V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
TECNOLOGIAS DIGITAIS E PLATAFORMIZAÇÃO DO TRABALHO E DA
EDUCAÇÃO: DESAFIOS PARA A CLASSE TRABALHADORA
1
Adriana Barbosa da Silva
2
Regis Argüelles
3
3
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professor da
Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil.
E-mail: rarguelles@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/0075852341880711.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6103-4659.
2
Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil. Professora da
Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil.
E-mail: adrianabs@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/485954375200545.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7841-9993.
1
Entrevista recebida em 24/05/2024. Aprovada pelos editores em 24/07/2024. Publicada em
07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.63098.
1
Entrevista com a Profa.Drª Adriana Mabel Fresquet
Doutora em Psicopedagogia pela Universidad Católica de Argentina e
Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ / Brasil Rio de Janeiro. Coordena o Grupo CINEAD: Laboratório de
Educação, Cinema e Audiovisual, que desenvolve atividades de pesquisa, ensino e
extensão em colaboração com a Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de
Janeiro, escolas públicas municipais, estaduais e federais (da educação infantil ao
ensino médio) e os serviços de pediatria e geriatria do Hospital Universitário. É uma
das fundadoras da Rede KINO: Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e
Audiovisual e participou da elaboração da Proposta de regulamentação da Lei do
Cinema nas Escolas (13006/14). Seu último livro organizado reflete e problematiza a
lei que estabelece a Política Nacional de Educação Digital (14533/23) e as
possibilidades do cinema nas escolas nesse novo contexto. Atualmente desenvolve
estudos de pós-doutorado na USP, pesquisando sobre Acervos Digitais no contexto
do Plano Nacional de Educação Digital e da Estratégia Nacional de Escolas
Conectadas, sob a supervisão da professora Giselle
Beiguelman.(adrianafresquet@gmail.com - cinead.org - cinenaescola.org)
Trabalho Necessário: Atualmente, existe um debate mundial sobre
a regulamentação e necessidade de controle social das tecnologias
digitais de comunicação e informação, internet, redes sociais e, mais
recentemente, da chamada inteligência artificial.
Como avalia a importância desta temática? Como estamos no Brasil
em relação a ela? Qual a importância da presença da comunidade
acadêmico-científica, da universidade pública e dos movimentos
sociais neste debate e movimento?
Adriana: É possível que em algum curto prazo de tempo olhemos para atrás
e identifiquemos o momento em que tudo mudou abruptamente. Fernanda Bruno
disse em 2023 ao Jornal Globo, que não podemos errar novamente como fizemos
com as redes sociais, que hoje é urgente que a IA siga protocolos de segurança
como existem quando se testa um medicamento ou algo delicado que pode colocar
em risco a vida de indivíduos ou comunidades.
2
Precisamos definir o que entendemos por Inteligência Artificial (IA). A IA,
curiosamente, não é inteligente e muito menos artificial. Trata-se de um ramo da
ciência da computação que se concentra em criar sistemas capazes de realizar
tarefas que, normalmente, exigiriam inteligência humana. Estas tarefas incluem
raciocínio, reconhecimento de padrões, aprendizado, planejamento, e interação
linguística. A IA é construída sobre disciplinas como matemática, estatística,
psicologia, neurociência e ciência cognitiva.
À medida que a tecnologia se desenvolve, o mesmo acontece com
as formas como a definimos. Não existe uma definição única ou fixa
de IA, mas um consenso comum de que as máquinas baseadas
em IA “são potencialmente capazes de imitar ou mesmo exceder as
habilidades cognitivas humanas, incluindo detecção, interação
linguística, raciocínio e análise, resolução de problemas e até
criatividade”. (Documento da UNESCO
4
, 2023, p. 7).
A Comissão Mundial da UNESCO sobre a Ética do Conhecimento Científico e
Tecnológico
5
(2019) elaborou um Estudo preliminar sobre a ética da inteligência
artificial.
Nesse documento, identificamos que uma maneira de entender a IA é
classificá-la por capacidades: Inteligência Artificial Estreita (ANI, sigla em inglês) que
faz parte do nosso dia a dia algumas décadas. A Inteligência Artificial Geral
(AGI, sigla em inglês). Esta segunda, ainda não totalmente realizada e mais teórica
neste estágio, seria capaz de entender e aprender qualquer tarefa intelectual que um
ser humano pode. Este tipo de IA teria consciência, sentidos e mente próprios.
Será? Causa arrepio esta definição!
E ainda, no campo da especulação, existirá também uma Superinteligência,
que se algum dia for alcançada, seria superior à inteligência humana em
praticamente todos os campos, incluindo raciocínio criativo, entendimento geral e
habilidades sociais. Este conceito é amplamente explorado e debatido dentro da
5
Disponível em: https://unesdoc.unesco. org/ark:/48223/pf0000367823. Acesso em 25 abril de 2024.
4
Chat GPT e Inteligência Artificial na educação superior. Guia de início rápido. Publicado em
2023 pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, 7, place de
Fontenoy, 75352 Paris 07 SP, França e o Instituto Internacional da UNESCO para a Educação
Superior na América Latina e no Caribe (IESALC), Edifício Asovincar, Avenida Los Chorros com Rua
Acueducto, Altos de Sebucán. Caracas, 1071, Venezuela. © UNESCO 2023. Código de Documento:
ED/HE/IESALC/IP/2023/12. Este trabalho está disponível em acesso aberto sob a licença
Attribution-NonCommercial-ShareAlike 3.0 IGO (CC-BY-NC-SA 3.0 IGO)
(http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/3.0/igo/). Ao utilizar o conteúdo desta publicação, os
usuários aceitam os termos de uso do Repositório de Acesso Aberto da UNESCO
(https://www.unesco.org/en/open-access/creative-commons).
3
comunidade de pesquisa em IA e filosofia da mente. Essa IA teria algumas
características tais como a amplificação cognitiva (melhorar suas próprias
capacidades intelectuais de maneira autônoma), velocidade de pensamento (muito
mais rápidas do que o cérebro humano), habilidades de aprendizado (capacidade de
aprender e adaptar-se a novos contextos e situações com eficiência extraordinária) e
memória e recuperação (quase perfeitos, de uma vasta quantidade de informações
armazenadas). Os benefícios potenciais dessa IA, tais como resolver problemas
complexos, como a cura de doenças ou a gestão de recursos globais de maneira
mais eficiente, até avanços em ciência e tecnologia ficam insignificantes diante os
riscos e desafios. As preocupações incluem o controle de tais entidades, a ética de
suas decisões, e o impacto sobre o emprego e a sociedade em geral. o temor de
que uma superinteligência possa atuar de maneiras que não estão alinhadas com os
valores humanos ou mesmo que possa se tornar hostil ou indiferente à humanidade.
No Brasil, nesse momento uma luta importante para fugir do faroeste
digital
6
que se instalou em boa parte do planeta. A dificuldade de regulamentação
está dada pelos entraves que os grandes conglomerados vem impondo aos países,
fundamentalmente aos democráticos, como Brasil ou Austrália. Veja a matéria do
jornalista Luís por Luis Nassif @luisnassif, que mostra que o edital aberto para
conectar as escolas exigia uma velocidade que somente a Starlink de Elon Musk
poderia atender. Isso é muito delicado.
A importância da universidade pública e dos movimentos sociais neste
momento são decisivas para que as decisões contem com o engajamento dos
atores sociais, do conhecimento produzido envolvendo amplos debates e espertices.
Trabalho Necessário: A atividade mediada pelas TDIC e IA é uma
tendência que está se tornando cada vez mais presente na chamada
economia digital e no mundo do trabalho, inclusive com o fenômeno
da plataformização. Como analisa a plataformização do trabalho e
do consumo em diversos ramos de atividade (empresas de
transporte por aplicativo, de varejo online e de serviços de
streaming, entre outras) e sua relação com a ampliação da produção
de mais valia para os proprietários destas plataformas? Como
6
Expressão do então ministro da justiça, Flavio Dino.
4
esta questão e suas implicações para a subjetividade dos
trabalhadores e para a luta de classes?
Adriana: A "plataformização" do trabalho e do consumo refere-se à crescente
prevalência de plataformas digitais que mediam transações entre consumidores e
prestadores de serviços em diversos setores, como transporte (Uber, Lyft), varejo
online (Amazon, Alibaba) e serviços de streaming (Netflix, Spotify). Este fenômeno
está profundamente interligado com a economia gig e tem implicações significativas
para a produção de mais-valia, as condições de trabalho, e a estrutura de classes
sociais. As plataformas digitais têm sido altamente eficazes em extrair mais-valia,
principalmente devido à sua capacidade de escalar rapidamente com custos
relativamente baixos, uma vez que as infraestruturas físicas são mínimas ou
inexistentes (por exemplo, Uber não possui veículos, e Airbnb não possui imóveis).
Outra coisa que elas permitem é minimizar os custos de mão de obra ao classificar
os trabalhadores como contratados independentes, evitando os custos associados a
empregados, como benefícios e segurança no emprego. Por outro lado, também
permitem capturar e analisar grandes volumes de dados para otimizar operações e
personalizar ofertas, aumentando a eficiência e o consumo.
A plataformização do trabalho tem implicações profundas para a subjetividade
dos trabalhadores. Uma das principais tem a ver com a precariedade e a
insegurança. A falta de garantias de emprego, benefícios e a incerteza de renda
contribuem para uma sensação de insegurança e instabilidade. Outro elemento
complicado é a flexibilidade com custos. Embora muitos valorizem a flexibilidade de
escolher quando e onde trabalhar, essa "liberdade" vem sempre às custas de maior
autoexploração e ausência de proteções trabalhistas. Alienação e Isolamento: A
interação limitada com colegas e a natureza fragmentada do trabalho podem levar
ao isolamento e a uma desconexão das lutas coletivas dos trabalhadores.
Alguém poderia pensar que a plataformização pode reconfigurar a luta de
classes de várias maneiras, mas o que sinto que efetivamente acontece é um
esvaziamento, uma apatia pelo desejo de comunidade e luta coletiva, certa atitude
geral de despolitização ou de indiferença política. De fato, novos desafios surgem
em relação à organização tradicional. Isto é, a natureza dispersa e individualizada do
trabalho em plataformas dificulta a organização sindical tradicional, o que é uma
barreira significativa para a resistência coletiva. Têm surgido novos modos de
5
organização e resistência, como sindicatos específicos para trabalhadores de gig
7
,
protestos organizados via redes sociais e até mesmo o uso de tecnologia para criar
plataformas alternativas cooperativas, mas isso tem peso ou repercussão social e
política. Embora possam surgir movimentos de conscientização e solidariedade em
relação às condições de trabalho e entre trabalhadores, podendo ser impulsionadas
por campanhas de informação e ação coletiva, isto não compensa nem
minimamente os enormes prejuízos individuais e coletivos das categorias que
trabalham “uberizadas". Recomendo muito ler os textos de Roberto Leher (UFRJ)
nesse sentido.
Trabalho Necessário: Observa-se mundialmente uma centralização
da produção e domínio das tecnologias digitais e inteligência artificial
por um grupo reduzido de grandes corporações, as chamadas big
techs (Google, Amazon, Microsoft, Facebook e IBM). Algumas
análises se referem a emergência de um novo tipo de domínio no
campo das relações capitalistas mundiais, o chamado
neocolonialismo digital. Como analisa esta questão? Vivemos uma
nova forma de colonialismo? O que isso tem a ver com o velho
colonialismo? Como o Brasil e a América Latina neste
movimento?
Adriana: Não sei se eu seja uma pessoa para falar em nome do Brasil e da
América Latina, mas posso te dizer coisas que penso ao respeito. O conceito de
"neocolonialismo digital" é uma reflexão crítica sobre como grandes corporações
tecnológicas, as chamadas big techs como Google, Amazon, Microsoft, Facebook
(Meta) e IBM, estão exercendo um tipo de domínio que tem paralelos
surpreendentes com o colonialismo tradicional. Este novo domínio se manifesta no
controle sobre tecnologias e infraestruturas digitais essenciais, bem como na
apropriação e monetização de vastos volumes de dados globais, semelhante à
extração de recursos naturais que caracterizava o colonialismo histórico.
7
Um "trabalhador gig" refere-se a uma pessoa que realiza trabalhos pontuais ou freelancers, muitas
vezes mediados por plataformas digitais, ao invés de ocupar uma posição de emprego estável e de
longo prazo. Esse modelo de trabalho é característico da chamada "economia gig", que inclui uma
variedade de empregos temporários ou de projeto que são frequentemente organizados através de
aplicativos ou websites.
6
Essa influência se estende à dependência econômica e tecnológica que
muitos países têm em relação a essas empresas, situadas principalmente em
regiões economicamente desenvolvidas. Essa dependência pode limitar a inovação
local e submeter economias inteiras aos interesses e dinâmicas do mercado
tecnológico dominado por essas poucas empresas. Além disso, a proliferação de
plataformas digitais dessas corporações também impõe certos valores culturais e
sociais que predominam nos seus países de origem, muitas vezes sem levar em
consideração as diversidades culturais e sociais das regiões onde operam.
No contexto do Brasil e da América Latina, a situação é particularmente
complexa. A região mostra uma forte dependência de tecnologias estrangeiras, com
iniciativas locais e respostas governamentais ainda buscando formas de fomentar
um setor tecnológico robusto e independente. Sem um desenvolvimento tecnológico
autônomo, a América Latina corre o risco de permanecer na periferia da economia
digital global, sujeita às decisões e prioridades de empresas estrangeiras. Além
disso, a penetração tecnológica na região muitas vezes reflete e pode aprofundar as
desigualdades preexistentes, com acesso e benefícios tecnológicos distribuídos de
maneira desigual.
Essas dinâmicas globais de poder tecnológico trazem à tona questões sobre
justiça, equidade e controle dentro da revolução digital, desafiando-nos a pensar
sobre como podemos garantir que os benefícios da tecnologia digital sejam
compartilhados mais amplamente, sem replicar as injustiças do passado colonial.
Possivelmente para o Brasil e para América Latina, isso significa não apenas
desenvolver capacidade tecnológica interna, mas também se engajar ativamente
nas discussões globais sobre a governança da internet e as políticas tecnológicas,
buscando assegurar que o futuro digital seja construído de forma inclusiva e
equitativa.
Talvez, vale a pena observar ainda também o conceito de datacolonialismo.
nuances entre eles. Enquanto o neocolonialismo digital aborda uma gama mais
ampla de questões relacionadas ao domínio tecnológico e econômico exercido por
grandes corporações sobre o mercado global, o datacolonialismo se concentra
especificamente nas implicações da exploração dos dados pessoais. Ambos os
conceitos, contudo, interseccionam na ideia de que as práticas modernas de
empresas e governos em um contexto tecnológico global podem criar novas formas
de desigualdades e dinâmicas de poder que são comparáveis às do colonialismo
7
histórico. Por isso, o debate sobre como as tecnologias e os dados devem ser
regulamentados e geridos é urgente, é necessária para evitar abusos e para
promover uma distribuição mais equitativa dos benefícios tecnológicos, visando que
não perpetuem desigualdades ou imponham outras formas de dependência
econômica ou cultural sobre outras regiões ou grupos sociais.
Trabalho Necessário: Nas últimas décadas, especialmente após a
pandemia da Covid-19, vivenciamos mudanças no mundo do
trabalho com a implementação da modalidade de teletrabalho, que
prevê que a jornada regular pode ser executada fora das
dependências físicas do órgão, em regime de execução parcial ou
integral, de forma remota e com a utilização de recursos
tecnológicos. Em sua opinião, quais são as implicações destas
mudanças e seus impactos nos serviços prestados para a população
e nas condições de trabalho dos servidores?
Adriana: A implementação do teletrabalho, amplamente adotada após a
pandemia da Covid-19, transformou tanto os serviços prestados à população quanto
às condições de trabalho dos servidores públicos. Esta modalidade de trabalho
remoto, apoiada por tecnologias digitais, tem permitido que as tarefas sejam
executadas fora das instalações físicas do empregador, possibilitando uma
continuidade dos serviços mesmo em períodos de crise, como os vivenciados
durante os lockdowns. Essa continuidade foi essencial para garantir que a
população continuara acessando serviços públicos sem grandes interrupções.
Mas, por outro lado, a transição para o teletrabalho também trouxe desafios
significativos e complexos. Embora possamos reconhecer em alguns casos, uma
maior eficiência e produtividade, por eliminar o tempo de deslocamento e reduzir
interrupções, essa modalidade exige uma adaptação das tarefas que nem sempre é
possível, especialmente para serviços que dependem de interação direta ou
infraestrutura especializada. Além disso, a qualidade e a eficácia na prestação de
serviços podem ser comprometidas se as adaptações necessárias não forem bem
planejadas ou se a tecnologia utilizada não for adequada. Inclusive, Giselle
Beiguelman (USP) lembra que na “dadosfera" estamos sempre expostos ao controle
8
e a vigilância, sem proteção da nossa privacidade dos dados pessoais nem
institucionais.
Será que para os servidores, o teletrabalho pode melhorar significativamente
o equilíbrio entre trabalho e vida pessoal, oferecendo mais flexibilidade para
gerenciar compromissos diários? Muito duvidoso! Essa modalidade também pode
levar a desafios como a dificuldade de separar a vida pessoal do trabalho,
resultando em jornadas mais longas e aumento do estresse. Além disso, o
isolamento de não estar fisicamente presente no ambiente de trabalho pode afetar
negativamente a saúde mental dos servidores, diminuindo a sensação de
pertencimento e potencialmente impactando a motivação e o engajamento. O
trabalho virtual, nos leva, de forma imperceptível e inercial a uma dificuldade de
desconexão. O scroll down -descer no feed sem fim - que permitem a maior parte
das redes sociais levanta uma outra reflexão, que também nos traz a pesquisadora e
educadora paulista quem, parafraseando a Foucault, que fala sobre os corpos,
dóceis hoje podemos afirmar sobre "olhares dóceis”. Num processo de progressiva
"plataformização do trabalho e da vida mesma", caberiam as perguntas: escolhemos
o que olhar? Quanto tempo olhar? Podemos parar de olhar?
Essas mudanças na forma de trabalhar requerem uma revisão cuidadosa das
políticas e dos direitos laborais. O eventual sucesso do teletrabalho residirá na
capacidade de equilibrar os benefícios dessa flexibilidade com a necessidade de
manter a qualidade e a integridade dos serviços públicos e fundamentalmente
respeitando os direitos inalienáveis dos trabalhadores.
Trabalho Necessário: O advento da pandemia de Covid-19
intensificou a utilização das TDIC no ambiente escolar. Muitos
docentes são condicionados a utilizar essas ferramentas, condição
para não serem considerados profissionais “obsoletos”. Como você
avalia esse processo e quais são as suas perspectivas para o
trabalho docente nesse contexto?
Adriana: Recomendo especialmente a leitura dos textos sobre este tema
escrito pela professora Inés Dussel (DIE-CINVESTAV, México) assim como várias
lives que tem gravado durante a pandemia. De fato, a pandemia de Covid-19 trouxe
uma transformação significativa na educação, acelerando o uso das Tecnologias
9
Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) no ambiente escolar. “Em aula de
chinelos” ou alguma tradução semelhante, é um dos textos que traz este fato de
estarmos em aulas, bancas, palestras com blusa e colar e de fato, calçadas de
modo confortável. Esse movimento forçou muitos e mutas docentes a adotarem
rapidamente ferramentas digitais, uma vez que as escolas tiveram que migrar para o
ensino à distância ou modelos híbridos para continuar o processo educativo durante
os períodos de confinamento e restrições sociais. Na marra, sem formação
específica (Salve Edmea Santos (UFRRJ), que correu com suas lives de educação
midiática todo o país!). No caso dos colégios particulares, exercendo uma pressão
sem precedentes a equipe docente que além de preparar e realizar as aulas em um
formato que exigia novos conhecimentos e uso de dispositivos, elas ficavam
expostas à visão de familiares no espaço doméstico.
Avaliando esse processo, é possível identificar tanto desafios quanto
oportunidades. Por um lado, o uso intensificado das TDIC tem potencial para
enriquecer o ensino, oferecendo aos docentes ferramentas inovadoras para engajar
os alunos, personalizar o aprendizado e acessar uma vasta gama de recursos
educacionais online. O acesso a arquivos de documentos, imagens, sons,
audiovisuais é infindável. Além disso, a familiaridade com essas tecnologias prepara
os estudantes para um mundo cada vez mais digitalizado.
Por outro lado, a pressão para que os docentes rapidamente dominem e
integrem essas tecnologias em suas práticas pedagógicas pode ser vista como
problemática. Muitos professores se viram obrigados a usar ferramentas digitais sem
o devido suporte ou formação adequada, o que pode gerar estresse e uma
sensação de inadequação. Além disso, a expectativa de que todos os professores
se adaptem às TDIC sem considerar as diferenças individuais, contextos de ensino e
recursos disponíveis pode levar a uma valoração superficial de suas competências,
rotulando-os como "obsoletos" se não se adaptarem rapidamente.
As perspectivas para o trabalho docente nesse contexto dependem em
grande medida de como as instituições de ensino e os sistemas educacionais vão
apoiar seus educadores. É fundamental que haja investimentos contínuos em
formação profissional que não apenas apresentem as ferramentas digitais, mas
também discutam como integrá-las de forma pedagógica e eficaz. Igualmente
importante é o desenvolvimento de uma infraestrutura tecnológica robusta que
garanta acesso equitativo tanto para alunos quanto para professores.
10
Além disso, é crucial reconhecer e valorizar a adaptabilidade e a resiliência
dos docentes que, mesmo em circunstâncias desafiadoras, continuam a se dedicar
ao ensino e à aprendizagem. O futuro do trabalho docente em um mundo
pós-pandêmico provavelmente continuará como o uso das TDIC, mas o sucesso
desse futuro dependerá de como essas tecnologias são integradas às práticas
pedagógicas de forma respeitosa, responsável e que enriqueçam a experiência de
aprendizagem sem sobrecarregar os educadores negligenciado os seus direitos. Ou
melhor, entender que a tecnologia não é neutra e muito menos universal, como afira
o filósofo da tecnologia Yuk Hui (China). Ela é diversa. Tecno-diversa. De fato ela
surge em íntima relação com os territórios, com as comunidades e suas culturas,
crenças e modos de existência. E se integra cada vez mais com a natureza e com a
cultura em uma relação inseparável. Se cada território produzisse suas próprias
tecnologias, não teríamos este cenário de dependência de quase o total dos 8
bilhões de habitantes de tão poucas empresas que vendem dispositivos,
conectividade, sistemas operativos, aplicativos, etc.
A educação escolar em tempos de educação digital não pode virar um
palimpsesto da educação analógica. Tempos e espaços do analógico e do digital
precisarão armonizar para que o aceleracionismo que os avanços das tecnologias
imprimem à vida cotidiana não desconhecem os tempos da vida, esses que não
podem ser acelerados, como o de gestar uma vida, aprender a andar, a falar, ou
fazer amigos. Criar redes nunca poderá substituir ou criar laços. A escola é um lugar
privilegiado para ambos.
11