V.22, 48 - 2024 (maio-agosto) ISSN: 1808-799 X
APRESENTAÇÃO: TECNOLOGIA E FORMAÇÃO HUMANA
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Domingos Leite Lima Filho
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Henrique Tahan Novaes
3
A tecnologia revela o modo de proceder
do homem para com a natureza,
o processo imediato de produção de sua vida
e assim elucida as condições de sua vida social
e as concepções mentais que delas decorrem
(Marx, O Capital)
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A Revista Trabalho Necessário, neste número 48, traz o tema Tecnologia e
Formação Humana. A temática ganha centralidade na atualidade, considerando-se,
entre outros aspectos, que o trabalho, a educação e formação da classe
trabalhadora são fortemente impactados pelas transformações e inovações
científico-tecnológicas da chamada Indústria 4.0 e da inteligência artificial, que
promovem e aceleram a introdução massiva de tecnologias digitais no processo de
trabalho e nas formas de utilização da força de trabalho nos diversos ramos da
produção industrial e de serviços e nas diversas dimensões da vida.
O fenômeno é abrangente, embora desigual, atingindo regiões centrais e
periféricas das grandes, médias e pequenas cidades, o campo e a cidade e inclusive
povos originários e culturas as mais diversas, que passam a enfrentar a necessidade
do acesso e manejo de tais tecnologias.
Nesse cenário global, a plataformização do trabalho traz consigo a elevação
do desemprego estrutural, do subemprego, e a intensificação da precarização da
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MARX, Karl. O Capital, L. 1, v. 1, São Paulo, Difel, 1978, p. 425.
3
Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Professor Livre Docente da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade do Estado de São
Paulo (Unesp). Email: hetanov@gmail.com. Lattes: http://lattes.cnpq.br/5282506732444510. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5247-3684.
2
Doutor em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor titular
aposentado (e professor voluntário sem vínculo institucional) do Programa de Pós-Graduação em
Tecnologia e Sociedade da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Professor visitante
do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF). Email:
domingosf@id.uff.br. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1113538527015820. ORCID:
https://orcid.org/0000-0003-3802-6794.
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Apresentação recebida em 04/08/2024. Aprovado pelos editores em 06/08/2024. Publicado em
07/08/2024. DOI: https://doi.org/10.22409/tn.v22i48.63970.
força de trabalho. A educação, em seus diversos níveis e modalidades, é um dos
setores que sofre maiores impactos pela presença cada vez mais intensa das
tecnologias educacionais, mediante a aplicação de softwares e hardwares aos
sistemas de gestão escolar, materiais didáticos, controle dos estudantes e dos
profissionais da educação, formação de professores e educação a distância.
Assumem protagonismo e atuam de forma articulada as grandes corporações
internacionais de informação e comunicação, as chamadas edtechs (startups da
educação) e as fundações e organizações privadas, buscando realizar, via
financeirização e empresariamento, o progressivo controle da concepção e gestão
dos sistemas educacionais e a apropriação dos fundos públicos, em um movimento
de “colonização” e “automação” da educação pública.
Nesse sentido, ganha importância a produção a partir do materialismo
histórico-dialético, em diálogo com outras perspectivas críticas, de análises
teórico-metodológicas, estudos e pesquisas que abordem aspectos relacionados à
temática, dentre os quais: a tecnologia na atualidade e na história e sua concepção,
produção, utilização apropriação e impactos sociais; inter-relações tecnologia,
trabalho, ciência e cultura como base para a formação humana; tecnologias digitais,
inteligência artificial e processo de trabalho; tecnologias educacionais, inteligência
artificial e formação humana; as abordagens críticas às concepções de
determinismo, autonomia e neutralidade da tecnologia; a resistência social e práxis
revolucionária no contexto da inteligência artificial.
A perspectiva de Marx, conforme podemos ver no texto em epígrafe, situa a
tecnologia no campo das relações sociais de produção. Nesse sentido, orientados
pelo materialismo histórico marxiano, consideramos que a produção e apropriação
da tecnologia é processo social que, como tal, somente pode ser plenamente
apreendido se levarmos em consideração a totalidade e historicidade das relações
sociais de produção em que ocorrem. Ou seja, “como processo social, a tecnologia
participa e condiciona as mediações sociais, porém não determina por si a
realidade, não é autônoma, nem neutra e nem somente experimentos, técnicas,
artefatos ou máquinas: é constituída por conjuntos de saberes, trabalhos e relações
sociais objetivadas” (Lima Filho, 2023, p. 36). Nesse sentido,
a tecnologia, como processo de intervenção do ser social, em sua
ação com os demais e sobre o meio, indissociável das práticas
sociais cotidianas, em seus vários campos/diversidades/tempos e
espaços, assume uma dimensão sociocultural, uma centralidade
geral, e não específica, na sociabilidade humana. Esta compreensão
da tecnologia e de suas inter-relações com as demais dimensões da
sociabilidade humana, em uma perspectiva de totalidade e
historicidade, é fundamental para nossa concepção educacional da
formação humana integral (LIMA FILHO, 2023, p. 36).
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Contudo, leituras apressadas e enviesadas, especialmente dos “elogios” de
Marx e Engels (no Manifesto do Partido Comunista e em O Capital), a capacidade
da burguesia de navegar para lugares longínquos, de desenvolver a ciência, de
revolucionar a forma de produzir as mercadorias e acelerar o desenvolvimento das
forças produtivas podem levar a uma leitura prometeica de Marx. Nesta leitura, as
forças produtivas não mereceriam críticas, mas apenas as relações sociais de
produção. Por esse viés, a tecnologia sempre foi vista como o “lado bom do
capitalismo”.
Estudos mais recentes têm procurado balancear e complexificar a análise de
Marx sobre a tecnologia, ou de forma mais geral, sobre a dialética entre as forças
produtivas e as relações sociais de produção.
Kohei Saito, John Belamy Foster, Michael Lowy e István Mészáros para citar
apenas alguns - procuraram demonstrar que Marx era “ambientalista” e que seus
estudos apontavam as contradições das forças produtivas desenvolvidas no modo
de produção capitalista.
Grandes Corporações surgiram rapidamente no final dos anos 1970, no
chamado Silicon Valley. Assumiram a dianteira do capitalismo e produziram uma
nova revolução tecnológica e novas formas de alienação. Além de permitir ao
capitalismo estadunidense sobreviver frente ao avanço do dragão chinês, jogaram
no mercado capitalista inúmeros novos produtos, tais como o computador, o
notebook, fibra ótica, smartphones e tantos outros produtos tecnológicos circulando
na internet e mais recentemente, no Facebook, Instagram.
Estas novas tecnologias, combinadas com uma ampla reestruturação
produtiva, deram origem ao “regime de acumulação flexível”, dando nova vida ao
modo de produção capitalista e uma nova indústria cultural.
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LIMA FILHO, D. L. As inter-relações trabalho, tecnologia e cultura: bases para a formação integral
na Educação Profissional e Tecnológica. In: Domingos Leite Lima Filho, José Deribaldo Gomes dos
Santos, Henrique Tahan Novaes (organizadores). Educação profissional no Brasil do século XXI :
políticas, críticas e perspectivas : vol. 2. Marília : Oficina Universitária ; São Paulo : Cultura
Acadêmica, 2023.
Amazon, Mercado Livre, IFood novas plataformas digitais, novo mercado
consumir, mais ágil e mais “flex”, a ponto de se pedirmos um produto no site da
Amazon hoje, amanhã está na casa!
O fetiche das novas tecnologias na educação também merece algumas
considerações. Especialmente no contexto neoliberal, as novas tecnologias têm
aprofundado radicalmente a alienação do trabalho e produzido uma “nova” alienação
da humanidade. Partidos de direita e mais recentemente de extrema direita,
mercadores da educação como Renato Feder estão usando e abusando das novas
tecnologias e plataformas nos sistemas educacionais, como uma suposta solução
para os graves problemas educacionais brasileiros. No Estado de São Paulo, a nova
proposta é a tal da “Sala do Futuro”. Os professores tornam-se “leitores de slides”
prontos e feitos sabe-se por quem.
Se é fato que o uso e desenvolvimento de novas tecnologias na educação
vinha numa crescente, pode-se afirmar que a pandemia deu uma “turbinada” na
tendência à proliferação destas novas armas. O mercado das tecnologias de
educação e comunicação deu um salto substancial, e é parte do cotidiano escolar.
Especialmente pela ampliação de Corporações Educacionais que utilizam a EAD ou
de braços em EAD das Corporações Transnacionais da Educação.
A venda de novas mercadorias tecnológicas e a invasão de celulares na sala
de aula estão modificando radicalmente a realidade das escolas públicas e privadas,
levando a uma perda da autonomia dos professores e um novo ciclo de
mercantilização da educação. Somados a clássica precarização do trabalho docente
e a Reforma/ Deforma do Ensino Médio, essas mudanças têm produzido efeitos
nefastos na ignorância (planejada) da classe trabalhadora brasileira e de seus filhos
e uma nítida decadência ideológica das classes dominantes na educação.
No campo, tecnologias desenvolvidas particularmente no século XX levaram
à “industrialização da agricultura”. Em países como Brasil, Estados Unidos e Índia,
um novo ciclo de expropriação de terras (outrora comunais ou não mercantilizadas)
está ocorrendo. Além de serem um belo espaço para lucros ou lucros extraordinários
(basta lembrar que o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos no mundo), tratores
e implementos agrícolas, sementes transgênicas tornaram-se a base da “produção
destrutiva”, que tem acarretado inúmeros problemas socioambientais. No meio rural,
não se pode dizer que “as tecnologias servem para o bem ou para o mal,
dependendo do uso que delas se faz”. São tecnologias perigosíssimas e que
podem ser usadas para reforçar o modo de produção capitalista.
Os movimentos sociais, por sua vez, têm resistido a esta forma de produção e
destruição da vida, dos ecossistemas e das florestas. Os crimes ambientais
produzidos pelas corporações transnacionais do agronegócio estão sendo
contestados e alternativas ainda que quantitativamente pequenas têm sido
realizadas na prática. Uma delas é a produção agroecológica, em policultivos, e
formas de comercialização condizentes com esta produção, livre de venenos e livre
da reprodução do capital.
Este número da Revista Trabalho Necessário um destaque especial ao
debate do papel da tecnologia no capitalismo, a relação entre tecnologia, formação
humana e educação. Pesquisadores da área foram convidados, e uma chamada foi
realizada para estimular o envio de propostas de artigos.
Antonio Gramsci certa vez observou o papel educativo das Revistas, Jornais e
Livros criados pela esquerda. Se os capitalistas desenvolvem seus “Aparelhos
Privados de Hegemonia”, a classe trabalhadora e os movimentos sociais em geral
também desenvolveram seus aparelhos de hegemonia, tendo em vista a disputa da
hegemonia e a construção de uma sociedade autogovernada pelos trabalhadores
associados. Acreditamos que este número da Revista Trabalho Necessário cumpre
este papel fundamental na formação da classe trabalhadora e de seus intelectuais.
Feitas estas considerações gerais, passamos a uma descrição sintética da
organização e composição deste número temático da Revista Trabalho Necessário.
Iniciamos com a seção Homenagem, que traz o texto Opção trabalho e
educação: a trajetória de Celso João Ferretti. Os autores Ronaldo Marcos de Lima
Araújo e Dante Henrique Moura destacam a trajetória profissional do grande
pesquisador e ser humano Celso Ferretti, uma das figuras centrais na constituição
do campo crítico da pesquisa educacional brasileira e, mais decisivamente, do
campo Trabalho e Educação.
Na seção TEXTO CLÁSSICO, o pesquisador Daniel Romero, em À procura
de Galápagos: as hipóteses de Marx em ‘Fragmentos sobre as máquinas’ , tece
considerações e comentários sobre a importância deste texto de Karl Marx, que é
apresentado na íntegra em anexo. Dentre as inúmeras questões levantadas por
Marx, destaca-se a atualidade de uma delas: o que ocorre com o processo de
produção capitalista quando a técnica e a ciência se convertem, em escala sempre
crescente, em meios de produção?
A seção ARTIGOS DO NÚMERO TEMÁTICO traz um conjunto de 15 textos
selecionados, nos quais as relações entre tecnologia e formação humana são
abordadas a partir de uma gama diversificada de contextos, problemas, objetos,
lócus e sujeitos de pesquisa, a saber: políticas educacionais e o papel da
tecnociência solidária (Renato Dagnino); formação humana integral e estética
marxista (Benedita Alcidema Coelho dos Santos Magalhães e Ronaldo Marcos
de Lima Araujo); inovações científico-tecnológicas e seus desdobramentos e
interpretações (Lucília Regina de Souza Machado); a Teoria da Atividade de
Leontiev (Quenizia Vieira Lopes e Adriana Regina de Jesus Santos); a lei e a
política educacional como artefatos tecnológicos (Melissa Bertolini e Francis
Kanashiro Meneghetti); inteligência artificial e educação tecnobancária (Tiago
Fávero de Oliveira e Breno Apolinário da Silva); conceito de tecnologia e TDICs
na educação (Patrick Dutra e Rafael Rodrigo Mueller); EAD e suas implicações
para o trabalho docente (Filipe Bellinaso e Henrique Tahan Novaes); DCNs,
tecnologia e formação por competências (Luisa Manske e Mário Lopes Amorim);
tecnologia digital e a relação público privado na educação (Paula Valim de Lima,
Vera Peroni e Daniela Pires); desigualdades de acesso digital no Ensino Remoto
Emergencial (ERE) e práticas docentes (Maíra Fernandes Costa, Marília Abrahão
Amaral e Mario Lopes Amorim); transformações tecno-precarizantes e sofrimento
no trabalho docente (Flavia Maia Cerqueira Rodrigues e Carla Martins); o
teletrabalho na universidade pública (Merielle Martins Alves e Mário Borges
Netto); desenvolvimento e uso de aplicativos de tecnologia digital por organizações
de catadores de materiais recicláveis (Paula Dalmás Rodrigues,Sandro Benedito
Sguarezi e Douglas Alexandre de Campos Castrillon Junior); desenvolvimento
de tecnologias digitais para a comercialização de produtos da reforma agrária
(Nathalia Ferreira Gonçales e Celso Alexandre Souza Alvear).
Na seção OUTRAS TEMÁTICAS temos dois textos: o primeiro, de Priscila
Silva de Figueiredo e Rita Radl-Philipp, que aborda a problemática do trabalho
das mulheres quilombolas na luta pela terra; o segundo, de Felipe Alencar, que
trata da reforma do ensino médio paulista e seus efeitos, como o apartheid social e
educacional.
A seção RESENHA traz a apresentação de dois livros de publicação recente,
ambos relacionados à questão da tecnologia na atualidade: Colonialismo digital: por
uma crítica hacker-fanoniana (Deivison Faustino e Walter Lippold), resenhado por
Valdir Damázio Júnior; e Trabalho, tecnologia e atividade (Domingos Leite Lima
Filho e Rafael Rodrigo Mueller), resenhado por Patrick Dutra e Beatriz Almeida de
Oliveira.
Tecnologias digitais e plataformização do trabalho e da educação: desafios
para a classe trabalhadora é o título da ENTREVISTA concedida pela professora
Adriana Mabel Fresquet (UFRJ) aos pesquisadores do NEDDATE/UFF (professor
Regis Arguelles e professora Adriana Barbosa).
São apresentados dois ENSAIOS: Ensino Médio: pauta para debate, de
Paolo Nosella; e Sobre os déficits ecológicos na formação de economista, de
Eduardo Barreto.
A seção TESES E DISSERTAÇÕES traz os resumos expandidos da tese de
doutorado de Rosana de Fátima Silveira Jammal Padilha, intitulada A significação
da docência EBTT à luz da Teoria da Atividade e da dissertação de mestrado de
Luciano Silva com o título Educação e força de trabalho em uma economia
primário-exportadora: o panorama das ocupações para os egressos do ensino médio
da microrregião de Capanema-PR.
Na seção MEMÓRIA E DOCUMENTOS, que encerra o presente número da
Revista Trabalho Necessário, temos dois textos: o primeiro A disputa por políticas
públicas progressistas: relato da Conferência livre de tecnologia social, economia
solidária e tecnologia assistiva, de autoria de Felipe Addor, Sandra Rufino e Etiane
Araldi; o segundo, Decretos sobre educação a distância (EAD): alguns comentários,
de Francisco José da Silveira Lobo.
Como organizadores deste número, gostaríamos de agradecer o convite feito
pela incansável Profa. Dra. Lia Tiriba e toda a equipe técnica e de editores/as da
Revista Trabalho Necessário e ao apoio do coletivo do NEDDATE, que não
hesitaram em trabalhar arduamente durante estes 4 meses que levaram à
construção deste número.
Domingos Leite Lima Filho e Henrique Tahan Novaes
Marília, Curitiba e Niterói, 05/08/2024