V.22, 49 - 2024 (setembro-dezembro) ISSN: 1808-799 X A ESCOLA EMANCIPATÓRIA GRAMSCIANA COMO ANTÍTESE DA EDUCAÇÃO NEOLIBERAL 1 Victor Leandro Chaves Gomes 2 Gisele Duarte Teixeira 3 Resumo No panorama de hegemonia neoliberal, a educação é transformada em um mero produto e a escola deixa de ser um ambiente em que prevalecem o pensamento crítico e os valores humanistas. Neste sentido, com o suporte das reflexões gramscianas sobre educação, busca-se entender o processo de esvaziamento e desqualificação da educação no Brasil, mas, especialmente, valorizar a escola enquanto espaço de construção de autonomia e de emancipação humana. Palavras-chave: Neoliberalismo; Educação; Meritocracia Neoliberal; Antonio Gramsci. LA ESCUELA EMANCIPADORA GRAMSCIANA COMO ANTÍTESIS DE LA EDUCACIÓN NEOLIBERAL Resumen En el panorama de hegemonía neoliberal, la educación se transforma en un mero producto y la escuela deja de ser un entorno en el que prevalece el pensamiento crítico y los valores humanistas. En este sentido, con el apoyo de las reflexiones Gramscianas sobre educación, buscamos comprender el proceso de vaciamiento y descalificación de la educación en Brasil, pero, especialmente, valorar la escuela como un espacio de construcción de autonomía y emancipación humana. Palabras clave: Neoliberalismo; Educación; Meritocracia neoliberal; Antonio Gramsci. THE GRAMSCIAN EMANCIPATORY SCHOOL AS THE ANTITHESIS OF NEOLIBERAL EDUCATION Abstract In the scenario of neoliberal hegemony, education is transformed into a mere product, and the school ceases to be an environment in which critical thinking and humanist values prevail. In this regard, with the support of Gramscian reflections on education, we seek to understand the process of emptying and disqualifying education in Brazil, but, especially, to value the school as a space for building autonomy and human emancipation. Keywords: Neoliberalism; Education; Neoliberal Meritocracy; Antonio Gramsci. 3 Mestre e doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). E-mail: giseledute@gmail.com . Lattes: http://lattes.cnpq.br/8119376713484646 . ORCID: https://orcid.org/0009-0007-2843-0482 . 2 Doutor em Ciência Política pelo antigo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ). Professor de Teoria Política da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Pesquisador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia, Política e Educação (NuFiPE/UFF). E-mail: victorleandro@id.uff.br . Lattes: http://lattes.cnpq.br/3142949222914299 . ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6446-1840 . 1 Artigo recebido em 10/07/2024. Primeira Avaliação em 02/08/2024. Segunda Avaliação em 20/08/2024. Aprovado em 31/10/2024. Publicado em 05/12/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i49.63656 1
Introdução: A educação como produto No Brasil, os movimentos neoliberais ganham força na educação. A Base Nacional Curricular Comum foi aprovada, impactando a educação do Ensino Médio e enfraquecendo seu aspecto crítico-educador. A Resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) 002/2019, voltada para a formação de professores, também enfatiza o desenvolvimento de competências e habilidades (Lobo, 2020, p. 1-2). Em 2019, houve um bloqueio de 2,8 bilhões de reais na Educação Básica (2020, p. 3). Contudo, esses ataques ocorrem para além das verbas, como o projeto de lei conhecido como “Escola Sem Partido”: voltado ao combate da “ideologia de gênero” e a “doutrinação ideológica” (Ramos, 2018, p. 7). Outro projeto que ganhou notoriedade foi o “Future-se”, que retira a autonomia pedagógica e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (Lobo, 2020, p. 5). O neoliberalismo e a onda reacionária estão cada vez mais presentes no ambiente escolar. Testemunhamos um plano de ação esmagador de ataques à escola, bem como presenciamos o desmonte total do sistema educacional brasileiro. O mesmo neoliberalismo que concebe a educação como um produto, o professor como um funcionário que deve cumprir metas (2020 , p. 2). Um educador que instiga a criticidade, acaba sendo perseguido, culpado de tentar “doutrinar” estudantes e, por medo de represálias, esvazia-se a atmosfera humanista que a escola precisa ter. Esse processo de instauração da hegemonia neoliberal foi denominado por Pierre Dardot e Christian Laval (2016) como a “grande virada”. Tal movimento trouxe mais do que consequências econômicas, ele estabeleceu uma nova racionalidade. É inegável que o neoliberalismo debilitou a educação e a saúde, assim como aumentou profundamente as desigualdades sociais. O neoliberalismo foi próspero em mudar o cerne do cidadão e as próprias doutrinas de funcionamento do capitalismo. Em síntese, a grande virada conseguiu estabelecer uma lógica normativa que subordinou a política e as demais esferas em que o cidadão está inserido à globalização e ao capitalismo financeiro. Houve então uma mudança no engajamento do Estado, ao invés de uma retirada como era inicialmente proposto, o que ocorreu foi uma mudança no papel estatal, que passa a 2
ser guiado por essas novas práticas (Gomes; Belinot, 2020, p. 264). A Resolução CNE/CP n.º 02, de 20 de dezembro de 2019, define as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Essa diretriz criada pelo Governo Jair Bolsonaro segue um modelo de inspiração internacional. Lobo mostra que: “[…] um dos elementos centrais dessa concepção de educação é a minimização do peso de fatores extra e intra escolares nos processos de aprendizagem e culpabilização dos professores pelas mazelas da educação pública” (2020, p. 10). A educação tipicamente neoliberal segue com seu fomento às competições e aos métodos que veem os alunos como massas em que o conhecimento deve ser inculcado de qualquer maneira. Uma educação que abra portas para a criticidade e para a autonomia de indivíduos é o caminho para tentar conter esse processo desumanizador. O neoliberalismo surge como uma crítica antissistêmica, contribuindo imensamente para a legitimação dessa nova norma social. A doutrina neoliberal, que Dardot e Laval se referem como “disciplina” 4 , leva a uma mudança comportamental dos indivíduos, que passam a ser dirigidos por uma lógica bastante competitiva, maximizadora de lucros e de valorização do capital. Por fim, foi necessária a ampliação desses “sistemas disciplinares” para estabelecer essa racionalidade que se baseia inteiramente em transformar tudo em concorrência (2016, p. 193). Sabe-se, contudo, que a escola tem uma função essencial na formação de cidadãos que questionem o discurso hegemônico em uma sociedade onde a prioridade é tornar o capital ainda mais lucrativo. A verdadeira educação é aquela que possibilita a comunicação e a compreensão dos mecanismos de dominação capitalista, bem como suas influências na sociedade. Quanto menos a educação for valorizada, mais o ambiente escolar será propício para a disseminação da barbárie neoliberal. Nesse artigo, pretendemos fazer uma breve análise do processo neoliberal de transformação da educação em um mero produto, corroendo a formação crítica e humanista nas escolas. Com ajuda dos escritos de Antonio Gramsci buscaremos 4 “Sistemas de coação, tanto econômicos como sociais, cuja função era obrigar os indivíduos a governar a si mesmos sob a pressão da competição” (Dardot; Laval, 2016, p. 193). 3
não apenas o entendimento da questão, mas também apontar trajetórias para o futuro das nossas escolas. A barbárie da educação: a devastação de uma educação não-humanista A importância de entender a barbárie e suas influências na educação emerge da necessidade de compreender como a depreciação da escola parte da desqualificação da educação dos trabalhadores, tornando-a vazia e sem significado (Frigotto, 2010, p. 186-191). Essa escola que fica à margem da sociedade se torna um local sem envolvimento com a realidade das comunidades e suas organizações, sem pessoas críticas que busquem uma mudança social. A escola voltada para a harmonia, valorizando a razão e a afetividade, é um desafio em uma era neoliberal de competição. É possível com coletividade, exibindo com diversidade as questões sociais, econômicas e históricas, formar cidadãos completos em suas competências e em entendimento do mundo (Teixeira, 2021, p. 151). Portanto, perceber para onde caminha a educação do Brasil, é abrir espaço para o entendimento de como caminha o país, ampliando o debate sobre o tema e buscando soluções para a atual conjuntura. De modo que, no futuro, possamos ter a superação da barbárie, pavimentando o caminho no qual a empatia e o afeto estejam organicamente vinculados à educação brasileira. Adorno aponta que até em sociedades consideradas democráticas, o fascismo perdura e isso tem envolvimento direto com a concentração de capital. Chama atenção de como o acúmulo desse capital leva classes, até mesmo a burguesa, a perder seus bens em períodos de crise e quando isso acontece, são apontados como culpados aqueles que se opuseram ao sistema e não o próprio sistema de acumulação e reprodução do grande capital (2020, p. 45-46). No Brasil, os movimentos fascistas nunca deixaram de existir por completo. Os fantasmas da ditadura empresarial-militar (Melo, 2012, p. 39-53) ainda rondam o país. Florestan Fernandes escreve sobre como os movimentos fascistas se proliferaram em larga escala na América Latina, em especial, após a revolução em Cuba. Uma vez que o advento cubano possibilitou difundir a ideia de que o comunismo tomaria conta de todos os países latino-americanos e, portanto, deveria 4
ser combatido a qualquer custo (1981, p. 16). Governos de extrema-direita, ditatoriais ou de inspirações fascistas acabaram aceitos pela população sem questionamento em prol do combate à grande “ameaça comunista”. Nicos Poulantzas (1978) salienta que o fascismo não deve ser compreendido como um acontecimento histórico particular, mas sim como um fenômeno vinculado a crises de hegemonia no bloco de poder que comanda o Estado capitalista e a mudanças inerentes ao sistema capitalista. Embora compartilhando esse diagnóstico, Gramsci (2004, p. 332) acrescenta que O método fascista de defesa da ordem, da propriedade e do Estado desagrega a unidade social e suas superestruturas políticas [...] As reações que ele provoca devem ser examinadas em relação à sua aplicação tanto no terreno econômico quanto no terreno político. Como demonstrou Robert Paxton (2005), enquanto os tradicionais regimes autoritários almejam manter o povo resignado e alheio às temáticas políticas, o fascismo aspira mobilizar as massas. Logo, os desprezados, rejeitados e humilhados pelo establishment são o público-alvo preferencial e, ao serem seduzidos, passam a reconhecer na retórica supostamente antissistêmica e no ideário fascista um refúgio mítico imediato que inspira seus paradoxais sonhos de mudança política (Gomes; Belinot, 2020, p. 274). Nesta relação cada vez mais orgânica entre fascismo e neoliberalismo, a educação emerge como meio de frear os avanços perigosos dessa barbárie. Um princípio educacional voltado para a criticidade, sempre em busca de reflexão, focalizando no necessário para formar cidadãos completos e autônomos desde a primeira infância, é o caminho para a mudança do perigoso cenário que a extrema-direita instaurou no Brasil. Contudo, como valorizar a criticidade em um ambiente dominado pelo neoliberalismo? Para isso, podemos encontrar indícios do trajeto a ser percorrido em Dermeval Saviani e em Gramsci. A educação histórico-crítica contra a meritocracia neoliberal Em seu livro Escola e Democracia (2012), Dermeval Saviani expõe como a escola se torna uma mera reprodutora da sociedade em que está inserida (2012, p. 5
3), ressoando o capitalismo e as relações antidemocráticas. Em um ambiente de competição acirrada, quem tem um capital cultural decorrente das relações familiares e/ou do ambiente em que está inserido, terá a vantagem de superar e se sobressair em relação aos trabalhadores. na obra Educação: do senso comum à consciência filosófica (2013), Saviani nos leva a uma jornada em busca de esclarecimento. Logo na introdução, o autor demonstra que devemos romper com ideias que se encontram em estado de desorganização, sem consciência, desarticuladas e permeadas por concepções simplistas (2013, p. 2). Portanto, a saída do senso comum esse sendo a desconjuntura que serve de explicação para as estruturas sociais para a consciência filosófica é uma forma de combater a sociedade capitalista, que aliena e transforma os trabalhadores em meros seguidores do discurso dominante, sem a efetiva consciência de que o fazem. Existe uma luta importante travada entre o senso comum e a filosofia, um antagonismo de classes (2013 , p. 3). Ao abordar a filosofia na educação, Saviani visa aprimorar a compreensão do processo educacional, avaliando-o e discutindo o caminho mais adequado para se atingir o objetivo transformador. Sempre surgirão novos desafios e novas formas de enfrentá-los, mas, se o educador e todo o processo educativo forem pautados pela criticidade, poderemos superar o senso comum e atingir a consciência filosófica na escola. Tal processo, porém, não é fácil. Diante de um sistema de valores que deturpam a coletividade, com individualismo exacerbado, visando a acumulação de capital, a educação torna-se um campo valioso de disputa e é necessário estabelecer prioridades. Uma educação democrática, que vise a libertação, é o caminho a ser seguido. Educação essa que busque os meios com os quais os sujeitos deixem de ser alienados, consigam compreender a necessidade de lutar, visando a emancipação. As escolas públicas, devem questionar as estruturas da sociedade capitalista, afinal, apesar das demandas por igualdade e pelo fim da marginalização, não se alcança esse estágio. Somente ao superarmos a falaciosa ideia da meritocracia neoliberal, nos aproximaremos de um cenário de igualdade com educação de qualidade para todos os setores da sociedade. A luta por uma educação pública que 6
seja qualificada e transformadora, é uma luta que deve estar alinhada com a superação do capitalismo e do domínio dos meios de produção por uma minoria. Ademais, chegaríamos a uma socialização do conhecimento e todos, incluindo os trabalhadores, estariam permitidos a entender, construir e transformar a sociedade. A luta por uma pedagogia que valorize a perspectiva histórico-crítica, deve ser uma luta de todos e para todos. A pedagogia deve se voltar para métodos que incentivem os estudantes, articulados com os interesses das classes populares e, portanto, para Saviani é de suma importância que esses métodos sejam bem pensados e executados para que todos sejam contemplados e valorizados, não esquecendo a relevância da historicidade e das culturas acumuladas (2012, p. 69). Torna-se imprescindível incentivar a comunicação entre todos os envolvidos, incluindo a comunidade, os responsáveis pelos discentes e, claro, os docentes. A educação é atravessada por vários fatores, muitos poderes e diversas teorias que se cruzam. Mas ainda assim, não pode ser supostamente neutra ou seguir valores de produtividade, priorizando a venda da mão de obra barata e um trabalho alienado. O papel do professor, em meio a tantas armadilhas do discurso dominante, é de ao menos tentar despertar a centelha crítica que existe em seus estudantes. A escola não é lugar para o fomento à ideia de meritocracia excludente e de práticas neoliberais, mas, ainda assim, é um dos grandes exemplos de como o grupo dominante estrutura a sua hegemonia. Logo, faz-se necessário a força da transformação, mesmo sendo um processo lento e perene. Coletivamente, é imperioso que formemos alunos críticos e mobilizados para a transformação da sociedade. O exercício da democracia nem sempre é tarefa fácil. O poder ainda se manifesta com força em diversas situações e quando isso acontece, a democracia é deixada de lado. Eis o paradoxo: o mesmo raciocínio coerente e plausível que respalda o papel da escola em formar para o exercício consciente da cidadania gera conclusões contraditórias: queremos, pela ação educativa, contar com cidadãos ativos, críticos e transformadores; mas, no fundo, desejamos que esses mesmos cidadãos sejam colaboradores, compreensivos das diferenças e das desigualdades, respeitosos da ordem social e conformados à situação vigente. Submissos, portanto, 7
às normas e valores próprios da sociedade tal como se encontra constituída (Saviani, 2017, p. 655). Além da educação, os exemplos de outros cidadãos e da própria sociedade civil em si, também são importantes para a transformação. A consciência deve estar presente em cada ato para que, no futuro, os indivíduos não permaneçam passivos perante às decisões da classe dominante. Combater o paradigma hegemônico não é tarefa fácil, embute em luta política, trabalho árduo e em muitos sacrifícios, contudo, uma parte significativa desse esforço pode (e deve) partir da escola. Gramsci e seu processo educativo emancipatório Gramsci sempre mostrou seu apreço pela educação e também pela ideia de crianças e adolescentes aprenderem a língua materna, além de outros idiomas, todavia, sem perder a conexão popular. Para o filósofo sardo, o homem deve ser formado em níveis importantes de refinamento, com envolvimento científico, cultural, com complexibilidade e envolto de modernidade. Porém, esse ser humano não pode perder sua ligação com o povo e sua base popular. Essa seria a sua fonte de incentivo, que o manteria conectado à sua criatividade, ao seu senso de solidariedade para que assim pudéssemos considerar esse homem, de fato, um intelectual e não alguém imerso no abstrato (Nosella, 2016, p. 126). Para mantermos crianças estimuladas e com o seu interesse ao longo do tempo, não podemos deixar de lado o trabalho e seu princípio educativo. Para Gramsci, quando comentamos sobre trabalho, não estamos falando em um nível profissional, uma atividade que renderá dinheiro. Até porque ele rejeita qualquer tipo de profissão antes dos dezoito anos. Gramsci entende esse trabalho como uma disciplina imprescindível nos currículos escolares (2016, p. 127). Com esse fundamento se chegaria a um equilíbrio fundamental entre a escola primária/fundamental, com a ordem social e natural vinda através da atividade laboral. Após deixar de lado explicações mundanas que envolvam fantasia, o homem estaria pronto para o desenvolvimento da concepção dialética do mundo (Gramsci, 2001, p. 43). Homens e mulheres poderiam compreender os sacrifícios dos seus antepassados, entender o presente e o momento histórico que estão 8
inseridos, buscando alcançar um futuro que seja melhor para todos. O sujeito moderno, baseado nas visões do homem estadunidense, tornou-se alguém frio, sem sentimentos e mesmo com a designação envolvendo modernidade, é um homem arcaico, repleto de burocracia, que se assemelha a uma máquina sem mente, que não tem a cultura em seus ombros e muito menos percebe o trabalho como libertador. Essa é a visão gramsciana sobre esse tipo humano. E, para o filósofo, o aluno moderno “[…] não pode ser o homem arcaico, pré-industrial, nem, porém, o mecânico e abstrato engenheiro moderno […]” (Nosella, 2016, p. 128). No entendimento do filósofo sardo, a cultura moderna não pode ser vinculada ao modelo estadunidense, afinal, um homem mecânico promoverá a educação mecânica. A consciência deve ser coletiva, não individual. Não podemos viver em uma sociedade sem olhar para os lados, sem pensar nos outros, somos repletos de vivências, encontros e desencontros; assim, vislumbrar que o aluno seja somente um mero receptor mecânico é inadmissível. Gramsci entende que as crianças e os adolescentes necessitam de estímulos à criatividade e ao lado afetivo, no entanto, quando a escola é repleta de meios mecânicos o que ocorre é o oposto do desenvolvimento. A história também muda, a hegemonia meritocrática deve ser combatida; mudanças nos currículos e nos instrumentos didáticos da educação devem ocorrer de maneira urgente (Nosella, 2016, p. 129). Não é incomum vermos estudantes desassistidos tanto nas escolas quanto em suas casas ou nos ambientes que usam para estudar e a preocupação do filósofo sardo envolve esse momento. Apesar de não envolver esforço braçal, estudar também é um exercício de músculos e pode ser bastante cansativo. Trata-se de um hábito que demanda empenho, pode aborrecer, frustrar e até causar sofrimento (Gramsci, 2001, p. 51). Deste modo, Gramsci questiona a solidão desse processo, o abandono de crianças e adolescentes em uma atividade que necessita de suporte e de ajuda. Essa pode ser considerada uma característica do capitalismo e da meritocracia neoliberal, em que sempre é ressaltada a importância do indivíduo perante o coletivo, afetando diretamente o processo educativo. Nosella reforça que no momento em que o educador se torna um ponto de hegemonia, ele consegue transformar o processo educativo para várias gerações (Nosella, 2016, p. 134). Apesar dessa afirmação, em Gramsci, uma distinção 9
sobre como um educador se porta perante o aluno. A relação professor-aluno pode ser repleta de violência, mesmo não se restringindo ao sentido estritamente físico da palavra. Um professor que discrimina ou menospreza o discente, seja por sua história de vida ou por suas experiências, seus conhecimentos, é um professor que atua no sentido antinômico ao da emancipação. Apesar do Caderno 12 ser um dos mais incompletos dos seus escritos carcerários, Gramsci nos deixou contribuições importantes acerca da escola. Neste caderno ele trata da educação em geral, focalizando em educadores, além de indicar uma proposta educacional para a sociedade italiana no caso de os comunistas chegarem ao poder e conquistarem o Estado (Nosella, 2016, p. 173). No que concerne à educação, é importante compreendermos o que significa o conceito de intelectual para o filósofo sardo. Na visão gramsciana, cada grupo social cria organicamente uma ou duas camadas de intelectuais, que serão aqueles que darão à própria formação uma integração e uma conscientização, que assim atingirá diversos campos da economia, da sociedade e da política (Gramsci, 2001, p. 15). Entende-se que todas as pessoas são intelectuais, mas nem todas têm a função de intelectual na sociedade (2001, p. 18). Portanto, o intelectual orgânico irá conferir ao grupo social homogeneidade, eficiência e consciência em níveis econômicos, políticos e sociais (Nosella, 2016, p. 176). Não importa a época ou espaço de tempo, se retornarmos à história, encontraremos intelectuais que poderiam ser chamados de “orgânicos”. Dessa forma, não existe neutralidade em um intelectual, afinal, todos são afetados por ideologias, práticas e meios sociais nos quais estão inseridos. Esses conhecimentos e essas vivências irão influenciar suas ações futuras, na busca pelo entendimento do seu meio e em suas práticas políticas. A consciência individualizada, enaltecida pelo Estado Moderno, proveniente de concepções capitalistas, pode ser deveras perigosa para a mente de quem ainda está se desenvolvendo e conhecendo o mundo. Uma das grandes preocupações de Gramsci é o fato de como a mente das crianças pode ser moldada. Quanto à sua volta, tanto em comunidade quanto na escola, propaga-se intensamente a ideia de que o melhor é manter o foco individual, parar de se importar com a coletividade ou com o entendimento da sua cultura, tal ideário irá impregnar na criança. Por consequência, o papel do professor se torna ainda mais fundamental. Tendo esse 10
educador consciência, com um trabalho voltado para o diferencial, focalizado na criatividade de seus alunos, esperanças para uma mudança. […] Se o corpo docente é deficiente e o nexo instrução-educação é abandonado […] ter-se-á uma escola retórica, sem seriedade, pois faltará a corporeidade material do certo e o verdadeiro será verdadeiro verbalmente, ou seja, de modo retórico (NOSELLA, 2016, p. 44). A escola de Gramsci busca a liberdade da mente, uma emancipação humana, aliada ao histórico-cultural, como base de um aluno que pense no coletivo, que seja uma pessoa engajada contra as injustiças de um aparato estatal opressor. Trata-se de uma escola que liberta ao retirar as amarras mantidas por uma aprendizagem que prioriza somente a profissionalização mecânica, em busca de uma mente alienada e sem voz. O intelectual sardo almeja uma escola visionária, moldada por uma pedagogia que materializa um conhecimento histórico-crítico. Uma união entre intelectuais orgânicos e a pedagogia se faz necessária, mas isso se torna um desafio pela dificuldade de agregação de indivíduos que realmente possam ajudar. Precisa-se de intelectuais ligados aos anseios populares, que de fato busquem a coletividade para encontrar a transformação, que virá ligada à educação. Por isso, Gramsci insiste na educação como chave essencial e estratégica para a conquista da hegemonia, pois, essa pode ser usada até mesmo por um governo opressor, no sentido de manter a subjugação de um povo (Nosella, 2016, p. 185). Gramsci destacou que, nos tempos modernos, toda atividade exige um cientista profissional que ensine sua área de conhecimento na escola. Todas as atividades práticas se tornaram de extrema complexidade. Assim, o que ele chamou de lado “humanista” das escolas tradicionais, desapareceu. Para o filósofo, esse lado humano desenvolve em cada pessoa os conceitos de sua cultura e a compreensão necessária para sua orientação na vida. O que Gramsci percebia era uma crise, com um montante de escolas particulares, com várias subdivisões profissionais, com interesses e níveis de especificações absurdos, que, em sua visão, não contribuía para que o lado humanista fosse particularmente desenvolvido (Gramsci, 2001, p. 33). A solução para esta crise é uma escola única, que valoriza a cultura geral e possui um 11
equilíbrio adequado entre trabalho manual e trabalho intelectual. A partir dessa proposta escolar, dividem-se os tempos necessários para uma formação humana e, depois, para uma formação profissional. Gramsci acredita que a escola unitária deveria ser integral, sem a mecanicidade que a escola profissional exerce em seus alunos. O estudo seria coletivo, com a ajuda de professores e, em alguns casos, dos melhores alunos. Sua crítica é dura em relação às escolas da sua época, pois estas tinham a memória como um atributo importante para os estudos, com conteúdos estritamente dogmáticos, podando a autonomia e a independência da fase criadora. Uma escola estrita, que controlava a todo momento, tanto moral quanto intelectualmente os seus estudantes (2001, p. 38). A escola unitária proposta por Gramsci é uma forma de escola ativa. O Estado, na sua percepção, deve adequar a aprendizagem nela proposta, afinal, a escola ativa e a escola criadora devem seguir unidas. A primeira fase escolar deve ser o de nivelamento para se conseguir uma conformidade dinâmica nessa fase criadora. Após a passagem por essa fase, teremos alunos que se integram socialmente com muito mais facilidade, com consciência moral e social ao mesmo nível (2001, p. 39). Assim, percebe-se que a escola proposta pelo filósofo sardo é uma escola com formação humanizada, contendo uma relação saudável entre autonomia e práticas de disciplina. Ou seja, desenvolvendo alunos que pensam criticamente e não reclusos em si mesmos, tendo, portanto, voz ativa em momentos de coletividade. Com a escola unitária, Gramsci quer apontar uma nova forma de integrar o trabalho intelectual ao trabalho industrial; os dois podem estar unidos, desde que o trabalho industrial não seja o único ativo valorizado nas escolas. As academias precisavam de uma organização cultural, com expansões e criações de trabalho intelectual. Sem a pretensão de acabar com o trabalho industrial, o filósofo sardo somente não gostaria que esse trabalho fosse introduzido cedo demais na vida desses estudantes, quando estes ainda não possuem nem o conhecimento dos direitos e deveres dos cidadãos. A escola unitária busca a emancipação humana, uma liberdade crítica, com conhecimento histórico-cultural, como base de um aluno que pensa na coletividade, 12
que seja alguém que lute contra as injustiças de um Estado opressor. Trata-se de uma escola que liberta ao retirar as amarras mantidas por uma aprendizagem que prioriza a profissionalização mecânica ou mesmo exalta o excludente ideário capitalista. Gramsci projeta uma escola visionária, moldada por uma pedagogia que materializa um conhecimento libertário. A normatividade nas escolas também é importante na perspectiva gramsciana porque através das normas podemos ser autônomos. Contudo, essa autonomia somente ocorrerá se as pessoas tiverem abertura para esse desenvolvimento, tendo em suas mãos mais responsabilidades e planos de ação. Portanto, para Gramsci, os alunos deveriam ter espaço para serem autônomos, deveriam ter voz ativa no conhecimento a se adquirir, possibilitando que atividades e o próprio currículo também passasse por eles. Tendo o conhecimento, a criticidade e autonomia, esses alunos no futuro terão força para serem igualmente ativos na sociedade. “[…] Afinal, para formar um protagonismo histórico era preciso deixar espaço para o exercício da autonomia, da reflexão e da crítica em todas as situações escolares, assim como em todos os outros espaços sociais” (Nosella, 2016, p. 241). A escola como um espaço de criação é necessária para o desenvolvimento do indivíduo, tanto como pessoa em particular, como em ambiente coletivo. É importante alertar que incentivando a entrada das artes e focalizando em uma educação mais humanista não se propõe esvaziar a função formativa da escola. Um local aberto para a criatividade e para outras vivências não abdica de uma perspectiva educacional relacionada ao papel de ensino-aprendizagem. Muito ao contrário, tudo isso robustece a educação e em nada a esvazia. Considerações finais Quando pensamos na educação neoliberal, nos deparamos com um sistema que busca “[…] atrelar a educação escolar à preparação para o trabalho e a pesquisa acadêmica ao imperativo do mercado ou às necessidades da livre iniciativa. […] O mundo empresarial tem interesse na educação porque deseja uma força de trabalho qualificada, apta para a competição no mercado nacional e internacional” (Marrach, 1996, p. 46). 13
A escola se tornou um complemento do mercado, uma mercadoria qualquer, seguindo os valores ideológicos do neoliberalismo, cada vez mais organicamente articulado à ascensão mundial da extrema direita fascista. O neoliberalismo tomou posse do sistema educacional, transfigurando a escola pública em um local de reprodução da força do trabalho conformada, que visa somente o crescimento econômico e do capital (Freitag, 2015, p. 215-216). No Brasil, por conseguinte, esse rechaço a qualquer pensamento crítico é promovido por meio de ataques constantes aos educadores em geral e às ciências humanas, simbolizados no movimento “Escola Sem Partido”, cuja tese principal é de que todas as ciências sociais são engajadas e, portanto, carecem de objetividade. Sociólogos, antropólogos, filósofos, historiadores, pedagogos pretendem minar os fundamentos da natureza, da comunidade, da ordem social: a família, a pátria e a nação (Gomes; Belinot, 2020, p. 281). Assim, os ares transformadores e emancipatórios que Gramsci tanto anseia para a educação, são abandonados de maneira inescrupulosa pela hegemonia neoliberal, cada vez mais alinhada ao fascismo. Podemos conceber a escola como espaço de construção para uma nova hegemonia, que não seja baseada nos valores capitalistas. Um local voltado para a transformação e garantia à classe trabalhadora das condições de assumir as rédeas da sociedade para finalmente emancipá-la. Com um trabalho que seja de fato norteador e educativo, é possível pavimentar o caminho vislumbrado por Gramsci (Silva, 2020, p. 205). Os escritos gramscianos sempre ressaltaram a importância da educação para a conquista da hegemonia. Contudo, educar não é tarefa simples e cabe a todos nós fazermos parte desse processo emancipatório. O filósofo sardo nos deixou um legado importante, com a abrangência intelectual necessária para analisarmos suas reflexões de diversas maneiras, buscando não apenas a compreensão da sociedade, mas principalmente a urgência revolucionária em transformá-la. 14
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