V.22, nº 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X


Editorial TN 48


TECNOLOGIA (S) EM TEMPOS DE LUTA CONTRA A PRODUÇÃO DESTRUTIVA DO CAPITAL1


A crise climática é a manifestação extrema do esgotamento das relações seres humanos-natureza mediadas pelo trabalho mercadoria – fonte primeira de produção de riqueza e de pobreza. Riqueza para os homens-de-negócio; pobreza para homens, mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos da classe trabalhadora.

No cenário de políticas ultraliberais e do crescimento da extrema direita, o acúmulo de CO2 (dióxido de carbono), metano (CH4) e outros gases produzidos pela queima de combustíveis fósseis, como derivados de petróleo, carvão mineral e gás natural tem agravado o efeito estufa na atmosfera, produzindo o aquecimento global e a vulnerabilidade do ecossistema no planeta Terra. Por isso, o objetivo da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 25), sediada na cidade de Belém (Pará), é conter o aumento da temperatura global, evitando o aumento do volume dos oceanos, bem como a redução da disponibilidade de água.

Na verdade, são incalculáveis os danos dos crimes ambientais, historicamente produzidos ao longo da história do capitalismo; são crimes cometidos contra os seres humanos, contra seres não humanos e demais elementos da natureza, o que impossibilita a existência de nossa vida no planeta, quer dizer, em nossa ‘casa comum’. São incalculáveis, por exemplo, os danos da tragédia ocorrida no Rio Grande do Sul, em abril/maio deste ano de 2024, atingindo cerca de 2,5 milhões de pessoas; 182 morreram e 29 desapareceram. Sérios danos à biodiversidade do Pantanal mato-grossense foram causados por incêndios ditos “naturais”, no primeiro semestre deste ano, atingindo, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) uma extensão de 712.075 hectares do bioma, uma área seis vezes maior que a cidade do Rio de Janeiro.

1Editorial recebido em 02/08/2024. Aprovado pelos editores/as em 05/08/2024. Publicado em 07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.63969.

Na era digital, as tecnologias espaciais e por satélite fornecem informações sobre estrelas, galáxias e planetas distantes onde poderia ou não haver vida. A comunicação via satélite, por meio de objetos em órbita ao redor da Terra, permite o acesso a informações valiosas sobre crimes ambientais e catástrofes decorrentes. Atestam a devastação das florestas, queimadas, desertificação, invasão de terras dos povos do campo e tudo mais que as tecnologias do agronegócio e da mineração têm provocado na Amazônia e demais biomas brasileiros: Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal.

Enquanto isso, nas calçadas dos centros urbanos, existem centenas de homens e mulheres vendendo quinquilharias como caixinhas de som, fones de ouvido, capinhas e carregadores de celular, adaptadores, chips, além de meias, chapéus, doces, salgados... Ao mesmo tempo, as lojas, lanchonetes e outros estabelecimentos comerciais dos arredores estão abarrotados de máquinas e, conforme a sorte, é possível encontrar dois ou três seres humanos que ali trabalham. Pacientemente, ao invés de ficar correndo para lá e para cá, as pobres criancinhas não tiram os olhos do celular.

Na atual “sociedade do espetáculo”’ (Debors,1997), as tecnologias de informação e produção de consenso querem nos fazer crer, que o empreendedorismo-de-si é a grande saída para o cidadão, para a cidadã, e inclusive para mulheres, mães, trabalhadoras negras que “poderiam ser mais felizes” se consumissem shampoo natural, produzido com ervas que contém grande poder medicinal, vindas diretamente da Amazônia Legal. Dizem que se tratam de produtos altamente sustentáveis, graças à bioeconomia e ao consumo consciente e responsável dos cidadãos. Isso tudo sem deixar de “reconhecer” o grande valor dos saberes tradicionais, considerados como “capital natural” - capital este lucrativo para os empresários e, que ao mesmo tempo, vai gerar algum tipo de renda para ribeirinhos, pantaneiros, castanheiros, quebradeiras de coco de babaçu, piaçabeiros e outros grupos de homens e mulheres trabalhadoras/es que vivem em comunidades tradicionais. Como modelo de produção industrial que promove a “gestão eficiente dos recursos naturais”, a bioeconomia criaria, então, um elo mais forte entre campo e cidade, entre produtor e consumidor. E, quem sabe, por conta própria, povos e comunidades tradicionais poderiam melhorar suas condições de vida, contando com políticas identitárias e de assistência social.

Do outro lado da calçada, estão a Bolsa de Valores, as grandes corporações

de informação e comunicação, fundações e organizações privadas que buscam capturar o fundo público, contribuindo para a precarização do trabalho e da própria vida. Com a introdução da internet, inteligência artificial e indústria 4.0, as tecnologias digitais de produção e gestão da força de trabalho tornaram-se uma peça-chave do sistema do capital, impactando os processos de formação humana por meio do empresariamento da educação, da cultura e de todos os espaços das relações sociais, inclusive de nossas praias e parques, rumo à consolidação de um estado-empresa, de um sujeito-empresa (Laval, 2019). Na disputa entre blocos econômicos e, em particular, por reservas de petróleo, prevalece o intervencionismo imperialista, em particular o norte-americano que, historicamente, tem ameaçado a soberania nacional e a autodeterminação dos povos. No que diz respeito à Venezuela, desde 2014, com a lei 113.278, aprovada no Congresso dos Estados Unidos, têm sido frequentes os embargos econômicos, gerando sofrimento à classe trabalhadora, sobretudo às camadas mais pobres da população. Sobre as eleições, no último dia 28 de julho, Andrés López Obrador, presidente do México, denuncia que a Organização dos Estados Americanos (OEA) declarou vitória ao candidato de oposição a Nicolás Maduro, antes mesmo de concluída a apuração dos votos.

Evidentemente, essas tecnologias não são capazes de deter a ganância dos homens-de-negócio e tampouco a interferência do capital financeiro internacional nos governos dos países do capitalismo dependente. Ao veicular um único lado da moeda, a grande mídia e as redes sociais retrógradas também corroboram para a desinformação e confusão quanto à interpretação da realidade social. Essa postura, não gratuitamente, fortalece o grande capital, a extrema direita e o fascismo, forjando uma consciência deturpada em relação ao contexto social mundial e, especificamente, sobre as questões da América Latina.

Como força produtiva do capital, o avanço da tecnologia como ciência da atividade humana, tem cumprido um papel fundamental, constituindo-se como mediação nas relações entre capital e trabalho, e nas relações cotidianas que estabelecemos com o mundo. Ao contrário da libertação do fardo do trabalho, as chamadas tecnologias de ponta, agora na modalidade de inteligência artificial generativa, têm contribuído para assegurar a produtividade ampliada do capital – ampliada em todos os sentidos e magnitude. Trata-se de um projeto, em curso, de construção de uma hegemonia cultural, capitalista, calcada em “estruturas de sentimentos” (Williams, 1979), ou seja, em bases materiais e simbólicas que

permitam a homens e mulheres da classe trabalhadora atuarem e se sentirem, na prática, parceiros e colaboradores do empresário capitalista e, de preferência, que não frequentem o mundo da política. Nos processos de compressão espaço-tempo (Harvey, 1998), ditados por aparatos tecnológicos, os discursos terraplanistas e negacionistas perpassam e fortalecem os fios da religiosidade, invadindo as redes sociais. Anda a galope a produção de muitas mentiras e muitas pobrezas, entre elas a ‘pobreza de espírito’.

Quando falamos em tecnologia, imediatamente nos remetemos a máquinas e equipamentos, como se a diversidade de artefatos tecnológicos não resultasse da força de trabalho humano e pudesse ser independente das relações sociais de produção da vida social, onde, historicamente, esses artefatos se realizam, material e simbolicamente. Foi o que Marx (1980) chamou de fetichismo da tecnologia ou fetichismo da mercadoria. Assim, é preciso lembrar a existência de outras maneiras de fazer, sentir e pensar o mundo.

Nos espaços/tempos da produção não capitalista, o desafio da reprodução ampliada da vida (Tiriba, 2004) pressupõe a construção da hegemonia do trabalho sobre o capital. Ainda que atravessadas pelas mediações de segunda ordem do capital (Mészáros,1989); a lei do valor é a do valor-comunidade (García Linera, 2010). Nesse contexto, o trabalho associado e outras formas de trabalho coletivo requerem tecnologias que, embora possam ser consideradas “rudimentares”, são bastante avançadas. Não por acaso, na Amazônia e em outros biomas brasileiros, o capitalismo incorpora os saberes tradicionais (Rodrigues, 2022). Ainda que minoritariamente, as possibilidades de tecnologias de produção da vida, que se contrapõe à lógica de reprodução ampliada do capital, estão presentes na TN 48.

Para nós, editoras, foi um imenso prazer contar com o Prof. Dr. Domingos Leite Lima Filho, professor visitante da Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Trabalho, Educação e Tecnologia – GETET/UTFPR, e como o Prof. Dr. Henrique Tahan Novaes, da Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília), membro do Grupo de Pesquisa em Organizações e Democracia. Ambos trabalharam arduamente como organizadores desse número temático intitulado Tecnologia e formação humana. Os demais membros do Núcleo de Estudos, Documentação e Dados sobre Trabalho e Educação (Neddate/UFF), que abriga nossa Revista, também agradecem pelo empenho e carinho dos pesquisadores, com quem aprendemos muito. Agradecemos

também aos autores, autoras e a todos e todas que, nos bastidores, permanecem conosco nesse trabalho necessário: José Luiz Cordeiro Antunes (UFF); Landhor Camello (assistente técnico), William Kennedy do Amaral Souza (IFRO) e Daniel Tiriba (designer).

De acordo com o ChatGPT, “a inteligência artificial (IA) pode ser uma ferramenta poderosa na editoração de periódicos, ajudando em várias etapas do processo editorial, desde a triagem inicial de artigos até a formatação final”. De nossa parte, sem descartar o conhecimento acumulado e transformado em trabalho morto, achamos mais seguro o desafio de prosseguir com o trabalho vivo, com a força viva, criadora e transformadora do mundo. Boa leitura!

Abraços de Lia Tiriba, Jacqueline Botelho e Adriana Barbosa - Editoras da Revista Trabalho Necessário.


Referências


DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

GARCÍA LINERA, Á. Forma valor y forma comunidad. Buenos Aires:CLACSO, 2010.

HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.

LAVAL, C. A escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público. São Paulo: Editora. Boitempo. 2019.

MARX, K. O Capital. Crítica da economia política. Livro 1.Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

MÉSZÁROS, I. Produção destrutiva e Estado capitalista. São Paulo: Ensaio, 1989.

RODRIGUES, D; CASTRO, O. Tecnologias de produção da vida: saberes do trabalho da pesca em comunidades ribeirinhas. In Alves, A.E; Tiriba, Lia. Cios da terra. Sobre trabalho, cultura, produção de saberes e educação do campo. Uberlândia/MG, Navegando, 2022, p. 175-189.

TIRIBA, L. Reprodução ampliada da vida e espaços/tempos da produção não capitalista. Marília: Lutas Anticapital, 2024. v.3.

WILLIAMS, R. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.