V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X ENTRE A EXPECTATIVA DE MOBILIDADE E A INSTABILIDADE: A TRAJETÓRIA DA FILHA DE UMA TRABALHADORA DOMÉSTICA NO BRASIL 1 Aline Suelen Pires 2 Leilyane Souza Leão 3 Resumo Este artigo analisa a escolaridade estendida alcançada por jovens das classes populares nos anos 2000/2010 e seus efeitos. Discutimos a ampliação do acesso ao ensino superior, que gerou uma expectativa de mobilidade social ascendente entre esses jovens, bem como as dificuldades que vêm enfrentando para uma inserção qualificada no mercado de trabalho. Com base nas trajetórias de uma trabalhadora doméstica e de sua filha, buscamos abordar as oportunidades de trabalho e educação a que essas mulheres de diferentes gerações tiveram acesso em contextos sociais específicos do Brasil. Palavras-chave: trabalho; juventude; ensino superior; trajetória. ENTRE LA EXPECTATIVA DE MOVILIDAD E LA INESTABILIDAD: LA TRAYECTORIA DE LA HIJA DE UNA TRABAJADORA DOMÉSTICA EN BRASIL Resumen Este artículo analiza la escolarización ampliada alcanzada por los jóvenes de las clases populares en los años 2000/2010 y sus efectos. Hemos abordado la ampliación del acceso a la educación superior, que ha generado una expectativa de movilidad social ascendente entre estos jóvenes, así como las dificultades que han encontrado para acceder cualificadamente al mercado laboral. A partir de las trayectorias de una trabajadora doméstica y de su hija, buscamos abordar las oportunidades laborales y educativas a las que estas mujeres de diferentes generaciones han tenido acceso en contextos sociales específicos en Brasil. Palabras clave: trabajo; juventud; educación superior; trayectoria. BETWEEN THE EXPECTATION OF MOBILITY AND INSTABILITY: THE TRAJECTORY OF A DOMESTIC WORKER’S DAUGHTER IN BRAZIL Abstract This article analyzes the extended schooling attained by young people from working classes in the 2000s/2010s and its effects. We discuss the expansion of access to higher education, which has generated an expectation of upward social mobility among these young people, as well as the difficulties they have been facing in achieving qualified insertion into the job market. Based on the trajectories of a domestic worker and her daughter, we seek to address work and educational opportunities that these women from different generations accessed in specific social contexts in Brazil. Keywords: work; youth; higher education; trajectory. 3 Mestra em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: leilyaneleao@hotmail.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/7075487144200665 . ORCID: https://orcid.org/0009-0002-1031-7784 . 2 Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Paulo - Brasil. Professora do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). E-mail: alinepires@ufscar.br . Lattes: http://lattes.cnpq.br/8860270341724853 . ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5932-1050 . 1 Artigo recebido em 17/06/2024. Primeira Avaliação em 06/08/2024. Segunda Avaliação em 05/08/2024. Aprovado em 09/10/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.63025 1
Introdução: o contexto de transformações recentes no acesso dos jovens à educação e ao trabalho. O filme Que horas ela volta? de 2015, escrito e dirigido por Anna Muylaert, gerou intenso debate quando de seu lançamento e exibição nas telas de cinema do país. O filme era um retrato, naquele momento, de um Brasil em transformação. No enredo, a empregada doméstica Val, migrante pernambucana em São Paulo, trabalha na casa de uma família de classe média alta, desenvolvendo uma relação especial de afetividade com Fabinho, o filho adolescente da família. A aparente "harmonia" das relações estabelecidas na casa é rompida com a chegada de Jéssica, filha de Val, que viaja do Nordeste para São Paulo para prestar vestibular para o curso de Arquitetura na USP (Universidade de São Paulo), a mesma prova que seria prestada por Fabinho. Ao questionar a subserviência da mãe e uma série de regras veladas estabelecidas na casa, expõe a relação de desigualdade entre a família e a empregada doméstica, evidenciando que Val não é "como se fosse da família". Embora o longa-metragem traga à luz diversos temas importantes, como o trabalho doméstico, a migração, a desigualdade social, as relações de gênero e diversas formas de discriminação, chama a atenção ao retratar um momento marcado pela ampliação do acesso ao ensino superior no Brasil. A partir do início dos anos 2000, a juventude brasileira passa a se beneficiar de um conjunto de políticas públicas e programas sociais que resultaram na ampliação do acesso à educação e, em especial, à universidade. O FIES Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior foi criado em 1999, voltado a financiar a graduação na educação superior em instituições privadas (ou não gratuitas), sendo posteriormente vinculado ao Prouni Programa Universidade Para Todos em 2004. O Reuni Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais foi criado em 2007, voltado à abertura de novos cursos e universidades em todo o país. Ao longo do período, também foram sendo estabelecidas modalidades de ações afirmativas reserva de vagas ou bonificação para alunos egressos da escola pública (cotas sociais), negros e indígenas (cotas raciais) consolidadas com a criação da Lei de Cotas, em 2013. Vale destacar ainda o SISU Sistema de Seleção Unificada –, criado em 2009 e que utiliza as notas do 2
ENEM Exame Nacional do Ensino Médio para ingresso nas instituições de ensino superior federais (Picanço, 2016). Todas as ações e políticas resultaram em uma significativa ampliação da oferta de vagas, bem como em um grande crescimento no número de matrículas no ensino superior. As políticas de ações afirmativas, em particular, propiciaram o acesso de jovens de classes populares, em especial, negros e negras, à universidade. Pode-se dizer, portanto, que houve uma diminuição das desigualdades de oportunidades educacionais, marcadamente em função da expansão educacional que aconteceu nesse período (Ribeiro, 2012). Além disso, os anos 2000 e início dos anos 2010 foram marcados pela queda expressiva da pobreza e da extrema pobreza, diminuição da desigualdade na distribuição de renda (Barros et al, 2010) e mobilidade social ascendente de certos grupos, o que justificou um debate sobre a emergência de uma "nova classe média" (Neri, 2008). Nesse cenário, muitos(as) jovens brasileiros(as) puderam vislumbrar a possibilidade de uma mobilidade social ascendente, sobretudo por meio da escolarização estendida. Este foi o caso da personagem ficcional Jéssica e também da nossa interlocutora real Betânia (nome fictício). Betânia é filha de Bete, baiana que migrou para São Paulo e tornou-se empregada doméstica. Bete e Betânia são interlocutoras de uma pesquisa, realizada entre 2021 e 2023, que envolveu duas gerações e seus diferentes percursos na busca por mobilidade social ascendente (Leão, 2023). A primeira era formada por mães migrantes nordestinas que se tornaram empregadas domésticas no Sudeste e que expressaram o desejo veemente de que suas filhas pudessem estudar e ter um destino laboral distinto do delas. A segunda era constituída de suas filhas que, no contexto apresentado, tiveram a oportunidade de seguir na escolarização formal e ingressar no ensino superior. A partir disso, este artigo pretende colocar em foco a trajetória de Betânia, em especial sua experiência de acesso ao ensino superior e as dificuldades posteriormente enfrentadas para a sua inserção laboral, de modo a discutir as mudanças sociais ocorridas nesse período e as experiências de escolarização e trabalho enfrentadas por jovens de classes populares que conseguiram acessar a universidade e hoje buscam a entrada ou afirmação no mercado de trabalho. O contexto que marcou a melhoria das condições de vida e a ampliação das 3
oportunidades educacionais nos anos 2000 e início dos anos 2010 no país foi se transformando rapidamente. A partir de 2013, passamos a vivenciar uma crise econômica e política. O "golpe jurídico, parlamentar e midiático” (S, 2021, p. 150), que provocou o impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff, inaugurou um cenário adverso para as políticas públicas para a juventude brasileira. Desde então, os investimentos em educação foram reduzidos de forma dramática, houve um aumento expressivo do desemprego e do desalento, com destaque para os jovens 4 , e uma agenda em construção pautada na ideia de trabalho digno para a juventude é deixada de lado (Tommasi; Corrochano, 2020). A reforma trabalhista de 2017 veio legitimar a existência de diversas formas de trabalho precário, atingindo, de modo especial, uma geração de jovens que busca, nos últimos anos, adentrar e se estabelecer no mundo do trabalho. Esse momento mais recente do país representou, para muitos daqueles que buscam uma qualificação ampliada, a frustração de grande parte de suas expectativas. Além das dificuldades estruturais de acesso ao trabalho, alcançar um posto digno e correspondente ao nível e à área de formação passa a ser um grande desafio. Este desafio é ainda maior para jovens de famílias pobres, para os quais a escassez de recursos não apenas financeiros contribuem para uma inserção mais precária e menos satisfatória no mercado de trabalho. Em seguida a esta contextualização inicial, apresentaremos, brevemente, algumas notas metodológicas fundamentais para a compreensão das análises, buscando evidenciar a potencialidade do estudo de trajetórias para abordar mudanças sociais. Em seguida, apresentaremos a trajetória de Betânia, passando pela história de vida de sua mãe, Bete. A partir disso, buscaremos desenvolver algumas análises que podem auxiliar na compreensão das recentes mudanças mencionadas, com especial destaque para os desafios enfrentados por jovens qualificados e de classes populares para se inserirem no mercado de trabalho nos últimos anos, ao que se seguirão as considerações finais do artigo. 4 https://sbsociologia.com.br/o-crescimento-do-desalento-no-brasil-reflexoes-sobre-a-juventude-no-atua l-mundo-do-trabalho/ Acesso em 23 de abril de 2024. 4
Notas metodológicas: a potencialidade do estudo de trajetórias para abordar mudanças sociais A pesquisa empírica que baseia nossas análises é um estudo de trajetórias realizado a partir de entrevistas biográficas 5 . Partindo de um enfoque geracional, a pesquisa acompanhou os percursos de duas gerações familiares: mães e filhas. A primeira geração é composta por trabalhadoras domésticas que migraram da Bahia, entre o fim da década de 1960 e meados da década de 1990, para o Sudeste do país, a fim de acessarem melhores condições de vida. a segunda geração é formada pelas filhas dessas trabalhadoras, inseridas no contexto dos anos 2010 e 2020, e que buscavam uma inserção profissional distinta das de suas mães (Leão, 2023). A escolha por trabalhar apenas com as filhas das trabalhadoras domésticas em detrimento dos filhos do sexo masculino se deu, sobretudo, em razão da feminização do trabalho doméstico. Diante da socialização distinta de meninos e meninas, em que estas são incentivadas a atividades ligadas ao cuidado, compreende-se que o emprego doméstico acaba sendo o destino laboral de muitas mulheres empobrecidas. Desse modo, foi possível analisar mudanças e permanências, sobretudo em relação às alternativas de trabalho encontradas por essas mulheres de gerações distintas. Esse estudo foi um desdobramento de uma pesquisa anterior em que foram analisadas as trajetórias de trabalhadoras domésticas migrantes. Estas mulheres sinalizavam, nas entrevistas biográficas, o desejo de que suas filhas não tivessem o mesmo destino social e de trabalho que o delas (Leão, 2018). Nesse sentido, é possível destacar como o método das trajetórias é capaz de captar minúcias relacionadas aos interesses, disposições e desejos dos sujeitos que mobilizam suas ações. Como veremos na trajetória de Bete, todo um engajamento, envolvendo diversas estratégias, para que a sua filha Betânia não reproduzisse o trabalho doméstico remunerado em sua vida. O uso da história de vida, das trajetórias e das narrativas apresenta-se como interessante recurso para uma análise detalhada e complexa da realidade social. Os 5 Essas entrevistas compreenderam diversas e prolongadas interações com as interlocutoras, de modo a possibilitar a aproximação e o aprofundamento qualitativo em questões relativas às suas histórias de vida. 5
pioneiros no uso das histórias de vida foram os estudiosos da Escola de Chicago, na década de 1920, que mobilizaram esse instrumento de pesquisa para abordar mudanças sociais, relacionadas, sobretudo, a processos migratórios e condutas de indivíduos tidos como desviantes ou delinquentes (Guérios, 2011). Para Howard Becker, as histórias de vida se configuram como “um relato fiel da experiência e interpretação por parte do sujeito do mundo no qual vive” (Becker, 1993, p.102). Daniel Bertaux (1999), como um importante nome no debate francês a respeito dos estudos baseados na história de vida, propôs um enfoque de pesquisa pautado na interpretação dos sujeitos. Fazendo uso do termo “relato de vida”, o autor, na defesa de uma perspectiva de investigação com foco na biografia, aborda a necessidade de considerar a história de uma vida do modo que é contada pela pessoa que a viveu. Por outro lado, Bourdieu (1996), em sua conhecida crítica A ilusão biográfica , apontou, nos estudos de história de vida, a falta de uma objetivação dos dados: Tentar compreender uma vida como uma série única e suficiente em si mesma de eventos sucessivos sem outra ligação que a associação a um “sujeito” cuja constância é apenas aquela de um nome próprio é quase tão absurdo quanto tentar explicar um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, ou seja, a matriz das relações objetivas entre as diferentes estações (Bourdieu, 1996, p.189-190). Bourdieu (1996), portanto, direciona o foco para questões mais estruturais que operam na vida do sujeito. Para ele, faltava, aos estudos biográficos e de história de vida, uma noção que considerasse as posições que os indivíduos ocupam na sociedade, que incidem diretamente sobre a história narrada. Nesse sentido, o autor propõe o estudo de trajetórias. A noção de trajetória refere-se, portanto, “à atualização do habitus através das conjunturas que o sujeito atravessa” (Leite; Lopes; Cioccari, p.10, 2013). Tendo em vista a discussão suscitada pelos autores mencionados, é mobilizada, em nossas análises, a própria narrativa da pessoa, de modo a respeitar a interpretação do sujeito sobre sua experiência narrada. Ou seja, a visão da pessoa sobre o fato relatado é trazida no texto. No entanto, esse relato é analisado no interior do contexto social em que se insere, o que o define como um estudo de trajetória. Não se opera, portanto, no sentido de estabelecer relações de causa e efeito, o que levaria a uma “ilusão biográfica” como chamou Bourdieu (1996). um 6
esforço por situar as trajetórias de vidas estudadas em condições estruturais objetivas. A riqueza de detalhes que os relatos biográficos são capazes de oferecer evidenciam as oportunidades disponíveis para as interlocutoras da pesquisa no contexto histórico em que estavam inseridas, especialmente no caso de Betânia, filha de Bete (lei de cotas, ampliação do ensino superior, etc.). Por outro lado, é possível destacar também as escolhas que Betânia pôde fazer (ou não) para se inserir no mercado de trabalho acionando os recursos de que dispunha. Desse modo, o estudo de trajetórias dessas mulheres de distintas gerações nos permite observar qualitativamente as mudanças engendradas que permeiam suas histórias. Através dos relatos dessas mulheres, é possível reunir dados sobre suas experiências que, por sua vez, nos informam sobre e ilustram a conjuntura social do país, apontando não apenas as mudanças, mas também as permanências. As trajetórias de mãe e filha: apresentando Bete e Betânia Nesta seção, apresentaremos as trajetórias de Bete e Betânia, mãe e filha que ilustram e mobilizam nossa discussão 6 . Entre a migração e o trabalho: a trajetória de Bete Bete nasceu no ano de 1957 em Conceição, comunidade rural pertencente ao município de Paramirim, na Bahia, onde viveu parte de sua infância. Bete era a quarta filha de nove irmãos. Aos oito anos de idade, era familiarizada com as atividades domésticas, sabendo lavar roupa, buscar água e fazer comida, tarefas atribuídas por sua mãe, que precisava de tempo para o trabalho na roça. Consultando as horas diante a posição do sol, Bete conferia se estava no horário de iniciar o almoço e subia em um banquinho para preparar a comida para a sua família. As tarefas domésticas, desde muito cedo, se estabeleceram na vida de Bete, e, ainda na infância, converteram-se em uma atividade remunerada. Foi em meio às brincadeiras de riscar o chão da estrada de sua comunidade rural que Bete recebeu o convite de um fazendeiro conhecido da região para ir para 6 Bete e Betânia foram selecionadas por serem interlocutoras representativas de outras trajetórias de mães e filhas que foram analisadas na pesquisa mencionada (Leão, 2023). 7
Salvador “brincar com seus filhos”. Com a permissão de sua mãe, aos dez anos de idade, seguiu para a capital baiana onde cuidava das crianças e auxiliava nas atividades domésticas da casa. Ali teve sua primeira experiência de trabalho longe da família, da qual sentiu bastante falta. Conta que, com muita saudade, especialmente de sua mãe, após um ano e meio retornou para a sua terra, onde ficou sabendo que seus familiares haviam migrado para o estado de São Paulo, em busca de melhores condições de vida, e, assim, decidiu seguir para o mesmo destino. Com um conhecido da família, viajou dias rumo a Jundiaí-SP, onde encontrou finalmente seus pais e irmãos. Em seguida, passou a morar com o irmão e começou a ocupar-se dos afazeres domésticos e a preparar as marmitas dele e de outros rapazes que moravam na casa. Logo começou a trabalhar em uma fábrica de fiação e, em seguida, em um frigorífico, realizando a limpeza do local. Aos poucos, foi se estruturando e, a partir de redes familiares, conseguiu um trabalho, na cidade de São Paulo, como empregada doméstica em uma casa, onde permaneceu por quinze anos. A maneira quase lúdica com que se estabeleceu o emprego doméstico na trajetória de Bete, a partir da proposta do fazendeiro de "brincar com os seus filhos" na cidade grande, é o tipo de relato que ilustra uma cultura ainda muito comum no Brasil. Esse tipo de situação, em que meninas pobres vão morar com famílias de classe média para exercer tarefas domésticas e de cuidado e, muitas vezes, sem remuneração, aponta para a vulnerabilidade social em que se encontram as mulheres pobres e, em especial, as mulheres negras. Ao serem designadas a realizar o trabalho do cuidado desde muito jovens, mulheres empobrecidas e racializadas acabam por reproduzir esse tipo de trabalho que é invisibilizado (Porfírio, 2021) e marcado pelo baixo prestígio social. Esse foi o caso de Bete que, ainda muito jovem, com pouca escolaridade e diante da vulnerabilidade financeira de sua família, acabou encontrando no emprego doméstico um meio de sobrevivência. A própria percepção de infância, quando trazida por Bete em sua narrativa, mantém uma relação estreita com o trabalho. Desse modo, embora a noção moderna de infância, enquanto fase da vida, considere que haja uma atenção voltada à educação das crianças, no caso de Bete, o que se destaca é uma experiência de infância voltada ao trabalho e quase nenhuma escolaridade. 8
Além do trabalho doméstico, outro aspecto central que perpassa a vida de Bete na busca por sobrevivência e melhores condições de vida é a migração. Se, em um primeiro momento, sua ida para Salvador estava orientada para o trabalho, posteriormente seu deslocamento para São Paulo buscava o aconchego familiar, e foi com o apoio da família que conseguiu empregos na cidade. Assim como apresentado por Durham (1978), a orientação da família é fundamental no processo de saída do mundo rural para sua integração no espaço urbano. Nesse sentido, o segundo deslocamento realizado por Bete (para São Paulo) foi amparado em uma noção de projeto familiar, uma vez que, chegando na nova cidade, havia pessoas com quem contar. Em relação à experiência como empregada doméstica na capital paulista, Bete elenca diversas vantagens que identificou no trabalho naquele momento. A escassez experimentada por ela ao longo de sua vida, sobretudo na infância, no que se referia à alimentação e às condições de moradia, levava Bete a um certo entusiasmo em trabalhar e morar num local onde o básico lhe era garantido. As condições materiais que eram oferecidas no emprego doméstico, em relação ao que havia sido experimentado até então em sua vida, eram consideradas mais confortáveis. O acesso a itens básicos de higiene pessoal, à energia elétrica e à água encanada era encarado com muito entusiasmo, muito embora seja conhecida a realidade marcada por desvantagens sociais das mulheres no emprego doméstico, que não estavam ausentes nas experiências de Bete, nem passaram despercebidas por ela. Bete também sinaliza um conjunto de aprendizados que obteve trabalhando como empregada doméstica em São Paulo, tanto em relação a maneiras de cuidar e de organizar uma casa, quanto ao conhecimento culinário que foi aperfeiçoando, que tinha à sua disposição ingredientes para executar receitas, além da orientação de sua patroa. Ela contou que muitos dos hábitos de limpeza, organização, bem como receitas culinárias que aprendeu nessa residência onde trabalhou, acabaram sendo levados para sua própria casa. Nesse sentido, é interessante considerar a noção das empregadas domésticas como "mediadoras socioculturais" (Velho, 2001). Ao se deslocarem de suas casas, geralmente nas periferias da cidade, para os bairros de classe média e de elite, fazem o trânsito entre classes e culturas diversas. Assim, a empregada doméstica tem acesso à intimidade e hábitos de seus patrões, 9
bem como leva seus conhecimentos e costumes para o interior das casas onde trabalham. É a partir da renda obtida com o emprego doméstico que Bete conseguiu ajudar financeiramente seus familiares na Bahia. Lá, conseguiu construir uma casa nova para seus pais na zona rural. Posteriormente, conseguiu adquirir uma casa na cidade de Paramirim-BA em conjunto com duas de suas irmãs (que também trabalhavam como empregadas domésticas). Dessa maneira, estar em São Paulo representava a possibilidade de uma melhoria de vida para si e para seus familiares que permaneceram na Bahia. Sarti (2005), ao estudar famílias pobres, traz a análise de que a noção de família para esse grupo social é definida a partir de uma obrigação moral que estrutura as relações. No caso da migração de Bete, a família esteve presente em diferentes momentos, fortalecendo laços entre seus membros a partir do estabelecimento de redes. Essas redes estavam presentes tanto no local de origem quanto no de destino e, embora não se caracterizassem mais pelo vínculo original da zona rural na Bahia, se expandiram e se fortaleceram em termos da obrigação moral da ajuda mútua, ainda que os familiares estivessem distantes uns dos outros. Nesse sentido, Bete, ao prestar auxílio financeiro para sua mãe na Bahia, garantiu a reprodução daqueles que não migraram, práticas identificadas por pesquisas sobre migração, como a de Woortmann (1990) sobre sitiantes em Sergipe. Embora Bete rememore aspectos positivos de sua experiência no emprego doméstico, não deixa de ressaltar as dificuldades dessa atividade, sobretudo em relação ao cansaço físico e às privações por ter que morar no local de trabalho. E é falando a respeito dessas dificuldades que Bete lembra de sua filha Betânia, enfatizando que sempre fez o que pôde para que ela não herdasse o fardo do emprego doméstico. Betânia nasceu no ano de 1993, quando Bete havia retornado para Paramirim e se casado. Dois anos depois, Bete teve seu segundo filho, Antônio. Foi com o dinheiro da venda da casa que tinha adquirido com as irmãs que Bete conseguiu somar um valor para a compra de um imóvel na cidade de Paramirim, a fim de morar com a família que estava formando. Diante das dificuldades financeiras que sua família voltaria a enfrentar com o desemprego do marido e com o objetivo de também realizar um tratamento de saúde, ainda retornaria a São Paulo para 10
trabalhar por mais um período como empregada doméstica, deixando seus filhos aos cuidados da sogra. Diante da saudade dos filhos e a partir de uma sugestão de sua então patroa, decidiu voltar para Paramirim e montar uma barraca de comida na feira local com os poucos recursos que conseguiu acumular. Bete narra essa decisão com muito entusiasmo diante do êxito do empreendimento. Atualmente, Bete se encontra aposentada e não tem mais a barraca de comida, que não pode mais contar com a ajuda de seu marido, que se dedica ao trabalho na zona rural. Além disso, relata que também não pode mais contar com o auxílio de seus filhos, que encontram-se vivendo e trabalhando em São Paulo. Declara sentir muita falta deles e, ao mesmo tempo, se enche de alegria por terem conseguido estudar. Ambos realizaram o ensino básico na cidade de Paramirim e depois migraram para São Paulo, a fim de trabalhar e estudar. Seu filho Antônio realizou curso técnico em mecânica e trabalha em São Paulo, morando com sua companheira e filha. A trajetória de sua irmã mais velha, Betânia, é a que será retratada a seguir. Betânia e o projeto de mobilidade através dos estudos Betânia é uma mulher negra de pele clara que contava, na ocasião da pesquisa, com 28 anos de idade. Nascida e criada na cidade de Paramirim-BA, atualmente reside na cidade de São Paulo-SP, onde trabalha como atendente em uma farmácia. Ao rememorar sua infância, lembra da saudade que sentiu de sua mãe no período em que esta teve que ir para São Paulo trabalhar, e conta das idas ao orelhão 7 da cidade aos domingos, na companhia de seu pai e de seu irmão, a fim de conversar com a mãe, destacando que era um momento em que chorava muito. Em 2002, quando a sua mãe havia retornado de São Paulo e passou a ter a barraca de comida na feira aos sábados, Betânia lembra de auxiliá-la em algumas pequenas tarefas. Assim, localizando-se no tempo a partir de sua trajetória escolar, lembra que, quando estava na sexta série, passou a ajudar a mãe lavando louça, fazendo saladas e cobrando os pratos. Conta que seguiu essa rotina até o momento de sua formatura no ensino médio, quando foi para São Paulo a fim de trabalhar. 7 Telefone de uso público. 11
Ao longo de toda a educação básica, Betânia permanecia apenas estudando, lembrando que sua mãe sempre a incentivou muito: “Você vai estudar. Não precisa… me ajuda na feira.” [Betânia reproduz fala da mãe.] Eu ajudava na feira. nunca trabalhei, assim. Eu tinha amigas que trabalhavam de babá, alguma loja, assim, mas eu nunca… nunca procurei porque minha mãe sempre falava “ah, não precisa trabalhar não, estuda e me ajuda no sábado”, ela me dava um trocadinho. A centralidade dos estudos na vida de Betânia e os esforços de Bete nessa direção são percebidos em diversos momentos. Um deles é quando Betânia sente dificuldades com a matemática na escola e a mãe lhe paga um curso de reforço, o que Betânia reconhece como fundamental para melhorar seu desempenho na disciplina. Com uma rotina totalmente dedicada aos estudos ao longo do ensino básico exceto o auxílio na barraca da mãe aos sábados –, possibilidade que não está disponível para grande parte dos jovens das classes populares no Brasil (Corrochano, 2013), ela concluiu o ensino médio na rede pública no ano de 2010. Ainda permaneceu na sua cidade natal por um período de seis meses oferecendo curso de reforço para crianças e, em meados de 2011, surgiu uma oportunidade de trabalhar no mercadinho de uma de suas tias em São Paulo, onde passou a atuar como operadora de caixa no período da tarde e a frequentar o cursinho pré-vestibular pela manhã. No final do ano de 2011, prestou o ENEM e fez as inscrições no SISU para os cursos que desejava em universidades variadas. Uma delas foi a Universidade Federal de Uberlândia (UFU), na qual posteriormente descobriu que havia sido aprovada, mas com atraso, o que a fez perder a vaga. Conta que, nesse dia, chorou muito, mas seguiu, em 2012, com os estudos no cursinho, conciliando com o trabalho. Em meados desse mesmo ano, foi contemplada com uma bolsa pelo Prouni para o curso de Nutrição em uma universidade privada na cidade de São Paulo. estava certa de que iria se matricular até a sua aprovação na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, a UFRRJ. Lembra que, no cursinho, ouvia muitas pessoas mencionarem que as universidades federais eram melhores, o que a motivou a optar por se matricular na UFRRJ, em Seropédica, no Rio de Janeiro. No ingresso na universidade, Betânia se utilizou das cotas socioeconômicas e aquelas destinadas a alunos de escolas públicas. 12
Betânia pediu demissão do emprego e, em Paramirim, aguardou por quase seis meses pelo início das aulas, o que aconteceu no início de 2013, por conta da greve das universidades federais naquele período. Como não conhecia o Rio de Janeiro, sua mãe resolveu acompanhá-la na viagem. Após o trajeto de ônibus, as duas estranharam tudo em sua chegada, principalmente por não terem conhecidos que pudessem orientá-las na cidade. Chegando na universidade, no mesmo dia, resolveu a questão da moradia e se acomodou no alojamento universitário, onde tinha adquirido sua vaga, sendo bem acolhida pelos estudantes que ali viviam. Sua mãe permaneceu com ela durante sua instalação, por cerca de quatro dias, até que Bete foi embora de ônibus para Paramirim. Esse foi mais um momento em que a mãe se fez presente incentivando os estudos de Betânia. Além de acompanhar a filha ao Rio de Janeiro, também seguia auxiliando-a financeiramente, que Betânia estudava em período integral no curso de graduação em Ciências Biológicas. Desse modo, Betânia permaneceu os cinco anos do curso morando no alojamento universitário, contando ainda com a bolsa alimentação, que a permitia realizar as refeições gratuitamente no restaurante universitário. Contou ainda, por pouco mais de um ano, com uma bolsa de iniciação científica da FAPERJ (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro), período em que não precisou do auxílio financeiro dos pais. Sendo a pesquisa uma experiência estimulante e com a qual se identificava ao longo de sua graduação, chegou a apresentar seus resultados em um congresso em Águas de Lindóia-SP. Após concluir a graduação, conta que pretendia seguir na carreira de pesquisa, mas, como não passou nos primeiros processos seletivos de mestrado de que participou, acabou ficando desmotivada. Finalizando a graduação em 2016, Betânia voltou para Paramirim por não encontrar “nenhum Norte”, o que significava não ter um emprego ou uma oportunidade após sua formatura. Relatou ainda a realização de provas de concursos antes mesmo do retorno para cidade natal, nas quais não obteve êxito. Desse modo, ficou na casa de seus pais estudando por um período de seis meses até que uma tia que trabalhava como diarista em São Paulo a convidou para morar em sua casa, na aposta de ter mais oportunidades de trabalho na “cidade grande”. No ano de 2018, em São Paulo, tenta um processo seletivo para mestrado no qual não é aprovada, o que a desanimou, passando então a distribuir currículos para 13
vagas diversas, embora almejasse um trabalho em sua área de formação. No ano seguinte, conseguiu emprego como atendente de balcão em uma farmácia onde segue trabalhando desde então. Nesse período, realizou uma pós-graduação particular em Análises Clínicas e tem distribuído currículos na expectativa de ser chamada para trabalhar em sua área. Relata o cansaço diante a rotina de trabalho de segunda a segunda, com apenas uma folga na semana, e segue fazendo cursos on-line a fim de aperfeiçoar sua formação, considerando também a possibilidade de cursar uma segunda graduação. Do “micro” ao “macro”: a trajetória de Betânia se encontra com a de outros jovens brasileiros Betânia, uma jovem mulher negra, das camadas populares e de origem nordestina, é uma dentre muitos jovens que tiveram acesso à formação universitária em um contexto de ampliação e diversificação do ensino superior. Com esses atributos, representa um grupo que, por sua classe, raça e região era tradicionalmente ausente da universidade (Corrochano, 2013), e cujo acesso a esse espaço foi possibilitado, em grande parte, pelas políticas de expansão do sistema universitário, de ingresso via ações afirmativas e de financiamento estudantil. Nossa interlocutora, ao concluir sua graduação, concretiza o projeto da mãe, que não poupou esforços para que ela não seguisse seus passos no trabalho doméstico. Para mãe e filha, o investimento na educação foi a estratégia mobilizada para obter vantagens que levassem a maiores rendimentos e prestígio social. O diploma adquirido por ela representa conhecimentos socialmente validados, que Bourdieu (1998a) classifica como capital cultural de tipo institucionalizado 8 . Para o autor, “o rendimento escolar da ação escolar depende do capital cultural previamente investido pela família e [...] o rendimento econômico e social do certificado escolar depende do capital social também herdado que pode ser colocado a seu serviço” (Bourdieu, 1998a, p. 74). Nesse sentido, o capital cultural institucionalizado conquistado por Betânia, quando isolado, parece ser um recurso frágil a ser mobilizado na busca por melhores rendimentos. Percebemos que ela 8 Além do tipo institucionalizado, o capital cultural também pode ser incorporado obtido de forma inconsciente e hereditária ou objetivado mais relacionado à posse de bens culturais materiais (Bourdieu, 1998a). 14
carece de um capital social que se mostra fundamental na busca por emprego. Este capital refere-se aos recursos relacionados à posse de uma rede durável de relações (mais ou menos institucionalizadas) ou de pertencimento a grupos que propiciem vínculos permanentes e úteis, que podem ser mobilizados em situações sociais diversas (Bourdieu, 1998b). Como aponta Volker Martins (2016, p. 331), ao analisar a relação entre o ensino superior e a inserção profissional, conclui que “a vaga acessada no mercado de trabalho é influenciada pela classe social de pertencimento do indivíduo, a qual revelou distribuições distintas de capitais econômicos, sociais e culturais”. Em um primeiro momento, Betânia explica seu retorno para Paramirim após sua formatura por “não ter nenhum Norte”. Quando segue para São Paulo, despende suas energias na insistente distribuição de currículos, sem qualquer outro intermédio de contatos que facilite a sua inserção no mercado de trabalho. cansada, passa a buscar empregos que não correspondiam a seu nível e área de formação e, assim, consegue se empregar como atendente de farmácia. Embora sua mãe tenha se empenhado para que ela obtivesse sucesso escolar, nossas interlocutoras não têm a seu favor uma rede de relações que pudesse orientar a jovem a se inserir no mercado de trabalho após formada. A rede de relações de que dispõe em São Paulo é aquela que aproxima Betânia da trajetória de sua mãe: a tia com a qual ela divide um apartamento e que trabalha como diarista e outra tia que trabalhou como empregada doméstica e que atualmente possui um pequeno mercado. A migração efetuada pela geração anterior não possibilitou uma rede que absorva e impulsione uma profissional de elevada qualificação como Betânia. Como apontam diversos estudos recentes sobre os egressos do ensino superior (Silva, 2017; Volkmer; Oliveira, 2017; Barros, 2019; Moraes, 2019; Andrade, 2020; Silva et al, 2022), guardadas todas as especificidades das diferentes áreas de formação, o curso universitário possibilita, em muitos casos, e especialmente entre estudantes que se beneficiaram de ações afirmativas, um avanço em termos de escolarização entre gerações como no caso de Betânia, cuja mãe não completou nem o primeiro fundamental e cuja avó não teve qualquer tipo de escolarização formal e, consequentemente, o potencial de acessar empregos que não estariam disponíveis sem essa formação. No entanto, isso não significa que a inserção no mercado de trabalho é fácil. Muitos demoram a obtê-la e grande parte desses jovens 15
profissionais passa por atividades que não estão relacionadas à formação ou são pouco qualificadas e precárias. Ainda menos automática e garantida é a relação entre formação e mobilidade social ascendente. Embora a educação siga possuindo um importante papel na mobilidade social dos jovens, “não garante essa mobilidade e funciona atrelada a outros elementos como sexo, raça, origem social e o conjunto de capitais disponíveis para mobilização no acesso ao ensino superior e, posteriormente, ao mercado de trabalho” (Volker, 2016, p. 324). Além disso, a qualidade da inserção no mercado de trabalho depende do contexto histórico e econômico em que esses egressos estão inseridos (Silva, 2017). Analisando as trajetórias de alunos cotistas egressos da Faculdade de Serviço Social da UERJ (Universidade de Estado do Rio de Janeiro), Barros (2019) concluiu que a permanência em vínculos precários os levou a jornadas de acúmulo de empregos, muitas vezes combinando trabalho formal inclusive serviço público concursado com outros tipos de prestação de serviços sem direitos trabalhistas. Nesse caso, ser concursado não representou, para grande parte de seus interlocutores, uma situação de estabilidade, em função da baixa remuneração e das condições de trabalho, o que produzia um sentimento de desmotivação e projetos de abandono da profissão e de busca de empregos fora da área de formação. Nesse sentido, Moraes (2019) destaca, em seu estudo sobre formados no curso de administração no Brasil, que os egressos pardos e as mulheres percebem, em geral, que as vagas oferecidas a graduados compreendem tarefas inferiores à qualificação. Analisa, assim, a partir de Peugny (2014), que a questão do rebaixamento do diploma ( déclassement ) a ocupação de vagas inferiores ao nível de qualificação é um fenômeno global, atingindo especialmente os jovens pertencentes a grupos étnicos-raciais minoritários (ou historicamente discriminados) e as mulheres. O ingresso no ensino superior passa a ser um projeto amplamente disseminado na geração dos jovens dos anos 2000/2010, principalmente para aqueles de baixa renda (Abramo et al, 2020). Grande parte desses jovens ingressa no ensino superior em um cenário nacional de ampliação dos investimentos na educação e em um contexto promissor em relação ao mercado de trabalho, marcado pelo reduzido desemprego e pela expansão do trabalho formal. Ao saírem da 16
universidade e buscarem uma posição no mercado de trabalho, o cenário no país é outro, caracterizado por uma crise econômica e política, aumento do desemprego, diversas perdas em termos de direitos trabalhistas e previdenciários e ampliação da informalidade e dos contratos flexíveis e precários. Betânia se formou em 2016. De 2014 a 2018, houve uma redução no investimento em educação em 56%, de 11,3 bilhões para 4,9 bilhões de reais 9 . Esse contexto é marcado também pelo aumento do desemprego entre os jovens brasileiros. O número de trabalhadores com até 24 anos que desistiram de procurar emprego passou de 600 mil, em 2014, para 1,8 milhão em 2018 no Brasil. A situação veio a se agravar ainda mais com a pandemia de Covid-19. No início de 2021, a taxa de desemprego juvenil atingiu 23,8% na América Latina e no Caribe, segundo dados da OIT 10 . De forma geral, a passagem de um cenário de estabilidade e proteção social para outro de maiores incertezas, flexibilidade e perda de direitos marca o processo de reestruturação capitalista desde os anos 1970 e é retratado por Sennett (2009) também por meio de duas gerações, representadas por Enrico e Rico. Enrico, o pai, um faxineiro, viveu em um contexto de segurança e direitos garantidos, cuja previsibilidade permitiu a construção de uma narrativa linear de sua vida, uma história para si mesmo. Por outro lado, seu filho, Rico, situado em um regime flexível de trabalho, alcançou certa mobilidade ascendente, embora seja marcante, em sua trajetória, a instabilidade nos empregos. Desse modo, Sennett (2009) analisa como, de uma geração a outra, houve mudanças fundamentais na organização e na cultura do trabalho, com reflexos no perfil e na subjetividade dos trabalhadores. No mesmo sentido, Beaud e Pialoux (2009) analisam como as mudanças experimentadas pela classe operária no modelo de produção reestruturado em oficinas de montagem da Peugeot, na França, levou a uma busca, por parte dos pais, de uma escolaridade estendida para seus filhos, que se mostravam mais adaptáveis e flexíveis, e que passam a recusar o ensino profissionalizante em uma fuga do trabalho manual. A experiência de segurança e proteção social no Brasil foi muito mais restrita que nos contextos mencionados pelos autores citados, sobretudo para as classes 10 Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,desalento-triplica-entre-os-mais-jovens,70002773749 Acesso em 24 de abril de 2021. 9 Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2019/05/02/em-4-anos-brasil-reduz-investimento-em-educacao-e m-56.htm. Acesso em 29 de janeiro de 2023. 17
populares. Em nossa posição de capitalismo periférico, estruturalmente marcado pelo trabalho flexível, informal e desprotegido, a instabilidade estava presente na geração da mãe de Betânia, Bete 11 . Além disso, a despeito de um período que pode ser considerado excepcional na história de nosso país nos primeiros anos do século, com a melhoria dos índices de desigualdade e emprego, nossa história revela que entramos, desde os anos 1990, nas engrenagens do processo de reestruturação capitalista e práticas neoliberais, ampliação da flexibilização dos contratos e desregulamentação do trabalho, dimensões que voltaram a se acirrar nos anos mais recentes. Os jovens que estão adentrando o mercado de trabalho no momento atual, sendo majoritários no desemprego e subemprego, compõem a maior parcela do chamado “precariado”. Ainda que o conceito de “precariado” não se restrinja à juventude, possibilita pensarmos uma nova realidade de classe em articulação com idade/geração (Ferreira, 2018). Para Standing (2014), o precariado é um produto da globalização e da proposta neoliberal, caracterizado pela falta de garantias de acesso a emprego, rendimentos incertos, trabalho instável, contratos flexíveis, poucas chances de ascensão profissional e de identificação com a atividade realizada, além da ausência de proteção social. No caso da realidade brasileira, o conceito também precisa ser relativizado a partir da inserção sócio-ocupacional do proletariado precarizado e de nossa trajetória histórica e social (Braga, 2013). Chama a atenção o fato de que, embora haja diferenças em termos de qualificação, os jovens são em geral, na geração atual, mais escolarizados e dispõem de mais acesso à informação via ferramentas tecnológicas e digitais, inclusive que as gerações anteriores, mas têm menos perspectivas de acessar um emprego compatível com sua qualificação e, muitas vezes, obtêm menores rendimentos comparando-se aos pais (Braga, 2015). Cardoso (2008) aponta que um homem de 25 anos com ao menos onze anos de escolaridade, em 1970, estaria nas classes médias ou superiores urbanas. Em contrapartida, seu filho de 25 anos, em 2000, com a mesma escolaridade, tinha grandes chances de figurar entre as frações mais subalternizadas da classe trabalhadora e estar desempregado. Assim, transitar da escola/universidade para as melhores posições no mercado de trabalho deixou 11 As trabalhadoras domésticas (caso de Bete) vieram a ter seus direitos assegurados no Brasil no ano de 2015, quando a lei complementar 150 aplicou a Emenda Constitucional 72/2013, amplamente conhecida como “PEC das domésticas”. 18
de ser uma operação automática. No entanto, é importante destacar que parte importante dos jovens, embora, em muitos casos insatisfeitos, questionam a via do emprego estável e protegido, em nome do ideal de autonomia e liberdade (Standing, 2014). Essa postura assumida em muitas situações, no entanto, não é, em absoluto, incompreensível. Em pesquisa realizada junto a jovens entregadores (delivery) por meio de aplicativos, foi possível perceber que muitos dos interlocutores aderem à atividade e atribuem sentidos positivos a ela, mesmo considerando toda a situação de desproteção e riscos a que estão expostos. Isso se explica, em parte, pelo fato de que as alternativas de trabalho que se apresentam para eles e que experimentaram em suas trajetórias não são mais gratificantes e promissoras. Esses jovens menos escolarizados com ensino médio completo, em geral associam o emprego formal a baixos salários e forte subordinação. As atividades formais ou informais que exerceram, foram, em sua maioria, manuais/rotinizadas, com baixas remunerações e marcadas pela sobrecarga de trabalho, falta de liberdade, descumprimento de acordos, humilhações, falta de perspectivas de crescimento e de realização pessoal. Nesse sentido, valorizam a liberdade do trabalho “na rua”, a flexibilidade de horários e melhores remunerações que podem obter. Também são minoritários aqueles, entre eles, que enxergam o diploma universitário como possibilidade de ascensão social, sendo seus projetos muito pautados pela saída individual e pelo empreendedorismo (Pires; Perin, 2023). Com o crescente favorecimento dos atributos mais pessoais e subjetivos no trabalho, o valor do diploma e da qualificação formal passa a ser relativizado (Boltanski; Chiapello, 2009; Sennet, 2006). Em um contexto anterior, marcado pela proposta da integração social através do emprego formal ou de uma promessa nessa direção, como no caso brasileiro (Santos, 1979) havia uma confiança na relação direta entre a escolarização e o acesso a posições melhores e mais estáveis no mundo do trabalho. Contudo, “o período neoliberal do capitalismo tende a mudar o vínculo entre o diploma e valor pessoal reconhecido socialmente, tornando-o mais frouxo e impreciso”, promovendo uma “decomposição do vínculo entre diploma e emprego” (Laval, 2019, p. 42), uma vez que a capacidade de adaptar-se às mudanças e de obter novos aprendizados ganha centralidade diante dos saberes adquiridos. No entanto, os imperativos de criatividade, adaptabilidade, inovação, 19
autonomia e habilidades relacionais, que caracterizam uma representação hegemônica e idealizada de juventude, as quais são cada vez mais valorizadas no mundo do trabalho, não são atributos acessíveis a todas as juventudes (Motta, Pires, 2024). Betânia, embora tenha dado um passo fundamental ao obter o diploma universitário, encontra barreiras estruturais importantes para sua entrada e permanência no mercado de trabalho, especialmente em uma posição condizente à sua formação. Ao não obter êxito em sua busca, é lembrada constantemente, dentro de um quadro de referências neoliberais, de que é a única responsável por seu fracasso, que deve ser “empreendedora de si” e que “uma virada” nessa condição depende apenas de seu esforço individual (Dardot; Laval, 2016). Silva (2017), ao realizar uma pesquisa junto a egressos do Prouni que cursaram Direito e Administração, menciona as dificuldades enfrentadas por eles para a inserção profissional, ressaltando o quanto atribuem a si a responsabilidade por sua situação no mercado de trabalho e destacando seus discursos pautados na “disposição”, “autossuperação” e na crença no “trabalho duro”, além da culpabilização por, talvez, não “terem feito o suficiente”. Ainda é possível pontuar, nesse sentido, que Betânia e outras jovens que tiveram suas trajetórias analisadas na pesquisa apresentavam um estilo de vida mais pautado na individualidade, uma narrativa mais voltada para projetos individuais, comparada a de suas mães. Também evidenciaram que a busca por mobilidade social representou importantes mudanças subjetivas, nas formas de se expressar e se comportar, também a partir da identificação com os modos de vida no contexto das grandes cidades. Isso marca uma diferença em relação às trajetórias da geração anterior, marcadas pelo projeto coletivo de garantir a melhoria de vida de seus familiares. Assim, é possível observar mudanças no comportamento entre gerações que resultam, sobretudo, das oportunidades a que tiveram acesso para conquistar uma melhoria de vida . Considerações finais Como Jéssica, a personagem do filme Que horas ela volta? que mencionamos no início do texto, estaria hoje? Se fosse roteirizada uma continuação 20
do longa-metragem, provavelmente encontraríamos a jovem coprotagonista da história tendo concluído o ensino superior, mas, talvez, estivesse enfrentando inúmeras dificuldades para afirmar-se profissionalmente como arquiteta e enfrentando uma combinação de trabalhos precários, mal remunerados e em setores diversos. A coprotagonista rompe com a cadeia que empurra sucessivas gerações de mulheres das classes populares para o trabalho doméstico, atinge uma escolaridade muito superior à de sua mãe, mas, possivelmente, estaria enfrentando dificuldades para se inserir em uma atividade de maior prestígio social e, principalmente, que oferecesse condições dignas e satisfatórias de trabalho. Este poderia ser o seu enredo. Ao acompanhar as trajetórias de Bete e Betânia, percebemos que mudanças importantes ocorreram, ao longo dos anos, nas vidas dessa família e na história recente do país. Duas mulheres negras e nordestinas. A mãe, com poucos estudos e no trabalho doméstico desde a infância, faz a migração clássica de trabalho para São Paulo e segue por toda uma vida, entre idas e vindas, no serviço doméstico. A filha também migra, mas apenas após a conclusão do ensino médio e com perspectivas de seguir nos estudos, o que acontece graças a um contexto de expansão do ensino superior e que nos pareceria favorável a um caminho promissor rumo a um cenário de menores desigualdades e de melhores oportunidades, especialmente para as classes populares. O Brasil sempre foi um país marcado por grandes disparidades sociais e pela fragilidade da proteção social para a maior parte de sua população. Nos anos 1990, passamos a vivenciar com mais intensidade as consequências do processo de reestruturação capitalista e do aprofundamento da lógica neoliberal. No entanto, desde o início dos anos 2000 até meados da década de 2010, a agenda neodesenvolvimentista (Leite; Salas, 2014) dos governos petistas, em meio a um cenário político mais favorável na América Latina como um todo, marca um período de inflexão, com a melhora de diversos índices econômicos, sociais, e, em particular, avanços no campo do trabalho e da educação. É neste contexto de otimismo que muitos jovens acessam o ensino superior. Contudo, esse período de inflexão não representou uma reversão completa de processos mais amplos (neoliberais) em curso. Com a crise econômica e política, sobretudo a partir de 2013, os ventos mudam de direção, em articulação com 21
mudanças também no cenário internacional, e a paisagem passa a ser dominada por atores que defendem a adoção, de forma mais taxativa que nunca, de medidas neoliberais. cortes expressivos nos investimentos em educação, são aprovadas reformas nos âmbitos trabalhista e previdenciário que retiram direitos dos trabalhadores e legitimam formas flexíveis de contratação, além do fato de que toda uma agenda de políticas públicas voltadas à juventude é abandonada. Como demonstram diversos estudos sobre inserção profissional de egressos do ensino superior, jovens qualificados têm encontrado muitas dificuldades para ingressarem no mercado de trabalho, sobretudo em postos que ofereçam algum nível de segurança e estabilidade e que sejam compatíveis com o tipo e o nível de qualificação adquirida. O valor do diploma é questionado e os atributos incentivados no mercado de trabalho colocam foco na dimensão subjetiva e individual. Nesse sentido, buscamos evidenciar que o olhar qualitativo aprofundado propiciado pela análise de trajetórias contribui para a identificação de nuances importantes das dinâmicas “macro” que estão em curso, observando de que formas elas, de fato, impactam na vida e no cotidiano de pessoas “de carne e osso”, considerando aspectos que passam por condições de classe, idade/geração, gênero, raça, origem. Por fim, é importante salientar que as credenciais educacionais obtidas por Betânia representam um avanço importante em relação às gerações que a antecederam. O acesso a oportunidades educacionais possibilitou que a jovem, assim como as demais entrevistadas na pesquisa, não herdasse o destino do trabalho doméstico de sua mãe, o que é motivo de grande satisfação para essas famílias e possui grande relevância em termos práticos e simbólicos quando olhamos para essas duas gerações. No entanto, os obstáculos enfrentados pelas filhas para converterem os estudos em bons empregos e mobilidade social ascendente evidenciam que forças operantes que desafiam o potencial da qualificação formal para a transformação social e a redução das desigualdades. Além disso, são muitos os desafios enfrentados pelos jovens, sobretudo das classes populares, para uma inserção digna e satisfatória no mundo do trabalho. muitas pautas que precisam ser retomadas para que possa haver mudanças significativas nesse campo, como a agenda de políticas públicas voltadas à juventude, medidas de incentivo à inserção qualificada dos jovens no mercado de trabalho, a ampliação dos investimentos no ensino superior, além de medidas 22
que pudessem reverter retrocessos promovidos pela Reforma Trabalhista e pela implementação do Novo Ensino Médio. São entraves que, no cenário atual, parecem difíceis de serem transpostos, mas cujas soluções devem permanecer no horizonte político e embalando os projetos dos jovens estudantes e trabalhadores no Brasil. Referências ABRAMO, H. W. VENTURI, G. CORROCHANO, M. C. Estudar e trabalhar: um olhar qualitativo sobre uma complexa combinação nas trajetórias juvenis. Novos Estudos CEBRAP , São Paulo, v. 39, n. 3, p. 523-542, 2020. ANDRADE, A. G. M. Inserção profissional e mobilidade social dos egressos dos cursos de Pedagogia no Brasil . 2020. 212f. Dissertação (Mestrado em Administração) UFRGS, Porto Alegre, 2020. BARROS, C. F. R. Universidade e mercado de trabalho: a trajetória social dos alunos cotistas egressos da Faculdade de Serviço Social da Uerj. Em Pauta , Rio de Janeiro, v. 17, n. 43, p. 172-186, 2019. BARROS, R. CARVALHO, M. FRANCO, S. MENDONÇA, R. Determinantes da Queda na Desigualdade de Renda no Brasil. IPEA . Texto para discussão 1460, 2010. BEAUD, S.; PIALOUX, M. Retorno à condição operária : investigação em fábricas da Peugeot na França. São Paulo: Boitempo, 2009. BECKER, S. H. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais . São Paulo. Hucitec: 1993. BERTAUX, D. El enfoque biográfico: su validez metodológica, sus potencialidades. Proposiciones , Santiago, v. 29, n. 4, p. 1-23,1999. BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. O novo espírito do capitalismo . São Paulo: Martins Fontes, 2009. BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, M. M.; AMADO, J. (orgs.). Usos e abusos da História Oral . Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1996. p. 183-191. BOURDIEU, P. Os três estados do capital cultural. In: NOGUEIRA, M. A; CATANI, A. (orgs.) Escritos de Educação . Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1998a. p. 71-79. BOURDIEU, P. O capital social - notas provisórias. In: NOGUEIRA, M. A; CATANI, A. (orgs.) Escritos de Educação . Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1998b. p. 65-69. 23
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