V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X PODE A ESCOLA ENSINAR A GOSTAR DOS CLÁSSICOS? ENSINO DE LITERATURA E ONTOLOGIA MATERIALISTA 1 João Pedro Nardy 2 Resumo Problematizando a concepção de gosto como inexplicável e intangível, apresenta-se a possibilidade de o prazer pela leitura dos clássicos ser moldada pelo trabalho docente. Colocando a oposição entre “sabor” e “saber” como produto da dinâmica de alienação, aposta-se na dimensão prazerosa dos clássicos realistas, porque vinculados à vida humana concreta. Tais reflexões foram realizadas à luz da ontologia materialista de Marx e da estética de György Lukács, e revelaram-se contraditórias para com os postulados não-diretivos do “Aprender a aprender”, típico do neoliberalismo. Palavra-chave : Estética Marxista; Gosto literário; Leitura literária; Prazer estético; Realismo. ¿PUEDE LA ESCUELA ENSEÑAR A GUSTAR LOS CLÁSICOS? ENSEÑANZA DE LITERATURA Y ONTOLOGÍA MATERIALISTA Resumen Problematizando la concepción del gusto como inexplicable e intangible, se presenta la posibilidad de que el placer de leer a los clásicos sea moldeado por la labor docente. Al situar la oposición entre “sabor” y “saber” como producto de la dinámica de alienación, se aposta en la dimensión placentera de los clásicos realistas, porque vinculados a la vida humana concreta. Tales reflexiones se hicieran a la luz de la ontología materialista de Marx y de la estética de György Lukács, resultando contradictorias con los postulados no directivos del “Aprender a aprender”, típico del neoliberalismo. Palabras clave: Estética marxista; Gusto literario; Lectura literaria; Placer estético; Realismo; CAN SCHOOL TEACH TO TASTE THE CLASSICS? LITERATURE TEACHING AND MATERIALIST ONTOLOGY Abstract Rendering as problematic the conception of liking as unexplainable and intangible, this paper presents the possibility of the pleasure in reading the classics be molded by the educational work. Assigning the opposition between savor and knowledge as product by the dynamics of alienation, it is waged in the pleasured dimension of the realistic classics, given its bond to concrete human life. The work is enlightened by Marx’s materialist ontology and the aesthetics of György Lukács and ended revealing itself contradictories to the non-directive postulates of “learning to learn”, typical of neoliberalism. Keywords: Marxist aesthetics; Literary taste; Literary reading; Aesthetic pleasure; Realism. 2 Doutorando em Educação Escolar pela Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (FCLAr/Unesp) - Brasil. Professor de Língua Portuguesa da rede pública estadual de São Paulo (SEE-SP) desde 2015. E-mail: jpedronardy@gmal.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/0222676863249780 . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2475-4566 . 1 Artigo recebido em 11/05/2024. Primeira Avaliação em 18/08/2024. Segunda Avaliação em 06/09/2024. Aprovado em 24/11/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI : https://doi.org/10.22409/tn.v22i4 9.62934 1
Introdução De muitos homens viu as cidades e a mente conheceu ; e foram muitas no mar as dores que sofreu em seu coração (Homero, Odisseia, I, 3-4). Cuando algún pintor quiere salir famoso en su arte procura imitar los originales de los más únicos pintores que sabe, y esta misma regla corre por todos los más oficios o ejercicios de cuenta que sirven para adorno de las repúblicas, y así lo ha de hacer y hace el que quiere alcanzar su nombre de prudente y sufrido, imitando a Ulises, en cuya persona y trabajos nos pinta Homero en retrato vivo de prudencia y de sufrimiento, como también nos mostró Virgilio en persona de Eneas el valor de un hijo piadoso y la sagacidad de un valiente y entendido capitán, no pintándolo ni descubriéndolo como ellos fueron, sino como habían de ser , para quedar ejemplo a los venideros hombres de sus virtudes (Cervantes, Don Quijote, I-XXV). Um dos temas recorrentes na relação entre Educação e Literatura é a relação entre formação do leitor e o conteúdo desse ensino, tema que toca reflexões sobre o gosto pela leitura. Fundamentado na teoria social marxista, o artigo partiu do pressuposto modificável da ação humana, a qual se explica pelos atributos inerentes à dinâmica do trabalho, considerado como atividade vital especificamente humana (Marx; Engels, 2007; Lukács, 2013; Márkus, 2015). Em posse desse arcabouço, problematiza-se o tema do gosto no seio de sua propositura concreta na educação escolar: o problema do ponto de partida. Desta forma, duas hipóteses , interligadas e complementares entre si, são apresentadas à resolução do problema, sendo a primeira sobre o caráter modificável do gosto pela dinâmica de teleologia e causalidade inerentes ao processo de trabalho; e a segunda, de que os grandes clássicos da literatura podem vir a ser o conteúdo do ensino escolar, não porque são importantes para uma formação humana multilateral, mas, sobretudo, porque são apreciáveis por serem representativos dos grandes temas da vida humana, presentes na vida de cada indivíduo. A interrelação das hipóteses deve-se ao fato de que apesar dos atributos qualitativos dos clássicos, eles não estão dados na vida cotidiana da sociedade capitalista, marcada por amplas desigualdades, contradição que o trabalho docente pode tematizar e enfrentar, ainda que plenamente exitoso apenas num processo coletivo e de mudanças sociais radicais. 2
Chega-se à conclusão de que é possível e desejável ao trabalho docente influenciar o gosto literário dos discentes, o que não significa determiná-lo de maneira absoluta. Essa reflexão aponta divergência com o sentido corrente nas considerações pedagógicas tecidas nos marcos do “Aprender a Aprender”, cuja essência é marcada pela adaptação às relações sociais da sociedade capitalista (Duarte, 2011), e para as quais importam mais as realizações que os aprendizes fazem por si mesmos, sendo indesejadas as intervenções docentes rumo a um ponto de chegada estabelecido à luz de uma teoria crítica sobre a sociedade. Tais pressupostos estão amplamente vigentes nos programas dos reformadores empresariais da educação (Freitas, 2012), inclusive na Base Nacional Comum Curricular (Brasil, 2017, p. 14, 480, 482, 489). Contudo, as contribuições específicas deste trabalho estão na realização de pesquisa teórica e bibliográfica sobre parâmetros para o ensino de literatura, colocada esta arte como forma específica de conhecimento da realidade, portanto relevante para uma perspectiva que considere a formação humana pelo princípio do desenvolvimento multilateral dos indivíduos. A seguir, o trabalho estrutura-se em três tópicos, sendo o primeiro dedicado a uma exposição dos fundamentos da ontologia materialista do trabalho; o segundo apresentando fundamentação sobre o atributo do realismo como qualidade dos clássicos literários; para que o terceiro tópico coloque o problema em termos propriamente pedagógicos: o ponto de partida do ensino de literatura. Ao longo do texto, algumas categorias de análise foram destacadas, por considerá-las fundamentais à compreensão do percurso dissertativo. Fundamentos da ontologia materialista Fundamentamos nossas considerações sobre o trabalho com obras literárias na educação escolar à luz da teoria social de Marx, inventariada por Lukács (2013), a qual estabelece o trabalho como fundação material e histórica do ser social. Trata-se de uma concepção humanista, que assinala o ser humano como artífice do seu próprio mundo, rechaçando as ontologias religiosas e idealistas. Com isso, queremos estabelecer que a questão-problema deste trabalho se o gosto pelo clássico é natural ou pode ser produzido pelo trabalho educativo pode ser abordada pela compreensão mais geral da atividade vital humana que é o trabalho 3
em sentido ontológico. A essa questão apresentaremos a hipótese de uma resposta positiva, baseada numa asserção complementar e indissociável: tais clássicos, devido ao processo de trabalho que os criou, possuem atributos que favorecem a intervenção docente. O intuito é deslocar a abordagem do gosto literário como fenômeno puramente subjetivo ou inexplicável para uma concepção coerente com a ciência da história (Marx; Engels, 2007), para a qual os atos de vontade são tangíveis pelos traços fundamentais da atividade de trabalho (teleologia e causalidade), e que, portanto, podem, num projeto educativo crítico e emancipador, alinhar-se à perspectiva da formação humana multilateral 3 , na qual a literatura não deixa de ser fruição e prazer, mas não se separa da aquisição do conhecimento que permite criticar e transformar a realidade. Afinal, os clássicos da literatura que aqui se valoram não deixaram de agradar inúmeras e variadas gerações; seus atributos qualitativos, também não devem ser entendidos como mistério de gênios, mas pela dinâmica ontológica do trabalho, que também se aplica ao trabalho de criação artístico-literária. Nessa concepção, o trabalho é a inter-relação entre humano (sociedade) e natureza, assinalando a transição do ser meramente biológico ao ser social. Segundo Marx (2013), o trabalho como criador de valores de uso (produtos de uso útil para sua existência) aparece como permanente condição de existência humana. Conforme Lukács (2013), admitir o trabalho como categoria fundante do ser social não implica a desconsideração de outras categorias que surgem dele, simultaneamente, como linguagem, socialidade e a primeira divisão do trabalho. A novidade do trabalho rumo ao salto ontológico, rumo ao ser social, é a pré-figuração de um objeto, isto é, a capacidade de pôr-lhe uma finalidade ( teleologia ). A atividade, assim, passa a ter um fim que não coincide com sua realização imediata, mas que está dado na mente de quem a realiza. Trata-se do pôr teleológico, nas palavras de Lukács, uma categoria que existe como par inter-relacionado à categoria causalidade, isto é, à existência de causas no desenvolvimento de certas consequências (certas vezes imprevistas). A teleologia, por outro lado, é sempre a 3 A superação do capitalismo levaria, segundo Marx, ao terceiro estágio histórico do desenvolvimento da individualidade humana, no qual os indivíduos, coletivamente organizados, direcionariam de forma intencional as relações sociais para que estas permitissem o desenvolvimento multilateral e universal da individualidade, como consequência do caráter também multilateral e universal das relações sociais (DUARTE, 2011, p. 180). 4
colocação de uma finalidade possibilitada por uma consciência capaz de agir para pôr finalidades às coisas. A categoria consciência é outro elemento fundamental da atividade humana, cujo atributo fundamental é a obtenção de um reflexo da realidade. O papel do espelhamento no ser ativo e produtivo é o de realizar uma forma desenvolvida da dýnamis (potência) descrita por Aristóteles ( apud Lukács, 2013, p. 69), isto é, a “faculdade de levar a bom termo determinada coisa e de executá-la de acordo com a própria intenção”, marcada pelo caráter alternativo (isto, é de realização de escolhas) de qualquer realização do trabalho. Esse caráter alternativo não existe na causalidade natural, isto é, nas cadeias de causas e consequências da natureza. nas formas mais primitivas do trabalho havia essa alternativa, quando alguém escolhia uma determinada pedra para produção de um machado. Por outro lado, de modo algum, aquela propriedade da pedra estava destinada à função de tornar-se machado, como não é finalidade do capim crescer para alimentar o bezerro, e este engordar para alimentar os predadores; ambas são determinações biologicamente necessárias de um e de outro. No trabalho, não a finalidade é teleologicamente posta, mas também a cadeia de causas que o realiza deve transformar-se numa causalidade posta . Para isso, é necessário que as alternativas, em cada detalhe do processo de trabalho, sejam corretamente consideradas, devidamente orientadas para a finalidade desejada, levando em conta o mais preciso possível espelhamento da realidade. Além da ênfase sobre essas diversas alternativas possíveis e/ou necessárias dentro processo de trabalho, devemos enfatizar que são as próprias alternativas que fazem com que uma causalidade seja a causalidade posta, sem as quais ela volta à simples condição de causalidade natural. A cadeia de alternativas existentes no trabalho não deve ser esquecida nem quando as alternativas singulares, por força de repetições, hábitos e tradições, sejam feitas na condição de reflexos condicionados 4 , assumindo uma aparência de “atos inconscientes”. Questionamos: não poderiam certos gostos e preferências terem sido formados na qualidade de reflexo condicionado? Nossa hipótese é de que sim, mas somente conforme mantêm o caráter de elaboração inconsciente. 4 Isto é, ações que se tornaram mecânicas, executadas inconscientemente e, muitas vezes, dadas como naturais. 5
Todo reflexo condicionado deve ser visto como originado de decisões alternativas, predicado válido tanto para o desenvolvimento humano geral, quanto para os indivíduos. Nota-se, portanto, a necessidade de aprender e exercitar esses reflexos, que no início aparecem como cadeia de alternativas. Assim, podem-se ver a alternativa e o espelhamento como categorias mediadoras de algo que é posto pela teleologia. Contudo, o ser humano, como ser social, lega às gerações futuras os produtos de suas realizações anteriores, de modo que certos modos de atividade aparecem como determinados não pelos indivíduos, mas pela sociedade. Lembra-nos Marx (2011, p. 25): “Os homens fazem sua própria história; contudo não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram”. Determinação das circunstâncias, portanto, não quer dizer ausência de liberdade. No ato da alternativa reside o momento da decisão, orientado pela consciência humana. É no trabalho cuja base é a transformação dos objetos naturais, desde a produção de valores de uso mais imediato, até a produção artística que se realiza o próprio tema da liberdade, portanto, tema humano por excelência, nem natural, nem transcendente. É necessário diferenciar as ações humanas baseadas em reflexos condicionados dos meros instintos biológicos que caracterizam a vida animal. O elemento não-consciente da ação humana baseia-se na transformação de movimentos conscientes em reflexos condicionados fixos, mas que são revogáveis, modificáveis. Esses reflexos condicionados foram fixados por experiências acumuladas, mas outras podem vir a substituí-las. Além dessa formulação de Lukács, acrescentamos que, evidentemente, essa desautomatização dos reflexos condicionados não seria simples ato da vontade, e exigiria esforço e dispêndio de energia para a realização contínua de atos decididos em seu favor. Um exemplo disso seria a readequação de um determinado comportamento de estudo que um estudante desejasse realizar, e o papel que pode ter um ato externo (do professor) nessa mudança qualitativa, propondo-lhe outra rotina, outra forma de se relacionar com os estímulos, com a sistematização dos conteúdos no material didático, etc. Conforme apresentamos o papel da escolha no devir dos comportamentos humanos pela exposição da dinâmica da atividade especificamente humana o trabalho acreditamos que também tenha ficado claro o fundamento da 6
possibilidade de o trabalho docente agir em prol da influência no gosto literário de seus discentes. Planejar essa influência é colocá-la sob os termos de uma causalidade posta, contudo de modo bastante relativo, que não se pode conceber ação sobre a subjetividade de outrem de forma mecânica. Trata-se tão somente de uma influência bastante planejada. Certamente, concorrem com os clássicos o advento da indústria cultural, mas, como condicionantes, esses problemas não devem ser vistos como fatalidades que impedem qualquer mudança. Por outro lado, esperamos que está superada a ideia de que o gosto seja “autêntica” manifestação do ser, uma escolha totalmente livre e consciente que represente o sujeito em sua individualidade, desconsiderado de uma sociabilidade. A publicidade e a massiva difusão da indústria cultural podem ser vistas como fatores que atuam na fixação do gosto, o qual aparecerá, portanto, como reflexo condicionado. A consideração do complexo do trabalho na ontologia marxista também implica a consideração do fenômeno da alienação, o qual atravessa o complexo do trabalho, portanto as formas de apreensão da realidade. Gyorgy Márkus (2015), apoiado nas mesmas fontes marxianas, estabelece-a como a discrepância pela qual o progresso histórico da humanidade separa-se do desenvolvimento dos indivíduos. Na dinâmica do trabalho, aquelas características formativas e criativas do processo teleológico são perdidas em função das divisões e fragmentações do trabalho, dadas as relações de produção baseadas na apropriação privada dos meios e produtos do trabalho, a qual enseja a divisão da sociedade em classes sociais desiguais. Contudo, Lukács e Márkus sublinham que o trabalho nunca perde seu caráter de atividade vital, por mais alienado que seja seu contexto: no par alienação-liberdade existe sempre uma margem relativa e modificável. O trabalho educativo atua como proposição de uma causalidade posta e, na Pedagogia Histórico-crítica, preocupa-se com o problema da alienação. É o que propõe Saviani (2011, p. 13) quando assevera a necessidade de compreensão do trabalho educativo como “ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. Lukács também estabelece a categoria ontológica de trabalho como subjacente à intenção artística de reprodução da realidade na forma do reflexo estético. O artista ou escritor literário estabelece os meios de reprodução intensiva da realidade conforme recria a dialética de aparência e essência dos 7
fenômenos da realidade, de modo que a aparência das coisas, na obra, atue para revelação da realidade. Trata-se de um modo de pensar diferente do pensamento cotidiano, do senso comum, os quais fundem essência e aparência, relativizando fatos diversos. É nesse sentido que este artigo propõe a influência no gosto literário dos discentes como causalidade posta pelo trabalho docente, como forma de contraposição à alienação presente tanto nas formas dominantes de consciência (estranhamento), quanto na falta de acesso às grandes obras para os indivíduos. A hipótese de que é possível gostar do clássico: o realismo como qualidade Ainda que salientando a influência positiva da mediação docente, apresentamos a possibilidade de o gosto pelo clássico encontrar substância no poder do próprio texto, pelos seus elementos constitutivos fundamentais: a característica de reflexo da realidade, na qual estão, também, dados da história de vida do indivíduo concreto, porque tratam do substrato comum do desenvolvimento humano. Na teoria lukacsiana, o reflexo científico visa explicar dado fenômeno pelo máximo de objetividade, isto é, pelo fato em si mesmo, removendo crenças, aparências e impressões criadas por ações humanas sobre ele. Exemplo disso é a atribuição da capacidade humana de criação pelo trabalho a fenômenos essencialmente naturais, atribuindo-lhes vida e consciência (processo que esteve na base da criação dos mitos e dos deuses); o reflexo científico opera um processo de desantropomorfização. O reflexo literário, um gênero do reflexo estético , constitui-se como um reflexo antropomórfico da realidade. Mesmo tematizando a natureza ou a sociedade, nele prevalece a relação do humano com elas: “No seu centro estão os seres humanos, as relações entre si e com o mundo, suas formas de percepção, seus sentimentos, seus conflitos, dramas etc. (Duarte, 2016, p. 75)”. Este antropomorfismo, contudo, é diferente daquele existente nos reflexos cotidiano e religioso: ao assumir-se antropomórfico, ele evidencia a ação humana subjacente à realidade social, e aponta para a possibilidade de uma vida humana genérica, isto é, de uma comunidade do gênero humano, contribuindo para revelar a realidade que pode ter sido ocultada pelo dogma do pensamento religioso ou pelo reflexo cotidiano (Heller, 1994). A teoria estética de Lukács, de base ontológica, assinala o realismo 8
como método de criação que efetivamente possibilita uma obra constituir-se como reflexo estético da realidade. A definição de Lukács difere da definição do clássico pelo prestígio que determinados autores ou obras obtiveram. O crítico literário húngaro inclusive problematiza obras que alçaram esse patamar, mas, especialmente no século XIX, mergulharam na perspectiva naturalista em voga. Esses autores pretenderam retratar com fidelidade a realidade vivida e chamaram-se realistas, mas não o foram. Lukács questionou a capacidade do reflexo fotográfico, à maneira dos etnógrafos, captar a realidade em suas múltiplas determinações. Contra o descritivismo, evocou o poder da narração, priorizando a ação em detrimento da cena estática. Por outro lado, não deixou de ver valor em obras associadas ao gênero conhecido como fantástico, que apesar da liberdade criativa, não necessariamente significa transcendência arbitrária das determinações das relações sociais existentes, com o pretexto de rejeitar radicalmente uma dada realidade. O crítico rejeitou, ainda, a concepção de uma independência absoluta das formas artísticas, da perfeição formal como um fim em si mesmo como responsável pela eficácia estética, pautando, por sua vez, o conteúdo como momento predominante. A verdadeira obra de arte visa o maior aprofundamento e a máxima compreensão. Visa captar a vida na sua totalidade onicompreensiva. Quer dizer, ela, a verdadeira arte, aprofunda-se sempre na busca daqueles momentos mais essenciais que se acham ocultos sob a capa dos fenômenos; mas não representa esses momentos essenciais de forma abstrata, fazendo abstração dos fenômenos e contrapondo-se àqueles, e sim apreende exatamente aquele processo dialético vital pelo qual a essência se transforma em fenômeno, se revela no fenômeno , fixando também, aquele aspecto do mesmo processo segundo o qual o fenômeno manifesta, na sua mobilidade, a sua própria essência. Por outro lado, esses momentos singulares não contêm neles mesmos um movimento dialético, que os leva a se superarem continuamente, mas se acham em relação uns com outros numa permanente ação e reação mútua, constituindo momentos de um processo que se reproduz sem interrupção. A verdadeira arte, portanto, fornece sempre um conjunto da vida humana, representando-a no seu movimento, na sua evolução e desenvolvimento (Lukács, 1965, p. 29, grifos nossos). Com isso, Lukács salienta a especificidade do reflexo estético que, como se vê, atua diferentemente do reflexo científico. O texto literário não possibilita conhecer a realidade por meio de uma exposição sistemática, linear, salientando gênese, 9
causas e consequências abstraídas da vida humana real, enfatizando cada aspecto como aparência ou como essência de algo, como é próprio da ciência ou do texto didático; antes o texto literário, como gênero do reflexo estético, permite que o experienciador viva aquela realidade como uma “segunda realidade”, que foi organizada pelo escritor realista com mediação do conhecimento humano. Quanto maior for o domínio da realidade enquanto síntese de múltiplas determinações, mais perfeitamente será a recriação das relações universais do objeto retratado num particular , isto é, numa realidade recriada como forma de conhecimento sensível (sensível justamente porque se sente). O trabalho docente pode produzir o gosto pelo clássico porque seu conteúdo ecoa nos indivíduos concretos. O passado refletido nas obras literárias também pertence às gerações do presente, e, por meio delas, é possível sentir-se pertencente ao gênero humano. Isso não ocorre por acaso, mas porque elas apresentam situações e indivíduos típicos. Diante da pergunta de Marx sobre a permanência do prazer na fruição de obras antigas, Lukács responde: O que o espectador sente com emoção, no Édipo 5 , é precisamente um destino humano típico, no qual mesmo o homem moderno ainda que possa perceber os pressupostos históricos concretos aproximadamente reconhece com emoção imediata, ao revivê-lo, um mea causa agitur [uma causa sua, própria]. (Lukács, 2018, p. 262). Apresentamos a hipótese de que o típico realize aproximações e distanciamentos entre leitor e obra. Se por um lado a personagem típica é indivíduo único e irrepetível, que se destaca das demais por traços singulares, distanciando-se da média dos indivíduos e apresentando-se como novidade interessante, por outro ocorre aproximação conforme o típico também esteja atravessado por aquelas características universais em seu gênero: os conflitos inerentes à dialética de humanização e desumanização, como na jornada humana em torno das formas 5 A tragédia do Rei Édipo (Sófocles, 2011) tem seu ponto culminante no conflito típico do destino fatalmente traçado ou livremente determinado pela ação humana. Na cidade de Corinto, Édipo recebe o presságio de que matará o pai e desposará a mãe, então imediatamente foge em direção a Tebas. No caminho, mata o homem que vem a descobrir ser seu pai; na chegada, casa-se e tem filhos com a mulher que posteriormente descobre ser sua mãe. O personagem grego vivia como filho adotivo e, sem sabê-lo, retorna à família biológica; no afã de fugir do destino, de traçar sua própria história. Além do típico par determinismo e liberdade, a peça implica o apelo à dignidade da condição humana, dada a catastrófica punição que o próprio herói impõe a si mesmo: a mutilação dos olhos e perpétua mendicância. 10
históricas do trabalho. Alfredo Bosi (1974, p. 191) cita os personagens Capitu e Rubião, de Machado de Assis, como exemplares do típico lukacsiano. Para ele, são personagens que transcendem singularmente as redes gerais dos tipos “provinciano desfrutável e impressionável”, da “mocinha pobre e ambiciosa”, de maneiras enrijecidas ou simplificadas em “figuras médias”, conforme ocorre com certas personagens concebidas à luz do método naturalista em Aluísio de Azevedo. A título de outro exemplo, apresentaremos brevemente como o conceito atravessa o clássico personagem Odisseu, de Homero 6 . Ao longo da Odisseia, os traços de caráter do heroi grego o singularizam, para bem ou mal, muitas vezes afligindo-o verdadeiramente. A jornada começa quando Odisseu, rei de Ítaca, adere à guerra contra Tróia, a qual colocaria o nome dos guerreiros na história, pouco importando os motivos gananciosos dos líderes gregos. Vencida a guerra, na viagem de volta, sua decisão de saquear os pacíficos cícones e explorar a ilha do ciclope Polifemo impõem a perda de vários companheiros. Suas demoras em churrascos e bebedeiras, como na ilha de Circe, atrasam cada vez mais seu urgente retorno, tal qual sua permanência na ilha Ogígia, fazendo-o chorar de saudades de casa durante os dias, prostrado ante o mar, mesmo que se entregue à ninfa Calipso durante as noites. Por outro lado, sua astúcia e seu discernimento evitaram a perda derradeira de companheiros que se viciaram na flor de lótus, espécie de droga. Também foram benéficas suas atitudes de comedimento e modéstia ao decidir passar pelas sereias amarrado ao mastro do barco, para não ceder a seu canto, bem como a renúncia à carne nos momentos que fora orientado a não se desviar de sua jornada, situações em que vidas de companheiros foram salvas, ou a do próprio Odisseu (na verdade, os últimos companheiros perecem quando comem o gado de Hiperíon, o Sol). Não escapou de sofrer quando retornou à sua terra, conforme a célebre passagem do reencontro com o cão Argos, que, moribundo, esperava o mestre para dar o último suspiro, sem que Odisseu pudesse sequer abraçá-lo, devido ao disfarce que necessitou utilizar. A experiência da dor da perda também foi vivida pelo herói quando ele desce ao Hades para se informar com o sábio Tirésias, mas acaba por encontrar ali, na mansão dos mortos, a própria mãe, cuja morte o herói não sabia. 6 Edição de referência: tradução portuguesa de Frederico Lourenço (2018). 11
Essa individualização é atravessada por aquilo que a Ontologia do Ser Social estabelece como universal no gênero humano: a dinâmica do momento alternativo no pôr teleológico, bem como a cadeia causal que ele aciona, podendo ensejar consequências diversas. Além dos pares causa/consequência ou teleologia/causalidade, podemos observar outros pares típicos: determinismo/liberdade, finitude/permanência, humanização/ desumanização . Para além do típico, o método narrativo também aparece na Odisseia embora, sublinhe-se, não se trate de um recurso exclusivo à epopeia ou ao romance, podendo ocorrer no drama e na lírica tratando de enfatizar o ser humano como artífice do próprio mundo, tal qual estabelece a ciência da história (Marx; Engels, 2007). Eis o par distanciamento e aproximação na dialética de produção e recepção da arte. Por mais distante que esteja o leitor de hoje em relação a Odisseu, o núcleo humano dessa personagem o aproxima. A particularização de Odisseu nesses temas típicos anseio por conhecer, realizar escolhas, desejar, renunciar, vivenciar o luto, viajar, aprender faz parte do realismo homérico, que apresenta um heroi imperfeito e contraditório , e que por isso é tido como modelar. Assinalando esse exemplo, é fundamental observar que o realismo clássico que fundamenta a estética lukacisana apresenta o ser humano não apenas como ele é, mas no que ele pode vir a ser, tal qual dito no comentário de Cervantes, pelas palavras do Quixote, na epígrafe deste artigo. Em sua Ontologia, Lukács observa como uma constante nas narrativas míticas de diversos povos a elaboração do tema do domínio humano sobre seus instintos e anseios impulsivos, irrefletidos, estabelecendo valores especificamente humanos aos comportamentos possíveis, tema que também é uma constante em filósofos muito diferentes entre sí, como Espinosa e Kant. Desse modo, aquelas decisões que realizam em sua forma mais pura essas possibilidades reais afirmando ou negando o valor realizam, em cada estágio do desenvolvimento, uma exemplaridade positiva ou negativa. Essa exemplaridade, nos estágios primitivos, é transmitida através da tradição direta, oral. Tornam-se heróis do mito aqueles que responderam a essas alternativas que culminam em valores da vida da tribo, num nível de exemplaridade humana tal que a resposta tenha se tornado positiva ou negativamente social e duravelmente significativa para a reprodução daquela vida e por isso parte constitutiva daquele processo de reprodução no seu processo de mudança e preservação (Lukács, 2013, p. 123). 12
Destaque-se que a condição de permanência desses mitos e herois exemplares está na possibilidade de serem constantemente reinterpretados. O exemplo do autor é a reinterpretação de Prometeu: por Hesíodo fora apresentado como transgressor corretamente punido pelos deuses; por Ésquilo, sob os ares da democracia ateniense, fora interpretado como benfeitor da humanidade conforme assinalou metaforicamente a ciência e a técnica (fogo) como libertação humana. Essa reelaboração é muito interessante por permitir que cada época leia os clássicos e os reelabore à luz dos seus problemas específicos. A jornada de Odisseu, por exemplo, pode ser lida e discutida à luz das problematizações sobre as relações de gênero, patriarcado, etc., ou ainda sobre o caráter cosmopolita desse mundo antigo, que lega ao mundo uma matriz relevante de arte como reflexo da realidade. Um legado construído por diversos povos, e não por uma Europa branca, como se pinta em algumas interpretações pós-modernas que defendem o relativismo cultural. Afinal, conta-nos uma passagem da Odisseia que Odisseu era um homem negro 7 . Se em outros momentos históricos de leitura da obra isso foi irrelevante ou até incômodo, para nós, ela atesta essa abertura à atualização inerente aos grandes clássicos. Dada a natureza ontológica da estética marxista de Lukács, uma dimensão ética é fundamental ao fazer artístico-literário, de grande relevância quando relacionadas à arte, literária e educação escolar. Até aqui vimos a necessidade de pensar a produção do gosto não como expressão subjetivista, que pode refletir a dinâmica de alienação da sociedade, mas prismada na perspectiva da formação humana multilateral. A unidade entre ética e estética não deve soar como subordinação de uma à outra, mas implicar a ideia de que conhecimento da realidade (conhecimento do ser humano) e concepção de mundo não apareçam cindidos. Tal unidade aparece muito bem formulada quando Lukács (2023, p. 363) aponta que “por trás de toda atividade artística, encontra-se a questão: em que 7 “De novo ficou de pele negra [ melankhroíês ], encheram-se-lhe as faces / e a barba escureceu em torno do seu queixo” (Homero, Odisseia, XVI, 175-176). Frederico Lourenço (2018), tradutor português de Odisseia, observa, em nota a esses versos, que a referida palavra grega é rara na literatura grega, e ocorre com sentido denotativo similar em Fedro, de Platão, para designar um cavalo de pelo negro. Ainda que considere inconclusiva ante outras passagens, o autor cita diversas fontes que atestam o caráter multiétnico da Grécia minoica, micênica e arcaica, influenciada pelo próximo Oriente semítico e pelo Norte de África (Egito), fato mais amplamente aceito no âmbito dos Estudos Clássicos. 13
medida este mundo é realmente um mundo do homem, um mundo que ele pode aceitar como seu, adequado à sua humanidade?” Essa concepção certamente diferencia-se das mais correntes relações entre aprendizado ético e vivência estética, seja no pólo conservador, que visa subordinar a arte à transmissão de lições de moral rígidas, ausentes de contradições, ou daquela estabelecida por Antonio Candido (2011, p. 178), em seu célebre “O direito à Literatura”, na qual bastaria o contato com a realidade esteticamente refletida, por exemplo: conflito entre a ideia convencional de uma literatura que eleva e edifica (segundo os padrões oficiais) e a sua poderosa força indiscriminada de iniciação na vida, com uma variada complexidade nem sempre desejada pelos educadores. Ela não corrompe nem edifica , portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos bem e o que chamamos mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver. A função da literatura está ligada à complexidade de sua natureza, que explica inclusive o papel contraditório (talvez humanizador porque contraditório). Certamente, é de grande contribuição à formulação de Cândido quando colabora com o combate às censuras conservadoras, como dos movimentos de Escolas Sem Partido. Contudo, são coisas muito distintas usar-se da obra como transmissora de lições de moral maniqueístas, tal qual valeu-se a Igreja Católica ou o “Realismo” socialista da era estalinista, e apresentar um posicionamento ético, efetivamente assinalado pelo autor, mediante o caráter alternativo do pôr teleológico da criação literária. Lukács ajuda a esclarecer o caráter objetivo desse dilema: No estético o objeto fundamental (a sociedade em metabolismo com a natureza) implica a simultaneidade indissociável de reprodução e posicionamento, objetividade e tomada de partido, tendo como referência um sujeito que elabora sua autoconsciência. O estabelecimento desses dois fatores perfaz a historicidade indissolúvel de toda obra de arte. Ele não fixa simplesmente situações de fato existentes em si, como faz a ciência, mas eterniza um momento do desenvolvimento histórico do gênero humano. A preservação da individualidade na tipicidade, da tomada de partido no fato objetivo etc., representa os momentos dessa historicidade. Portanto, a verdade artística, enquanto verdade, é histórica; sua gênese correta converge com sua validade derradeira, dado que esta não é senão o ato de desocultar e tornar evidente, alçar à vivenciabilidade um dos momentos do desenvolvimento do gênero humano que merece ser registrado, em termos tanto de conteúdo quanto de forma. (Lukács, 2023, p. 389). 14
Conclui-se o tópico com a expectativa de estar fortalecida aquela hipótese de que é possível produzir o gosto pelo clássico por ele conter aquele substrato comum do desenvolvimento humano, do qual cada indivíduo faz parte. O experienciador da obra literária vivencia um pouco da humanidade genérica ao confrontar sua experiência de vida com a criação ficcional, dramática ou poética. Sente-se como parte de uma humanidade que transcende, momentaneamente, suas barreiras locais, sociais e nacionais, mas de modo que perceba que o passado narrado em Homero ou em Machado de Assis é um passado seu, e que conflitos vivenciados por Heitor, Helena, Odisseu, Capitu e Rubião são, também, seus. Aliás, essa é a explicação para que certas obras sobrevivam ao tempo; sobrevivem, ainda, conflitos típicos da condição humana, muitos dos quais elementos marcantes de toda a era da alienação. Faz parte da hipótese deste trabalho que esse sentimento de pertencimento a uma comunidade do gênero humano leve ao inconformismo da experiência de vida na sociedade capitalista, a qual impõe privações de todos os tipos à maioria dos indivíduos, sentimento que precisa ser mais fomentado do que a acomodação e adaptação dos indivíduos ao atual estado de coisas. Contudo, continua válido o pressuposto de que a incorporação da necessidade do clássico pelos discentes recebe grande apoio da produção intencional dessa demanda pelo trabalho educativo, que não se trata de um conteúdo típico da vida cotidiana. Colocando o problema: o ponto de partida está no gosto inicial ou no horizonte de formação humana multilateral? Valorado o clássico, coloca-se um dilema comum a educadores e estudiosos de letras: o ponto de partida na formação dos leitores, o qual nada mais é do que uma das formas de apresentação do problema da diretividade ou não-diretividade do trabalho educativo. bordões, cuja gênese é duvidosa, que recomendam “partir do que o aluno tem”, “partir do cotidiano do aluno”. Em adjacência, acrescentemos que, no âmbito da seleção de conteúdo do ensino escolar de literatura, esse bordão pode abranger “o que o aluno gosta”. Mas ainda que isso fosse levado em conta, como planejar um programa de ensino estabelecendo o aluno como ponto de partida? Quem de fato seria esse aluno, cada indivíduo singular ou uma coletividade com determinações em comum? Seria possível atender a todos os interesses de 15
cada indivíduo singular, empírico? Certamente isso seria viável numa proposta pedagógica sem um ponto de chegada claro. Considere-se o que diz Saviani (2011), em sua reflexão sobre o aluno empírico e aluno concreto: Mostro o aluno concreto e apresento o concreto como a síntese de múltiplas determinações definidas enquanto relações sociais. Portanto, o que é do interesse desse aluno concreto diz respeito às condições em que se encontra e que ele não escolheu. Assim, também as gerações atuais não escolhem os meios e as relações de produção que herdam da geração anterior, e a sua criatividade não é absoluta, mas faz-se presente. A sua criatividade vai expressar-se na forma como ela assimila essas relações e as transforma. Então, os educandos, enquanto concretos, também sintetizam relações sociais que eles não escolheram. Isso anula a ideia de que o aluno pode fazer tudo pela sua própria escolha . Essa ideia não corresponde à realidade humana. Daí a grande importância de distinguir, na compreensão dos interesses dos alunos, entre o aluno empírico e o aluno concreto , firmando-se o princípio de que o atendimento aos interesses dos alunos deve corresponder sempre aos interesses do aluno concreto. O aluno empírico pode querer determinadas coisas, pode ter interesses que não necessariamente correspondem aos seus interesses, enquanto aluno concreto. (Saviani, 2011, p. 121-122, grifos nossos). O problema de ponto de partida versus ponto de chegada também se desdobra no valor dado ao conteúdo escolar de modo mais amplo, pelo par saber “erudito” e saber “popular” 8 , tomando o termo “cultura popular” de maneira ampla, momentaneamente incluindo a cultura de massa e as produções da indústria cultural de modo geral tomando por popular algo que seja amplamente difundido. Saviani enfatiza que o ponto de partida foi dado fora da escola, e que o trabalho educativo, em sua especificidade, e tomando partido de uma igualdade radical, centra-se precisamente sobre o ponto de chegada. Mostrei que o processo pedagógico tem que realizar no ponto de chegada o que no ponto de partida não está dado. Refiro-me, por exemplo, à questão da igualdade que não está dada no ponto de partida, mas que é algo que tem que ser alcançado no ponto de chegada. A cultura popular, do ponto de vista escolar, é da maior importância enquanto ponto de partida. Não é, porém, a cultura popular que vai definir o ponto de chegada do trabalho pedagógico nas escolas. Se as escolas se limitarem a reiterar a cultura popular, qual será sua função? Para desenvolver cultura popular, essa cultura 8 Entre aspas por reconhecer não a imprecisão dos conceitos, mas por entender que não são esferas estanques e incomunicáveis, mas que trocam experiências e que um pode enriquecer o outro e vice-versa, como bem formulam Cândido (2011) e Saviani (2011). 16
assistemática e espontânea, o povo não precisa de escola. (SAVIANI, 2011, p. 69. Itálicos no original). Saviani (2011) ressalta a distinção entre três tipos de saber, recuperando os três significados de conhecimento para os antigos gregos. Ele ressalta que o saber próprio à escola é o saber vinculado à episteme , isto é, ao saber sistematizado, metódico; diferenciando-se tanto da doxa , um saber de opinião, relativo ao senso comum, ao cotidiano, quanto da sofia , saber vinculado à vivência, à experiência pessoal, à sabedoria dos mais velhos. O saber próprio à episteme pode ser transmitido sem preconceito e hierarquias fundadas fora do processo de inquirição da verdade pelo estudo, pela pesquisa ou pela reflexão exaustiva. Se a escola não for encarregada de transmiti-lo, especialmente às classes populares, esse tipo de saber ficará prejudicado, uma vez que as duas outras formas não dependem de uma instituição específica para transmiti-las. O problema do “ponto de partida”, também é abordado pelos trabalhos do psicólogo soviético Lev Vigotski (1993), implicados num contexto de luta proletária por emancipação, o período da revolução russa: Vigotski afirmou, sobre o desenvolvimento do pensamento conceitual, que a aprendizagem dos conceitos científicos na escola produz uma grande transformação nos conceitos espontâneos que a criança adquire em sua vida cotidiana. Mas, segundo Vigotski, os conceitos científicos operam essa transformação no pensamento da criança e do adolescente a partir da base formada pelos conceitos espontâneos. Trata-se de um processo de superação por incorporação. A aprendizagem escolar dos conceitos científicos é considerada por Vigotski não como o ponto de chegada de um desenvolvimento psicológico precedente e independente do ensino, mas sim como um ponto de partida, ou seja, o desencadeador de um processo posterior de desenvolvimento do pensamento . Isso ocorreria, segundo Vigotski, em consequência das diferenças entre as relações que ambos, conceitos espontâneos e científicos, estabelecem com a realidade. (Duarte, 2016, p. 69. Grifos nossos). Sem ignorar a diferenciação radical entre reflexo estético e reflexo científico da realidade, exposta anteriormente, a asserção de Vigotski conflui para os objetivos deste texto ao se considerar que uma mesma realidade por trás dos dois tipos de reflexo, isto é, de apropriação do que é externo, objetivo, por cada indivíduo, subjetivamente. Compreender a realidade e sobre ela estabelecer conceitos que superem os espontâneos é consequência comum entre literatura realista (isto é, clássica) e pensamento científico. 17
O gosto presente no ponto de partida não deve ser o critério decisivo para a seleção de conteúdo do ensino escolar de literatura, que não é um fato natural, estanque e fatalmente determinado, inquestionável, tendo-se em vista a concepção do ser humano como elaborador de uma segunda natureza, que, diferentemente dos outros animais, não se adapta, mas adapta à natureza à medida de suas necessidades. Se o que o ser humano fez ao longo de sua história é obra de sua própria espécie, por que não o seria, também, o gosto? Novamente, incidem aqui as reflexões acerca do caráter teleológico do trabalho na influência do gosto: o conteúdo do ensino de literatura pode vir a atuar como causalidade posta, ainda que, como dito, de maneira sempre relativa, visando influências, não determinismos. Ademais, convém questionar o que seria o gosto, essa metáfora que provém da alimentação e abrange significados de ordem das outras práticas sociais. Schneider (2006) sustenta que a origem dessa metáfora está na comum necessidade humana de alimentar-se antes de satisfazer necessidades de outra ordem. Se conforme Marx e Engels (2007) o primeiro ato histórico é a produção dos meios que permitem satisfazer essa necessidade mais imediata de alimentação, não resta dúvida que o primeiro saber tenha no paladar sua expressão sensível. Schneider acrescenta que a sociedade dividida em classes é a causa central da desigualdade de acesso aos objetos de satisfação de saber e prazer, bem como a própria realização desses em níveis não separados, mas até antagônicos. Trata-se de uma expressão da divisão do trabalho em braçal e intelectual, da divisão religiosa entre corpo e alma, da divisão idealista entre sentidos e ideias. Na cisão entre sabor e saber tem papel crucial a indústria cultural, desqualificando formas de prazer desvinculadas do consumo, pouco úteis à reprodução do capital. Schneider lembra que Adorno e Horkheimer (1985), autores da expressão “indústria cultural” tenham preferido esse termo em detrimento de “cultura de massas”, salientando que se trata de um fenômeno que não “brota” espontaneamente do povo, mas como consequência da mercantilização da cultura, na qual também se expressam separações entre produtores e meios de produção, produtores e produtos do trabalho cultural; na qual o produto cultural integra o circuito de produção capitalista de mercadorias. O gosto acaba subordinado à economia capitalista, conforme enfatiza Schneider, de modo autoritário, sem que as pessoas tenham consciência ou efetiva liberdade de escolha. Os teóricos da 18
Escola de Frankfurt inicialmente excluíram a literatura do complexo da indústria cultural, que os meios de produção e o produto do trabalho artístico, nesse caso, não estariam totalmente cindidos, conforme nas indústrias cinematográfica e fonográfica. Contudo, não se deve ignorar a influência dessas duas grandes indústrias sobre a produção literária atual, tampouco a concorrência que elas desempenham na disputa por tempo e atenção das pessoas. Questionamos se é frutífero crer que o gosto inicial do estudante seja o prisma pelo qual se deva refletir o problema do ponto de partida ensino de literatura, em detrimento dos critérios sobre o potencial humanizador e desenvolvente da personalidade. Critérios os quais, inclusive, podem vir a enriquecer o gosto e contribuir para a superação não da cisão entre saber e sabor, mas das demais dicotomias inerentes ao processo de alienação: a divisão do trabalho em sentido amplo e filosófico, isto é, a desigualdade de formas que permitem a humanização dos indivíduos. Concorda-se com Duarte et. al (2012, p. 37-38), que a literatura não está ligada à “busca pura e simples pelo prazer [mas] ao processo de desenvolvimento do gênero humano e do indivíduo”, que não deixa de ter o prazer como elemento constitutivo; que da mesma forma que ensinar a recepção estético-literária não é podar a criatividade, mas desenvolvê-la pela apropriação de formas mais elaboradas, ensinar a gostar do clássico não é censurar um gosto que de modo algum surgiu espontaneamente, mas enriquecê-lo com conteúdos que não estão dados na cotidianidade capitalista. Considerações finais Ensinar o gosto pelo clássico e tornar a leitura destes, recorrente, contudo, ainda são ações que precisam ser postas como ação intencional de uma geração sobre outra, do educador sobre o educando, que persistem os problemas relacionados à alienação inerente à sociedade capitalista, como a Indústria Cultural e sua atuação (ainda que indireta e/ou não-intencional) pela desqualificação dos objetos de saber que não se saboreiam como mercadorias fáceis. Apesar de termos sublinhado a objetividade dos clássicos ao retratar temas universais da condição humana, não ignoramos que a fruição estética careça sempre de mediações, de certa capacidade de delas extrair seu sentido, requerendo habilidades gramaticais, 19
uma boa dose de prática, leituras prévias etc. Em geral, se trata do que Saviani (2011, p. 19) estabeleceu como aquisição de um habitus : “isto é, uma disposição permanente, ou, dito de outra forma, quando o objeto de aprendizagem se converte numa espécie de segunda natureza. E isso exige tempo e esforços por vezes ingentes”. Nota-se que tal proposição tem o mesmo sentido da análise de Lukács sobre a dinâmica dos reflexos condicionados, que por mais enrijecidos que estejam, são revogáveis. Como visto, não por que conceber o gosto literário dos educandos como algo intangível, que não possa ser influenciado pelo trabalho docente. Visto que as obras não são todas iguais, todas dotadas do mesmo valor, não por que não o influenciar, quando se adota o propósito de fomentar uma educação emancipatória, desenvolvente da multilateralidade dos indivíduos. O como fazê-lo liga-se à necessidade de colocar o repertório dos clássicos na ordem do dia dos programas escolares, de os professores lerem as obras com os alunos, assegurando-lhes as mediações para a correta compreensão de seu sentido, que é sempre intencionalmente colocado pelo autor ainda que a obra acabe por contrariar as preferências ideológicas dele e embora sempre aberto, em alguma medida, à interpretação pessoal, ao ato de completá-lo com a experiência de vida e com a imaginação de cada um, e à luz dos problemas específicos de cada época. Referências ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento . Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. BOSI, A. História Concisa da Literatura Brasileira . 2 ed. São Paulo: Cultrix, 1974. BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular / Ministério. Secretaria de Educação Básica Diretório de Currículos e Educação Integral. Brasília: MEC, 2017. CANDIDO, A. O Direito à literatura. In: Vários Escritos . Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011. CERVANTES, M. Don Quijote de la Mancha . Madrid: Real Academia Española, 2015. 20
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