V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X JOVENS TRABALHADORES E A NEGAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO: CAMINHOS POR ONDE ANDEI 1 Adriana Barbosa da Silva 2 Resumo Este artigo apresenta resultados parciais de uma pesquisa sobre trajetórias de egressos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) nos cursos de graduação em Pedagogia e licenciaturas da Universidade Federal Fluminense (UFF) rememoradas por meio de imagens e sons. A metodologia de pesquisa teve como ponto de partida dados colhidos em fontes institucionais dos sistemas da universidade, entrevistas e elaboração de filmes de pesquisa com as histórias de vida destes estudantes. O estudo, com base em autores do campo crítico, mostra a dualidade do sistema educacional brasileiro e os impactos do sistema capitalista na vida da juventude trabalhadora. Palavras-chave : Jovens Trabalhadores; Educação de Jovens e Adultos; Universidade Federal Fluminense-UFF; Direito à Educação. CAMINHOS POR ONDE ANDEI : JÓVENES TRABAJADORES Y LA NEGACIÓN DEL DERECHO A LA EDUCACIÓN Resumen Este artículo presenta resultados parciales de una investigación sobre las trayectorias de los egresados de Educación de Jóvenes y Adultos (EJA) en cursos de pregrado en Pedagogía y de Magisterio de la Universidad Federal Fluminense (UFF) recordados a través de imágenes y sonidos. La metodología de investigación tuvo como punto de partida datos recopilados de fuentes institucionales de los sistemas universitarios, entrevistas y la creación de películas de investigación con las historias de vida de estos estudiantes. El estudio, basado en autores del campo crítico, muestra la dualidad del sistema educativo brasileño y los impactos del sistema capitalista en la vida de la juventud trabajadora. Palabras clave : Jóvenes Trabajadores. Educación de Jóvenes y Adultos; Universidad Federal Fluminense-UFF; Derecho a la Educación. CAMINHOS POR ONDE ANDEI : YOUNG WORKERS AND THE DENIAL OF THE RIGHT TO EDUCATION Abstract This article presents partial results of a research on the trajectories of graduates of Youth and Adult Education (EJA) in undergraduate courses in Pedagogy and teaching degrees at the Universidade Federal Fluminense (UFF) remembered through images and sounds. The research methodology had as its starting point data collected from institutional sources from the university systems, interviews and the creation of research films with the life stories of these students. The study, based on authors from the critical field, shows the duality of the Brazilian educational system and the impacts of the capitalist system on the lives of working youth. Keywords: Young Workers; Youth and Adult Education; Fluminense Federal University; Right to education. 2 Doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) - Brasil. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro - Brasil . E-mail: adrianabs@id.uff.br . Lattes: http://lattes.cnpq.br/4859423752005745 . ORCID: http://orcid.org/0000-0001-7841-9993 . 1 Artigo recebido em 01/07/2024. Primeira Avaliação em 21/08/2024. Segunda Avaliação em 15/10/2024. Terceira Avaliação: 11/11/2024. Aprovado em 24/11/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.63516 . 1
Introdução A pesquisa “Trajetórias de egressos da Educação de Jovens e Adultos nos cursos de graduação em Pedagogia e licenciaturas da Universidade Federal Fluminense (UFF), campi Niterói, rememoradas por meio de imagens e sons” visa problematizar o acesso e a permanência de egressos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Ensino Superior, analisando os desafios enfrentados por aqueles que foram destituídos do direito à educação na idade considerada socialmente adequada. Almejando compreender a trajetória dos egressos da EJA matriculados nos cursos de licenciaturas, a pesquisa emergiu do contato com as histórias de vida dos graduandos. Utilizamos como metodologia dados colhidos em fontes institucionais e conversas gravadas com câmeras de filmagem, especialmente de celulares dos participantes do grupo de pesquisa com boa captação de imagens e sons. O objetivo é analisar as políticas a partir dos sujeitos para compreender a arquitetura da totalidade. Nesse sentido, a categoria totalidade nos ajuda na compreensão da realidade concreta como síntese de múltiplas determinações, onde as partes da totalidade são amplas e complexas. Os pressupostos teórico-metodológicos estão ancorados no diálogo com autores do campo crítico (Carrano; Dayrell, 2017; Frigotto, 2011; Gramsci, 2004; Kuenzer, 2005; Kosik, 1978; Leher, 2019; Marx, 2008; Mool; Garcia, 2014; Rummert, 2006; Silva, 2021; Silva 1993; Sposito, 2009). A primeira etapa da pesquisa consistiu no levantamento de dados organizado pelo Núcleo Institucional de Dados Integrados (NIDI), que se baseou no mapeamento de licenciandos da UFF. O NIDI, criado em 2022 pelo Gabinete da Reitoria a quem está diretamente subordinado, reúne informações sobre os principais painéis de análise de dados dos indicadores de gestão da UFF, que são eles: Painel de Indicadores da Graduação; Acompanhamento de Turmas da Graduação; Perfil de Monitores; Painel de Indicadores da Pós-graduação; Painel de Indicadores de Gestão de Pessoas; Painel de Indicadores de Assuntos Estudantis; Painel de Indicadores do SEI e Informações Orçamentárias. As informações são disponibilizadas numa página específica no site da UFF 3 e visam estruturar a 3 Disponível em: https://www.uff.br/nidi/ 2
organização dos dados considerados estratégicos pela instituição. Além disso, a página também reúne informações complementares sobre dados institucionais e produção científica dos grupos de pesquisas e professores da UFF. No entanto, o NIDI ainda possui lacunas no que tange aos dados levantados por ele, demonstrando a ausência de informações de estudantes egressos da EJA na instituição. A segunda etapa consistiu em entrevistas com cinco graduandos - egressos da EJA - matriculados nos cursos de licenciatura da UFF (campus Niterói) e produção de filmes de pesquisa com as histórias de vida destes estudantes. Os(as) participantes assinaram Termo de Autorização de Uso de Imagem e Som. Além disso, os estudantes tiveram acesso ao primeiro corte do filme de pesquisa, puderam assistir suas entrevistas e debater sobre a construção do material audiovisual, sugerindo cortes e/ou supressões em suas falas e alterações e inclusões de imagens e sons para compor o produto final. Um dos estudantes, mesmo após a assinatura do termo de consentimento, desistiu de participar da pesquisa, tendo sua imagem e som retirados. O (a) aluno(a) alegou não estar confortável em socializar sua história de vida com outras pessoas, sendo prontamente atendido(a) pelo grupo. A primeira conversa foi realizada com a estudante Iramaia, mulher, negra, moradora da cidade Maricá, Rio de Janeiro (RJ), egressa da Educação de Jovens e Adultos e, atualmente, estudante do curso de licenciatura em História da UFF. A escolha por Iramaia se deu no encontro com a aluna nas aulas de “Educação de Jovens e Adultos I”. A disciplina, com carga horária de 60h, é obrigatória no currículo do curso de Pedagogia da Faculdade de Educação da UFF, como prevê a Resolução CNE/CP 1, de 15 de maio de 2006 (Brasil, 2006), que instituiu Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de licenciatura em Pedagogia, e opcional para as demais licenciaturas. O diálogo com a estudante deu origem a um documentário, que conta a história de uma mulher que abandonou a escola presencial ainda na juventude sem ter concluído a Educação Básica. A graduanda, Iramaia, trabalhou boa parte da sua vida no comércio varejista, expressando em seu relato a precarização do trabalho e as diversas opressões vivenciadas por ela em sua jornada profissional. No entanto, 3
as novas demandas do capital fizeram com que buscasse, na idade adulta, uma escola de EJA para obter certificação, mas acabou obtendo a comprovação de Ensino Médio por meio do Exame Nacional de Certificação de Competências da Educação de Jovens e Adultos (ENCCEJA). Após a obtenção do certificado, ela concluiu o curso de Serviço Social em uma universidade particular e, na atualidade, com 48 anos, cursa História na UFF. O documentário mostra as dificuldades encontradas por Iramaia para concluir a escolarização básica. Na atualidade, temos um amplo conjunto de oferta de cursos e programas que certificam os jovens e adultos trabalhadores em nível fundamental e médio. Entretanto, esse tipo de política colabora apenas para acentuar as desigualdades educacionais, o que Kuenzer (2005) denominou como “certificação vazia”, perpetuando a dualidade do ensino que é ofertado para as diferentes frações da classe trabalhadora. A história da Maia também nos remete aos problemas de acesso e permanência enfrentados pelos egressos da EJA em uma universidade pública. Nas últimas décadas, houve expansão do Ensino Superior com a criação d o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), em 1999; do Programa Universidade Para Todos (ProUni), em 2005; da Universidade Aberta do Brasil (UAB), em 2006; do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), em 2007; do Sistema de Seleção Unificada (SISU), em 2010; e da Lei de Cotas, Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012 (Brasil, 2012). Esses programas e ações favoreceram a democratização do acesso à universidade. Mas ainda carecemos de políticas que garantam a permanência dos estudantes nesses espaços, especialmente aqueles que vivem em condições socioeconômicas mais desfavoráveis. Nesse sentido, a universidade possui um importante papel para o fortalecimento das lutas sociais. Conforme Leher (2019, p. 183), A relevância das lutas sociais não se limita à pertinência dos casos relatados sendo, antes, uma contribuição de natureza epistemológica e epistêmica. Esses enfrentamentos colocam em questão algo que a universidade raramente problematiza: a ideologia do desenvolvimentismo e, atualmente, do crescimento econômico que concentra a renda e prevê, como contrapartidas, rarefeito gotejamento dos benefícios aos chamados pobres e excluídos, a 4
rigor, aos trabalhadores desempregados, hiperexplorados e expropriados. O filme está disponível no YouTube. Outro filme desta pesquisa, com histórias de quatro egressos da EJA matriculados nos cursos de licenciaturas da UFF, encontra-se em fase de finalização. O relato da estudante reitera a importância de se debater a educação brasileira, em especial, a negação do direito sob a perspectiva de luta pela educação no seu sentido realmente democrático e também por meio do reconhecimento da realidade concreta de vida da classe trabalhadora: Tal perspectiva evidencia a importância da educação como espaço de luta, no qual é possível propiciar, a cada um e a todos, as condições de conhecer as múltiplas possibilidades da vida e as suas potencialidades sufocadas ou, mesmo, desconhecidas ou ainda, como diria Rancière, das muitas vidas que lhes são roubadas (RUMMERT, 2006, p.139). Analisar trajetórias e práticas cotidianas significa perceber modos de ação a partir de diálogos entre os sujeitos e os processos de interação social. Ou seja, para compreender a trajetória de vida e escolar de egressos da EJA na universidade, precisamos observar como as práticas sociais foram elaboradas individualmente, produzindo sentidos e interpretações em suas vidas. As subjetividades não são isoladas do contexto político, econômico e social em que os participantes se inserem, ainda que as experiências sejam vividas de maneira única e particular. A compreensão da realidade concreta não ênfase aos processos individuais, em detrimento de dinâmicas sociais, pois a leitura crítica da sociedade capitalista se organiza na relação entre o individual e o coletivo. Nesse sentido, a pesquisa busca ampliar a nossa compreensão sobre as histórias de vida dos sujeitos oriundos da EJA e os seus percursos escolares, buscando discutir vertentes das políticas destinadas à escolarização de jovens trabalhadores por meio da análise da pequena e da grande política. Gramsci (2000, p. 21) define como pequena política as questões cotidianas e parciais, aquelas que fazem parte do dia a dia, das disputas parlamentares, da intriga, estando no interior e nos bastidores de uma estrutura estabelecida. A grande política estaria ligada à fundação e a manutenção do Estado, conservando as estruturas de poder econômico e político vigentes. 5
Outra questão não menos importante foi a possibilidade da pesquisa contar as histórias dos estudantes por meio de um filme, realizado com poucos investimentos financeiros, uma vez que a produção foi realizada com o apoio de alunos bolsistas do curso de licenciatura em Cinema e da TV Universitária da UFF, a Unitevê. Para Sposito (2009, p. 10): Se além de uma condição, a “juventude” é também uma construção simbólica inscrita nas práticas sociais, certamente o cinema nos últimos 50 anos constitui um momento importante da constituição dessa arquitetura. Ele tanto é produto dessas representações como produtor de novas formas de percepção desse segmento. A mídia e a comunicação de massa contribuem expressivamente para mostrar os jovens fora do contexto de uma perspectiva sócio-histórica, que tem como base o materialismo histórico-dialético para compreensão da realidade social concreta, culpabilizando esses sujeitos pela produção da violência e pobreza, além de “fracasso” educacional. Nesse sentido, buscamos apresentar as histórias de vida dos egressos da EJA a partir de outra perspectiva, por meio de um material audiovisual que possa problematizar as contradições oriundas do modelo social de capitalismo dependente no Brasil. Carrano e Dayrell (2014, p. 108) reiteram: É preciso cuidar para que o jovem não se transforme num problema para a sociedade. Isso pode fazer dele uma nova classe perigosa a ser combatida. Tal postura inibe a compreensão e o investimento em ações baseadas na perspectiva dos direitos. Com esse novo olhar o jovem como SUJEITO DE DIREITOS –, os problemas que o atingem podem ser vistos como expressão de necessidades e demandas não atendidas. Isso pode resultar no reconhecimento de um campo de direitos que desencadeie novas formas e conteúdos de políticas públicas e, principalmente, práticas que reconheçam a juventude nas suas potencialidades e possibilidades e não apenas a partir de seus problemas. Dessa maneira, os filmes produzidos pela pesquisa almejam uma sensibilização política, pois acreditamos que o cinema que faz pensar, que desacomoda e incomoda, tem potencial altamente formativo, muito mais do que aquele que apenas reproduz valores e informações hegemônicas. Esse cinema que educa, que leva à reflexão, é um cinema que passa por uma experiência de sensibilização política e alteritária (Silva, 2021). 6
O artigo está organizado em três seções. A primeira seção discute como as políticas têm atuado na reparação ou negação de direitos para os jovens, especialmente para aqueles que vivem precárias condições sociais de vida, sendo estes o público-alvo da EJA. A segunda e a terceira seção apresentam o contexto empírico da pesquisa, o perfil dos(as) alunos(as) dos cursos de licenciatura da UFF, campi Niterói, e as trajetórias de egressos da EJA matriculados nestes cursos. Nesta seção, identificamos aspectos de suas histórias que auxiliam as nossas considerações sobre a compreensão dos desafios e perspectivas da juventude trabalhadora, buscando formas de contribuir com o debate e o campo das políticas públicas que visam democratizar a escolarização básica e o Ensino Superior. Jovens como sujeitos de direitos De acordo com o relatório desenvolvido pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico OCDE (2017), 40% da população jovem brasileira deixa a escola antes de concluir o Ensino Médio. Vários são os motivos para o abandono da escola, como destacam Moll e Garcia (2014, p. 7-8): Assim, a chamada crise atual do Ensino Médio não é mais do que explicitação da urgência histórica dessa etapa educativa como possibilidade de todos, agravada por uma profunda perda de sentido identitário e pedagógico da instituição escolar. A chegada de sujeitos sociais não esperados (os pobres e muito pobres), e muitas vezes não desejados pelas escolas, e o reiterado foco do Ensino Médio na preparação para a entrada na universidade ou na oferta de profissionalização esvaziada também de uma formação humana integral agravam essa situação. O grave problema da desigualdade social no Brasil demonstrado pela concentração de renda e riqueza tem sido correlacionado com o acesso e a permanência de alunos nas escolas. De acordo com os dados da PNAD-Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (2022), 40% dos jovens deixaram a escola por necessidade de trabalhar. Contextos de negação e exclusão são facilmente identificados ao longo da história, especialmente para as frações mais subalternizadas da classe trabalhadora, em que os sujeitos vivem, no cotidiano, situações diversas de violação de direitos básicos garantidos pela Constituição 7
Federal de 1988 (Brasil, 1988) e não assegurados em políticas públicas, impactando diretamente em suas trajetórias de vida e escolares. Outro aspecto a ser considerado é que, mesmo para aqueles que conseguem acessar ou permanecer nos espaços formais de educação, o processo formativo não é o mesmo, pois as bases do conhecimento científico historicamente produzido pela humana não são ofertadas de maneira unitária, mas de acordo com a origem social dos estudantes (Gramsci, 1988). Kosik (1978) afirma que a dualidade do sistema educacional está ligada ao modo de produção capitalista para manter a estrutura socioeconômica inalterada e aprofundar as desigualdades sociais. Dessa maneira, a escola distribui conhecimentos fragmentados e instrumentais, visando atender apenas às necessidades e aos interesses de grupos que comandam as forças produtivas e almejam a manutenção dos interesses burgueses. Nega-se o direito à educação e à qualidade socialmente referenciada 4 e os fundamentos do conhecimento amplo, aquele que permite aos sujeitos a compreensão crítica da realidade concreta para transformar o mundo ao seu redor. Jovens são, também, sujeitos de direitos e, na fase escolar, o exercício democrático de garantia desses direitos se faz, em muito, na escola uma escola que contemple todas as dimensões da formação humana integral. Mas a distribuição de bens materiais e imateriais acumulados pela sociedade é reproduzida de forma desigual. O Ensino Médio, por exemplo, foi reconhecido como etapa obrigatória da Educação Básica no ano de 2009, por meio da Emenda Constitucional 59, de 11 de novembro de 2009 (Brasil, 2009), e em 2013 foi incluída a mudança no texto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (Brasil, 1996). Podemos considerar que é extremamente recente 4 A definição da palavra qualidade no campo da educação é contraditória e multifacetada, uma vez que o seu sentido pode mudar de acordo com os interesses em disputa na sociedade capitalista. As discussões sobre o conceito de qualidade emergiram nos anos 80, pois os educadores críticos, os movimentos sociais, incluindo os movimentos sindicais, em defesa do direito à educação pública, começaram a criticar o conceito de qualidade total que estava em voga naquele momento. Segundo Silva (1993), esse conceito está atrelado a orientações das agências internacionais e ao modo de produção capitalista, vinculada às necessidades impostas pela lógica de mercado, e do neoliberalismo, influenciando processos educacionais com ênfase na eficiência, na obtenção de resultados e na produtividade. Dessa maneira, em contraposição a esse sentido atribuído à palavra qualidade, surgiu o conceito de qualidade social. Esta nova concepção fundamenta-se nos interesses da classe trabalhadora, baseada em práticas mais democráticas de participação popular e nos direitos sociais, sendo a educação com qualidade socialmente referenciada considerada uma das condições primordiais para a emancipação dos sujeitos. 8
o reconhecimento dessa etapa de formação como direito básico a ser garantido aos jovens brasileiros (Moll; Garcia, 2014). Contudo, visando formar um trabalhador adaptado às novas demandas do capitalismo, temos, na atualidade, um alargamento das políticas neoliberais por meio de diversas reformas educacionais, como, por exemplo, a Reforma do Ensino Médio, disposta na Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 (Brasil, 2017). Tal reforma contribui para o esvaziamento e o desmonte da escola pública presencial, uma vez que favorece parcerias com o setor privado especialmente, na oferta de formação técnica e profissional –; enfraquece o saber sistematizado de cunho crítico; abre precedentes para o ensino ofertado na modalidade a distância; diminui a carga horária de disciplinas; vincula o Ensino Médio à Base Nacional Comum Curricular (BNCC); e inclui temas sob a égide do capital, tais como: empreendedorismo, educação financeira e projeto de vida. A hegemonia burguesa se perpetua também na distribuição desigual de acesso e da qualidade da escola ofertada, em especial, para a população mais pobre economicamente. A Reforma do Ensino Médio, nesse bojo, está atrelada a um projeto do capital que reduz a formação da juventude brasileira e amplia as desigualdades escolares, limitando a formação dos jovens trabalhadores à certificação, não fornecendo elementos para uma formação democrática a partir da socialização dos saberes científicos, filosóficos e artísticos, produzidos historicamente pela humanidade. Outro aspecto a ser considerado em relação à escolarização dos jovens das frações mais subalternizadas e que possuem uma trajetória escolar truncada é o retorno desses sujeitos para os bancos escolares por meio da EJA, modalidade de ensino da Educação Básica, conforme arts. 4º, 37 e 38 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Brasil, 1996). A modalidade apresenta uma trajetória de desafios. Ao longo da história, a EJA não foi tratada como prioridade educacional pelos diversos governos que se sucederam, sendo entendida apenas como política compensatória e aligeirada para os sujeitos alijados do processo de escolarização, diferentemente daquilo que propõem os pesquisadores e militantes do campo. A Reforma do Ensino Médio também trouxe impactos para a EJA, pois incentiva o aumento de cursos aligeirados e a oferta de Educação a Distância (EaD) 9
para a modalidade. Veja-se no parágrafo único do Art. 4º: “Para cursos de EJA do Ensino Médio, a oferta de EaD é limitada a no máximo 80% (oitenta por cento) de sua carga horária total, tanto na formação geral básica quanto nos itinerários formativos do currículo” (Brasil, 2017). Isso corrobora a precarização da formação dos jovens trabalhadores. De acordo com Marx e Engels (2008), a vida social, política e intelectual em uma sociedade é produzida e condicionada pelo modo de produção material. Assim, as políticas educacionais são atravessadas por diferentes concepções pedagógicas e interesses político-econômicos, em nome dos quais, muitas vezes, prevalecem propostas do Estado elaboradas sob a hegemonia do capital, perpetuando a educação dual, conforme preconizada por Gramsci (1988) e o ensino segregacionista no que tange à distribuição desigual de conhecimentos para as diferentes classes sociais. Na próxima seção, vamos conhecer os dados empíricos da pesquisa. Perfil dos estudantes dos cursos de licenciatura da UFF/Niterói A pesquisa empírica 5 consistiu na busca de dados no Painel de Indicadores da Graduação do NIDI, em que estão localizados os dados estatísticos e indicadores dos discentes da UFF. Dentre os dados disponibilizados, temos acesso ao número de alunos matriculados em determinado curso, além de informações sobre raça/etnia, faixa etária, gênero, entre outros. Durante o processo de pesquisa, podem ser realizados downloads dos dados disponibilizados no site. A origem destes dados se a partir de outros núcleos de informações/dados da própria universidade. São eles: Coordenação de Seleção Acadêmica (COSEAC); e Sistema de Identificação Única da Universidade Federal Fluminense (IDUFF). As informações obtidas pelo NIDI presentes neste texto são referentes ao primeiro semestre do ano de 2023 e apresentam um panorama sobre os cursos de licenciaturas da UFF cujas disciplinas estão presentes na Educação Básica: Ciências Biológicas, Ciências Sociais (Sociologia), Educação Física, Filosofia, Física, Geografia, História, Letras (Espanhol, Inglês e Português), Matemática, Pedagogia e Química. 5 O levantamento de dados foi realizado pelos estudantes da UFF que integram a pesquisa: Richard Pereira e Lucas Silva. As informações estão contidas no relatório da pesquisa. 10
De acordo com as referências disponibilizadas na página do NIDI, o seu objetivo está atrelado à necessidade de a universidade ter um site institucional para disponibilização de dados a fim de tornar as informações mais transparentes para estudantes, pesquisadores, gestores etc. Mas não existem, até o momento, informações que indiquem se os estudantes concluíram o ensino médio por meio da modalidade EJA e/ou ENCCEJA. Nota-se que, em relação à questão de raça/etnia, o curso que mais apresenta estudantes negros (autodeclarados negros, pretos e pardos) é o de Pedagogia, com 444 discentes, que representam 41.51% de um total de 1.069 estudantes. Vale ressaltar que a soma do número de alunos autodeclarados negros, pretos e pardos se em conformação ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE (2023), que considera como negro a somatória de pretos e pardos. Ainda em relação à raça/etnia de pessoas negras, o curso Letras (Português) apresenta 180 estudantes, que correspondem a 41.38% de 436 alunos ativos. o curso de Química ocupa o terceiro lugar em número de estudantes negros, com 123 alunos, representando 41.28% de 298 discentes (Universidade Federal Fluminense, 2022). No que tange aos estudantes indígenas, o curso de Filosofia se sobressai, tendo em seu corpo discente 5 alunos, o que corresponde a 1.33% de 374 estudantes. O curso de Química se encontra em segundo lugar em relação ao número de estudantes indígenas, com três alunos matriculados. O que corresponde a 1% de 298. Por último, temos o curso de Letras (Português), o qual, de um total de 436, dispõe em seu corpo discente de 2 estudantes indígenas, o que significa dizer que, de 436 alunos, 0.46% correspondem à etnia mencionada. Importante ressaltar que os cursos de Educação Física, Física, Letras (Espanhol), Letras (Inglês) e Matemática não possuem estudantes indígenas matriculados em seu corpo discente (Universidade Federal Fluminense, 2022). O número de cursos que não possuem estudantes amarelos se agrava em Ciências Sociais e Filosofia, cujo percentual de alunos é zero. Em contrapartida, os cursos de licenciaturas que possuem em seu corpo discente estudantes amarelos ainda são reduzidos, tendo o curso de Química um total de 3 alunos, correspondendo a 1% de 298 alunos. Em seguida, aparece o curso Letras (Inglês), com 2 alunos, que representam 0.86% de 230. Em terceiro lugar, o curso de 11
Pedagogia, que dispõe de 2 estudantes amarelos, 0.74% de 1.069 alunos (Universidade Federal Fluminense, 2022). Em relação à questão de gênero, no que concerne ao gênero feminino, o curso de Pedagogia se sobressai em porcentagem de 82.02%, que representa 943 de 1.069 estudantes. O curso de Letras (Espanhol) apresenta em seu corpo discente um total de 245 estudantes, dos quais 183 são pessoas do gênero feminino, correspondendo a 74.06%. O curso de Letras (Português) se encontra em terceiro lugar, com 320 pessoas matriculadas do gênero feminino, de 436 estudantes, o que corresponde a 73.39% (Universidade Federal Fluminense, 2022). No entanto, não consta no NIDI o número de alunos matriculados na UFF oriundos da Educação de Jovens e Adultos ou aqueles que apresentaram certificado de conclusão de Ensino Médio por meio do ENCCEJA. De acordo com os responsáveis pelo núcleo, essas informações não estão disponibilizadas em nenhuma outra plataforma da UFF, por isso, não foi possível disponibilizar as informações. Infelizmente, a ausência desses dados dificultou o mapeamento de informações sobre a presença de egressos da EJA nos cursos de licenciaturas da UFF. A proposta da pesquisa é cruzar esses dados com outras informações, conforme listadas acima, como raça/etnia, idade, gênero, inserção na universidade por meio de políticas de cotas etc. O intuito é ampliar a nossa compreensão sobre o perfil dos estudantes e compor um panorama dos egressos da EJA nos cursos de licenciaturas da UFF, em Niterói. a segunda etapa da pesquisa empírica consistiu em conversas com egressos da EJA e/ou ENCCEJA. Os alunos participantes fizeram parte da disciplina de EJA I e também foram indicados por colegas professores da Faculdade de Educação e pelos próprios estudantes. Posteriormente, assim que for aprovado pelo Comitê de Ética da universidade, um questionário com perguntas estruturadas será aplicado para os alunos de Pedagogia e licenciaturas, visando ampliar os dados e as informações sobre egressos da EJA na UFF. Além da Iramaia, personagem do filme, mais quatro alunos participaram da pesquisa até o momento. 12
Caminhos por onde andei 6 Victor Victor Martins, 44 anos, morador da cidade de Magé/RJ, descendente de nordestinos e indígenas da etnia Puri e estudante de licenciatura em Letras Português/Alemão, ingressou, no ano de 1984, em uma creche, passando por dificuldades de aprendizagem no âmbito escolar, devido a questões de concentração. Até os dias atuais, enfrenta adversidades em relação à concentração, relatando dispersar-se com facilidade. Teve que começar a trabalhar na adolescência, pois os pais não tinham como mantê-lo apenas estudando. Não conseguiu conciliar os estudos com o trabalho, ainda que tivesse buscado intercalar as atividades. Tornou-se pai na juventude e ingressou na EJA no ano de 2006. Em 2010, cursou um pré-vestibular pago e, em 2017, participou de um pré-vestibular comunitário. Destaca que adquiriu consciência de classe por meio de uma aula de Geografia no pré-vestibular comunitário. Após 12 tentativas, conseguiu ingressar na UFF, mas enfrenta enormes desafios para permanecer estudando, uma vez que o valor das bolsas de estudos não é suficiente para sua manutenção na universidade. Por isso, não sabe se vai conseguir concluir a faculdade. O trajeto da sua casa até a UFF é exaustivo, complexando ainda mais a sua permanência nesse espaço. Juliana Juliana, 43 anos, mulher, branca, moradora da cidade de Saquarema/RJ e estudante de Pedagogia, passou a infância trocando de endereço, o que prejudicou a sua permanência e a sua frequência escolar. Deixou a escola em 1995, assim como a sua irmã, para ingressar no mercado de trabalho e auxiliar no sustento da família. Ficou cinco anos fora da escola. Trabalhava com corte e costura, mas começou a ter dificuldades para conseguir emprego formal com carteira assinada por causa da falta de escolarização básica, por isso, retornou para a escola em 6 As entrevistas foram realizadas com a participação dos estudantes de licenciatura da UFF que integraram a pesquisa: Richard Fonseca (História), Lucas Silva (História), Adys Pontes (Cinema), Samuel Castro (Cinema) e Joice Batista (Pedagogia). 13
busca de um certificado. Após concluir o Ensino Fundamental na EJA, resolveu fazer o curso de formação de professores. O primeiro vestibular foi direcionado para o curso de Biologia, mas ela não foi aprovada. Fez pré-vestibular e, três anos depois, ingressou na UFF, no curso de Letras Português/Francês. Contudo, teve muitas dificuldades para acompanhar as atividades propostas pelo curso, pois considera que a Educação Básica não proporcionou um embasamento suficiente em relação aos conteúdos das disciplinas, especialmente a de Língua Portuguesa. Teve que conciliar a universidade com o trabalho para manter a subsistência, o que dificultava ainda mais os estudos. Isso fez com que ela tivesse diversas reprovações nas disciplinas, levando 10 anos para concluir o curso. Posteriormente, pediu reingresso para o curso de Pedagogia. Bruno Bruno, 43 anos, morador da cidade de Itaboraí/RJ, homem, branco, pastor de igreja evangélica, pai de Bruno e Luca e estudante de Pedagogia, é o mais velho de três filhos. O pai abandonou a mãe quando Bruno ainda era criança, e ele assumiu a função de cuidar dos seus irmãos. Aos oito anos de idade, iniciou sua vida no mundo do trabalho como carpinteiro, ausentando-se da escola. Aos 14 anos, começou a trabalhar em um salão de cabeleireiro, mas, para que pudesse fazer um curso e se efetivar nesse ambiente de trabalho, precisaria concluir o Ensino Fundamental. Retornou, pois, à escola no período noturno. A busca por compreender mais sobre a bíblia e sobre a religião cristã o levou a retornar à escola para tentar concluir o Ensino Médio, mas abandonou os estudos novamente por não conseguir conciliá-lo com o trabalho. Com 28 anos, ao notar que ainda tinha muitas dificuldades em relação à escrita, ingressou na Educação de Jovens e Adultos. Enfrentou problemas para frequentar a escola, pois existia incompatibilidade de horário com o trabalho e a igreja. Além disso, a unidade escolar era muito distante de sua casa. Deixou a escola no último módulo, mas, ao buscar ingressar em um curso eclesiástico, soube que necessitava de um certificado de conclusão do Ensino Médio, o que fez com que ele retornasse aos bancos escolares para conseguir o certificado. 14
Em 2011, incentivado por um amigo, tentou vestibular para a UFF e passou em 25º lugar para o curso de Ciências Sociais, sendo o primeiro de sua família a alcançar o Ensino Superior. A carga de leitura na universidade foi um dos problemas enfrentados por ele no seu percurso acadêmico e, de acordo com o estudante, isso se deve às imensas lacunas da sua trajetória escolar em relação aos saberes sistematizados e não abordados na sua formação na Educação Básica. Após sete anos na universidade, conseguiu concluir o curso de Ciências Sociais. Em seguida, pediu reingresso para o curso de Pedagogia. Maria Alice Maria Lúcia, 62 anos, mulher, branca, moradora da cidade de Niterói e estudante de Pedagogia, parou de estudar com 11 anos de idade para trabalhar como doméstica em uma casa de família. O pai era alcoólatra e a mãe tinha problemas de saúde. O início precoce no mundo do trabalho fez com que ela tivesse que abandonar a escola. Após alguns anos, casou-se e teve dois filhos. Tentou voltar às salas de aula por meio do antigo supletivo, mas não conseguiu acompanhar as apostilas. Em 2004, após o divórcio, conseguiu ingressar em uma escola de EJA. Sempre teve o sonho de fazer uma faculdade, no entanto, enfrentava empecilhos, como a falta de disponibilidade de horário e a situação financeira precária. Os dois filhos conseguiram ingressar em universidades públicas, sendo esse fator determinante para a sua entrada na graduação. Fez o Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM) e foi aprovada na UFF. Relata os estigmas e os preconceitos com os idosos no ambiente escolar/universitário, mas, apesar dos problemas, a inserção na faculdade melhorou a sua autoestima. Deseja passar em um concurso público e atuar na área de Pedagogia. Considerações finais Para criar uma verdadeira democracia, faz-se necessária uma política que possibilite que a classe trabalhadora tenha os seus direitos constitucionais assegurados, dentre eles, o direito à educação. Na atualidade, ainda temos 78 15
milhões de pessoas com mais de 15 anos de idade sem a escolarização básica completa, de acordo com o Censo da Educação Básica de 2022 (Brasil, 2023). Contudo, no período de 2018 a 2022, a queda de matrículas na modalidade de EJA (Ensino Fundamental e Médio) foi drasticamente acentuada. Em 2018, havia 3.545.988 alunos e, em 2022, 2.774.428. Um dos preceitos para a manutenção da hegemonia do capital é restringir o acesso ao conhecimento, favorecendo a divisão social do trabalho. Por isso, a universalização da escolarização básica não é prioridade para o sistema capitalista vigente no Brasil. Ao longo da história, o Estado vem desenvolvendo ações pontuais para minimizar o quadro da desigualdade educacional no país. Essas ações realizadas por meio de uma política educacional fragmentada, precarizada e destinada à correção de fluxo apenas objetivam a redução de indicadores de baixa escolaridade, não modificando as estruturas e as relações de poder na sociedade capitalista. A formação de jovens trabalhadores tem se constituído como um campo de tensões e disputas de sentidos. No contexto do neoliberalismo, por exemplo, o fracasso ou sucesso escolar é justificado por meio do mérito individual, em que as desigualdades sociais são postas na ordem do natural. Com isso, justifica-se a ausência e a responsabilidade do Estado na garantia de direitos para a classe trabalhadora. Iramaia, Bruno, Victor, Maria Alice e Juliana tiveram seus futuros suspensos e interditados, assim como tantos outros brasileiros alijados do direito pleno à educação. “Essa interdição dá-se por mediações diversas, mas de forma relacionada sobre duas práticas sociais presentes em todas as sociedades: o trabalho e a educação” (Frigotto, 2011, p. 100). Possibilitar que a classe trabalhadora acesse os seus direitos plenos é favorecer a democracia. Além das dificuldades enfrentadas pelos egressos da EJA para concluir a escolarização básica e acessar o Ensino Superior, relatadas neste estudo, existem os inúmeros problemas vivenciados por eles para garantir a permanência na universidade. Os entraves para conciliar trabalho e estudo e a necessidade de manutenção da subsistência aparecem em quase todos os relatos, uma vez que eles não possuem rede de apoio financeiro, devido às suas condições de classe. Defasagens em relação aos saberes sistematizados que foram negados para esses 16
sujeitos nos processos de escolarização também foram sinalizados como um dificultador para o acompanhamento das disciplinas e os seus respectivos cursos. Torna-se necessário o compromisso ético-político com uma formação comprometida com a emancipação humana, e não apenas para atender às demandas do mercado de trabalho simples, perpetuando o lugar secundário destinado historicamente às frações mais subalternizadas da classe trabalhadora. Para isso, a universidade precisa compreender quem são os seus sujeitos, e os sistemas de coleta de informações das instituições de ensino devem ser atualizados e aperfeiçoados, incluindo informações sobre egressos da EJA e origem de certificações. Isso corrobora a compreensão sobre os estudantes, auxiliando na construção de estudos comparativos e abordagens mais amplas. A pesquisa se insere no debate das políticas voltadas para a EJA e de permanência na universidade. As histórias dos estudantes da UFF explicitam os impactos da escolarização negada e/ou precarizada nas suas trajetórias de vida. De acordo com Gramsci (2004, p. 49), a configuração pedagógica da escola na sociedade de classes é que o “[...] aspecto mais paradoxal reside em que este novo tipo de escola aparece e é louvado como democrático, quando, na realidade, é destinado a perpetuar as diferenças sociais”. No filme, a personagem traz um relato acerca do ENCCEJA: Quando eu fiz o ENCCEJA, quando comecei na EJA, mas acabou que me mostraram caminhos mais fáceis, e eu fiz o ENCCEJA, eu não tive conteúdo, não aprendi nada, eu não aprendi nada na ENCCEJA, eu apenas tive um certificado carimbado, voltado pro comércio (CAMINHOS, 2023). Observamos, na fala acima, uma compreensão crítica sobre o ENCCEJA e sua contribuição na segregação da classe trabalhadora por meio de uma política educacional que se limita à certificação, que não fornece elementos para uma política de formação democrática a partir da socialização das bases efetivas do conhecimento, ou seja, uma “certificação vazia” (Kuenzer, 2005) e uma aparente forma de inclusão. A política educacional brasileira é organizada de acordo com a classe social dos sujeitos. Não podemos ignorar que a formação faz parte de um projeto de conflitos e interesses ideológicos, pois a burguesia está interessada em manter a hegemonia política e econômica, limitando ou excluindo as possibilidades de se 17
considerar outras perspectivas para uma educação pública que seja coadunada com os interesses da classe trabalhadora. Como resultado, é evidente que nosso objetivo deve ser a luta por uma escola unitária e dedicada a um projeto que promova a emancipação humana dos sujeitos jovens e adultos trabalhadores destituídos do direito à educação, no âmbito da Educação Básica e do Ensino Superior. Em relação aos limites da pesquisa, as conversas com os estudantes egressos contribuíram para compreensão de suas trajetórias, uma vez que a coleta de e informações nos sistemas da universidade é insuficiente. Mas, apesar da contextualização da pesquisa com as histórias de vida de egressos da EJA e do ENCCEJA, torna-se fundamental aperfeiçoar os bancos de dados com informações mais precisas sobre este público, favorecendo estudos comparativos com outras instituições e a própria UFF. Desta forma, conhecer a complexidade do sistema educacional, por meio das trajetórias de estudantes singulares, como expressão de histórias que constituem e constroem a totalidade histórica e social, pode contribuir para análise concreta da realidade e os enfrentamentos da luta de classes no Brasil. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 . Brasília: Presidência da República, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm . Acesso em 23 de junho de 2024. BRASIL. Emenda Constitucional 59, de 11 de novembro de 2009 . Acrescenta § ao art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para reduzir, anualmente, a partir do exercício de 2009, o percentual da Desvinculação das Receitas da União incidente sobre os recursos destinados à manutenção e desenvolvimento do ensino de que trata o art. 212 da Constituição Federal, nova redação aos incisos I e VII do art. 208, de forma a prever a obrigatoriedade do ensino de quatro a dezessete anos e ampliar a abrangência dos programas suplementares para todas as etapas da educação básica, e nova redação ao § do art. 211 e ao § do art. 212 e ao caput do art. 214, com a inserção neste dispositivo de inciso VI. Brasília, DF: Presidência da República, 2009. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc59.htm . Acesso em: 23 jun. 2024. BRASIL. Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996 . Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília: Presidência da República, 1996. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm . Acesso em 25 de janeiro de 2024. BRASIL. Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012 . Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e 18
outras providências. Brasília: Presidência da República, 2012. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm . Acesso em 25 de janeiro de 2024. BRASIL. Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017 . Altera as Leis 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e 11.494, de 20 de junho 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação, a Consolidação das Leis do Trabalho CLT, aprovada pelo Decreto-Lei 5.452, de de maio de 1943, e o Decreto-Lei 236, de 28 de fevereiro de 1967; revoga a Lei 11.161, de 5 de agosto de 2005; e institui a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral. Brasília: Presidência da República, 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2017/Lei/L13415.htm . Acesso em 24 de janeiro de 2024. BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Conselho Pleno. Resolução CNE/CP 1, de 15 de maio de 2006 . Institui Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura. Brasília: MEC, CNE, CP, 2006. Disponível em: https://normativasconselhos.mec.gov.br/normativa/view/CNE_rcp0106.pdf?query=LICENCIA TURA . Acesso em 28 de janeiro de 2024. BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Censo da Educação Básica 2022 : notas estatísticas. Brasília, DF: MEC, INEP, 2023. Disponível em: https://download.inep.gov.br/areas_de_atuacao/notas_estatisticas_censo_da_educacao_bas ica_2022.pdf . Acesso em: 28 jan. 2024. CAMINHOS por onde andei. Trajetória de egressos da Educação de Jovens e Adultos na UFF. Direção: Adriana Barbosa da Silva e Jaqueline Ventura. Niterói: Unitevê, 2023. 21 min, son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=puBwBHw4IOE . Acesso em 16 de junho de 2024. CARRANO, P; DAYRELL, Juarez. Juventude e ensino médio: quem é esse aluno que chega à escola. In: DAYRELL, Juarez; CARRANO, Paulo; MAIA, Carla Linhares (org.). Juventude e Ensino Médio : sujeitos e currículos em diálogo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. FRIGOTTO, G. Juventude, trabalho e educação: o presente e o futuro interditados em suspenso. In: TIRIBA, Lia; CIAVATTA, Maria (org.). Trabalho e educação de jovens e adultos . Brasília: Liber Livro; Niterói: EdUFF, 2011. GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. v. 2, p. 13-53. GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades e estados do Brasil. Rio de Janeiro : São Gonçalo. Rio de Janeiro: IBGE, 2023. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rj/sao-goncalo/panorama . Acesso em 16 de junho de 2024. KOSIK, K. Dialética do concreto . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 19
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