V.22,
nº
49
-
2024
(setembro-dezembro)
ISSN:
1808-799
X
TRAÇOS
DO
TRABALHO
NA
REVISTA
TRABALHO
NECESSÁRIO
1
Guina
Araújo
Ramos
2
Há
cerca
de
um
ano,
num
sapateiro,
prestei
um
pouco
mais
de
atenção
a
um
“objeto”
que
conhecia
desde
a
infância:
a
placa
de
couro
rígida
(uma
delas)
que,
usada
como
base
para
marteladas
e
picotes,
apresenta
a
superfície
marcada,
cicatrizes
no
couro,
por
pequenos
círculos
e
longos
riscos.
E
não
foi
difícil
imaginar
quantas
dezenas,
centenas
de
vezes
os
sapateiros
usaram
a
placa
de
couro
para
ajeitar
uma
sola,
furar
um
cinto,
recortar
uma
camurça,
sei
lá
que
mais...
Foi
um
vislumbre:
percebi
que
eram
marcas
do
trabalho!...
Comecei
então
uma
série
fotográfica
a
que,
ampliando
o
âmbito,
chamei
de
Traços
do
Trabalho.
Minha
pretensão
era,
apenas,
a
de
mostrar
as
circunstâncias
em
que
ocorriam
(e
a
forma
como
se
apresentavam)
estas
“coisas”
(as
peças,
os
espaços,
mas
também
os
gestos)
após
ou
durante
uma
flagrante
situação
de
trabalho.
Em
consequência
(e
conscientemente),
abandonei
a
preocupação
com
a
identificação
do
trabalhador.
Ao
tomar
este
rumo,
aliás,
fiz,
mas
apenas
por
contingências,
uma
inversão
de
um
velho
paradigma
da
fotografia
social.
É
que,
a
princípio,
por
limitações
técnicas
(filmes
pouco
sensíveis,
câmeras
volumosas),
os
fotógrafos
(na
rua)
criaram
a
tradição
da
foto
do
trabalhador
com
o
seu
equipamento
(vendedoras
de
quitutes,
afiadores
de
facas,
fabricantes
de
cestos
etc.).
Agora
eu
percebia
que
o
trabalhador,
aquele
um,
é,
na
verdade,
a
síntese
de
muitos
outros
trabalhadores,
os
que
exercem
a
mesma
função.
Ou
seja,
a
identificação
da
pessoa
fotografada,
no
que
desvia
a
atenção
do
objeto
para
o
agente,
restringe
(ou
desvaloriza,
ou
limita)
a
representação
do
trabalho,
embora
esta
seja
uma
prática
necessariamente
humana.
Este
conceito
me
abriu,
de
imediato,
um
extenso
campo
de
observação,
e
em
poucos
dias
acumulei
centenas
de
fotos
(várias,
naturalmente,
de
cada
lance).
2
Mestre
em
História
Comparada
pela
Universidade
Federal
do
Rio
de
Janeiro
(PPGHC/IFCS/UFRJ).
E-mail:
guinaramos@gmail.com.
Lattes:
http://lattes.cnpq.br/6021416138026952.
1
Resenha
recebida
em
09/08/2024.
Aprovado
pelos
editores
em
31/09/2024.
Publicado
em
05/12/2024.
DOI:
https://doi.org/10.22409/tn.v22i49
1
Sempre
evitando
identificar
o
trabalhador,
como
expliquei,
mas
também,
agora
como
exercício
pessoal,
tratando
de
evitar
que
o
trabalhador
percebesse
que
estava
sendo
fotografado.
O
ganho
existencial
que
me
trouxe
este
investimento
(que
entendi
como
artístico,
apesar
de
sua
base
quase
antropológica)
foi
ainda
maior:
passei
a
perceber
trabalhos,
tarefas
e
serviços
que
nunca
havia
notado!...
E
isto
apenas
no
meu
entorno
casual,
nas
vizinhanças
e,
algumas
vezes,
em
viagens,
sem
ter
ido
a
qualquer
lugar
motivado
por
conseguir
mais
uma
foto
qualquer
para
a
série.
Por
outro
lado,
tentei
registrar
no
celular
(meu
instrumento
em
mais
de
95%
das
fotos)
todas
as
formas
de
trabalho
que
me
passavam
pelos
olhos,
formais
ou
não,
em
empresas
ou
na
rua,
legais
ou
duvidosas....
Não
tendo
pretensão
científica,
acadêmica
ou
técnica,
queria
apenas
publicar
nas
redes
sociais.
Mas,
para
isto,
se
tornou
necessário
agregar
outra
forma
de
expressão,
advinda
de
outras
pretensões
pessoais:
senti
a
necessidade
de
escrever
sobre
os
“traços
do
trabalho”.
E
daí,
atendendo
também
a
uma
generalizada
curiosidade
(“como
é
que
você
fez
esta
foto?”),
relatar
como
foram,
no
ato,
a
minha
experiência
de,
e
as
minhas
estratégias
para,
fotografar
estas
cenas.
Depois
de
mais
de
uma
centena
de
postagens
nas
redes
e
em
dois
blogues,
e
diante
de
outras
demandas,
o
meu
“ímpeto
editorial”,
que
até
incluía
(mas
ainda
inclui)
a
intenção
de
publicar
um
livro,
arrefeceu
um
pouco.
Com
mais
de
duas
centenas
de
imagens
à
espera
de
um
texto,
acervo
que
curto
apreciar,
tenho
apenas
publicado,
de
vez
em
quando,
algo
mais
imediato,
uma
foto
do
dia
ou
a
foto
de
um
tema
do
dia.
Diante
da
possibilidade
de
apresentar
Traços
do
Trabalho
neste
espaço,
e
agradecido
por
isto,
busquei
destacar
a
presença
da
juventude
na
série.
E
fiquei
surpreso
ao
ver
que
não
é
tão
majoritária
assim...
Daí
esta
heterogênea
seleção
(uma
síntese
da
séria
em
apenas
12
fotos
&
textos),
para
a
qual,
independentemente
da
idade
do
trabalhador,
achei
mais
valioso
optar
pela
relevância
da
imagem
e
da
situação.
Até
porque,
afinal,
em
qualquer
tarefa,
em
algum
momento,
gente
de
praticamente
qualquer
idade
poderá
deixar,
no
lugar
de
outros
trabalhadores
ou
sob
outras
condições
de
trabalho,
os
seus
próprios
traços
do
trabalho.
Toda
a
série
pode
ser
vista
a
partir
do
link:
<https://tracosdotrabalho.blogspot.com/>
2
O
lixo,
quando
envergonha
Foto:
Guina
Araújo
Ramos,
São
Paulo/SP,
2023
A
foto
foi
feita
em
São
Paulo,
no
início
de
junho
de
2023,
quando
eu,
a
pedidos,
estava
experimentando
(e
opinando
sobre)
doces
folheados
em
uma
charmosa
lanchonete,
uma
loja
aos
pés
de
um
grande
prédio
comercial
e
residencial.
Vi
na
esquina
o
rapaz
trazendo
sacos
de
lixo
em
uma
caçamba,
que
ia
amontoando
numa
espécie
de
depósito,
à
espera,
naturalmente,
do
caminhão
de
lixo
da
prefeitura.
Fiz
que
ia
fotografar
da
esquina
a
quina
do
prédio,
só
para
chegar
bem
perto.
O
rapaz
desconfiou
dos
meus
interesses
e,
enquanto
colocava
o
último
saco,
me
olhava
afrontosamente,
como
se
dissesse:
“quero
ver
se
você
vai
me
fotografar!”...
Fingi
absoluta
indiferença,
balançando
a
cabeça
como
se
procurasse
o
melhor
ângulo
da
quina
do
prédio.
Este
jogo
de
cena
entre
nós
dois
durou
alguns
segundos
até
que
ele,
aparentemente,
achou
que
o
perigo
havia
passado.
Virou-se
e
foi
fechar
a
caçamba,
para
encerrar
a
tarefa.
Era
justamente
o
que
eu
queria:
uma
foto
da
situação
em
que,
preferencialmente,
o
personagem
principal
não
pudesse
ser
identificado
ou
reconhecido.
Aí,
fiz
a
foto.
3
Percebi
claramente,
da
parte
dele,
uma
sensação
de
vergonha,
pela
tarefa
que
fazia.
O
que
compreendo:
não
se
dá
ao
trabalho
físico
o
valor
que
merece,
e
o
rapaz
parecia
alguém
que
almejava
outro
nível
de
reconhecimento
na
sociedade.
Porém,
é
um
trabalho
da
maior
dignidade,
da
maior
necessidade,
com
um
valor
que
não
é
qualquer
trabalho
intelectual
que
se
lhe
compara.
Ainda
mais,
diante
do
drama
ambiental
em
que
Humanidade
cada
vez
mais
se
afunda...
Pintor
de
paisagem
Foto:
Guina
Araújo
Ramos
-
Niterói,
2023
Talvez
não
haja
trabalho
mais
prazeroso!...
Bem,
certamente
haverá,
mas
não
vale
a
pena
comparar
aqui...
O
que
vale
destacar
é
este
trabalho
(digo,
arte)
em
pauta
(digo,
na
foto),
o
trabalho
de
pintor
de
paisagem,
se
não
digo
a
arte
de
retratar
a
paisagem.
Ou
será
que,
mais
precisamente,
devo
dizer
“a
paisagem
do
Rio”?
Tanta
boniteza
sempre
confunde
a
gente...
Mas,
dá
o
maior
prazer!...
Não
só
o
de
ver
a
pintura
em
sua
quase
completude,
posta
no
cavalete
à
beira
da
baía
da
Guanabara
como
se
uma
galeria
da
arte
tivesse
sido
propositalmente
deslocada
para
o
calçadão
(o
de
Icaraí,
Niterói)
apenas
para
possibilitar
uma
foto
completamente
inusitada,
ainda
mais
para
quem
acabava
de
parar
num
sinal
meio
trancado
e
não
conseguia
evitar
o
cometimento
de
uma
infração
de
trânsito...
E
dá
também
este
prazer
supremo
(do
ponto
de
vista
fotojornalístico)
4
de
aproveitar
uma
oportunidade
repentina
e
fazer
uma
foto,
em
si,
muito
prazerosa.
E
ainda
ter
a
surpresa
de
ver
trabalho
assim
realista,
mas
tão
calcado
na
metalinguagem,
posto
que
o
cinza
da
manhã
enevoada
já
havia
sido
transcendida,
pelo
artista,
no
seu
mergulho
paisagístico
nos
muitos
tons
do
azul
de
céu
acima,
o
das
montanhas
ao
longe
e
o
do
pacífico
mar
à
frente.
Segui
em
frente,
havia
mais
o
que
fazer...
E
fiquei
pensando
se
ainda
veria
uma
outra
vez
a
obra,
esta
pintura
da
paisagem
do
Rio
de
Janeiro
centrada
no
Pão
de
Açúcar
de
tanta
qualidade,
como
percebi
de
imediato
e
a
fotografia
confirmou.
Montadora
de
doces
folhados
Foto:
Guina
Araújo
Ramos,
São
Paulo/SP,
2023
A
profissional
exercia
esta
função
na
sofisticada
confeitaria
paulistana,
achei
incrível,
especializada
nesta
espécie
muito
especial
de
doces!...
A
tarefa
era
de
acesso
público,
podia
ser
vista
através
do
vidro
que
a
separava
(e
à
mesa
de
mármore)
dos
curiosos
(e/ou
gulosos)
clientes.
Faltam-me
conhecimentos
técnicos
(e
não
estava
preocupado
com
isso),
mas
me
parece
que
as
folhas
lhe
chegam
prontas
e
que
cabe
a
ela,
no
caso,
montar
camadas
e
camadas
de
massa
folhada
e
de
recheio
doce,
até
atingir
a
altura
suficiente
(atenção,
alerta!:
apesar
da
propaganda
intrínseca
ao
nome
do
doce,
nunca
colocam
mil
folhas!...),
e
depois
cortar
no
tamanho
apropriado,
se
não
ao
interesse
do
comprador,
a
um
bom
formato
de
venda
(notem
as
afiadas
5
lâminas
redondas).
Acompanhado,
que
eu
estava,
de
qualificada
profissional
do
ramo,
ouvi,
além
de
elogios
ao
produto,
um
princípio
de
crítica
à
ausência
de
luvas
no
preparo
dos
doces
folhados,
reclamação
que
acabou
suavizada
pela
constatação
de
que
realmente
não
deve
ser
fácil
manusear
tais
ingredientes
com
um
par
de
luvas
no
caminho
e
que,
afinal,
quem
garantiria,
depois
de
pronta
cada
remessa,
a
higiene
das
peças?...
Assim
muitos
doces
folhados
são
feitos
e,
já
que
chegamos
até
ali,
tive
o
prazer,
no
ato,
de
experimentar
um
deles:
posso
garantir
que
gostei...
Entregador
na
vitrine
Foto:
Guina
Araújo
Ramos
-
Niterói,
2023
Estava
eu
tomando
um
cappuccino,
à
espera
da
patroa,
quando
reparei
no
rapaz
atrás
do
carrinho
de
entrega
diante
das
vitrines.
Não
sei
se
estava
chegando
ou
saindo,
mas
ficou
um
bom
tempo
ali
parado,
dando
voltas
entre
uma
coisa
e
outra.
Apurando
bem
a
observação,
notei
que
seu
foco
de
atenção
era
mesmo
a
vitrine
das
jóias
e
dos
relógios,
e
não
a
da
lingerie
negra,
com
o
reforço
da
sugestiva
foto
da
modelo
de
lábios
carnudos
toda
em
vermelho.
E
eu
fiquei
pensando
o
quanto
e
de
que
maneira
um
jovem
recém
adulto,
com
seu
trabalho
pesado,
passou
a
se
interessar,
simplificando
a
questão,
mais
por
dinheiro
do
que
por
sexo...
Depois
de
longos
minutos
de
enlevo,
ele
afinal
pegou
o
carrinho
pelos
6
chifres,
trouxe-o
até
a
horizontal,
girou
sobre
si
e
saiu
fora
shopping,
puxando
atrás
dele
o
peso
das
suas
condições
objetivas
de
inserção
na
tão
atraente
sociedade
capitalista
em
que
lhe
coube
viver...
(Fiz
toda
a
sequência,
mas
esta
é...
a
foto!)
Garçom
de
restaurante
de
rua
Foto:
Guina
Araújo
Ramos
-
Niterói,
2023
Jogo
de
futebol
em
noite
de
semana
é
certeza
de
grande
freguesia
nos
restaurantes,
ainda
mais
dos
que
têm
o
privilégio
de
espalhar
as
suas
mesas
pela
calçada.
Os
clientes
torcedores
se
acomodam
na
melhor
posição
possível
em
relação
às
telas
de
TV
penduradas
nos
cantos
do
salão
(ou
da
calçada)
e,
com
exceção
de
uns
chatos
que
não
param
de
falar,
a
plateia,
digo
a
clientela,
se
mantém
num
respeitoso
silêncio,
ao
menos
até
o
agito
de
um
gol
no
telão...
É
neste
contexto
que
os
garçons
têm
que
trabalhar.
Em
geral,
jovens
bem
informais,
eles
circulam
pelas
mesas
com
a
devida
rapidez
(para
não
atrapalhar
a
visão),
adivinham
os
pedidos
dos
clientes
(que
até
esquecem
de
chamá-los)
para
novas
levas
de
bebida
(cerveja
ou
chope?)
e,
mesmo
vendo
o
jogo
de
soslaio,
também
torcem
um
pouquinho,
disfarçadamente,
pelo
seu
time
preferido.
7
E
no
final,
fim
de
jogo,
conta
fechada,
ainda
precisam
ter
um
tanto
de
paciência
com
o
mau
humor
dos
clientes
torcedores
perdedores
da
noite...
Os
dois
lados
do
balcão
Foto:
Guina
Araújo
Ramos
-
Niterói,
2023
Há
milhares
de
tipos
de
lanchonetes,
este
espaço
tão
trivial.
Há
aquelas
das
grandes
redes
que
se
espalham
pelo
país
e
há
as
dos
comerciantes
esforçados
com
seus
poucos
recursos
para
bancar
uma
loja.
E
há
a
que
não
existe
por
si,
a
que
não
é
de
uma
loja
de
rua.
É
parte
de
outro
estabelecimento,
por
exemplo,
um
ambiente
menor
de
um
grande
comércio
de
frutas
(e
de
outros
alimentos),
mais
um
subproduto
de
um
"hortifruti".
Uma
lanchonete
que
serve
sucos
saudáveis
e
comidas
leves,
e
tem
mesas
simples,
que
servem
não
para
encontros
românticos
ou
de
negócios,
mas
apenas
para
o
cliente
relaxar
das
compras.
Um
padrão
de
lanchonete
válido
para
praticamente
qualquer
país
ocidental,
e
outros.
Mas,
são
as
pessoas
de
um
lado
e
de
outro
do
balcão
que
marcam
a
presença
do
histórico
padrão
brasileiro
de
relações
sociais,
o
que
vale
para
praticamente
todos
os
balcões
do
país.
De
um
lado,
a
dona
(de
casa?)
comprando
seus
petiscos
e
um
suco.
De
outro,
a
garçonete
de
uniforme
branco
e
touca
de
cabelo,
que
a
atende.
Quem
compra
é
uma
mulher
branca
de
certa
idade,
que
usa
o
seu
dinheiro;
quem
atende
é
uma
jovem
mulher
negra,
que
faz
o
seu
trabalho.
8
Guardião
voluntário
do
patrimônio
Foto:
Guina
Araújo
Ramos
-
Cabo
Frio/RJ,
2023
Em
Cabo
Frio/RJ,
em
visita
profissional,
à
espera
de
autoridades,
demos
um
tempo
no
pátio
do
Museu
de
Arte
Religiosa
e
Tradicional,
instalado
no
antigo
Convento
de
Nossa
Senhora
dos
Anjos,
ao
lado
da
igreja
que
lhe
dá
o
nome,
acompanhado
apenas
por
um
estagiário
de
Comunicações
do
museu.
Aí,
estando
aberta
a
porta
lateral,
procedemos,
naturalmente,
tal
qual
o
cachorro
da
antiga
piada:
entramos
na
igreja.
E
fomos
dar
uma
olhada
nos
detalhes
daquela
construção
colonial,
concluída
em
1696.
O
destaque,
para
o
nosso
tema,
foi
o
estagiário.
Cuidou
de
não
interferir
e
até
nos
serviu
de
guia,
tirando
várias
de
nossas
dúvidas.
Mas,
afinal,
admitiu,
com
talvez
uma
ponta
de
orgulho:
estava
mesmo
era
tomando
conta
do
patrimônio!
9
Distribuindo
carrinhos
Foto:
Guina
Araújo
Ramos
-
Niterói,
2023
Tem
que
organizar!...
Um
grande
supermercado,
com
milhares
de
clientes,
com
várias
portas
de
entrada,
com
a
utilização
desbragada
dos
carrinhos
de
compra
tem,
sim,
que
organizar...
Ora,
os
funcionários
não
podem
deixar
que
todos
carrinhos
fiquem
abandonados
no
estacionamento
do
subsolo
ou
que
fiquem,
por
outro
lado,
pelo
lado
de
cima,
amontoados
na
portaria
principal.
No
que
chega,
o
cliente
chega
aflito
para
garantir
o
seu
carrinho
de
compras,
precisa
amontoar
as
suas
compras
no
seu
próprio
carrinho.
Pois,
é
aí
que
entra
o
organizador
(ou
arrumador,
ou
movimentador)
de
carrinhos
de
compras
(ou
sei
lá
que
título
este
trabalhador
tem),
que
o
é
ao
menos
enquanto
empurra
e
puxa
os
carrinhos.
Sendo
o
supermercado
assim
tão
grande,
há,
na
verdade,
vários
empregados
dedicados
à
tarefa,
ao
menos
de
vez
em
quando.
E
de
vez
em
quando
entram
todos
em
ação
ao
mesmo
tempo.
Trazem
pra
cá,
levam
pra
lá
(jogo
rápido!),
até
que
se
estabelece
uma
distribuição
razoável,
equilibrada,
sensata,
o
que
é
iniciativa
fundamental
para
que
o
comprador
não
deixe
de
ficar
satisfeito
logo
na
entrada
do
estabelecimento...
Afinal,
há
coisa
mais
desagradável
para
o
sempre
estressado
cliente,
incômoda
mesmo,
do
que
ter
que
fazer
uma
grande
compra
segurando
cestinhas?...
Ou,
pior,
ter
que
brigar
com
uma
pessoa
desconhecida
para
garantir
o
seu
carrinho,
que
passa
a
ser,
nessa
hora,
um
verdadeiro
objeto
de
estimação?...
10
E
para
isto
a
rapaziada
não
poupa
esforços:
sobe
e
desce,
vai
e
volta,
e
coloca
à
disposição
do
cliente
todos
os
carrinhos
disponíveis,
que
o
cliente
precisa
ter
logo
um
deles
à
mão,
até
porque
se
não
há
carrinho
para
carregar
nem
dá
pra
dizer
que
se
está
em
um
verdadeiro
supermercado...
O
ciclista
no
celular
Foto:
Guina
Araújo
Ramos
-
Niterói,
2023
Esta
é
uma
foto
que
persegui
durante
toda
esta
série
Traços
do
Trabalho
:
a
imagem
de
um
ciclista
circulando
pelas
ruas
enquanto
dá
uma
olhadinha,
às
vezes
demorada,
no
seu
celular.
Destas,
já
havia
feito
outras
antes,
outros
ciclistas
atentos
ao
celular
em
pleno
trabalho
de
circular.
Mas,
desta
vez
a
chance
foi
das
boas:
consegui
tirar
três
fotos
enquanto
andava
em
paralelo
a
ele,
que
não
tinha
pressa.
Também
já
vi
motociclistas
vendo
o
celular
enquanto
corriam
na
pista
(e
já
vi
vários),
em
plena
ação
e
com
mais
velocidade,
mas
estes
são
realmente
difíceis
de
fotografar...
De
motociclistas,
só
os
parados
no
sinal
ao
meu
lado...
Fica
aqui
a
minha
curiosidade:
será
que
tanto
ciclistas
quanto
motociclistas,
como
já
me
aconteceu,
também
são
multados
pelo
"uso
do
celular
na
direção
de
veículo"?...
11
Capricho
no
atendimento
Foto:
Guina
Araújo
Ramos
-
Niterói,
2023
No
posto
de
gasolina
o
trabalho
não
para,
nem
mesmo
em
uma
manhã
pós-
Natal:
o
povo,
no
que
pega
o
carro,
ou
vai
ou
racha!
Quer
dizer,
ou
melhor
dizendo:
quem
tem
carro
ou
viaja
ou
passeia,
ou
retorna
ou
cai
fora...
E
os
rapazes
(e
meninas,
às
vezes,
também),
a
pedido
dos
motoristas,
dão
logo
um
capricho,
nem
que
seja
uma
rápida
lavada
nos
vidros.
E
ele
o
faz,
antes
de
mais
nada
por
gentileza,
mas
também
na
expectativa
de
que
o
cliente
deixe
uma
boa
gorjeta
na
caixinha
de
Natal,
antes
que
siga
adiante,
que
daqui
a
pouco,
todos
bem
abastecidos,
terão
todos
que
viajar
por
mais
um
Ano
Novo
e
adiante...
Estoque
de
transportes
Foto:
Guina
Araújo
Ramos
-
Niterói,
2023
12
De
repente,
aqui
na
vizinhança
abriram
uma
loja
sem
clientes.
De
fora,
vê-se
apenas
uma
espécie
de
tapume,
com
porta
e
guichê,
e
seus
produtos
são
exclusivamente
hambúrguer.
Parece
ser
uma
marca
conhecida,
prestigiada,
procurada,
ao
menos
para
os
apreciadores...
O
atendimento
é
diferente,
considero
até
meio
surrealista:
atende
por
demanda
externa,
digo,
por
pedido
virtual
através
de
aplicativo,
talvez
por
telefonema
ou
e-mail,
sei
lá…
Do
ponto
de
vista
dos
vizinhos,
a
grande
mudança
foi
a
transformação
no
ambiente
da
calçada.
Agora,
funciona
ali
praticamente
o
tempo
todo,
um
estacionamento
de
transportadores,
um
estoque
de
transportes.
O
qual,
ao
que
parece,
atende
tanto
no
varejo
(via
motos)
quanto
no
atacado
(via
bicicletas).
Ou,
tentando
entender
melhor,
suponho
que
a
hamburgueria
vende
tanto
para
o
indivíduo
faminto
que
liga
desesperado
quanto
para
o
empresário
esperto
que
precisa
atender
à
clientela
com
um
investimento
baixo.
Bem,
talvez
não
seja
bem
assim,
preciso
investigar,
darei
notícias,
mas
neste
texto
rápido
o
que
importa
é
o
que
cabe
na
foto,
pois
representa
tantos
outros
momentos:
o
plantão
dos
entregadores.
A
maioria
deles
num
banco
à
entrada
da
loja,
mas
o
da
foto,
desde
já
montado
na
sua
moto,
certamente
impaciente
pela
próxima
entrega
que
fará...
Gari
voador
Foto:
Guina
Araújo
Ramos
-
Niterói,
2023
O
termo
“gari”
vem
do
francês
Pedro
Aleixo
Gary,
fundador
da
primeira
empresa
de
coleta
de
lixo
do
Rio
de
Janeiro,
em
1876.
“Valorizando”
o
13
trabalhador,
o
termo
gari
se
espalhou
pelo
país,
substituindo
a
palavra
“lixeiro”
(e
até
propuseram
“Operário
do
Meio
Ambiente”).
Na
prática,
são
até
“invisibilizados”
pelos
preconceitos
sociais
(como
demonstrou
um
pesquisador
da
USP
que,
sem
ser
reconhecido
pelos
colegas,
se
fez
de
gari
durante
anos).
Enfim,
é
trabalho
árduo...
E
que
se
torna
pior
nas
cidades
que,
restringindo
os
direitos
do
trabalhador,
terceirizam
a
coleta
de
lixo
(ou
dos
“resíduos
sólidos”).
Restam,
para
alguns,
seus
momentos
de
brilho:
a
admiração
das
crianças,
ou
o
sucesso
do
gari
que
desfila
no
Carnaval
do
Rio,
e
dos
que
cantam
e
dançam
enquanto
trabalham
etc.
Então,
incluo
nesta
relativa
compensação
social
os
momentos
em
que
o
gari
é
o
dono
do
pedaço,
organizando
o
espaço
enquanto
limpa
a
área.
E,
acima
de
tudo
(supondo
que
alguns
o
façam
com
o
maior
prazer),
quando
desliza
pela
cidade,
quase
por
cima
dos
carros,
agarrado
nos
corrimãos,
apoiado
em
apertados
estribos
(aliás,
algo
questionado
na
Justiça),
até
que
se
sinta,
por
alguns
instantes,
um
gari
voador...
Niterói,
30/06/2024
Sobre
o
autor:
Aguinaldo
(Guina)
Araújo
Ramos
é
formado
em
Ciências
Sociais
(IFCS/UFRJ,
2001),
pós-graduado
em
"Fotografia
como
Instrumento
de
Pesquisa
nas
Ciências
Sociais"
(UCAM,
2002)
e
Mestre
em
História
Comparada
(PPGHC/IFCS/UFRJ,
2008).
Trabalhou
como
fotojornalista
(Bloch,
1976/1980,
e
Jornal
do
Brasil,
1980/1986)
e
como
fotógrafo
freelancer
na
imprensa
(Estadão,
Folha,
IstoÉ,
Veja,
Visão)
e
empresas
(Furnas,
CSN,
Shell,
Esso
etc.)
(1986/2010).
Vencedor
do
Concurso
Literário
Teixeira
e
Souza
(Cabo
Frio,
RJ,
2007).
Premiado
no
Concurso
Contos
do
Rio
(caderno
Prosa
&
Verso,
jornal
O
Globo,
2006).
Finalista
do
Prêmio
SESC
de
Literatura
(2005),
categoria
Romance.
Recebeu
o
Prêmio
Funarte-Marc
Ferrez
de
Fotografia
2010
(categoria
Pesquisa).
É
coautor
do
livro
“Apoena
–
o
homem
que
enxerga
longe”
(2007).
Publica
fotos
&
textos
e
crônicas
fotográficas
nas
redes
sociais
e
em
diversos
blogs
de
sua
autoria.
14
Publicou
(todos
por
Guina&dita)
os
livros
"2112
...é
o
fim!"
(2013)
e
“Rio
Só
de
Amores”
(2014),
contos;
“A
Outra
Face
das
Fotos”
(2014),
memórias;
“Personagem
Cabal”
(2016),
fotos
&
textos;
"O
Jogo
do
Resta
Um
-
romance
sócio
antropológico
quase
histórico,
pouco
político,
meio
filosófico,
muito
econômico"
(2017),
romance;
"[O
dos]
Bonecos
e
[a
das]
Pretinhas"
(2017),
novela
fotoilustrada.
E
mantém
cerca
de
duas
dezenas
de
blogs
com
temas
diversos.
15