incômodo,
para
nós,
ela
atesta
essa
abertura
à
atualização
inerente
aos
grandes
clássicos.
Dada
a
natureza
ontológica
da
estética
marxista
de
Lukács,
uma
dimensão
ética
é
fundamental
ao
fazer
artístico-literário,
de
grande
relevância
quando
relacionadas
à
arte,
literária
e
educação
escolar.
Até
aqui
vimos
a
necessidade
de
pensar
a
produção
do
gosto
não
como
expressão
subjetivista,
que
pode
refletir
a
dinâmica
de
alienação
da
sociedade,
mas
prismada
na
perspectiva
da
formação
humana
multilateral.
A
unidade
entre
ética
e
estética
não
deve
soar
como
subordinação
de
uma
à
outra,
mas
implicar
a
ideia
de
que
conhecimento
da
realidade
(conhecimento
do
ser
humano)
e
concepção
de
mundo
não
apareçam
cindidos.
Tal
unidade
aparece
muito
bem
formulada
quando
Lukács
(2023,
p.
363)
aponta
que
“por
trás
de
toda
atividade
artística,
encontra-se
a
questão:
em
que
7
“De
novo
ficou
de
pele
negra
[
melankhroíês
],
encheram-se-lhe
as
faces
/
e
a
barba
escureceu
em
torno
do
seu
queixo”
(Homero,
Odisseia,
XVI,
175-176).
Frederico
Lourenço
(2018),
tradutor
português
de
Odisseia,
observa,
em
nota
a
esses
versos,
que
a
referida
palavra
grega
é
rara
na
literatura
grega,
e
ocorre
com
sentido
denotativo
similar
em
Fedro,
de
Platão,
para
designar
um
cavalo
de
pelo
negro.
Ainda
que
considere
inconclusiva
ante
outras
passagens,
o
autor
cita
diversas
fontes
que
atestam
o
caráter
multiétnico
da
Grécia
minoica,
micênica
e
arcaica,
influenciada
pelo
próximo
Oriente
semítico
e
pelo
Norte
de
África
(Egito),
fato
já
mais
amplamente
aceito
no
âmbito
dos
Estudos
Clássicos.
13
medida
este
mundo
é
realmente
um
mundo
do
homem,
um
mundo
que
ele
pode
aceitar
como
seu,
adequado
à
sua
humanidade?”
Essa
concepção
certamente
diferencia-se
das
mais
correntes
relações
entre
aprendizado
ético
e
vivência
estética,
seja
no
pólo
conservador,
que
visa
subordinar
a
arte
à
transmissão
de
lições
de
moral
rígidas,
ausentes
de
contradições,
ou
daquela
estabelecida
por
Antonio
Candido
(2011,
p.
178),
em
seu
célebre
“O
direito
à
Literatura”,
na
qual
bastaria
o
contato
com
a
realidade
esteticamente
refletida,
por
exemplo:
Há
conflito
entre
a
ideia
convencional
de
uma
literatura
que
eleva
e
edifica
(segundo
os
padrões
oficiais)
e
a
sua
poderosa
força
indiscriminada
de
iniciação
na
vida,
com
uma
variada
complexidade
nem
sempre
desejada
pelos
educadores.
Ela
não
corrompe
nem
edifica
,
portanto;
mas,
trazendo
livremente
em
si
o
que
chamamos
bem
e
o
que
chamamos
mal,
humaniza
em
sentido
profundo,
porque
faz
viver.
A
função
da
literatura
está
ligada
à
complexidade
de
sua
natureza,
que
explica
inclusive
o
papel
contraditório
(talvez
humanizador
porque
contraditório).
Certamente,
é
de
grande
contribuição
à
formulação
de
Cândido
quando
colabora
com
o
combate
às
censuras
conservadoras,
como
dos
movimentos
de
Escolas
Sem
Partido.
Contudo,
são
coisas
muito
distintas
usar-se
da
obra
como
transmissora
de
lições
de
moral
maniqueístas,
tal
qual
valeu-se
a
Igreja
Católica
ou
o
“Realismo”
socialista
da
era
estalinista,
e
apresentar
um
posicionamento
ético,
efetivamente
assinalado
pelo
autor,
mediante
o
caráter
alternativo
do
pôr
teleológico
da
criação
literária.
Lukács
ajuda
a
esclarecer
o
caráter
objetivo
desse
dilema:
No
estético
o
objeto
fundamental
(a
sociedade
em
metabolismo
com
a
natureza)
implica
a
simultaneidade
indissociável
de
reprodução
e
posicionamento,
objetividade
e
tomada
de
partido,
tendo
como
referência
um
sujeito
que
elabora
sua
autoconsciência.
O
estabelecimento
desses
dois
fatores
perfaz
a
historicidade
indissolúvel
de
toda
obra
de
arte.
Ele
não
fixa
simplesmente
situações
de
fato
existentes
em
si,
como
faz
a
ciência,
mas
eterniza
um
momento
do
desenvolvimento
histórico
do
gênero
humano.
A
preservação
da
individualidade
na
tipicidade,
da
tomada
de
partido
no
fato
objetivo
etc.,
representa
os
momentos
dessa
historicidade.
Portanto,
a
verdade
artística,
enquanto
verdade,
é
histórica;
sua
gênese
correta
converge
com
sua
validade
derradeira,
dado
que
esta
não
é
senão
o
ato
de
desocultar
e
tornar
evidente,
alçar
à
vivenciabilidade
um
dos
momentos
do
desenvolvimento
do
gênero
humano
que
merece
ser
registrado,
em
termos
tanto
de
conteúdo
quanto
de
forma.
(Lukács,
2023,
p.
389).
14
Conclui-se
o
tópico
com
a
expectativa
de
estar
fortalecida
aquela
hipótese
de
que
é
possível
produzir
o
gosto
pelo
clássico
por
ele
conter
aquele
substrato
comum
do
desenvolvimento
humano,
do
qual
cada
indivíduo
faz
parte.
O
experienciador
da
obra
literária
vivencia
um
pouco
da
humanidade
genérica
ao
confrontar
sua
experiência
de
vida
com
a
criação
ficcional,
dramática
ou
poética.
Sente-se
como
parte
de
uma
humanidade
que
transcende,
momentaneamente,
suas
barreiras
locais,
sociais
e
nacionais,
mas
de
modo
que
perceba
que
o
passado
narrado
em
Homero
ou
em
Machado
de
Assis
é
um
passado
seu,
e
que
conflitos
vivenciados
por
Heitor,
Helena,
Odisseu,
Capitu
e
Rubião
são,
também,
seus.
Aliás,
essa
é
a
explicação
para
que
certas
obras
sobrevivam
ao
tempo;
sobrevivem,
ainda,
conflitos
típicos
da
condição
humana,
muitos
dos
quais
elementos
marcantes
de
toda
a
era
da
alienação.
Faz
parte
da
hipótese
deste
trabalho
que
esse
sentimento
de
pertencimento
a
uma
comunidade
do
gênero
humano
leve
ao
inconformismo
da
experiência
de
vida
na
sociedade
capitalista,
a
qual
impõe
privações
de
todos
os
tipos
à
maioria
dos
indivíduos,
sentimento
que
precisa
ser
mais
fomentado
do
que
a
acomodação
e
adaptação
dos
indivíduos
ao
atual
estado
de
coisas.
Contudo,
continua
válido
o
pressuposto
de
que
a
incorporação
da
necessidade
do
clássico
pelos
discentes
recebe
grande
apoio
da
produção
intencional
dessa
demanda
pelo
trabalho
educativo,
já
que
não
se
trata
de
um
conteúdo
típico
da
vida
cotidiana.
Colocando
o
problema:
o
ponto
de
partida
está
no
gosto
inicial
ou
no
horizonte
de
formação
humana
multilateral?
Valorado
o
clássico,
coloca-se
um
dilema
comum
a
educadores
e
estudiosos
de
letras:
o
ponto
de
partida
na
formação
dos
leitores,
o
qual
nada
mais
é
do
que
uma
das
formas
de
apresentação
do
problema
da
diretividade
ou
não-diretividade
do
trabalho
educativo.
Há
bordões,
cuja
gênese
é
duvidosa,
que
recomendam
“partir
do
que
o
aluno
já
tem”,
“partir
do
cotidiano
do
aluno”.
Em
adjacência,
acrescentemos
que,
no
âmbito
da
seleção
de
conteúdo
do
ensino
escolar
de
literatura,
esse
bordão
pode
abranger
“o
que
o
aluno
já
gosta”.
Mas
ainda
que
isso
fosse
levado
em
conta,
como
planejar
um
programa
de
ensino
estabelecendo
o
aluno
como
ponto
de
partida?
Quem
de
fato
seria
esse
aluno,
cada
indivíduo
singular
ou
uma
coletividade
com
determinações
em
comum?
Seria
possível
atender
a
todos
os
interesses
de
15
cada
indivíduo
singular,
empírico?
Certamente
isso
só
seria
viável
numa
proposta
pedagógica
sem
um
ponto
de
chegada
claro.
Considere-se
o
que
diz
Saviani
(2011),
em
sua
reflexão
sobre
o
aluno
empírico
e
aluno
concreto:
Mostro
o
aluno
concreto
e
apresento
o
concreto
como
a
síntese
de
múltiplas
determinações
definidas
enquanto
relações
sociais.
Portanto,
o
que
é
do
interesse
desse
aluno
concreto
diz
respeito
às
condições
em
que
se
encontra
e
que
ele
não
escolheu.
Assim,
também
as
gerações
atuais
não
escolhem
os
meios
e
as
relações
de
produção
que
herdam
da
geração
anterior,
e
a
sua
criatividade
não
é
absoluta,
mas
faz-se
presente.
A
sua
criatividade
vai
expressar-se
na
forma
como
ela
assimila
essas
relações
e
as
transforma.
Então,
os
educandos,
enquanto
concretos,
também
sintetizam
relações
sociais
que
eles
não
escolheram.
Isso
anula
a
ideia
de
que
o
aluno
pode
fazer
tudo
pela
sua
própria
escolha
.
Essa
ideia
não
corresponde
à
realidade
humana.
Daí
a
grande
importância
de
distinguir,
na
compreensão
dos
interesses
dos
alunos,
entre
o
aluno
empírico
e
o
aluno
concreto
,
firmando-se
o
princípio
de
que
o
atendimento
aos
interesses
dos
alunos
deve
corresponder
sempre
aos
interesses
do
aluno
concreto.
O
aluno
empírico
pode
querer
determinadas
coisas,
pode
ter
interesses
que
não
necessariamente
correspondem
aos
seus
interesses,
enquanto
aluno
concreto.
(Saviani,
2011,
p.
121-122,
grifos
nossos).
O
problema
de
ponto
de
partida
versus
ponto
de
chegada
também
se
desdobra
no
valor
dado
ao
conteúdo
escolar
de
modo
mais
amplo,
pelo
par
saber
“erudito”
e
saber
“popular”
8
,
tomando
o
termo
“cultura
popular”
de
maneira
ampla,
momentaneamente
incluindo
aí
a
cultura
de
massa
e
as
produções
da
indústria
cultural
de
modo
geral
–
tomando
por
popular
algo
que
seja
amplamente
difundido.
Saviani
enfatiza
que
o
ponto
de
partida
já
foi
dado
fora
da
escola,
e
que
o
trabalho
educativo,
em
sua
especificidade,
e
tomando
partido
de
uma
igualdade
radical,
centra-se
precisamente
sobre
o
ponto
de
chegada.
Mostrei
que
o
processo
pedagógico
tem
que
realizar
no
ponto
de
chegada
o
que
no
ponto
de
partida
não
está
dado.
Refiro-me,
por
exemplo,
à
questão
da
igualdade
que
não
está
dada
no
ponto
de
partida,
mas
que
é
algo
que
tem
que
ser
alcançado
no
ponto
de
chegada.
A
cultura
popular,
do
ponto
de
vista
escolar,
é
da
maior
importância
enquanto
ponto
de
partida.
Não
é,
porém,
a
cultura
popular
que
vai
definir
o
ponto
de
chegada
do
trabalho
pedagógico
nas
escolas.
Se
as
escolas
se
limitarem
a
reiterar
a
cultura
popular,
qual
será
sua
função?
Para
desenvolver
cultura
popular,
essa
cultura
8
Entre
aspas
por
reconhecer
não
só
a
imprecisão
dos
conceitos,
mas
por
entender
que
não
são
esferas
estanques
e
incomunicáveis,
mas
que
trocam
experiências
e
que
um
pode
enriquecer
o
outro
e
vice-versa,
como
bem
formulam
Cândido
(2011)
e
Saviani
(2011).
16
assistemática
e
espontânea,
o
povo
não
precisa
de
escola.
(SAVIANI,
2011,
p.
69.
Itálicos
no
original).
Saviani
(2011)
ressalta
a
distinção
entre
três
tipos
de
saber,
recuperando
os
três
significados
de
conhecimento
para
os
antigos
gregos.
Ele
ressalta
que
o
saber
próprio
à
escola
é
o
saber
vinculado
à
episteme
,
isto
é,
ao
saber
sistematizado,
metódico;
diferenciando-se
tanto
da
doxa
,
um
saber
de
opinião,
relativo
ao
senso
comum,
ao
cotidiano,
quanto
da
sofia
,
saber
vinculado
à
vivência,
à
experiência
pessoal,
à
sabedoria
dos
mais
velhos.
O
saber
próprio
à
episteme
pode
ser
transmitido
sem
preconceito
e
hierarquias
fundadas
fora
do
processo
de
inquirição
da
verdade
pelo
estudo,
pela
pesquisa
ou
pela
reflexão
exaustiva.
Se
a
escola
não
for
encarregada
de
transmiti-lo,
especialmente
às
classes
populares,
esse
tipo
de
saber
ficará
prejudicado,
uma
vez
que
as
duas
outras
formas
não
dependem
de
uma
instituição
específica
para
transmiti-las.
O
problema
do
“ponto
de
partida”,
também
é
abordado
pelos
trabalhos
do
psicólogo
soviético
Lev
Vigotski
(1993),
implicados
num
contexto
de
luta
proletária
por
emancipação,
o
período
da
revolução
russa:
Vigotski
afirmou,
sobre
o
desenvolvimento
do
pensamento
conceitual,
que
a
aprendizagem
dos
conceitos
científicos
na
escola
produz
uma
grande
transformação
nos
conceitos
espontâneos
que
a
criança
adquire
em
sua
vida
cotidiana.
Mas,
segundo
Vigotski,
os
conceitos
científicos
operam
essa
transformação
no
pensamento
da
criança
e
do
adolescente
a
partir
da
base
formada
pelos
conceitos
espontâneos.
Trata-se
de
um
processo
de
superação
por
incorporação.
A
aprendizagem
escolar
dos
conceitos
científicos
é
considerada
por
Vigotski
não
como
o
ponto
de
chegada
de
um
desenvolvimento
psicológico
precedente
e
independente
do
ensino,
mas
sim
como
um
ponto
de
partida,
ou
seja,
o
desencadeador
de
um
processo
posterior
de
desenvolvimento
do
pensamento
.
Isso
ocorreria,
segundo
Vigotski,
em
consequência
das
diferenças
entre
as
relações
que
ambos,
conceitos
espontâneos
e
científicos,
estabelecem
com
a
realidade.
(Duarte,
2016,
p.
69.
Grifos
nossos).
Sem
ignorar
a
diferenciação
radical
entre
reflexo
estético
e
reflexo
científico
da
realidade,
exposta
anteriormente,
a
asserção
de
Vigotski
conflui
para
os
objetivos
deste
texto
ao
se
considerar
que
há
uma
mesma
realidade
por
trás
dos
dois
tipos
de
reflexo,
isto
é,
de
apropriação
do
que
é
externo,
objetivo,
por
cada
indivíduo,
subjetivamente.
Compreender
a
realidade
e
sobre
ela
estabelecer
conceitos
que
superem
os
espontâneos
é
consequência
comum
entre
literatura
realista
(isto
é,
clássica)
e
pensamento
científico.
17
O
gosto
presente
no
ponto
de
partida
não
deve
ser
o
critério
decisivo
para
a
seleção
de
conteúdo
do
ensino
escolar
de
literatura,
já
que
não
é
um
fato
natural,
estanque
e
fatalmente
determinado,
inquestionável,
tendo-se
em
vista
a
concepção
do
ser
humano
como
elaborador
de
uma
segunda
natureza,
que,
diferentemente
dos
outros
animais,
não
se
adapta,
mas
adapta
à
natureza
à
medida
de
suas
necessidades.
Se
o
que
o
ser
humano
fez
ao
longo
de
sua
história
é
obra
de
sua
própria
espécie,
por
que
não
o
seria,
também,
o
gosto?
Novamente,
incidem
aqui
as
reflexões
acerca
do
caráter
teleológico
do
trabalho
na
influência
do
gosto:
o
conteúdo
do
ensino
de
literatura
pode
vir
a
atuar
como
causalidade
posta,
ainda
que,
como
dito,
de
maneira
sempre
relativa,
visando
influências,
não
determinismos.
Ademais,
convém
questionar
o
que
seria
o
gosto,
essa
metáfora
que
provém
da
alimentação
e
abrange
significados
de
ordem
das
outras
práticas
sociais.
Schneider
(2006)
sustenta
que
a
origem
dessa
metáfora
está
na
comum
necessidade
humana
de
alimentar-se
antes
de
satisfazer
necessidades
de
outra
ordem.
Se
conforme
Marx
e
Engels
(2007)
o
primeiro
ato
histórico
é
a
produção
dos
meios
que
permitem
satisfazer
essa
necessidade
mais
imediata
de
alimentação,
não
resta
dúvida
que
o
primeiro
saber
tenha
no
paladar
sua
expressão
sensível.
Schneider
acrescenta
que
a
sociedade
dividida
em
classes
é
a
causa
central
da
desigualdade
de
acesso
aos
objetos
de
satisfação
de
saber
e
prazer,
bem
como
a
própria
realização
desses
em
níveis
não
só
separados,
mas
até
antagônicos.
Trata-se
de
uma
expressão
da
divisão
do
trabalho
em
braçal
e
intelectual,
da
divisão
religiosa
entre
corpo
e
alma,
da
divisão
idealista
entre
sentidos
e
ideias.
Na
cisão
entre
sabor
e
saber
tem
papel
crucial
a
indústria
cultural,
desqualificando
formas
de
prazer
desvinculadas
do
consumo,
pouco
úteis
à
reprodução
do
capital.
Schneider
lembra
que
Adorno
e
Horkheimer
(1985),
autores
da
expressão
“indústria
cultural”
tenham
preferido
esse
termo
em
detrimento
de
“cultura
de
massas”,
salientando
que
se
trata
de
um
fenômeno
que
não
“brota”
espontaneamente
do
povo,
mas
como
consequência
da
mercantilização
da
cultura,
na
qual
também
se
expressam
separações
entre
produtores
e
meios
de
produção,
produtores
e
produtos
do
trabalho
cultural;
na
qual
o
produto
cultural
integra
o
circuito
de
produção
capitalista
de
mercadorias.
O
gosto
acaba
subordinado
à
economia
capitalista,
conforme
enfatiza
Schneider,
de
modo
autoritário,
sem
que
as
pessoas
tenham
consciência
ou
efetiva
liberdade
de
escolha.
Os
teóricos
da
18
Escola
de
Frankfurt
inicialmente
excluíram
a
literatura
do
complexo
da
indústria
cultural,
já
que
os
meios
de
produção
e
o
produto
do
trabalho
artístico,
nesse
caso,
não
estariam
totalmente
cindidos,
conforme
nas
indústrias
cinematográfica
e
fonográfica.
Contudo,
não
se
deve
ignorar
a
influência
dessas
duas
grandes
indústrias
sobre
a
produção
literária
atual,
tampouco
a
concorrência
que
elas
desempenham
na
disputa
por
tempo
e
atenção
das
pessoas.
Questionamos
se
é
frutífero
crer
que
o
gosto
inicial
do
estudante
seja
o
prisma
pelo
qual
se
deva
refletir
o
problema
do
ponto
de
partida
ensino
de
literatura,
em
detrimento
dos
critérios
sobre
o
potencial
humanizador
e
desenvolvente
da
personalidade.
Critérios
os
quais,
inclusive,
podem
vir
a
enriquecer
o
gosto
e
contribuir
para
a
superação
não
só
da
cisão
entre
saber
e
sabor,
mas
das
demais
dicotomias
inerentes
ao
processo
de
alienação:
a
divisão
do
trabalho
em
sentido
amplo
e
filosófico,
isto
é,
a
desigualdade
de
formas
que
permitem
a
humanização
dos
indivíduos.
Concorda-se
com
Duarte
et.
al
(2012,
p.
37-38),
que
a
literatura
não
está
ligada
à
“busca
pura
e
simples
pelo
prazer
[mas]
ao
processo
de
desenvolvimento
do
gênero
humano
e
do
indivíduo”,
que
não
deixa
de
ter
o
prazer
como
elemento
constitutivo;
que
da
mesma
forma
que
ensinar
a
recepção
estético-literária
não
é
podar
a
criatividade,
mas
desenvolvê-la
pela
apropriação
de
formas
mais
elaboradas,
ensinar
a
gostar
do
clássico
não
é
censurar
um
gosto
que
de
modo
algum
surgiu
espontaneamente,
mas
enriquecê-lo
com
conteúdos
que
não
estão
dados
na
cotidianidade
capitalista.
Considerações
finais
Ensinar
o
gosto
pelo
clássico
e
tornar
a
leitura
destes,
recorrente,
contudo,
ainda
são
ações
que
precisam
ser
postas
como
ação
intencional
de
uma
geração
sobre
outra,
do
educador
sobre
o
educando,
já
que
persistem
os
problemas
relacionados
à
alienação
inerente
à
sociedade
capitalista,
como
a
Indústria
Cultural
e
sua
atuação
(ainda
que
indireta
e/ou
não-intencional)
pela
desqualificação
dos
objetos
de
saber
que
não
se
saboreiam
como
mercadorias
fáceis.
Apesar
de
termos
sublinhado
a
objetividade
dos
clássicos
ao
retratar
temas
universais
da
condição
humana,
não
ignoramos
que
a
fruição
estética
careça
sempre
de
mediações,
de
certa
capacidade
de
delas
extrair
seu
sentido,
requerendo
habilidades
gramaticais,
19
uma
boa
dose
de
prática,
leituras
prévias
etc.
Em
geral,
se
trata
do
que
Saviani
(2011,
p.
19)
estabeleceu
como
aquisição
de
um
habitus
:
“isto
é,
uma
disposição
permanente,
ou,
dito
de
outra
forma,
quando
o
objeto
de
aprendizagem
se
converte
numa
espécie
de
segunda
natureza.
E
isso
exige
tempo
e
esforços
por
vezes
ingentes”.
Nota-se
que
tal
proposição
tem
o
mesmo
sentido
da
análise
de
Lukács
sobre
a
dinâmica
dos
reflexos
condicionados,
que
por
mais
enrijecidos
que
estejam,
são
revogáveis.
Como
visto,
não
há
por
que
conceber
o
gosto
literário
dos
educandos
como
algo
intangível,
que
não
possa
ser
influenciado
pelo
trabalho
docente.
Visto
que
as
obras
não
são
todas
iguais,
todas
dotadas
do
mesmo
valor,
não
há
por
que
não
o
influenciar,
quando
se
adota
o
propósito
de
fomentar
uma
educação
emancipatória,
desenvolvente
da
multilateralidade
dos
indivíduos.
O
como
fazê-lo
liga-se
à
necessidade
de
colocar
o
repertório
dos
clássicos
na
ordem
do
dia
dos
programas
escolares,
de
os
professores
lerem
as
obras
com
os
alunos,
assegurando-lhes
as
mediações
para
a
correta
compreensão
de
seu
sentido,
que
é
sempre
intencionalmente
colocado
pelo
autor
–
ainda
que
a
obra
acabe
por
contrariar
as
preferências
ideológicas
dele
–
e
embora
sempre
aberto,
em
alguma
medida,
à
interpretação
pessoal,
ao
ato
de
completá-lo
com
a
experiência
de
vida
e
com
a
imaginação
de
cada
um,
e
à
luz
dos
problemas
específicos
de
cada
época.
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