V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X MULHERES E EXTENSÃO RURAL: UM CONSERVADORISMO SILENCIOSO 1 José Carlos do Amaral Junior 2 Resumo Esse artigo apresenta uma análise bibliográfico-documental sobre as ações com mulheres na extensão rural brasileira, por meio de uma síntese histórica. Foi possível perceber três elementos centrais que marcam essas ações: a incoerência do discurso da invisibilidade do trabalho feminino, a ausência do gênero enquanto categoria analítica e a centralidade nociva do produtivismo. Assim, reforçam que a extensão rural ainda concentra seus esforços no trabalho com mulheres, tendo referência nas práticas conservadoras do passado, encontrando no empoderamento e na geração de renda instrumentais neutros adequados para perpetuar uma abordagem individualista e micro. Palavra-chave : Mulheres; Extensão Rural; Políticas públicas; Campo. MUJERES Y EXTENSIÓN RURAL: UN CONSERVADURISMO SILENCIOSO Resumen Este artículo presenta un análisis bibliográfico-documental de acciones que involucran a mujeres en la extensión rural brasileña, a través de una síntesis histórica. Fue posible percibir tres elementos centrales que marcan estas acciones: la incoherencia del discurso sobre la invisibilidad del trabajo femenino, la ausencia del género como categoría analítica y la nociva centralidad del productivismo. Así, refuerzan que la extensión rural aún centra sus esfuerzos en trabajar con mujeres con referencia a las prácticas conservadoras del pasado, encontrando en el empoderamiento y la generación de ingresos instrumentos neutrales adecuados para perpetuar un enfoque individualista y micro. Palabras clave: Mujeres; Extensión rural; Políticas públicas; Campo. WOMEN AND RURAL EXTENSION: A SILENT CONSERVATISM Abstract This article presents a bibliographic-documentary analysis of actions involving women in Brazilian rural extension, through a historical synthesis. It was possible to perceive three central elements that mark these actions: the incoherence of the discourse on the invisibility of female work, the absence of gender as an analytical category and the harmful centrality of productivism. Thus, they reinforce that rural extension still focuses its efforts on working with women with reference to the conservative practices of the past, finding in empowerment and income generation neutral instruments suitable for perpetuating an individualistic and micro approach. Keywords: Women; Rural extension; Public policy; Field. 2 Doutor em Memória: Linguagem e Sociedade pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB) - Brasil. Profissional de Extensão Rural do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná IAPAR-EMATER (IDR-Paraná) - Brasil. E-mail: jcamaral1987@gmail.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/0581277589084312 . ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9983-4181 . 1 Artigo recebido em 29/05/2024. Primeira Avaliação em 26/09/2024. Segunda Avaliação em 11/10/2024. Aprovado em 09/11/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.63142 . 1
Apresentação Esse artigo apresenta uma discussão acerca da abordagem das mulheres pela extensão rural, enfatizando como a tendência atual em pensar e executar ações com esse recorte de público, longe de promover uma reflexão da desconstrução das desigualdades de gênero, reforça uma percepção funcionalista e limitada dos papéis femininos. Hoje as mulheres têm aparecido como público de diversas ações de extensão rural, o que pode ser facilmente verificado nas notícias divulgadas pelas agências públicas de extensão rural, demonstrando um interesse aparentemente crescente em promover projetos com esse público. A linha narrativa da maior parte desses projetos segue uma estrutura comum: destacar a invisibilidade da mulher do campo, reforçando a sua centralidade para a dinâmica familiar e para a produção agrícola, uma espécie de reposicionamento contextual na leitura da família rural, ideia quase sempre apresentada como vanguarda no pensamento “social” acerca desse objeto. A extensão rural é uma política pública implementada no Brasil a partir de 1948, por meio de uma parceria público-privada entre o Governo Estadual de Minas Gerais e a Fundação Rockfeller, formato que rapidamente se espalhou por todos os estados (Fonseca, 1985). Inspirando-se no modelo conhecido nos EUA aqui fazendo algumas adaptações grosseiras e simplista, como a estreita vinculação com o crédito supervisionado e a distância das instituições de ensino e pesquisa a extensão rural brasileira foi desenhada pensando no formato estadunidense de sucesso, em que uma equipe profissional se deslocava até as áreas rurais para promover ações de educação não formal aos sujeitos do campo (Peixoto, 2008). Grosso modo, a extensão rural pode ser definida como uma política de educação não formal para o campo, supostamente pensada para abranger a vida rural de forma holística e interdisciplinar (Peixoto, 2008). Popularizada com o lema “um agrônomo, uma professora e um jipe”, se tornou rapidamente uma política pública com investimentos expressivos do Estado, sobretudo sob o pretenso discurso de levar desenvolvimento ao campo, considerado, à época, arcaico e atrasado, produtiva e culturalmente (Fonseca, 1985). Esse discurso do atraso, importante destacar, foi impulsionado pelas missões rurais e pelos “diagnósticos” 2
que se fizeram comuns no país nos anos 1930-1940, que construíram uma imagem do Brasil como tipicamente rural e feudal 3 , com obstáculos a serem superados para se alcançar o progresso cujo modelo estadunidense era norteador (Silva, 2014). A extensão rural, portanto, é uma política pública pensada para promover o “desenvolvimento rural brasileiro”, estando inicialmente ligada a um modelo mais genérico de educação não formal, mas se convertendo posteriormente a um paradigma mais produtivista, sobretudo com a influência da Revolução Verde 4 nos anos 1960-1970. Como demonstra Rodrigues (1997), essa fase produtivista da extensão rural brasileira passou também a ser questionada a partir dos anos 1980, corroborando para uma leitura que se propõe crítica sobre a ATER 5 e que se estende até os dias atuais reconstrução que acabou reverberando também no redesenho das ações com públicos especiais, como é o caso das mulheres. No cenário da redemocratização dos anos 1980, acompanhando o avanço neoliberal que se sucedeu no Brasil nos anos 1990, a extensão rural viu ser questionada, de uma vez, a legitimidade social de seu modelo produtivista de outrora e a força de seu formato nacional centralizado, o que significou, a um tempo, a necessidade latente de se pensar enquanto política pública e reestruturar suas ações na realidade dos estados. Uma perspectiva legalista-formal pode levar à interpretação errônea de que a extensão rural encontrou nos anos 1990-2000 um novo fôlego em torno da agricultura familiar, inclusive consolidando a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural (PNATER) 6 . Ou seja, que nas primeiras décadas do século XXI, o debate nesse contexto fez as agências de extensão rural ressignificarem as suas práticas e diversificarem os seus públicos. No 6 Lei 12.188 de 11 de janeiro de 2010. 5 Assistência Técnica e Extensão Rural, sigla também comumente utilizada para designar a extensão rural. 4 A Revolução Verde foi, nas palavras de Andrades e Ganimi (2007), um contexto sócio-histórico marcado por pacotes tecnológicos e transferências de tecnologia ligados a grandes grupos da produção capitalista agrícola, cujo impulso era homogeneizar a produção dos países periféricos ao ponto de que se formasse um mercado consumidor para insumos, maquinários e demais tecnologias oriundas dos países centrais da produção capitalista. Nesse contexto, os EUA passaram a fomentar diversos acordos de cooperação e ações para possibilitar a expansão de seus interesses comerciais na área como, por exemplo, o que pode ser notado com o Grupo Rockefeller. 3 Sabe-se hoje que a tese do feudalismo brasileiro foi recusada pelos principais estudiosos da sociologia rural, embora ela tenha sido muito influente na primeira metade do século XX, como argumenta Frank (2012). Segundo esse autor, nomes como Octavio Brandão e os pensadores do Partido Comunista Brasileiro (PCB), endossavam a tese de existência de um modo de produção feudal no Brasil, o que justificaria as dificuldades de transição para o desenvolvimento nos moldes do capitalismo. 3
entanto, essa perspectiva esconde o oportunismo de uma prática socialmente deslegitimada e com financiamento público comprometido 7 , o que explica em grande parte esse aparente redesenho da extensão rural brasileira e tentativa de se extirpar de seu paradigma anterior. As mulheres passaram a ser novamente abordadas enquanto público da extensão rural nesse contexto de reordenamento teórico-metodológico das práticas extensionistas (Amaral Junior, 2020a), corroborando com a diversificação de público prevista na PNATER (Brasil, 2010) e em sintonia com o ressurgimento das agendas em torno das questões de gênero. Foi nesse novo cenário que a pluralidade de sujeitos sociais do campo passou a ganhar visibilidade nos discursos e ações, impulsionados pelo redesenho da Política de Extensão Rural, mas cuja prática não fez mais do que seccionar um público historicamente trabalhado de maneira muito conservadora e produtivista (Amaral Junior, 2020a). Mais recentemente, em que as questões em torno da categoria gênero passaram a figurar em lugar mais destacado no debate e nas políticas públicas, essa fragmentação do público da extensão rural passou a aparecer de forma mais contundente, sendo fator de impacto positivo na legitimidade e compromisso social das agências públicas de extensão. Além disso, em sintonia com o cenário mais global, em que o financiamento de projetos que tenham como público-alvo as mulheres passa a ser prioritário e incentivado, esse recorte de público se consolidou também como possibilidade de duplo reforço no eixo marketing social/captação de recursos, colaborando com o oportunismo a que se refere Dias (2007a; 2007b). Nesse cenário de “reaparecimento positivo” das mulheres enquanto público da extensão rural, alguns elementos chamam a atenção: a abordagem a-histórica da relação mulheres-extensão rural, que esconde o sentido funcionalista atribuído historicamente por essa política ao “ser mulher” e que não fomenta o debate acerca das rupturas e continuidades com o passado; em decorrência disso, a prevalência de um projeto de educação rural doméstica atrelada à extensão rural pública; o distanciamento da discussão sobre as mulheres da categoria gênero, plasmando uma abordagem acrítica e puramente focada na fragmentação de público; e a continuidade do produtivismo, direta e indiretamente, vinculando as mulheres rurais ao reprodutivismo da divisão sexual do trabalho em uma perspectiva conservadora. 7 Sobre essas questões, ver Dias (2007a), e Sepulcri e Paula (2008). 4
É sobre esses elementos que esse artigo irá se debruçar para demonstrar, por meio de um levantamento bibliográfico-documental, que a abordagem da extensão rural sobre as mulheres, na atualidade, não parece romper com as heranças do passado, mas reproduzir sua visão conservadora e opressora. Metodologicamente esse artigo foi elaborado no formato de uma análise que tem como fio condutor a reconstrução histórica da extensão rural, utilizando como base estudos elaborados da área, e as inferências possíveis a partir deles, bem como, a título de fonte primária, matérias pesquisadas em sites de agências públicas de extensão 8 , que serviram como contraponto teórico-metodológico, uma vez que o teor de detalhamento dos projetos e ações disponibilizados pela agências não é o suficiente para uma análise mais adensada. Inclusive, essa tem sido uma limitação comum nos estudos sobre a extensão rural: a falta de material de domínio público para análise, publicizados de forma completa e estruturada, visto que o que se tem usualmente disponível na área são estudos descritivos contextuais publicados por extensionistas que não auxiliam, por exemplo, no entendimento dos projetos temáticos e notícias e matérias vinculadas à mídia local, regional e nacional cujo nível de recorte e seleção de elementos é demasiadamente fragmentário e propagandista. Por isso, optou-se por usar a análise geral das matérias levantadas como elementos de contraponto à análise histórica e inferências elaboradas. As mulheres sempre estiveram lá: a incoerência da “invisibilidade” na extensão rural O primeiro elemento que gostaríamos de destacar é a incoerência histórica dos projetos atuais 9 em se estruturarem em torno da pretensa “invisibilidade” da 9 Foram identificados nas notícias pesquisadas dois projetos mais centrais nas duas agências de extensão: Mulheres do Café, do IDR-Paraná, e do projeto Elas no Campo e na Pesca, do Incaper. Além disso, pode-se observar um número expressivo de notícias e matérias vinculadas à agroindústria, semanas temáticas (por exemplo, da Mulher Rural) e ações focalizadas em público em situação de pobreza e vulnerabilidade. Há, em menor número, a ocorrência de ações e eventos 8 Toma-se como suporte analítico um conjunto de notícias vinculadas pelo IDR-Paraná e pelo Incaper em suas páginas oficiais, tendo como disparador os descritivos “mulher”, “mulher rural”, “mulheres”, “mulheres rurais”, “gênero” e “feminino” em matérias publicadas nos últimos cinco anos (período 2019-2024). Esse conjunto de notícias serviu metodologicamente como um norteador para a construção da análise bibliográfico-documental, contrapondo-se à leitura histórica desenvolvida sobre o trabalho com mulheres na extensão rural brasileira. Por isso as notícias não foram sistematizadas e classificadas como em uma análise de discurso e/ou conteúdo clássica, por entender que seu uso é na mediação do debate. 5
mulher do campo. Esse elemento, importante destacar, não é necessariamente novo no debate intelectual e nos movimentos sociais, tendo sido levantado principalmente após a onda do feminismo em que o trabalho “reprodutivo” feminino era problematizado à luz da sociedade capitalista, reivindicando leituras que considerassem o imenso volume de trabalho feminino envolvido no cuidado com a prole, a casa, os idosos e os enfermos, quase sempre considerado como não-trabalho. Esse debate está muito bem fundamentado, por exemplo, em obras como “A dona-de-casa: crítica política da economia doméstica” de Duran (1983) e artigos como o de Hirata e Kergoat (2007), tendo sido intenso e robusto nos anos 1970-1980. Em síntese, a maior parte desse debate está centrado na importância do trabalho feminino para a produção social, destacando que na sociedade capitalista o trabalho da mulher é estratégico e imprescindível, embora ideologicamente subjugado a um lugar de menor valor e desprezo, o que justificaria as teses da “invisibilidade”. Elementos dessa discussão podem ser vistos também em literatura clássica do século XIX, como em “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” de Engels (2019), que atrela o “lugar social da mulher” com o modo de produção capitalista e a forma de divisão sexual do trabalho que promove. Esse debate tem sido atualmente sintetizado pela extensão rural em torno da abordagem da “mulher invisível no campo”, como uma espécie de reafirmação das discussões das décadas passadas. Não discordância sobre como essa discussão, sobretudo pelas intensas formulações do movimento feminista, foi importante contribuição para que o trabalho doméstico fosse valorizado e entendido na totalidade das relações sociais, assumindo publicamente uma forma mais complexa que correspondesse ao seu real peso e importância na divisão social do trabalho. O que parece contraditório ao acionar esse elemento é a evidência histórica de que a extensão rural sempre percebeu e reconheceu o trabalho doméstico feminino como importante para a produção capitalista, reforçando, no entanto, a perspectiva funcionalista que naturaliza o doméstico como sinônimo de mulher, e reiterava as funções femininas como acessórias, complementares e anexas ao mundo produtivo. Nunca esteve em jogo para a extensão rural a invisibilidade do trabalho feminino, mas sim o reforço pouco definidos, muitas vezes na linha de empoderamento, autoestima e/ou parceria com outras instituições e secretarias. 6
ideológico de sua naturalização e desvalorização. Amaral Junior (2020) descreve os elementos desse fenômeno: desde seu modelo de implementação, a prática extensionista reproduzia os fundamentos funcionalistas da divisão sexual do trabalho, em que os homens eram naturalizados no espaço da produção lavouras, currais etc. e as mulheres no espaço doméstico e seus anexos casa, hortas e pomares. Não é ocasional que o modelo clássico da equipe extensionista estivesse baseado em uma equipe paritária, em que o homem, técnico agrícola ou agrônomo lidava com outros homens na esfera produtiva, e a mulher, técnica em economia doméstica ou economista doméstica, lidava com outras mulheres na esfera doméstica (Fonseca, 1985; Pinheiro, 2016). Ao utilizar o discurso de que as ações atuais com mulheres são para “superar a invisibilidade do seu trabalho no campo”, se abrem dois paradoxos em torno da questão da invisibilidade: primeiro, ao se referir ao trabalho doméstico invisível, a extensão rural não sempre o reconheceu, como historicamente estabeleceu projetos específicos de educação rural doméstica para fortalecer e normatizar esse trabalho como espaço vocacional feminino, o que está bem descrito em Amaral Júnior (2020), Pinheiro (2016) e Rodrigues (1997). Educar para o doméstico era premissa basilar da extensão rural humanista assistencialista dos anos 1950-1960, fundamento também da própria prática da Economia Doméstica, em larga escala incentivada e popularizada pela extensão rural brasileira (Amaral Junior, 2020a). Está demonstrado também neste trabalho como a extensão rural e seu projeto de educação rural doméstica deram fôlego e espaço para a premissa higienista-eugenista da Home Economics estadunidense, que encontrou cenário perfeito na leitura desenvolvimentista do atraso do campo brasileiro para prosperar contexto geral em que a política pública de ATER foi implementada no país. Em sua base histórica e premissa de educação rural doméstica, a extensão rural aborda a mulher como sinônimo de doméstico, substituindo o viés da visibilidade pelo discurso ideológico da aceitação: o trabalho doméstico feminino é visto e aceito como ocorrência natural. O que esteve historicamente em jogo sempre foi o seu subjugo à produção, seu desvalor embora ainda assim a extensão rural tenha historicamente promovido um discurso do doméstico como importante para alcançar o desenvolvimento, visto que os hábitos e costumes vistos como atrasados foram 7
por muito tempo considerados entraves, como explicita Fonseca (1985), Lopes (1995) e Amaral Junior (2020a). Em segundo lugar, quando a invisibilidade está dissociada do doméstico, embora a intencionalidade esteja dotada de sentido crítico, a finalidade da análise se perde no produtivismo. Aqui está em questão o trabalho feminino “não computado” na esfera produtiva, ou quando muito considerado “ajuda” ou “apêndice” do trabalho masculino. Algumas das notícias veiculadas pelas agências de extensão pesquisadas destacam esse caráter, validando a importância do trabalho feminino, por exemplo, na seleção de grãos especiais (como cafés), em cadeias produtivas específicas (como o leite) e na produção agroindustrial. Se de um lado, “dar visibilidade” ao trabalho das mulheres nesse contexto é importante para reforçar também seu lugar de agricultora detentora de direitos e reconhecimento social 10 , por outro lado as análises deixam escapar a produção agrícola transmutada em prolongamentos do doméstico o que justifica as mulheres sendo associadas sempre às atividades de higienização, organização, processamento de alimentos etc. Em resumo, aquela antiga leitura dos anexos domésticos como responsabilidade da mulher (como hortas, galinheiros e pequenos pomares) 11 , foi ampliada sem romper com paradigmas de gênero, incluindo as mulheres em uma variedade de processos produtivos, todos ligados ao senso comum de que a elas cabe a função de limpar, cozinhar, organizar, preparar, selecionar 12 . Além disso, cooptada pelo produtivismo e leitura acrítica, essa análise contribui para ampliar os cenários de dupla e tripla jornada feminina que será abordado mais adiante. O fio condutor da invisibilidade, portanto, ao abordar as mulheres do campo, não parece fazer mais do que tornar a sua situação visível sem resultar em ações para superar a sobrecarga doméstica e a opressão feminina, muitas vezes não ultrapassando o binômio empoderamento-reconhecimento. O tom festivo dos eventos promovidos, as ações demasiadamente focadas em aspectos 12 Premissa basilar também da Economia Doméstica, que se estruturou historicamente em torno da cientificação da vida cotidiana e das atribuições domésticas femininas, como cuidar e educar (desenvolvimento humano), morar (habitação e planejamento de interiores), comer (alimentação e nutrição), vestir (vestuário e têxteis) e economizar (economia familiar) (AMARAL JUNIOR 2020a). 11 Sobre isso ver Rodrigues (1997) e a descrição da educação rural doméstica na extensão humanista assistencialista. Também Pinheiro (2016) e seu detalhamento sobre o projeto doméstico da extensão rural. 10 Como, por exemplo, para reforçar seu direito de aposentadoria como segurada especial, na condição de agricultora familiar. 8
afetivos-emocionais 13 e a pouca versatilidade dos projetos e ações que, quando muito, acrescentam exclusivamente objetivos de geração de renda reverbera essa intencionalidade: a de não dizer e fazer mais do que está dito e posto. Em Amaral Junior (2020b) está bem descrito que o projeto humanista crítico da extensão rural pós-1980 14 não logrou êxito, perpassando a diversificação de públicos sem alterar substancialmente com as suas heranças históricas. Aqui, ao que tudo indica, a invisibilidade da mulher não parece mais do que um subterfúgio discursivo. Se por um lado a invisibilidade do trabalho feminino na extensão rural se move ora pelo campo nebuloso de sua prática conservadora do passado, ora pelo terreno de sua abordagem pouco crítica, o trabalho com mulheres na ATER atual parece ainda mais pasteurizado ao considerarmos a completa ausência da categoria gênero em seu planejamento. Sobre isso, dedicamos a seção seguinte. Sem gênero, sem raça, sem classe O segundo elemento que as nossas análises apontam sobre a abordagem atual das mulheres pela extensão rural é a ausência da categoria gênero. Aqui, entendendo o gênero como uma categoria analítica histórica, conforme proposto por Scott (2011), fundamental para entendermos o processo de divisão sexual do trabalho, a opressão feminina, a consolidação do patriarcado e a objetividade das diversas formas de opressão da mulher. O gênero, como argumenta a autora, auxilia na construção de uma abordagem historiográfica que consiga superar o viés de uma sociedade pautada na história escrita pelos e para os homens. Nesse sentido, falar de mulheres sem falar de gênero é considerar que a extensão tem tratado as mulheres como uma categoria abstrata, idealizada, fora da história real. A trajetória da segmentação de públicos na extensão rural é o reflexo do funcionalismo enraizado em seus métodos, em que mulheres, homens e jovens 14 Esse projeto buscava romper com os elementos do produtivismo, até então vigente sob forte influência da Revolução Verde. Com base nas críticas e na concepção pedagógica de Paulo Freire, buscava reformular a prática extensionista para uma abordagem mais horizontalizada e dialógica, focada em romper com o aumento do superávit e respeitar os modos de vida e produção locais e regionais. 13 Como, por exemplo, a prevalência de cursos do Programa Mulher Atual, promovidos pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) em parceria com as agências de ATER pública, cujo escopo é massivamente centrado na estratégia de empoderamento e modelagem de um comportamento “assertivo” das mulheres, com temas como autoconhecimento, autoestima e empreendedorismo. 9
eram separados por intencionalidades imanentemente práticas (Amaral Junior, 2020a). Essa segregação de públicos pela ATER foi mantida e reproduzida historicamente por décadas, até ser alinhada com pautas e agendas mais progressistas, embora delas tenha pouco se nutrido 15 . É o que está demonstrado, por exemplo, em Amaral Júnior (2020b): mulheres e jovens reaparecem na extensão pós-1980, ora como apelo de uma necessidade de diversificação da prática extensionista, ora como oportunismo de alinhamento com as políticas e agendas em voga. Mas o que se percebe, no geral, é que não se trata de uma abordagem por uma perspectiva analítica da categoria gênero. Os projetos específicos para mulheres que são carros-chefes das agências de extensão rural 16 são claramente formatados longe dessa “polêmica analítica”, embora paradoxalmente manifestem o objetivo de incluir e visibilizar, não discorrem sobre os motivos que levaram à exclusão e à invisibilidade. A extensão rural, principalmente aquela parte mais voltada a “área social” 17 , se estruturou em torno de um método deficitário em que os fins estão justificados em si mesmos, perdendo de vista os fenômenos sociais que lhes dão origem (Amaral Junior, 2020c). Essa anomalia metodológica pode explicar em partes o abandono das categorias analíticas, estruturando as ações como um conjunto de medidas técnico-operativas neutras, cuja finalidade última seria “resolver e mitigar” problemas decorrentes do próprio metabolismo social 18 . Aqui, o abandono da categoria gênero resulta no mascaramento de que, embora se apresente hoje como parte da solução, a prática extensionista é parte do problema. Podemos ir além e afirmar que a abordagem das mulheres pela extensão rural desfaz por completo a noção de “nó” proposta por Saffioti (2013), em que a categoria gênero não pode ser compreendia fora de sua necessária inter-relações com classe e raça/etnia. Elas também não possuem classe e raça/etnia, e a 18 O cenário de fundo dessa interpretação é uma naturalização da questão social, como se a opressão de gênero, a pobreza, a miséria, as vulnerabilidades sociais, dentre outros fenômenos sociais fossem resultados indesejados da vida em sociedade, subprodutos da vida social. Essa naturalização, como demonstra Pastorini (2010), é uma leitura comum às correntes liberais e pós-modernas. 17 Essa é uma abstração genérica utilizada para designar a parte da extensão rural não voltada diretamente à produção agrícola, embora esteja com ela intimamente relacionada. Abrange hoje, principalmente, a área do Serviço Social (assistentes sociais e economistas domésticos) e suas práticas de intervenção. 16 Cite-se como exemplo, novamente, o Mulheres do Café (IDR-Paraná) e o Elas no Campo e na Pesca (Incaper), anteriormente mencionados. 15 Sobre isso, ver Dias (2007a). 10
idealização da tratativa das mulheres se desfaz de qualquer leitura possível que interseccione gênero e raça/etnia com o recorte de classe. A mulher agricultora familiar, ou mulher rural como genericamente optam, é um todo pretensamente homogêneo, territorialmente irrelevante, esvaziada enquanto trabalhadora e mulher do campo das suas particularidades 19 . Se a ausência da categoria gênero faz sombrear os problemas da sociedade patriarcal e as possibilidades concretas de superá-los, seu esvaziamento também impossibilita uma intersecção adequada com gênero e raça, reforçando projetos e ações que não podem mesmo superar os limites do individualismo liberal. Por isso, reafirma-se, a maior parte das ações hoje terminam voltadas ao empoderamento e à geração de renda, porque ali se mantém o microcosmo apolítico e individualista de uma leitura das mulheres na sociedade atual apartadas do gênero, da raça/etnia e da classe à qual pertencem. O empoderamento, ressalta-se, embora não seja estratégia exclusiva da extensão rural no trabalho voltado às mulheres, reforça e facilita uma perspectiva acrítica. Conforme demonstra Siqueira (2013), o discurso do empoderamento, altamente funcional ao neoliberalismo, é adotado pelas agências multilaterais e por diversos segmentos intelectuais, sobretudo para individualizar e isolar as tratativas com as expressões da questão social. No trabalho com mulheres da extensão rural atual, ele é instrumento mais do que adequado e eficiente para falar das mazelas que assolam as mulheres como a sobrecarga de trabalho, a pobreza, a baixa renda e o adoecimento psíquico sem reflexões e soluções macrossocietárias. O gênero sem classe e raça/etnia, como aborda Saffioti (2013), é abstração que encontra dificuldades em se reverberar na concreticidade da sociedade de classes atual. o extremo de abordar mulheres sem a categoria gênero, não é muito mais que mera segmentação de público. Por último, acompanhando o vazio de gênero nas abordagens sobre mulheres, um pretenso familismo 20 , que tanto ajuda a naturalizar as “funções femininas”, remetendo à educação doméstica do passado, quanto reforça uma leitura produtivista da mulher, enquanto inserida em uma “unidade produtiva”. A analogia simplista das mulheres enquanto “uma das engrenagens” de uma unidade 20 Sobre isso, ver Castilho e Carloto (2010). 19 Aqui utilizamos Pontes (2016) e sua valiosa contribuição de mediação enquanto categoria imprescindível para o trabalho social e a leitura da concreticidade das relações sociais. Esvaziada de suas particularidades, segundo o autor, o trânsito da singularidade para a totalidade fica comprometido, fazendo as análises sucumbir ora ao situacionismo, ora à totalização genérica. 11
de produção, leva ao extremo essa leitura, supostamente deixada no passado da extensão rural. Sobre isso, tratamos a seguir. No centro, ainda, o produtivismo O terceiro elemento que a análise nos permitiu identificar foi que, contrariando os discursos oficializados, a atual abordagem de mulheres na extensão rural tem como central o produtivismo. Nesse ponto, é importante uma breve digressão. Utilizando a classificação proposta por Rodrigues (1997), a extensão rural brasileira passou por pelo menos três modelos históricos: o humanismo assistencialista (de 1948 até o fim dos anos 1960), o difusionismo produtivista (de meados de 1960 até meados dos anos 1970) e o humanismo crítico (dos anos 1980 em diante). Nesses momentos históricos, conforme argumenta o autor, as mulheres tiveram lugar bastante demarcado no humanismo assistencialista, mas ficaram secundarizadas e negligenciadas no modelo produtivista. O motivo, explica o autor, é o deslocamento do objeto da prática extensionista, que passou a ser o aumento da produção, abandonando a perspectiva moralista-educativa do primeiro modelo, para o qual fazia sentido um projeto de educação rural doméstica destinado ao público feminino, como retratado. Por sua vez, com o esgotamento do produtivismo nos anos 1970, e recebendo críticas ao modelo vigente como aquelas feitas por Paulo Freire (2018) a extensão rural tentou consolidar uma nova proposta, identificada por Rodrigues (1997) como humanismo crítico, que até os anos 1990, tinha conseguido poucos avanços. As análises apontam que, pela necessidade de obtenção de legitimação social e financiamento, o modelo humanista crítico rapidamente cedeu a um desenho assistencialista-tecnicista que mesclou elementos dos desenhos pretéritos da extensão rural brasileira (Amaral Junior, 2020b). Na prática isso parece ter significado um abandono daquilo que Callou (2006; 2008) havia identificado como extensão pós-freireana 21 , marcando um retorno aos elementos de uma ATER pautada na mudança de hábitos e costumes e no aumento 21 Esse movimento, forte nos anos 2000, marcou uma inclinação da extensão à agricultura familiar com ênfase na agroecologia, nos métodos participativos e na tentativa de abandonar o difusionismo produtivista. Como demonstra Callou (2006), embora tenha sido influente na consolidação da PNATER, não se viu refletido nas agências de extensão muito embora seja prática comum nos programas de pós-graduação em extensão rural admitir que essa mudança de paradigma ocorreu, o que trabalhos como o de Dias (2007a; 2007b), Filho (2010) e Landini (2015), demonstram ser mais refletido no campo acadêmico do que na prática extensionista. 12
da produção. É nesse contexto geral que as mulheres reaparecem na agenda da extensão rural, pautadas pelo redesenho de um projeto de educação rural doméstica maquiado em torno das agendas progressistas (Amaral Junior, 2020a). Nesse sentido, resgatando dos tempos pretéritos as práticas mais usuais, a extensão parece mesmo ter desenhado suas ações com mulheres para lidar ora com o empoderamento individualista, ora com o produtivismo focalizado. Para esse último, é importante entender as implicações diretas e indiretas nos trabalhos com mulheres. Em primeiro lugar, é preciso compreender que a própria categoria família sofreu alterações dentro da extensão rural, sendo que o modelo atual promove uma abordagem híbrida que considera a família como parte integrante de um processo produtivo (mão de obra familiar) e que considera a família em si como unidade produtiva, em analogia quase perfeita com as pequenas unidades produtivas capitalistas (Amaral Junior, 2020a). Essa leitura da família condiciona as leituras sobre as mulheres e jovens: abordados quase sempre como parte da mão de obra disponível, ou seja, força de trabalho que vai entrar na equação produtiva. Isso explica, por exemplo, porque mulheres e jovens em muitos projetos e ações não são mais do que estratificação de público, como se a classificação fosse mero artifício de nomenclatura para força de trabalho com características diferentes. Esse é um momento interessante do produtivismo prevalente na extensão rural: a reificação dos sujeitos. Em segundo lugar, como abordamos nas seções anteriores, o vazio crítico-analítico que se forma ao trabalhar mulheres sem ponderar o percurso histórico da extensão rural e as categorias analíticas necessárias, reverbera em soluções monolíticas. O excesso de esforços empreendidos em gerar renda, por exemplo, demonstra a prevalência do produtivismo como solução, sobretudo desprendido das causas concretas das desigualdades de gênero. O projeto Mulheres do Café, desenvolvido pelo IDR-Paraná no norte paranaense, por exemplo, é categórico ao afirmar seu papel como gerador de renda para as mulheres que trabalham na seleção e comercialização de cafés especiais, grãos com alto valor de mercado. Se entende e ressalta que, considerando os processos produtivos e de beneficiamento envolvidos no projeto, um impacto considerável na vida das participantes, porque renda na sociedade capitalista significa, até certo ponto, autonomia e poder de decisão. Mas a renda pela autonomia financeira e por 13
seu decorrente empoderamento não resolvem, ou chegam a tangenciar, os problemas das desigualdades de gênero nessa sociedade, ou iríamos incorrer no erro de certo grupo de feministas que lutaram no passado por condições iguais de exploração no capitalismo nada muito além do que igualdade entre os explorados. Essa análise leva também à reflexão de que somente renda não promove muito mais que autonomia e empoderamento nos limites do individualismo burguês, abordagem parecida com o que Siqueira (2013) discute acerca da falseabilidade do empoderamento dos pobres. O que se perde de vista é que, com uma solução simplista, a extensão não está lidando com um problema diferente daquele que assola a maior parte dos trabalhadores do campo e agricultores a baixa renda e, portanto, o recorte de público não é mais que artifício arbitrário. Em terceiro lugar, abordado ao tratarmos do discurso da invisibilidade feminina, destaca-se o paradoxo da dupla e tripla jornada de trabalho que se abre, sobretudo ao considerarmos a insistência da extensão rural no empoderamento e na geração de renda. Aquele grupo de autores, feministas e intelectuais do qual Duran (1985) faz parte, ao reivindicar a visibilidade do trabalho doméstico e uma perspectiva ético-política da economia doméstica, intentava trazer ao debate público as causas das desigualdades de gênero que se refletiam, por exemplo, na inserção feminina no mercado de trabalho, na dependência financeira das mulheres, nas impossibilidades de realização fora do matrimônio etc. Esse debate estava centrado nos fenômenos sociais que davam forma objetiva às expressões das desigualdades de gênero. Acreditar que o incremento de renda e o empoderamento individual são capazes de sozinhos, alterar essa estrutura de divisão social e sexual do trabalho e fomentar caminhos libertadores para as mulheres é alternativa simplista. Por um lado, como anteriormente abordado, dar visibilidade não resolve muito, quando as causas da invisibilidade permanecem inalteradas. Em sentido similar, gerar renda, ou criar novas possibilidades de renda sem alterar as desigualdades de gênero socialmente e historicamente postas, pode ocasionar um incremento da dupla e tripla jornada de trabalho e longe de resolver o problema anterior, pode lançar as mulheres em problemas de nova ordem e complexidade. O que se tem percebido é uma ampliação do doméstico pseudo-remunerado, cujo processo de pedagogização das atividades do lar aumenta conforme os anexos da pequena produção doméstica e as atividades domésticas passam a ser fontes de 14
renda extra (Amaral Junior, 2020a). Por isso, uma extensão rural que pensa as ações com mulheres exclusivamente pelo viés de geração de renda pode não estar fazendo muito mais do que ampliando as atividades cotidianas da mulher. Responsabilizando-a também, para além das atividades domésticas “vocacionadas” a seu cuidado que não foram historicamente superadas, por uma geração de renda e um volume de responsabilidades cada vez maior e mais complexo, cuja liberdade como fim passa a ser meramente discursiva. Considerações finais As análises apontam para um cenário pessimista, indicando que, embora o número de ações destinadas às mulheres tenha aumentado consideravelmente nos últimos anos na extensão rural, elas não indicam necessariamente avanços na desconstrução das desigualdades de gênero no campo. Pelo contrário, elas reverberam em um cenário de reaquecimento do “primeira-damismo 22 em um resgate ideológico conservador sobre os “lugares, coisas e afazeres” de mulheres. A extensão rural, que sempre carregou em sua proposta uma determinada percepção funcionalista do “ser mulher” e do “feminino” como sinônimo de doméstico, pouco se aprofundou em sua própria história e quase não modificou as suas práticas pretéritas. Salvo as oscilações históricas que responderam mais aos modelos metodológicos vigentes do que aos avanços analíticos, o que se tem hoje é um redesenho de um projeto de educação rural doméstica individualista, liberal e extremamente limitado em promover transformações expressivas. Três elementos principais, no decorrer do percurso analítico deste trabalho, chamaram a atenção em relação à prática da extensão rural com as mulheres: o primeiro deles é a incoerência do discurso da invisibilidade, ao se considerar que a ATER sempre contribuiu e reforçou para que a mulher fosse vinculada ao doméstico, vocacionado o espaço da domesticidade ao ser e se construir mulher. A importância histórica da extensão rural na reprodução de uma divisão sexual do trabalho no campo é salutar, não pode ser ignorada e, dado o contexto atual, integra 22 Fenômeno que acompanha a refilantropização das políticas sociais, a associação do “social” à caridade e as políticas dessa natureza as ações das primeiras-damas, símbolo da mulher como caridosa, bondosa, religiosa e vivendo da entrega aos pobres e necessitados. Sobre isso, ver Sposati (2011), Behring (2021) e Yazbek (2009). 15
dialeticamente o discurso do trabalho doméstico rural invisível. Não foi objetivo deste trabalho descrever de forma exaustiva sobre esse ponto mas, a relação simbiótica da prática extensionista com a Economia Doméstica é elemento forte o suficiente para entendermos o peso histórico dessa relação. O segundo deles, diz respeito ao vazio ideológico com que as mulheres são entendidas e abordadas pela extensão rural, sem perpassar o gênero enquanto categoria analítica e, consequentemente, sem nenhuma intersecção com raça/etnia e classe. A mulher aparece enquanto abstração genérica, o que acaba dotando de sentido as ações e projetos igualmente pasteurizados, baseados em uma concepção ideal do que é “ser mulher”. Com a ausência da categoria analítica, não sobra muito espaço para ações que escapem do binômio empoderamento-geração de renda. Isso porque, sem entender os problemas que assolam as mulheres na sociedade de classes em sua raiz constitutiva, a ATER se atém às soluções de cunho individualista e micro. Por último, identificou-se ainda que o produtivismo mantido no centro dessas ações, longe de promover possibilidades de libertação e superação das desigualdades de gênero, faz reforçar, quando não piorar, a situação das mulheres. Isso porque as formas técnico-operativas de abordar as mulheres podem promover a dupla e tripla jornada de trabalho, aumentar a sobrecarga psicológica, culpabilizar individualmente as trabalhadoras, agricultoras e sujeitas do campo. Está claro também no decorrer do texto como o trabalho com mulheres na extensão rural ganhou fôlego a partir de uma realidade de possibilidade de legitimidade social atrelada à captação de recursos. Isso significa que as agências de extensão acabaram implementando trabalhos específicos com essa segmentação de público para promover uma espécie de marketing positivo e uma falsa proximidade com as pautas progressistas, sobretudo as de desconstrução das desigualdades de gênero. Lembre-se que a extensão rural pública (Dias, 2007a; 2007b) cresceu e se consolidou na maior parte dos estados durante a Ditadura Militar, e que a marca institucional tem sido, após a redemocratização, a rigidez e a lentidão nas adaptações. Isso indica que, conforme apontam as análises, o trabalho com mulheres na extensão rural atual não tem sido mais do que propaganda do Estado, instrumento, portanto, fortemente atrelado à máquina político-partidária, ao primeira-damismo e à refilantropização da pauta horizonte distante da transformação possível e necessária para a realidade das mulheres do campo. 16
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