V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
À PROCURA DE GALÁPAGOS:
AS HIPÓTESES DE MARX EM FRAGMENTOS SOBRE AS MÁQUINAS”
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Daniel Romero
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Se pudéssemos escutar os pensamentos de Marx em tempo real, o que
ouviríamos? Assim como qualquer pessoa, Marx seguramente pensava em voz alta
quando estava imerso em suas pesquisas. Se estivéssemos ao seu lado, o que
teríamos a oportunidade de escutar deste Marx sem filtros? Quais ideias teriam
surgido, mas abandonadas? Quais teriam sido apenas delineadas e guardadas para
mais tarde e, finalmente, quais teriam criado raízes e se tornado, posteriormente,
elementos chaves de seu pensamento?
O texto ora publicado pela Revista Trabalho Necessário é o mais próximo que
podemos chegar de uma experiência como esta. Em Fragmentos sobre as
Máquinas (ver anexo), Marx está conversando consigo mesmo, em altíssima voz,
levantando uma série de hipóteses, botando-as no papel para organizar seus
próprios pensamentos e avaliar até onde elas podem ir.
Aquele que se dispuser a viver esta experiência, uma bela jornada o espera,
porque aqui temos o Marx dos Grundrisse. Como se sabe, é nos manuscritos
escritos em 1857-1858 que é possível presenciar conceitos centrais da sua crítica da
Economia Política sendo desenvolvidos pela primeira vez, como é o caso do
mais-valor.
Antes de uma obra completa, ela seria melhor caracterizada como uma fase
de experimentações, na qual o seu objetivo é testar ideias. Não devemos tomar isso
como um demérito, pois é justamente em função disso que temos uma explosão de
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Mestre em Sociologia pela Unicamp e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA), Brasil. Professor de Sociologia do Instituto Federal da Bahia (IFBA), Brasil.
Pesquisador no Laboratório de Humanidades Digitais (LABHD-UFBA).
Email: romeromab@yahoo.com.br. Lattes: https://lattes.cnpq.br/6908390678539380.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0411-7436.
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Artigo recebido em 05/04/2024. Aprovado pelos editores em 10/07/2024. Publicado em 07/08/2024.
DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.63729.
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criatividade. Podemos considerar que os Grundrisse estão para Marx assim como a
viagem a bordo do Beagle está para Darwin.
A Bordo do Beagle
Se os Grundrisse são o momento em que ideias estão sendo testadas, quais
exatamente são as que estão sob escrutínio em Fragmentos sobre as Máquinas?
Neste texto, Marx levanta a seguinte questão: o que ocorre com o processo de
produção capitalista quando a técnica e a ciência se convertem, em escala sempre
crescente, em meios de produção? Marx compreende que o processo de
acumulação capitalista implica uma tendência histórica de substituição do trabalho
vivo por trabalho morto. Assim, como exercício de reflexão, o que ocorre se
levarmos ao limite esta tendência histórica?
A partir deste questionamento, Marx elabora duas instigantes hipóteses, cada
uma delas relacionada a um “momento” do processo de produção: tanto o processo
de trabalho quanto o processo de valorização se convertem em seu contrário.
No primeiro caso, Marx desenvolve a ideia de como, por meio da técnica e da
ciência, o capital consegue obter um maior controle do processo de produção ao
concentrar as atividades de concepção no sistema de máquinas a ponto do trabalho
se converter em algo acessório:
“O processo de produção deixou de ser processo de trabalho no
sentido de processo dominado pelo trabalho como unidade que o
governa. Ao contrário, o trabalho aparece unicamente como órgão
consciente, disperso em muitos pontos do sistema mecânico em
forma de trabalhadores vivos individuais, subsumido ao processo
total da própria maquinaria, ele próprio um membro do sistema,
cuja unidade não existe nos trabalhadores vivos, mas na
maquinaria (p. XX, grifo nosso) [p. 218 da edição em espanhol].
Não se trata apenas do fato de que o sistema de máquinas impede que se
possa rastrear o trabalho imediato dos trabalhadores individuais. Para além disso,
aqui se trata da expropriação do conhecimento sobre o trabalho, de seu saber-fazer,
e de sua concentração no sistema de máquinas um autômato –, delegando aos
trabalhadores submetidos ao processo de mecanização atividades auxiliares, de
baixa qualificação. Para controlar o processo de trabalho, a estratégia do capital
consistiu na concentração do saber, uma forma de poder ditar tanto o ritmo do
trabalho quanto sua forma e sua escala.
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Neste sentido, o trabalho concreto, criador de valores de uso, assume uma
forma cada vez mais abstrata e indistinta, de mero gasto de tempo e de energia. É
neste sentido que o processo de produção deixa de ser processo de trabalho, pois o
trabalho concreto se converte, na prática, em mera abstração.
Ressalto novamente que Marx não está procurando delinear casos empíricos
específicos, mas tendências históricas. Conforme se amplia o processo de
acumulação do capital, em que direção aponta a presença cada vez mais
preponderante da aplicação da técnica e da ciência? Concentração do saber-fazer
em sistemas automáticos com vistas a obter maior controle sobre o processo de
produção, com sua consequente desqualificação do trabalho.
A segunda hipótese levantada por Marx procura analisar o mesmo cenário,
mas agora sob a perspectiva do valor. Devido à busca constante pelo aumento da
produtividade do trabalho resultando na substituição de trabalho vivo por trabalho
morto, o trabalho e tempo de trabalho deixariam de ser fontes e medida da riqueza,
respectivamente. A transformação da ciência em meio de produção implicaria a
explosão dos próprios fundamentos da produção capitalista, ao tornar a exploração
do trabalho alheio como algo sem sentido. Assim, acrescenta Marx, “o capital
trabalha em favor de sua própria dissolução como forma dominante de produção” (p.
XX). [p. 221 da edição em espanhol]
E Marx conclui seu raciocínio com a passagem mais reproduzida dos
Fragmentos:
“O desenvolvimento do capital fixo indica até que ponto o saber
social geral, conhecimento, deve ter força produtiva imediata e, em
consequência, até que ponto as próprias condições do processo vital
da sociedade ficaram sob o controle do ‘intelecto geral’ e foram
reorganizadas em conformidade com ele. Até que ponto as forças
produtivas da sociedade são produzidas, não na forma do saber,
mas como órgãos imediatos da práxis social; do processo real da
vida” (p. XX). [p. 227-228 da edição em espanhol].
Assim, o conhecimento social como um todo teria, ele próprio, se tornado uma
força produtiva em favor do capital e submetido o conjunto das relações sociais, da
reprodução da vida em suas diversas dimensões.
Em síntese, Marx procura refletir o que significa levar ao limite a tendência
histórica de substituição do trabalho vivo por trabalho morto. Nesta jornada, o
processo de produção capitalista se converte em seu contrário: o processo de
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trabalho deixaria de ser pautado pelos trabalhadores imediatos e a lei do valor
deixaria de ser a base sobre a qual se organizaria a produção social. De um lado,
subsunção do trabalho; de outro, superação da teoria do valor-trabalho.
É desnecessário lembrar que isto motivou intensos debates no campo do
marxismo, especialmente a partir das leituras do autonomismo italiano, tendo
inspirado diversas teses em torno do trabalho imaterial, capitalismo cognitivo e
trabalho gratuito.
Não é o espaço aqui para discutir as teses contemporâneas, mas considero
importante analisar qual o tratamento que as hipóteses de investigação levantadas
por Marx receberam em obras posteriores aos Grundrisse. Afinal, entre as ideias
testadas nos Fragmentos, quais foram consideradas mais promissoras pelo próprio
autor e quais não foram mais retomadas?
À procura de Galápagos
Em obras posteriores aos Grundrisse, o tema da subsunção do trabalho ao
capital passa a ocupar um espaço cada vez maior e um tratamento cada vez mais
denso e detalhado. Inicialmente nos Manuscritos de 1861-63 (MARX, 1980),
passando pelo manuscrito conhecido como Capítulo VI Inédito (2022) e, por fim, no
próprio Livro I de O Capital (2023).
Marx destaca a diferença entre máquina e ferramenta, aprofunda a discussão
sobre subsunção formal e subsunção real, desenvolve a categoria de trabalhador
coletivo, além das diversas formas de mais-valor, absoluta, relativa e extra (Romero,
2005).
Se podemos dizer que uma ideia criou raízes, foi esta. Marx aportou em sua
Galápagos por meio de dois esforços: de um lado, se dedicou a estudar os
enfadonhos materiais de uma série de engenheiros, industriais e cientistas sobre o
sistema de máquinas nascente; mas também se valeu dos relatórios dos fiscais de
fábricas e das ações do próprio movimento operário britânico, com apoio precioso de
Engels.
No nosso entendimento, portanto, quando Marx analisa a substituição de
trabalho vivo por trabalho morto sob o prisma do processo de trabalho, aqui um
ponto de continuidade e de aprofundamento entre os Grundrisse e as obras
seguintes. A ideia segundo a qual o processo de trabalho se converte em seu
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oposto, inicialmente uma simples hipótese testada ao limite, se torna a tese central
que Marx apresenta ao analisar o longo processo de formação da Grande Indústria.
Ironicamente, é como se Marx estivesse contando a história de uma luta pela
emancipação, mas da tentativa de emancipação do capital frente à habilidade,
destreza e qualificação do trabalhador. No entanto, este fio de continuidade não se
observa quando o foco é o processo de valorização com a hipótese da superação da
lei do valor. Neste âmbito, as mudanças são significativas. A começar pelo fato de
que Marx não utiliza novamente o termo “intelecto geral” em obras posteriores
(Marques, 2022).
Além disso, um elemento chama atenção quando comparamos a “arquitetura”
dos Grundrisse com estes materiais: se no manuscrito de 1857-58, o “Fragmentos
sobre as Máquinas” está na seção do processo de circulação, articulado à discussão
do capital fixo, nas obras seguintes uma mudança “espacial” do objeto, ficando
circunscrito ao processo de produção e relacionado ao capital constante e ao
aumento da composição orgânica do capital.
Esta mudança não é fortuita. Como sabemos, processo de trabalho e
processo de valorização são dissociados como recurso analítico, uma vez que
processo de produção é a articulação de ambos. Ao pensar no processo de trabalho,
a questão que Marx delineia diz respeito ao papel da ciência e da técnica na disputa
sobre o controle do processo de produção, seu ritmo, escala e forma de trabalho.
Ao analisar em obras posteriores sobre as contradições do processo de
valorização decorrentes da substituição de trabalho vivo por trabalho morto, a
discussão ganha contornos muito diferentes daquele apresentado nesta parte dos
Grundrisse: a hipótese da superação da lei do valor e de dissolução do capitalismo
cede espaço para a análise sobre as crises do capital, com suas tendências e
contratendências.
Embora Marx não tenha conseguido elaborar o Livro IV de O Capital, que
seria dedicado ao mercado mundial e suas crises, ainda assim claramente uma
Teoria das Crises em Marx e o caminho adotado é muito distinto da ideia de
superação da lei do valor (Romero, 2009).
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Quão longe podemos ir com Marx dos Grundrisse?
Ainda muito a se extrair dos Grundrisse. Um pequeno exercício pode nos
ajudar a ter a dimensão disso: peço que releiam a primeira citação em destaque
desta apresentação, mas no lugar de maquinaria substituam por plataformas e ao
invés de sistema mecânico, substituam por sistema digital. Com estas simples
alterações, um pesquisador contemporâneo poderia se valer destas observações
para lançar luz sobre as plataformas de micro-trabalho, aquelas responsáveis por
organizar os bancos de dados que alimentam as Inteligências Artificiais.
O maior hype do capitalismo atual está baseado em processo de trabalho que
não é processo de trabalho, tanto no sentido indicado por Marx nos Grundrisse,
mas também no fato de não se apresentar enquanto tal. Um livro com esta
vivacidade, passados mais de 150 anos, demonstra o quanto Marx é um autor
essencial para compreender o capitalismo contemporâneo.
Convite
São cerca de 10 horas da noite e Marx vai começar seu terceiro turno de
trabalho. De posse de seus fichamentos feitos ao longo do dia na Biblioteca do
Museu de Londres, Marx se senta em frente a sua modesta escrivaninha para dar
início ao seu mais ambicioso projeto. O convite é simples: acomode-se ao seu lado
como todos nós e vamos ouvi-lo conversando consigo mesmo.
Referências
MARQUES, R. M. Intelecto Geral: origem e superação de um equívoco de Karl Marx.
Trabalho & Educação, 31(1), 47–67. 2022.
MARX, K. Capital y tecnología: Manuscritos de 1861-1863. México, Terra Nova.
1980.
MARX, K. Capítulo VI (inédito): manuscritos de 1863-1867. São Paulo, Boitempo.
2022.
MARX, K. O Capital [Livro 1]: Crítica da Economia Política: o Processo de
Produção do Capital. São Paulo, Boitempo, 3ª. Edição. 2023.
MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica
da economia política. SP, Boitempo. RJ, Ed. UFRJ. 2011.
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ROMERO, D. Marx e a técnica: estudos dos manuscritos de 1861-1863. São Paulo,
Expressão Popular. 2005.
ROMERO, D (org.). Marx sobre as Crise Econômicas no Capitalismo
Introdução. São Paulo, Editora Sundermann. 2009.
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